Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fenomenologia como analítica da existência

05/02/2021

 

Introdução

A história do Ocidente caracterizada pelas palavras physis, lógos e nous (natureza, espírito e razão) é um processo de desenvolvimento humano no qual a prejascência abissal da possibilidade de ser (physis) se doa e se desvela como mundo através da crescente responsabilização de o homem se assumir como o lugar de manifestação do sentido do ser. Essa responsabilização e abertura do sentido do ser que constitui cada vez o mundo, i. é, o ente na sua totalidade, é o que chamamos de razão ocidental em suas diversas manifestações, a partir e dentro do qual o Ocidente abriu novos horizontes, estruturou novas fronteiras de desvelamento de mundos, ordenando os entes conforme uma escalação de valores, princípios e normas que constituía o projeto de vida da humanidade como o ideal e a meta da humanização.

O que Nietzsche denominou de nihilismo europeu indica o esvaziamento  dos valores que sustentam  todo esse projeto do mundo, a partir e dento da razão ocidental. Indica, ao mesmo tempo, a crescente consciência da autoresponsabilização do homem. Responsabilização de não substituir esses valores por outros valores similares do mesmo tipo de até então, mas de criar um novo princípio de um novo céu e nova terra. Princípio que possa fazer jus à nova situação do homem que se coloca como inteiramente livre de todas as dependências e sujeições aos princípios, valores e normas  do projeto que veio sustentando o Ocidente, desde os gregos até hoje.

Uma das expressões dessa autoresponsabilização do homem com o seu destino e com o destino do mundo é a nova consciência científica que toma forma de positivismo cientificista: somente admitir como verdade o que se pode verificar e constatar  empiricamente segundo as exigência de rigor científico das ciências positivas, cujo ideal aparece nas ciências físico-matemáticas.

Essa nova colocação reduz a própria razão ocidental a um epifenômeno de um ente entre outros entes, chamado animal-homem, transformando o que antes era o sujeito e o agente de todo o grandioso projeto de vida da humanidade ocidental num dos objetos de suas pesquisas. Mas em assim relativizando a razão ocidental essa colocação pretende reassumir a função antiga da razão ocidental de ser a explicação e o critério da verdade de tudo quanto ela coloca sob a sua mira positivista através de sua pesquisa científica.

Surge assim um novo desafio para o Homem de unir as exigências da antiga razão ocidental na sua busca da absoluta verdade de todas as coisas  à exigência de não admitir nada que seja de antemão absoluto como um dado apriorístico na acribia de relativização  cientificista  do positivismo naturalista.

Existe uma filosofia que se atém a essas duas exigências: a fenomenologia.

O ponto nevrálgico da fenomenologia nessa questão da síntese da exigência antiga e da exigência nova da “razão ocidente-europeia” é considerar a razão não como já dada simplesmente, mas sim como o que primeiro deve ser desvelado e investigado.  A razão, o logos, não somente deve ser desvelada e investigada, mas ser desenvolvida, deve ser trazida à luz como ela está disposta a se manifestar, portanto numa forma purificada.  Não é fácil mostrar hoje que a razão deve ser primeiro pesquisada, mais difícil ainda e deixar evidente que a autoaclaração da razão não é outra coisa do que vir à fala passo a passo da própria razão ela mesma.  Esse vir à fala, o tornar-se ela mesma da razão é a fenomenologia hoje.

O caminho da fenomenologia consiste em fomentar e tocar para frente a pesquisa e investigação da razão.  E engajar-se na pesquisa, no ethos das ciências fatuais, as ciências positivas, de tal maneira que como diz Edmund Husserl a fenomenologia é positivismo puro.  E por outro lado coloca o seu objeto não como um fato ocasional com um “mecanismo” natural, mas sim como abrir-se de uma razão ainda não nascida, sobre a qual não é possível discutir, pois discutir já pressupõe uma tal razão. E se essa fenomenologia tem razão, não existe ainda verdadeiramente uma ciência, nem mesmo ciência no sentido moderno. Antes, o conhecimento humano permanece ainda baseando-se e crescendo sobre fundamentos não aclarados e distorcidos, que exigem aclarações e correturas até a raiz do seu fundamento.

Isto tudo aparece na atual crise de fundamentos de todas as ciências, que atinge também e até principalmente as mais exatas e sempre de novo regularmente é repetida em todas as disciplinas, pois nenhuma delas possui clareza sobre as próprias pressuposições, seus verdadeiros limites, seus objetos e correspondentemente seus métodos.

