Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Encontro acerca da formação, Carnaval de 2008

16/04/2021

 

Introdução

Como uma espécie de aquecimento, vamos ler e refletir um pequeno texto de Kant, que se intitula Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento?

Por que no primeiro dia dum encontro, onde vamos refletir sobre a formação franciscana e a formação para a Vida Consagrada, iniciamos com um texto filosófico e quiçá de um pensador moderno, tido muitas vezes no nosso meio religioso como secularizado, racionalista e inimigo da metafísica (leia-se do sobre-natural)?

É que hoje, no nosso meio religioso-clerical, percebemos em vários dos nossos encontros e das reuniões, um crescente aumento de mentalidade fundamentalista (seja ela tradicionalista, progressista ou neutralista), todas elas de algum modo, eivadas de um infantilismo espiritual antiracionalista, estético-vivencialista, receosas de autonomia do mundo e do homem da secularização, girando ao redor de nós mesmos, ocupadas e centradas privativa e individualisticamente em problemas de nossa realização “pessoal”.

Para abordarmos, de alguma forma, essa nossa situação, vamos começar as nossas reflexões do encontro desse ano, lendo o acima mencionado texto de Kant que trata do problema da menoridade e do Esclarecimento.

O nome Esclarecimento, segundo Aurélio, indica “Movimento filosófico do século XVIII que se caracterizava pela confiança no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento. Sinônimos do Esclarecimento são Iluminismo, Ilustração, Filosofia das luzes[1].

O pensamento filosófico, quando transformado em movimento, seja cultural, político, ou social, torna-se mundividência, se não ideologia, e fixa toda uma maneira de compreender a realidade, cujos sinônimos são Vida, Mundo, Ser, estabelecendo-se como doutrinas, i. é material preestabelecido de ensino e aprendizagem escolar, explicações, leis e normas, teoria e praxe de visões e comportamentos acerca das três grandes regiões do ente, intituladas: Deus, Homem e Universo. O pensamento filosófico, já transmutado em mundividências e ideologias, cuja formulação sempre termina em – ismos[2], quando virado para fora, para a publicidade, constitui o que denominamos de aspecto exotérico[3]. O contrário, ou a orientação contrária é esotérica que vem de εσώτερος, a saber, interior, dentro, virado para dentro; para os de dentro. Daí a conotação de algo secreto, escondido, conhecido somente aos que estão iniciados no segredo do grupo. Filosofia na sua tendência própria não é exotérica, mas sim esotérica, por buscar sempre e cada vez de novo os fundamentos das pré-suposições do nosso saber, principalmente da própria filosofia. E nessa acepção ela é de-construtiva. É busca da origem. Nessa orientação própria e essencial a ela, jamais é fundamentalista, mas sempre fundamental. Por isso todo e qualquer pensador, seja de que época for, se é pensador, deve ser considerado nesse acima mencionado aspecto esotérico ou interior.

O que se apresenta ao público enquanto aspecto exotérico do Esclarecimento como iluminismo, para os que se acham no tradicionalismo (os tradicionalistas) dentro do cristianismo sabe a racionalismo, relativismo, progressismo, cientificismo, sim ateísmo. Para os que se acham no progressismo (os progressistas) sabe a autonomia, antiautoritalismo, libertação, progresso, esclarecimento, maturidade humana.

Tudo isso que dissemos da ambigüidade, na compreensão da filosofia, podemos e devemos também dizer do nosso cristianismo. Hoje, no início do III Milênio, a nós cristãos, e principalmente a nós que seguimos a Via de Seguimento de Jesus Cristo na Vida Consagrada, se torna necessário examinar de modo crítico, com muito mais empenho e desempenho, onde é que nos encontramos, na nossa vida teorética e prática na formação da vida consagrada, quando temos o encargo e o exercício do ensino e da aprendizagem como formadores e formandos da via de seguimento.

