Karl Rahner, Meditação sobre a palavra “Deus”
A palavra “Deus” haveria de desaparecer sem vestígio e sem resto; sem deixar para trás um vazio que seja ainda visível; sem que seja substituída por uma outra palavra, que nos convoque no mesmo modo; sem que por essa palavra seja ao menos colocada, mesmo que seja apenas uma pergunta, já que não se quer ouvir essa palavra como resposta. O que seria então, se tomarmos a sério esta hipótese futurista? Então, o homem não seria mais colocado diante do todo da realidade como tal e não mais diante do todo da sua existência como tal. Pois, justamente a palavra “Deus”faz isto e somente ela, seja como for que ela tenha sido determinada foneticamente ou que virá a ser determinada no futuro. Se não houver realmente a palavra “Deus”, então não haveria mais para o homem esse duplo do todo da realidade como tal e da existência, na implicância desses dois aspectos. Ele haveria de se esquecer, sem resto, de cada particular no seu mundo e na sua existência. Ele nem sequer, ex supposito, entraria no estado de perplexidade, mudo e preocupado diante do todo do mundo e de si mesmo. Nem sequer haveria de perceber que ele apenas é um ente particular, mas não o ser como tal, que agencia apenas perguntas, mas não pondera a pergunta pelo perguntar como tal; manipula apenas sempre de novo momentos particulares da sua existência, mas não mais se coloca diante de sua existência como una e toda. Ele haverá de entalar-se no mundo e em si; não mais realizará aquele processo cheio de mistério que ele é, no qual, ao mesmo tempo, pensa com rigor a si mesmo como uno e todo, onde livremente assume sobre si o todo do “sistema” que ele é com o seu mundo; assim, faz a si uma super-oferta de si e transcende para dentro daquela apatridade (Unheimlichkeit) silenciosa que aparece como um nada, a partir da qual agora vem a si e ao seu mundo, em demitindo (absetzend) e em retomando (übernehmend) a ambos. O homem teria esquecido o todo e o seu fundo e, ao mesmo tempo, teria esquecido (se é que se pode dizer assim) que ele esqueceu. O que seria então? Nós podemos apenas dizer: ele haveria de cessar de ser homem. Ele teria tomado a encruzilhada de volta para um animal esperto. Nós, hoje, não podemos mais dizer tão facilmente que homem já está lá, onde um vivente desta terra anda de pé, faz fogo e trabalha uma pedra lascada para fazer um machado. Nós podemos apenas dizer que então é um homem, se este vivente, em pensando, em falando (worthaft) e na liberdade, traz diante de si o todo do mundo e da existência e o coloca em questão, mesmo que, nisso tudo, ele emudeça e fique perplexo diante desta questão una e total.
Assim, seria talvez também pensável – quem o sabe com precisão? – que a humanidade morra duma morte coletiva pelo estado do progresso biológico e técnico-racional e se transmude de volta num estado de cupins, animais extraordinariamente espertos. Seja tudo isso uma real possibilidade ou não, ao crente, ao que fala a palavra “Deus”, essa utopia não assusta como um desaforo a sua fé. Pois, ele conhece sim uma consciência biológica e (se a gente o quer chamar assim) ele conhece uma “inteligência” animal, na qual a questão pelo todo como tal não irrompeu, na qual a palavra “Deus” não se tornou destino; e ele não se atreverá a dizer com tanta facilidade o que uma tal “inteligência” biológica consegue realizar, sem escorregar para dentro do destino que está sinalizado com a palavra “Deus”. Mas, propriamente, existe o homem somente, onde ele, ao menos como questão, ao menos como negação questionante, diz “Deus”.
Quem é isto propriamente, Deus? Ponto de vista da psicologia profunda – Albert Görres
Albert Görres * 1918; Professor catedrático da psicologia clínica da Universidade de Munique, psicoanalista; publicações: Método e experiências da psicanálise (existe tradução em português, Vozes, 1963); Patologia do cristianismo católico; Psicoterapia médica e medicina psicossomática; Nos limites da psicanálise etc.
Resumo dos pensamentos da conferência:
– * A pergunta “Quem é isto propriamente, Deus” não se dirige somente aos teólogos e aos crentes, mas também à ciência secular. Perguntemos pois: o que sabem responder as ciências experimentais a essa pergunta? Resposta: elas não sabem responder quase nada a essa pergunta! Por quê? Porque todas as ciências experimentais são “ateístas” no sentido de que a divindade não pertence ao seu objeto nem pode ser tocada ou captada por seus métodos.
– * A psicologia ocupa nessa colocação, no entanto, uma posição sui generis: ela pergunta acerca da experiência e do comportamento do homem. Também aqui, ao examinar a experiência e o comportamento humano, não encontra Deus, mas sim fatos psicológicos: que há crença e descrença, amor de Deus e ódio de Deus, indiferença religiosa e paixão religiosa; e que todos consideram todas essas impostações como adequadas e justificadas ou não.