AEXI . 3

  1. Existem diante de nós e ao redor de nós os entes em diferentes modos de existir e eu também existo no meio desses entes no modo todo próprio de existir do ser humano.
  2. O conjunto dos entes que existem, existiram e existirão, no tempo e no espaço, se chama mundo ou universo.
  3. Os entes são diferentes. Isto quer dizer: podem ser classificados em centenas e milhares de agrupamentos, que se relacionam entre si, de tal modo que um grupo é abrangido por outro, cuja característica é mais geral. Os critérios de classificação podem variar conforme as perspectivas e interesses do ponto de vista da classificação, mas todas as classificações buscam a coerência da unidade e a generalização última, para além da qual não há diferença mais geral. Temos assim uma espécie de “árvore de classificação” ou “rede de registros cada vez mais centrais” a partir dos entes considerados no seu aspecto mais individual, até os entes considerados no seu aspecto mais geral.
  4. No entanto, existem nesse processo de diferenciação, a partir do mais individual até o mais geral, dois modos diferentes de operar a diferenciação, a saber: o modo das ciências positivas e o modo da filosofia.
  5. Diferenciar, distinguir, dividir em agrupamentos de diferentes classes, em grego se diz krínein, donde deriva o adjetivo crítico(a). Assim, podemos dizer que o modo de ser crítico das ciências positivas e o modo de ser crítico da filosofia é diferente. Como podemos caracterizar a crítica das ciências positivas e a da filosofia na sua diferença?

– A filosofia não busca a explicação de um ente particular (Vida cotidiana).

– A filosofia também não busca o geral (Ciências positivas).

– A filosofia sim, sempre, em toda a parte, também no particular e no geral, busca estar em casa no universal.

– Dito de outro modo: a vida cotidiana e as ciências positivas distinguem entre o ente e o ente a partir da diferença, i. é, do geral. Daí:

  1. Ressaltando bem o que dissemos: as ciências positivas são críticas porque distinguem entre ente e ente a partir da diferença. A filosofia ao contrário distingue entre ente e o ser.
  2. A diferenciação crítica das ciências positivas se chama: generalização. A diferenciação crítica da filosofia se chama: mostração formal.
  3. Programa da exposição a seguir:
  4. a) Tentar dizer o que é generalização e mostração formal através de exemplos.
  5. b) Mostrar que os conceitos surgidos da generalização e os conceitos surgidos da mostração formal possuem modo de compreender bem diferente.
  6. c) Mostrar que é bem diferente distinguir o ser-humano dos outros entes que não são humanos na diferenciação da generalização e na diferenciação da mostração formal.
  7. d) Mostrar que a diferenciação da generalização pressupõe, ou melhor, já está fixa dentro de um modo de ser que só a mostração formal consegue revelar.
  8. e) Mostrar que toda a dificuldade de entender o que viemos falando até agora acerca da existência e a sua analítica, ou melhor, a dificuldade de entender tudo que a filosofia moderna fala do ser e do sentido do ser, vem disso que nós jamais ou raras vezes ouvimos falar da diferenciação da mostração formal e nunca nos exercitamos nesse tipo de diferenciação.
  9. O processo de generalização nos conduz por fim a um conceito geral, o mais geral, que não possui mais possibilidade de diferenciação. Assim pela generalização não conseguimos mais compreender em que consiste o próprio, a diferença disso que a generalização a mais geral nos propõe. Com outras palavras, não conseguimos intuir a forma ou a configuração que mostre o sentido do ser que se oculta no fundo da generalização a mais geral.
  10. Colocando essa questão de outro modo: nós só divisamos e distinguimos os entes. Só vemos a diferença que divide um ente do outro, que distingue entre ente e ente. Classificamos tudo a partir de uma compreensão fixa geral dos entes. E se tentamos ver a diferença entre as diferenças gerais, o processo de generalização só nos conduz até o conceito o mais geral que tudo abrange, sem no entanto poder nos dizer em que consiste o ser desse todo que está incluído e classificado dentro desse conceito geral. Assim não conseguimos mais compreender em que consiste o próprio, a diferença disso que a generalização a mais geral nos quer dizer.
  11. Com tudo isso, não conseguimos intuir a diferença radical existente entre o modo de ser do ser humano (da existência) e o modo de ser dos entes que não são humanos. Há no entanto um caminho para intuir essa diferença diferente à da proveniente da generalização. É a diferença intuída na mostração formal. A mostração formal na sua radicalização se chama analítica da existência

O que é a razão ocidental?