Esse nosso encontro anual no carnaval, para discutirmos e conversarmos acerca dessa difícil tarefa de ser formadora(e)s e ser formanda(o)s, portanto, nessa especialização chamada formação da vida religiosa consagrada, a impressão que trazemos conosco para o encontro é que perdemos o mordente da necessidade da tarefa de nos responsabilizarmos pela crítica mais precisa e rigorosa de nossas pressuposições e nossos –ismos. O que em Daltro Filho (RG do Sul), no início, era encontro de pessoas que realmente buscavam novos caminhos na formação, se transformou aos poucos numa espécie de cursinho informativo de coisas que já sabemos, mas que sofremos de assedia e indolência contra o trabalho de agarrar com duas mãos e pensar com muito maior empenho e desempenho de esclarecimento, para começarmos a nos revigorar na capacidade e possibilidade de ver e conhecer, i.é, co-nascer melhor. Para que o vigor originário que fundou esse encontro do carnaval volte a pulsar na inquietação da nossa busca, nesse ano de 2008 começaremos o nosso encontro, tendo em mãos um pequeno texto de Kant que sob o título: Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” tentou sacudir a Humanidade da sua época, a despertar da sonolência do comodismo mental da inércia de dogmatismo tradicionalista e progressista para um saber verdadeiro no modo de adentrar a intrepidez e cordialidade de quem se sabe agraciado da incumbência de ser gente, denominado homem.

A seguir vamos pinçar do texto alguns pontos para o destaque reflexivo, para talvez oferecer um subsídio para a reflexão autônoma de cada um de nós.

A importância da necessidade de Esclarecimento

 Importância

Importância significa literalmente a ação de carregar para dentro (im-portar). É somente para quem se carrega a si mesmo para dentro de uma tarefa que está por dentro do seu encargo, da sua missão, da sua vocação. Quem não se importa, jamais pode assumir o trabalho para o qual foi designado ou para o qual ele mesmo se designou. A tomada de consciência desse saber da importância é decisiva para o sucesso do trabalho que vamos encetar na formação. Quem toma con-ciência nessa im-portância sente a necessidade do esclarecimento.

Sentir aqui não é sentimento, nem sensorial nem sentimentalista. É muito mais real, concreto, a ponto de o homem se levantar e começar a fazer alguma coisa, alguma coisa que está bem próxima de si, por menor e insignificante que ela seja.

Necessidade aqui é algo como imposição, algo como situação na qual não há mais nem escolha nem subterfúgio: é um cerco, corpo a corpo, de si e para si mesmo. Os antigos chamavam a esse tipo de imposição[4], de possibilidade. Nós podemos, nós estamos na possibilidade, estamos na potencialidade real, quando fomos inseridos nessa necessidade premente. Por isso, na filosofia de hoje, se diz: a possibilidade é mais real do que a realidade[5].

Quando a necessidade se torna possível, i.é, quando a necessidade, seja de que tipo for, toma corpo e se nos impõe, se sentimos na carne o poder da necessidade, com outras palavras, quando a necessidade se torna possível, potente, então estamos convocados em todo o nosso ser e não ser, a fazer alguma coisa conosco mesmo, a fazer uso do que somos e não somos para trabalhar[6], para se realizar. E a primeira coisa ou a causa a ser realizada é Esclarecimento. Eu devo saber. Mas atenção: não no sentido de eu primeiro devo saber isso ou aquilo para poder agir. Mas sim: eu devo buscar como necessidade, me esclarecer, ou melhor, saber. Saber aqui, buscar a compreensão, aqui, não é nenhum luxo, cultivo sofisticado de informação, de conhecimento, mas necessidade de saber. Saber aqui tem tudo a ver com sabor, mas não no sentido astênico, ‘sofisticado’ em que caímos, quando falamos da sabedoria da vida, sabedoria contra o saber racional etc., mas, na acepção da língua alemã que, quando pergunta se gosta de uma comida, diz: Mögen Sie es? Senhor gostou (i.é,  o pode)?[7]

Em vez de saber, diríamos, portanto, poder, e poder no sentido de pode, i.é, realiza, apreender e compreender de que se trata.