– * A meditação de Rahner mostrou que a palavra “Deus” é inextinguível da nossa vida, enquanto não regredirmos ao estado do bicho “esperto”; ela sempre está na nossa consciência como indicação da questão aberta. Todos nós, i. é, cada um de nós sabe o que a palavra significa, e todos, i. é, cada um de nós, toma de alguma forma posição diante dessa palavra, seja pensando ou sentindo, seja consciente ou inconsciente. Sobre isso, a experiência psicológica e psicoanalítica pode dizer algumas palavras.
– * O homem da Idade Média vivia preso a Deus quase como que numa prisão. Fé, ciência e sociedade faziam com que lhe fosse quase impossível duvidar de Deus. Mas o homem foge do que obriga, da imposição, mesmo que essa obrigação seja a pressão da lógica.
– * O homem de século XX carrega consigo, de modo cada vez mais crescente, a liberdade de ter essa palavra por aquilo que ele quer. Nenhuma pressão da lógica hoje dominante, nenhuma pressão da sugestão social, nenhum poder político, nem mesmo uma clara voz da consciência nos obriga a tomar uma determinada forma de posição: podemos aceitar a Deus, colocá-lo em dúvida, rejeitá-lo; podemos preferir o panteísmo, o catolicismo, o agnosticismo, o marxismo, a antroposofia, o protestantismo, o budismo, o bramanismo, o xintoísmo etc.; podemos amá-lo, odiá-lo, deixá-lo ser um morto ou vivo; podemos fazer dele o que bem entendemos, que jamais canta um galo como cantou no caso de São Pedro. Cada jornal, desde o mais conceituado até o mais insignificante folhetim, qualquer pessoa, desde as mais graúdas até as mais ignorantes, se quiser, pode negar ou interpretar a Deus como lhe convém, sem que se corra o risco de uma pressão ou uma represália intelectual; portanto podemos talhar o conceito de Deus ao nosso bel-prazer, sem nos arriscarmos seriamente, nem intelectual nem humanamente.
– * Essa liberdade de poder ser senhor soberano de si mesmo, por sua própria conta, sem consideração ao céu ou ao inferno, à recompensa ou ao castigo de um julgamento divino, traz consigo uma fascinação e um prazer todo próprios; mas talvez também ao mesmo tempo crescente superficialização, achatamento e esvanecimento da existência humana usual (durchschnittliche).
– * Nos tratamentos psicanalíticos e mesmo fora deles, pode ocorrer não raras vezes que pessoas tenham insight dessa situação com inquietação. Elas se questionam, se também sua crença ou descrença, sua mundividência, sua teoria de Deus, ou seu ateísmo não poderiam ter surgido e manter-se de tais ajuntamentos de opiniões esfaceladas; se sua teologia ou antiteologia não poderia ser o produto de preconceitos, interesses e sugestões alheias, um estacionar-se na crendice e credibilidade infantil ou na teimosia e no fincar pé reacionário de autoafirmação da puberdade.
– * Nos outros tratamentos psicanalíticos, muitos pacientes se chocam com o pensamento de que também um Deus não comprovado poderia ou deveria ser merecedor de consideração; e eles se assustam com esse pensamento. Eles o sentem o entrar de novo no mundo solitário e desértico da crença abandonada ser tão terrível como a entrada livremente assumida numa prisão ou ao menos numa caserna. E, no entanto, permanece a evidência de que também um Deus, mesmo apenas provável ou possivelmente existente, mesmo reconhecido vagamente ou apenas suspeitado, poderia ter pois direito às exigências e indicações, as quais deveriam ser consideradas e reconhecidas, pois ninguém pode ser dispensado de respeitá-las.
– * Tal exame de consciência psicanalítico esbarra muitas vezes em bem determinados e típicos impedimentos, que dificultam imensamente colocar a questão de Deus autenticamente. Esses impedimentos são em parte de natureza afetiva, em parte de natureza intelectual.
– * De natureza intelectual: A resposta judeu-cristã da tradição à questão “Quem é isto propriamente, Deus” coloca o espírito pensante diante de uma exigência muito grande: Por um lado, esta resposta é de uma obviedade transparente, clara e brilhante, mas, por outro, ela é absurda pura e simplesmente. A obviedade é esta: Se a palavra “Deus” deve ter um sentido como tal, a realidade que ela indica deve ser mais do que o homem e nunca menos. Divino não pode ser o que tem um nível de ser menor do que nós. Um algo metafísico ignorante, inconsciente, cego e bronco seria menos do que nós homens, por mais poderosa que seja a força que este algo possua. Um ente que possuísse força de conhecimento imensa, poderosa, mas sempre limitada, portanto força que sempre é passível de evolução e crescimento, seria um índice para um deus medíocre, um meio-deus. A diferença entre ele e os homens seria comparável a de um gênio e um imbecil. Ele poderia ter ao seu redor outros concorrentes menos poderosos, os quais seriam como que acompanhantes a modo de Olimpo, Floresta de Wotan, ou templo de Krischna. Todas essas colocações e seus adjetivos atribuídos a deuses seriam indignos de Deus. A força destruidora que jaz num tal pensamento simples derrubou as estátuas dos antigos deuses e há de destruir para o futuro qualquer resto do paganismo politeísta que ainda possa existir. A luz racional de tais considerações permitiu por séculos a fio que a herança cristã do esclarecimento judaico e grego pudesse ser aceita obviamente e com facilidade, e possibilitou crer num ser absoluto infinitamente transcendente e superior ao homem através de conhecimento ilimitado, poder infinito, perfeição e santidade. E um psicoterapeuta encontra ainda hoje muitas pessoas que experimentam suficientemente essa luz, de tal maneira que se lhe torne possível viver essa crença sem perturbação.