Razão ocidental é usualmente considerada como a faculdade de pensar, o intelecto ao lado da vontade e do sentimento. O destino do Ocidente estaria marcado desde os gregos até hoje pela dominação totalitária da Razão, no cultivo unilateral e desenfreado do intelecto, deixando-se de lado toda a dimensão do sentimento e da vontade. Muitos filósofos como p. ex. Nietzsche, o filósofo da “Vontade do Poder”, do elã dionisíaco, da afirmação da Vida seriam então os contestadores que opõem ao império do Racional, o poder nascivo da Vida, o vigor dionisíaco do Irracional…

Nas nossas aulas, porém, o termo Razão  e Racional não indicam tanto o intelecto como  faculdade da alma, mas sim como aquele qualificativo essencial, com o qual a Tradição do Pensamento no Ocidente definiu o próprio Homem: Homo est animal rationale.

Animal rationale é tradução latina da formulação grega  zõon lógon  échon  traduzida usualmente como “vivente que possui  a fala”. No entanto, a formulação e as palavras gregas dizem antes zõon, i. é, o vivente, o vivendo, o sendo como vida. Mas vida aqui não é a biológica, nem zoológica. É sim lógon échon, i. é, em tendo lógos, i. é, em sendo na atinência e na pertença a lógos. O que determina a vitalidade  essencial do ser do Homem é a sua atinência, a sua pertença a lógos. Em sendo na atinência a lógos, na pertença a lógos é o vigor, é o ânimo chamado Homem: animal rationale.

O termo Razão, ou melhor, Razão Ocidental propriamente indica esse vigor essencial, constitutivo do ser do Homem, que em diferentes variações de denominações e interpretações atravessa a História do Ocidente e determina de antemão a concepção ocidental de nós mesmos enquanto humanos: a Razão. E é a Razão, essa vigência própria e essencial do Homem que caracteriza o Ocidente, e o ocidental. Daí a Razão Ocidental.

A razão Ocidental vem à fala como a busca da verdade dos entes no seu todo, como a inexorável exigência da absoluta certeza e asseguramento dos entes no seu todo como verdade. Vem à fala como a busca do conhecimento verdadeiro, certo e inconcusso de primeiros e últimos princípios e fundamentos, de primeiras e últimas causas e razões dos entes no seu todo. Assim, a verdade como segurança do conhecimento certo é o valor supremo que move, fascina e impulsiona a vitalidade do Homem Ocidental, do animal rationale.

É esse elã da busca da certeza da verdade que garante a unidade,  sustenta o vigor dos agenciamentos de todos os valores humanos que o Homem projeta como a sua realização: Liberdade, Libertação, Direitos Humanos, Ideal do Humanismo esclarecido pela Razão, Construção de uma Sociedade mais justa e humana etc. É esse elã que busca a libertação do Homem de todos os poderes, valores que não sejam sancionados ou  sustentados pela própria liberdade ou autonomia humana. Movimento de desacralização, de desmitologização e desmitificação, busca de investigação e pesquisas científicas. Toda e qualquer divinização ou explicação metafísica são colocadas sob a suspeita de uma alienação do Homem, alienação da ingente tarefa de ele ter que assumir a sua própria liberdade e o seu próprio ser.

Essa autoresponsabilização aparece como nihilismo europeu: esvaziamento de todos os valores que constituíam os gonzos da civilização e Cultura Ocidental; nenhum valor tem sentido em si, absoluto; relativização total de tudo, tudo provisório, passageiro, referido à responsabilização da autonomia humana; mas ao mesmo tempo consciência cada vez mais nítida e assumida de ter que se responsabilizar por tudo. Essa atitude de sinceridade e de autoresponsabilização aparece nas exigências do assim chamado Positivismo científico: somente admitir como válido o que se põe na experiência rigorosa da sua consistência pela experimentação e sempre de novo manter-se no rigor e precisão do que se pode comprovar  e fundamentar empiricamente. Assim o ideal da Razão Ocidental aparece na atitude do positivismo científico tendo como modelo mais acabado as ciências positivas naturais do tipo físico-matemático.

Dentro da perspectiva dessa colocação positivista, a própria Razão Ocidental como o vigor metafísico impulsionador do Ocidente que criou as ciências, se torna objeto dessas ciências positivas e é reduzida a elementos constitutivos de sua explicação positivista: o Homem e o seu vigor essencial  Razão se tornam um fato da natureza; portanto um animal; este, por sua vez, um ente orgânico, conjunto de moléculas; estas reconduzidas a átomos,  corpúsculos subatômicos, energias etc.  Temos  assim uma seqüência de redução a partir do naturalismo, psicologismo, biologismo.