A grande Tradição do Ocidente, dentro de cujo vigor se acha o que denominamos de Espiritualidade cristã, denominou esse poder de realizar a realidade, essa capacidade de realização da realidade, de Razão. A esse poder, esse vigor da possibilidade, i.é, da necessidade possível, Kant chama de uso da razão ou do entendimento.

Em Kant distinguimos, como o Racional, dois momentos: o momento Entendimento (Verstand) e o momento Razão, ou melhor, o Fundo (leia-se Pro-fundo) racional (Vernunft).  Verstand (vem do verbo ver+stehen: stehen = ficar, estar de pé) em referência ao seu vigor, se baseia na Vernunft (vem do verbo ver+nehmen: nehmen = tomar, receber). Verstand, i. é, o entendimento é o vigor do saber que se firma e fica de pé como uma compreensão concreta e bem constituída. Mas a dinâmica do poder surgir, crescer e se consumar desse saber está baseada no fundo de si, que é a Vernunft, i. é, a recepção atenta e obediente, i. é, obaudiente aos acenos do toque do abismo insondável e inesgotável da possibilidade da necessidade de ser. Vernunft, i.é, o Racional é como o ponto de salto, virado de um lado para a possibilidade do abismo insondável e inesgotável do ser, como límpida e pura recepção do toque de inspiração, e ao mesmo tempo a contensão da eclosão do mundo como uma das realizações da realidade. Se chamarmos esse modo de o homem ser entendimento e o racional, Verstand e Vernunft, então o homem está no uso da Vernunft e do Verstand como lugar de esclarecimento de todas as coisas, como ponto de salto do mundo enquanto exotérico, e da sua possibilidade como a profundidade do abismo de ser como esotérico. A responsabilização para ser e estar sempre de novo nesse ponto de salto é a autonomia da Razão, que em Kant recebe o nome de Liberdade. E então: aquela “pessoa”, que é o “único senhor no mundo diz: raciocinai (i.é, fazei uso da razão), tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!” Esse imperativo é a palavra de ordem do Esclarecimento.

Diante de uma proposta tão grande de responsabilidade pelo Esclarecimento (i. é, pela inserção no vigor e na vigência do uso da Razão para o nascimento, crescimento e consumação na liberdade que é a capacidade de obedecer a Deus), como está a nossa mentalidade a respeito da espiritualidade, vida consagrada, medo e acanhamento diante do Esclarecimento?

O uso privado e o uso público da razão

O uso privado da razão

Embora muitas vezes eles, o universal e o público, estejam misturados, é preciso distinguir. Público é o que aparece como a estrutura institucional visível publicamente. O uso da razão que eu faço como pertencente à estrutura institucional visível publicamente é o uso privado da razão. A pessoa que pertence à estrutura institucional visível publicamente recebe a sua denominação do cargo que ele ali ocupa, p.ex., sacerdote, juiz, militar, financista, professor, terapeuta etc. Essas pessoas, enquanto encarregadas por encargo público de pertencer e exercer a função para a qual foram designadas publicamente, fazem uso privado da razão. Portanto, o uso da razão que a pessoa faz enquanto sacerdote, juiz, militar, economista, professor etc. não é uso público da razão. É uso privado, porque está privatizado, particularizado ao encargo que ocupa e à lógica que rege a estrutura institucional visível publicamente desse encargo. Aqui, tanto numa instituição privada, como oficial (no sentido em que a nossa publicidade usa a palavra privado), se faz e se deve fazer o uso privado da razão. Diz, portanto, Kant “Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em certo cargo público ou função a ele confiada.

É interessante observar que as palavras ‘privado’ e ‘público’ se referem ao uso. E ao uso da razão. O uso da razão diz respeito ao que o homem tem de o mais próprio, a saber, à essência do seu ser. É o que vale para cada pessoa, a saber, para todas as pessoas que são e devem ser homem: diz Kant: “o espírito (leia-se: o sopro vital) de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo.

Quando se diz: trata-se do que vale para cada pessoa como essência do seu ser, equivale a dizer: vale para todas as pessoas. Cada pessoa = todas as pessoas.