– * Justamente essa luz, no entanto, lança sobre a razão humana e muito mais sobre o sentimento humano uma sombra impenetrável. Um olhar retrospectivo sobre a experiência da humanidade e da história, na qual o destino de Sodoma e Gomorra , i. é, perversão, decadência, devastação, sangue e lágrimas, dor e morte até hoje é o cotidiano da história, deixa não somente a mulher de Lot, mas a nós todos petrificados de terror e perplexidade. Nessa história, onde fica a divindade que tudo sabe, tudo pode, que é a bondade personificada, Deus de amor? A doutrina cristã de Deus seria evidente e nos iluminaria se não existisse o mundo!
Para compreender melhor (ou pior) a última apostila
Razão no sentido tradicional
A realidade do universo que existe em si, antes e independente do homem é algo óbvio e natural. O universo é povoado de milhares e milhares de diferentes entes, e entre esses entes há um ente todo próprio, destacado de modo todo excelente, dotado de faculdades chamadas razão, vontade e sentimento, através das quais entra em relacionamento com os entes que estão ao seu redor, consigo mesmo e com o todo do universo, no sentido de o conhecer, o buscar, o querer e o transformar, na medida e no âmbito de sua possibilidade. Nesse relacionamento cognitivo e volitivo de si e dos entes no seu todo, o homem compreende o que é e como é cada ente e os entes no seu todo, busca compreender tudo de modo cada vez mais unitário, coerente, numa fundamentação cada vez mais bem concatenada, tenta descobrir a última razão, o último porque de todas as coisas. E nessa busca pode descobrir uma presença anterior a todas as coisas, anterior ao próprio homem, que busca o sentido de todas as coisas. A essa presença, ele chama de diversos modos, como p. ex. de espírito, vida, Deus, universo cósmico, alma do mundo etc. Essa presença anterior pode ser considerada como a razão derradeira e primeira, o móvel e a orientação fundamental de todos os entes no seu todo, como fonte de existência, de permanência e consumação de todas as coisas, que foram, são e serão. O próprio homem seria então como que colaborador dessa presença anterior, na participação e na busca de realização, tornando-se cada vez mais adequado a essa presença anterior e ao seu modo. O homem, assim colocado, dentro de tal moldura do universo já prejacente e naturalmente dado, possui como sua tarefa e prerrogativa essa participação na grande razão do universo ou na razão transcendente ao homem e ao universo. A essa participação e a essa responsabilização pelo espírito, chamamos de razão no sentido tradicional.
Seria de importância examinar nessa colocação o esquema da predominância do espiritual, do inteligível, do transcendente e transcendental sobre o sensível, o material visível e o empírico.
Razão no sentido moderno
Essa situação tranqüila da existência em si do universo como um fato, dado óbvia e naturalmente, entra em questão. Pergunta-se pela fundamentação da certeza dessa crença na realidade do universo como um dado óbvio e natural.
Duvida-se da validade do conhecimento sensível: externo e interno.
Duvida-se da validade do posicionamento da realidade como em si.
Duvida-se da validade dos objetos ideais: estruturas lógico-matemáticas.
Duvida-se da realidade da presença anterior e transcendente a todas as coisas e ao próprio homem. Também podemos examinar o que se pode duvidar além de todos esses níveis de “realidades”.
O que sobra como indubitável? O Cogitans: o ser do cogitans. Como entender esse Cogito ergo sum?
O Sum como substância (Espinoza), como razão pura (Kant), como espírito (Hegel), como vontade do poder (Nietzsche) etc.
O estágio final de consumação da predominância do espiritual, do inteligível, do transcendente e transcendental sobre o sensível, o material visível, o empírico.
Redução da razão ao fato das ciências naturais
Com a redução do homem a uma coisa entre outras coisas da natureza e com a descoberta da natureza das ciências naturais, a razão se transforma num epifenômeno de dados empíricos bio-fisiológicos do corpo físico humano.
No entanto, o princípio que norteia e determina nas ciências naturais o que deve valer como verdade é o princípio de autopresença do espírito nele mesmo, o princípio de evidência da autodoação da coisa ela mesma: res cogitans = res extensa = duas modalidades do mesmo = autopresença = autoidentidade = dinâmica do eu transcendental = existência e existencial = transcendência = liberdade.
Trazer à tona a estrutura da existência no seu ser (liberdade) é a tarefa da analítica da existência.