Assim ocorre o paradoxo de um reducionismo relativista e naturalista da Razão a um simples epifenômeno de um ente entre outros entes na totalidade físico-matemática do universo naturalista, e ao mesmo tempo a pretensão e a exigência de explicar  todas as coisas como fatos científicos dessa impostação totalitária  da afirmação do ente no seu todo enquanto objetos das pesquisas científicas.

Transcendência ou a razão ocidental como liberdade

A transcendência, essa contínua disposição de ter-que-ser cada vez, sempre nova e de novo, a abertura de acolhida da possibilidade criativa de surgimento, estruturação e consumação do mundo, é a essência da liberdade.  Edmundo Husserl encontra na exigência de uma total relativização da razão ocidental para o modo de ser do naturalismo da razão a atitude incoativa de transcendência ou da liberdade como acima foi mencionada. Em que sentido? No sentido de a própria razão exigir de si mesma que seja colocada como um objeto de crítica e de investigação, como sendo o que deve ser examinado sempre de novo criticamente, i. é, à luz da empiria do estilo das ciências naturais, i. é, na exigência de evidência de uma radical autoapresentação,  a saber, não admitir nada como sendo o que não se apresenta a si mesmo no radical autodesvelamento de si mesmo no instante do seu surgir e aparecer.

Nesse sentido, em seu livro “Fenomenolgia da consciência hodierna”, Heinrich Rombach diz mais ou menos o seguinte: Isto significa que a razão não deve ser entendida como dado, nem real, nem ideal, nem a priori, nem aposteriori: não dada, pois ali nesse dado já prejaz uma determinação que contradiz a liberdade. Somente quando o autodescobrimento, ao mesmo tempo significa, ou melhor, é autogenesis, autoconstituição ou  autoperfazer-se, só então a razão é razão realmente, a liberdade é transcendência realmente.

A fenomenologia assim entendida como gênesis e autoconstituição da razão, é a História do Homem, História fundamental, ou a Filosofia ou a Crítica da Razão Pura que se tornou História ou é o pensar que a partir do seu fundo teorético vem à sua prática como realização dos anelos abertos e ocultos de todas as filosofias de até hoje. Nesse sentido é que Husserl diz: “Portanto, esta contínua tendência não deveria carregar em si um eterno sentido, para nós uma grande tarefa, entregue a nós pela própria História, para a qual todos nós fomos chamados a colaborar? O esfacelamento da filosofia  atual no seu agenciamento sem rumo dá-nos o que pensar. Não se pode buscar a causa desse esfacelamento no fato de, nele, o vigor do impulso que irradiava das meditações de Descartes, ter perdido a sua vitalidade originária? Não deveria ser esta a renascença unicamente frutuosa, que acorda de novo estas meditações, não para as repetir, mas para desvelar antes de tudo o mais profundo sentido do seu radicalismo, em retornando ao ego cogito e o valor de eternidade que dali salta? Em todo caso, se assinala com isso o caminho que conduziu para a fenomenologia transcendental” (Edmundo Husserl, Husserliana I, p. 5).

Nesse sentido a fenomenologia é verdadeiramente doutrina do aparecer, não como mostrar o que apareceu, mas sim como fazer aparecer o que tende a vir à luz, a partir do sentido necessário historial. O que tende a vir à luz é uma nova consciência, uma nova forma de razão.  Assim, as formas fundamentais e os modelos fundamentais desse novo modo de pensar não são mais vistos como imutáveis, colocados pela natureza, mas sim devem ser considerados, não afirmados, não negados,  mas investigados, i. é em skepsis. É pois uma investigação apriorística, mas sem a fé kantiana do valor definitivo da razão. Mas, também, sem a expectativa míope de que o que se desvela como pre-pregnância portadora da experiência a partir do fundo da existência deva ter a forma de uma razão no sentido do espírito geométrico. Tudo isso traz a exigência de uma crítica inteiramente nova e rigorosa.