ATENÇÃO[8]:

Se eu represento esse cada pessoa como esta e/ou aquela pessoa, estou tratando a pessoa como se fosse uma, duas, três coisas. Assim, nesse caso não há nenhuma diferença entre pessoa e coisa físico-material. Agora tentemos enfileirar os diferentes entes um ao lado do outro: esta pedra, esta planta, este animal, este homem, esta mulher, esta criança, este ancião, este anjo, este Deus. O que aqui está indicado como ente individual (este/a e aquele/a) não leva em consideração as diferenças dos entes: (pedra, planta, animal, homem, mulher, criança, ancião, anjo, Deus). Mas atenção: também não leva em conta a própria diferença que em concreto e de imediato caracteriza a coisa material na sua materialidade. Nivela, neutraliza, in- ou des-diferencia tudo, dizendo que se trata de isto e isto e isto e isto e isto: ●●●●●. Se eu aumento o volume espacial quantitativo ou o diminuo assim: ●ou ●●ou o esvazio °°°°, em direção ao espaço vazio infinito ou o pontualizo…,  reduzindo-o infinitesimalmente até o reduzir ao espaço vazio ou cheio indeterminado, e o chamo de nada, tudo isso em nada mudou o modo de ser representado como indivíduo i.é, como a última porção indivisível quantitativamente, se a dividimos, cujo variante toma forma de extensão quantitativa desde o ponto infinitesimalmente mínimo até o máximo. Esse modo de encarar o ente, seja ele o que e quem e como for, Ser, Vida, Deus, Pessoa, Amor, Ódio, Espírito. Alma, Matéria, Idéia, Razão, Coração, Espiritualidade, Ateísmo, Matemática, Geometria, sim até o Nada, esse modo de re-apresentar ou tornar presente, i.é, de representar o ente, é o Horizonte, é a Perspectiva a partir e dentro da qual hoje vivemos, somos e nos movemos quer nas ciências, quer nos afazeres cotidianos da vida. Trata-se aqui de um bem determinado sentido do ser que tomou conta de nós e determina o tom e a cor fundamental do nosso ser, saber, fazer e sentir. Atribuímos muitas vezes esse modo desse determinado sentido do ser como se ele fosse o corporal, o sensorial, o físico, o material. Na realidade, o corporal, o sensorial, o físico, o material, já estão desaparecidos, não são vistos, pois foram neutralizados, reduzidos, desdiferenciados como apenas maior ou menor volume quantitativo da extensão. Se isso que viemos refletindo até agora é de fato assim, então se torna impossível admitir ou ver “Cada pessoa = todas as pessoas”.

Na paisagem do sentido do ser determinado como o modo da extensão quantitativa há só igualdade formal cuja diferença é apenas numérica, sem nenhum conteúdo. Esse modo de ser formal, apenas lógico, limpidamente homogêneo, sem nenhum conteúdo ou diferença a não ser a numérica, esconde em si um grande enigma, pois, nessa ab-soluta in-diferença, nessa ‘superfície’ lisa de homogeneidade, pode estar retraído um sentido do ser cuja imensidão, profundidade e pulsação vital contida acena para o abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser. Mas tudo isso só se torna de algum modo ‘visível’ se de algum modo estivermos nos evadindo do sentido do ser dominante na nossa epocalidade. Mas como tudo isso já se refere a outra tarefa da reflexão, deixemos assim incompleta a nossa observação, e deixemos para outra ocasião a tentativa de tematizar esse assunto.

[Acima dissemos: quando se diz: trata-se do que vale para cada pessoa como essência do seu ser, equivale a dizer: vale para todas as pessoas. O que vale para cada pessoa – como essência do seu ser – vale para todas as pessoas! Que coisa é essa? Dizemos é o comum. Essa coisa comum é real, é algo que está em cada um dos indivíduos? Se dissermos sim, é real, é algo, e entendermos o real, o algo dentro da perspectiva do sentido do ser da coisa entendida como extensão quantitativa, acima descrita, então cada pessoa-coisa coincide com todas as pessoa-coisas enquanto extensão quantitativa coisa, mas diferem entre si apenas numericamente. Disso se segue que indivíduo é 1; comum é mais do que um: 1+1+1+1. Comum é maioria. E o que determina a comunidade, a qualidade de ser comum é número. Esse tipo de comunidade pode ser chamado de generalidade. Comum é o geral.[9]]

[Quando, porém, nos libertamos da dominação do sentido do ser determinado, acima descrito como constitutivo do modo de ser quantitativo-extensional-numérico, começamos a ver uma comunidade toda própria, que coincide com a unidade, formando um todo que não é soma dos algos 1+1+1, mas toda uma paisagem, denominada mundo, a saber, universo, uni-verso, verso, virado, vertido ao uno. Aqui o que conta não é a qualidade diferencial de um ente para com outro, mas o que denominamos de diferença de cada ente no seu ser; é a prenhez, a pregnância de cada ente no seu ser, a densidade da participação à tonalidade fundamental que retraído no fundo caracteriza o colorido dominante da paisagem, mas que não ocorre em e por si como uma coisa ao lado, no fundo, atrás dos elementos constitutivos da paisagem, mas que neles, em toda a parte, cada vez de jeito próprio, se torna, vem à luz, vem a si como tônus vital entificante, em sendo. Deixar ser o mundo, cada vez no seu próprio ser é a essência do homem enquanto o homem é o ponto de salto da eclosão do mundo a partir e dentro do sentido do ser que o toca como uma das insondáveis possibilidades de ser. Esse modo de ser da passagem como realização da realidade, do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser é o que a Grande Tradição do Ocidente chamou de Razão. Estar no uso da Razão é por isso uma ação universal, tarefa de responsabilidade comum, a cura do espírito (leia-se: do sopro vital) de uma valoração, validez e valentia em receber e assumir o próprio valor e a própria vocação de cada homem de pensar por si mesmo na plena e ab-soluta liberdade. Exercer essa tarefa inalienável é o que no texto se denomina: o uso público da razão.]

O uso público da razão:

Kant define o que é o uso público da razão, dizendo: “Entendo (…) sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer[10] homem, enquanto esclarecido[11] , faz dela diante do grande público do mundo letrado”[12]. Assim, primeiramente, o termo público na expressão uso público da razão significa universal, no sentido de virado, versado, concentrado no único necessário que é a essência do ser humano, aquilo que vale para cada homem como o que ele tem de mais próprio, a Razão. No Ocidente, na sua história, o que é indicado aqui por Razão em Kant recebeu vários nomes, como Logos, Noûs, Alma (Psiché), Pensar, Espírito. Não se trata, portanto, em primeiro lugar das faculdades do homem chamadas razão, vontade e sentimento. Todas essas faculdades estão contidas no que aqui chamamos de Razão.

Ao mesmo tempo o termo público significa, conforme o contexto, ‘coisas’ diferentes. Mencionemos, pois, a seguir, em alguns pontos o que o termo público pode estar dizendo: 1. No caso em que, pois, público significa universal, não se trata propriamente de publicidade, não está indicando se são todas as pessoas, se muitas ou poucas ou apenas uma única pessoa que faz(em) o uso da razão, mas, sim, indica o acontecimento de – seja uma, ou poucas ou muitas, ou mesmo sejam todas as pessoas -, cada vez pessoalmente (i. é, não terceirizando a responsabilidade de usar bem a razão i. é, assumindo o vigor de compreender, querer e fazer livremente como a sua própria causa), estar no empenho e desempenho da essência universal do ser humano: da Razão. 2. Público pode significar a massa de gente reunida. 3. A maneira de manifestação, de apresentação do ser humano, em se ajuntando a formar coletividade de vários tipos, delimitada como todo no seu interesse, finalidade e estruturação: trata-se, pois, de público privado ou privativo, p. ex., cargos públicos, profissões etc. Quando cada pessoa que é esclarecida, assume a tarefa de servir à humanidade, engajando-se num encargo do público privado, ela faz o uso privado da razão. Por isso diz Kant: “Denomino uso privado aquele que o esclarecido pode fazer de sua razão em certo cargo público  ou função a ele confiado”.