A partir dali poderia se mostrar que toda a antiga e clássica concepção da razão já é derivada, desnaturalizada, bitolada e distorcida. O vir à fala das regiões mais profundas da razão seria o sinal dos tempos. O seu surgir seria propriamente o ato historial do presente.  Tal fenomenologia seria filosofia como ciência, desde o início até o fim, ao mesmo tempo filosofia, mas para poder ser assim é necessário mudar a forma da cientificidade e da filosofia, é necessário tornar-se Pura Razão (Reine Vernunft, rein vernehmen). A filosofia fenomenológica, como é compreendida aqui, não é uma corrente filosófica na História da Filosofia de hoje. É engajamento e participação na gênesis de uma nova consciência. A forma de uma nova consciência, i. é, a nova formação é a meta, o sujeito, o objeto da investigação e fim da fenomenologia.

Vamos precisar melhor tudo que dissemos:

Não se trata de fenomenologia como um instrumento de pesquisa para um estado de coisas de cada coisa.  Trata-se antes de aprender a ver o mundo melhor, ter olhos que veem a nitidez da profundidade, até lá onde for possível ver hoje. Trata-se de ser só traços fundamentais da consciência hodierna nas suas profundezas. Trata-se daquele tipo de pensar e trabalhar que quer vir à fala em todas as áreas da cultura, e não somente na filosofia. Existe uma forma fundamental de consciência que sustenta e impregna todas as ações e todos os eventos humanos do homem hoje. Esta forma fundamental toma concreção como uma ciência: a fenomenologia, i. é, a filosofia hoje. A atualidade e a atuação da fenomenologia, assim entendida, só se torna o desvelar-se do hoje, se ela acontece nos mais importantes eventos do homem no seu tempo. Na medida em que pois a fenomenologia traz à luz o fenômeno  o Homem na sua atualidade, ela traz à luz a ela mesma. E em fazendo isso ela se mostra e se constitui como aquela ciência da existência humana que realiza o autoesclarecimento e a autogenesis de si mesma: é pois a existência humana na sua transcendência, na sua liberdade como autoclaridade, autoevidência e autodeterminação. A razão assim entendida deixa de ser uma parte abstrata e parcial do homem, deixa de ser uma faculdade do homem, mas se revela como o homem todo, ele mesmo, a existência humana. O homem é somente homem nessa síntese viva e concreta da liberdade e natureza. Por isso, à fenomenologia nesse sentido do “homem humano” pertence não somente às formas fundamentais abstratas do conhecer, mas também as estruturas fundamentais do agir e do sentir, do querer e do desejar: o homem total no seu mundo humano: a existência concreta.

Um passo decisivo e essencial para essa fenomenologia da existência que abandonou o autoequívoco de uma razão abstrata, formal e ‘teorética’, tentou fazer a assim chamada filosofia de existência de Martin Heidegger que ampliou e aprofundou a pesquisa da razão da fenomenologia de Husserl: essa amplificação e aprofundamento da razão ocidental recebeu então o homem da analítica da existência. É o nome de nossa disciplina filosófica desse ano.

Analit. 5

  1. Para entendermos de que se trata, quando falamos da analítica da existência, é necessário nos dispormos a uma questão, cujo sentido não conhecemos usualmente, cuja estruturação não enxergamos. Por isso, antes de fazermos a analítica da existência, i. é, antes de vermos a estrutura interna da existência, é necessário perder bastante tempo para aguçarmos a nossa captação desse sentido que não conhecemos, dessa estruturação que não enxergamos. Estamos assim nesse semestre repetindo esses exercícios de ver, tentando sempre de novo dizer sempre a mesma coisa.
  2. Para ver de que se trata, quando colocamos a questão da analítica da existência, é importante que despertemos para aquilo que se costuma chamar de questão do sentido do ser. Despertar para a questão do sentido do ser e ver de que se trata, quando falamos da analítica da existência é o mesmo. Na medida em que começamos a nos intrigar pela questão do sentido do ser, começamos também a sentir a necessidade da analítica da existência. A analítica da existência é o primeiro passo necessário para colocar bem e entrar na questão do ser de modo mais consciente e temático. Mas se não nos a-cordamos de alguma forma para a questão do ser, não compreendemos adequadamente a própria existência no que ela possui de seu, não captamos bem o ser da existência.
  3. Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere). Significa: buscar, procurar, sentir falta e ir atrás do que me falta, investigar, pesquisar, perguntar, fazer perguntas para saber a verdade, interrogar, indagar, inquirir, perquirir, esquadrinhar. A palavra portuguesa querer vem também do quaerere. É um ato ou uma ação da qual temos experiência no nosso cotidiano. Mas talvez não pensamos muito a estrutura interna própria, sui generis dessa ação que no fundo impregna todos os nossos atos, no que eles têm de saber e conhecer, de compreender. Só que aqui saber, conhecer, compreender, o que usualmente chamamos de intelectual ou racional, não deve ser entendido como se fosse um ato ao lado de outros atos, mas sim como elemento fundamental que impregna, está em todos os atos como um seu momento essencial. É algo semelhante à claridade (-obscuridade) que está em diferentes intensidades em todas as cores, sejam elas quais forem. Questão portanto é ato ou ação de buscar conhecer, mas no sentido de investigação ou de interrogação, de ir atrás das coisas, para desvelá-las, para desocultá-las naquilo que elas realmente são.
  4. Sentido do: sentido pode significar ‘os sentidos’ i. é, os ‘órgãos’ de captação que denominamos vista, ouvido, olfato, gosto e tato. Refere-se portanto ao modo de conhecer chamado conhecimento sensível, cuja capacidade se chama sensibilidade ou sensualidade. Mas significa também significação, importância, meta, o móvel, como quando p. ex. dizemos: o sentido da vida. Sentido do ser significaria nesse caso: significação do ser; importância do ser; a meta, o móvel do ser…? Infelizmente todas essas palavras acima mencionadas não conseguem dizer bem o que se deve entender por sentido, quando dizemos questão do sentido do ser.  Tentemos, pois, através de umas descrições circunvagas, acercar-nos melhor do que quer dizer a palavra sentido na expressão “questão do sentido do ser”.

Sentido vem do verbo latino sentire (sentio, sensi, sensum, sentire). Sentire quer dizer sentir, perceber, captar, entender, compreender, adivinhar. Significa também apreender com 5 sentidos, sofrer a captação, ser passível de atingimento, ser sensibilizado no sentimento. Trata-se, pois, de um ato de conhecer, mas com um cunho, um modo todo próprio. Em que consiste esse modo todo próprio? Consiste naquele modo de captar que ocorre quando percebemos, apreendemos as coisas através dos sentidos sensoriais. Só que, aqui, quando falamos de sentidos sensoriais, devemos nos livrar das representações que já de antemão fazemos quando falamos de sentidos (enquanto 5 órgãos da apreensão sensível). Pois essas representações já estão de tal maneira fixas demais dentro de uma interpretação psicológica e também metafísica dos sentidos e da percepção sensível como da apreensão sensorial, que não nos libertam o próprio fenômeno vivenciado na percepção sensível.  A percepção sensível em todos os 5 sentidos contêm em si uma acentuada predominância da passividade receptiva. Se nos libertarmos da representação, que bloqueia a imediata percepção da vivência como tal e que a congela dentro de uma determinada interpretação tradicional psicológica e também metafísica do que é percepção sensível, podemos intuir de imediato que essa passividade é o que constitui digamos o vigor essencial, a vida propriamente dita dos sentidos ‘sensoriais’ e das suas apreensões, e ao mesmo tempo das percepções do sentimento, do conhecimento (mesmo intelectual e racional) num certo nível da profundidade da sua constituição. Mas, em que sentido? E como? Para intuirmos tudo isso, vamos mexer um pouco na nossa compreensão usual do que seja a passividade.

            Usualmente a passividade e a atividade são representadas como movimento de uma coisa física. O ativo é algo em movimento físico e o passivo é algo parado. Essa compreensão do ativo e passivo segundo o movimento físico é a mais estática que possuímos. Ela é inteiramente inadequada para captar a atividade e a passividade dos entes vivos, muito menos dos fenômenos humanos, principalmente da liberdade. Nos fenômenos dos entes vivos e nos fenômenos humanos, passividade e atividade não são propriamente duas coisas opostas. Elas são por assim dizer dois momentos recíprocos de uma e mesma dinâmica. Na dinâmica da vida e da liberdade, o momento passivo é como que o fundamento do momento ativo. A passividade ali é como silêncio de fundo onde toa e repercute o som (=atividade). É como a abertura de possibilidade do todo (=passividade), dentro da qual surgem as diferentes concreções (atividades). É que toda e qualquer atividade primeiro deve ser possibilitada através de uma recepção prévia do todo, do horizonte, do espaço da possibilidade, dentro do qual se tornam possíveis e atuais as diferentes e variegadas atividades. (Descrever esse fenômeno p. ex. no Volley, na importância decisiva da recepção do saque inimigo para todo o processo posterior do jogo; na concentração de toda a orquestra para receber a possibilidade do lance da totalidade possível da sinfonia no toque inicial).