Conclusão

Conclusão de leitura de um texto filosófico não significa que se resolveu um problema e se chegou ao fim de uma questão, de tal sorte que se fechou uma questão e assim podemos com segurança e tranqüilidade construir a nossa vida, depois de termos corrigido uma falha. Concluir leitura filosófica de um texto significa antes de tudo ir ao fundo de nossos problemas e ali no fundo abrir-se à questão.

A questão que se nos abre no fim da leitura desse pequeno texto de Kant, se nos apresenta na seguinte conclusão:

Kant, ao falar do uso privado e público da Razão, não está tratando do problema de como resolver e harmonizar uma compreensão madura e assumida entre a nossa vida particular e a nossa vida social. Ele fala, sim, da responsabilidade pessoal e inalienável de nascer e crescer na capacidade de assumir e nos tornarmos esclarecidos na Liberdade, i. é, na autonomia do uso da Razão. Com outras palavras, aqui não se trata da nossa vida privada, particular, subjetivo-“pessoal”, mas da tarefa uni-versal, que toca a cada um de nós no mais íntimo e no mais próprio da essência humana de alcançar a maturidade do esclarecimento. De que se trata? Que questão, i. é, que busca é essa que se nos abre ao lermos uma afirmação de Kant como essa, quando ao se tratar do uso público da razão, diz: “Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!


[1] Aufklärung (alemão), Enlightenment (inglês).
[2] Cristianismo, marxismo, capitalismo, biologismo, cientificismo, misticismo etc.
[3] εξωτερικός: de εξώτερος. Exóteros = fora; exoterikós = externo, virado para fora; para os leigos, para os não iniciados, usual, compreensível a todo mundo; popular.
[4] Vida, história, ser, i. é, o ter-que-ser.
[5] Observemos como as nossas possibilidades não são necessidades, mas veleidades as quais desejamos, mas não queremos de fato como dom de uma conquista. Nós quereríamos….
[6] O povo diz o provérbio: Pode quem pode.
[7] Possibilidade (Möglichkeit) vem do verbo mögen.
[8] As reflexões que estão entre colchetes […] podem ser puladas, se forem complicadas demais para serem entendidas.  
[9] Aqui se entrecruzam dois tipos de modo de ser comum, o da generalização formal matemática e o do uni-versal da ontologia substancialista, mas já no esquecimento da sua própria origem.
[10] Leia-se: Cada homem.
[11] O termo aqui traduzido por sábio é em alemão Gelehrter; A inconveniência de traduzir o Gelehrter  por sábio é de a palavra sábio, para muitos de nós, saber à sabedoria, no sentido quase místico, digamos como o modo de saber que não fica somente no racional, mas recebe a unção toda própria da vitalidade e sentimento, do coração. Se, porém, entendo o sábio, como aquele que sabe, e entendo o saber como o que foi conquistado com grande empenho de aprendizagem, que em vez me fazer um poderoso sabe-tudo, e um ‘ensinador’ prepotente e ‘onisciente’, me conduz a aprender e em aprendendo mais e mais me leva a ensinar o aprender como cordial e radical busca de se assumir, de se usar, e se tornar sempre mais clarividente em assumir o privilégio de ser atinente à Logos, à Razão Universal, então o termo sábio está dizendo o que o termo Gelehrter quer dizer. Esse modo de ser na responsabilidade cordial e radical de estar no uso da Razão, digamos na Ética da Razão, é o esclarecimento. Esse modo de ser se chama mundo letrado, i. é, totalidade dos que livremente se assumem como aqueles que lêem: Leserwelt. Com outras palavras, são o mundo, o modo de ser dos que trabalham o ler, como o fazem p.ex. os (as) que em setembro ficam por mês inteiro lendo fontes franciscanos com frei Dorvalino, ou dito com outras palavras, o mundo da escola, do ensino e da pesquisa desse grande empreendimento humano que é aprender.
[12] Cf. Nota 10, acima.
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