Na passividade receptiva que, por assim dizer, prepara o ponto de salto do surgimento da possibilidade do todo, no qual se sucedem as concretizações ativas da realização de uma obra, surge uma abertura de disponibilidade atenta a um a priori. Esse a priori não é uma possibilidade ali prejacente como espaço vazio, espaço-vácuo de privação e carência, mas sim um toque vivo, algo como direção prévia de condução, prenhe de esboços de consumação vindoura. Esse ductus prévio do toque na condução para a consumação final que há de vir se chama SENTIDO; e o seguir esse ductus se chama sentir. Sentire, sentir significa portanto a dinâmica do atingimento do lance inicial, a dinâmica do princípio-envio: o a-viar-se, o seguir, ir atrás de uma direção viva prévia, ir atrás de vestígio, in-vestigar. É nesse sentido de encetar o caminho, do enviar-se, do aviar-se que a palavra alemã para o sentido, Sinn, para sentir, sinnen, cuja forma antiga é sinnan, significa: viajar, ir, tender. O sentido é, portanto, o ductus, a direção, que se dá como o(s) esboço(s) do todo sob cuja orientação a nossa busca se a-via na investigação do que se há de vir como o desvelamento do que ali sempre sub-siste sem ser isto ou aquilo, como abismo insondável de possibilidades sem fim.

  1. Do ser. Usualmente, cada vez que dizemos ser, o representamos como ente. (Dar exemplos desse equívoco). Ser jamais pode ser representado como ente. Formulando ‘abstratamente’ o que dissemos, podemos dizer: ser é condição da possibilidade de o ente ser. Se é condição da possibilidade não pode ser compreendido como ente, do qual é condição da possibilidade de ser; pois é anterior e fundamento do ente. Se dizemos, pensamos, compreendemos ente, se entramos em contato com ente, se o conhecemos, é porque já antes estamos na possibilidade dessa compreensão, na possibilidade desse relacionamento, é porque já operamos, nos movemos, vivemos e somos numa ou melhor uma pré-compreensão do ser. Com outras palavras, todo e qualquer ente e sua compreensão já está sob o toque de uma determinada abertura do sentido do ser, na qual se nos esboça uma direção prévia, em cujo seguimento entendemos o ente no seu ser.
  2. Questão do sentido do ser é pois uma ação, uma busca. Essa ação, essa busca somos nós mesmos. Como é, o que é isto que somos nós mesmos como busca? Quando somos, em sendo, somos essa busca, na qual queremos captar o que o ente é. Em querendo (buscando) captar o que o ente é, perguntamos (inquirimos): o que é o mundo? O que é o homem? O que é Deus? Os termos mundo, homem e Deus indicam três grandes regiões da totalidade dos entes. Todos os entes podem ser de alguma forma ajuntados debaixo dessas regiões, de sorte que mundo, homem e Deus indicam três ‘momentos’ da totalidade dos entes. Mundo, homem e Deus são portanto modos de ser. Todos os entes que tem o modo de ser da natureza, são subsumidos debaixo do universal mundo; todos os entes que tem o modo de ser do humano, são subsumidos debaixo do universal homem; todos os entes que tem o modo de ser do divino são subsumidos debaixo do universal Deus. Mas por ser modos de ser, mundo, homem e Deus tem cada qual o seu modo de ser.  O que é pois propriamente o ser?
  3. Em assim perguntando, nós já estamos ‘naturalmente’ estabelecidos numa compreensão congelada do ser como da substância-coisa portadora de propriedades. Essa pré-compreensão faz com que nós coloquemos os entes como coisa, coisa natural, coisa humana e coisa espiritual, um ao lado do outro, como se eles fossem todos do jeito igual de ser como substância-coisa. Isto por sua vez faz com que eu me posicione aqui como sujeito-coisa diante dos objeto-coisas no conhecido esquema de Sujeito-Objeto. Sujeito é Homem; cultura, o subjetivo, o interior, o ‘espiritual’; objeto é o Mundo, a Natureza, o espontâneo natural, o objetivo, o exterior, o ‘material’. Assim, falamos de todos os entes, diante de nós, ao redor de nós, de nós mesmos, conhecemos ou queremos conhecer a eles todos, sem percebermos, no entanto que essa fala, esse conhecimento não libera, não traz à luz a diferença ontológica dos entes, justamente porque não nos damos conta dessa instalação tradicional sobre uma determinada pré-compreensão do ser. Com outras palavras, para podermos intuir a diferença, a diferença dos modos de ser do mundo, homem e Deus, é necessário a-cordar na sensibilidade da questão do sentido do ser.
  4. No momento em que acordamos para essa questão, i. é, a ação de buscar o sentido do ser na sua diferença ontológica, começamos a ter um interesse e uma atenção muito concentrada no modo de ser próprio do ato de buscar, ato esse não mais colocado como um acidente, como um produto posterior de um sujeito-coisa, mas sim como o fenômeno que envolve, abrange como medium tanto o sujeito como objeto, cada vez como todo, onde aparece cada vez um modo de ser, onde o ser não é mais o geral, comum no sentido lógico de generalização, mas sim o sentido-totalidade enquanto o toque do lance, donde eclode a possibilidade de ‘todo um mundo’ de ‘realidades’ significativas.
  5. Foi para ‘acionar’ um exercício de nos reconduzirmos a essa maneira de ver o relacionamento sujeito e objeto que começamos na última aula a falar da colocação de Franz von Brentano sobre o ato psíquico:

“Cada fenômeno psíquico contém em si algo como objeto, embora não todos de igual modo. Na representação algo é representado;  no juízo algo é aceito ou rejeitado; no amor, amado; no ódio, odiado; na cobiça, cobiçado” (F. von Brentano, Psicologia do ponto de vista empírico, Viena, 1874, p. 115).

Analit. 4

“Cada fenômeno psíquico contém em si algo como objeto, embora não todos de igual modo. Na representação algo é representado; no juízo algo é aceito ou rejeitado; no amor, amado; no ódio, odiado; na cobiça, cobiçado” (F. von Brentano).

  1. Esta citação, à primeira vista, diz o que nós trivialmente sabemos da nossa experiência cotidiana: cada ato psíquico está diante de um objeto, sobre o qual ele vai, ‘in-tende, num relacionamento que co-loca: “eu aqui, sujeito com meus atos psíquicos, me relaciono com objeto lá, diante de mim”. Se este é o sentido do texto de von Brentano, esse texto não diz lá grandes coisas. Na realidade, segundo Heinrich Rombach, no seu livro “Fenomenologia da consciência atual”, von Brentano quer dizer bem outra coisa. Ele diz: em cada tipo de atos está em jogo, atua, acontece um relacionamento cada vez diferente no seu modo próprio e típico, que se orienta também para um objeto correspondente que, por sua vez, tem o seu modo próprio típico, conforme o tipo do ato.
  2. Exemplo do noticiário de incêndio na Avenida Paulista; do relacionamento do noviço e mestre de noviços.
  3. A dificuldade de ver e analisar o ato psíquico como ato ou intencionalidade no sentido fenomenológico vem disso que nós, quando explicamos o que é o ato, o representamos como um acidente do sujeito; este por sua vez, é representado como uma substância, uma coisa em si, colocada diante de outra substância, a qual chamamos de objeto. Representamos assim o ato como relacionamento (acidente) de um sujeito (substância) com um objeto (substância). Tanto objeto e sujeito como ato, embora sejam coisas diferentes, têm em comum que são substância-coisa ou seu acidente. (É que o acidente é sempre pensado a partir da substância como algo a modo da substância rarefeita!). Isto significa que, quando explicamos o ato como relacionamento (acidente) entre o sujeito (substância) e objeto (substância), essas três coisas são por assim dizer enfileiradas sobre uma plataforma comum, também representada a modo de substância de fundo como espaço e tempo. Essa plataforma comum, fixa de antemão é o que chamamos de realidade existente em si ou existência das coisas, inclusive do eu-sujeito aqui e agora. Conferir a representação do universo como fundo-espaço-tempo, imenso, existente em si como vácuo ou substância rarefeita, dentro do qual existem em si as coisas ou os entes intra-mundanos.
  4. Dessa realidade, assim colocada como existência de coisas que somos nós mesmos como sujeitos, e de coisas que não são nós mesmos como objetos, e de todos os relacionamentos entre sujeito e objeto, diz Edmund Husserl no seu escrito intitulado “Filosofia como ciência de rigor” que ela é fruto da ingenuidade (falta de crítica e rigor científico) na aceitação da natureza como dado. Examinemos essa ingenuidade que é uma espécie de crença ou ausência de esclarecimento suficientemente rigoroso e preciso sobre a verdadeira situação das coisas, à mão de um trecho do acima mencionado escrito de Husserl.
  5. Diz Husserl: “Toda ciência natural é conforme os seus pontos iniciais ingênua. A natureza que ela quer pesquisar é/está, para ela, simplesmente ali. Obviamente são coisas, são como coisas paradas, como se movimentando, como se transformando no espaço infinito, e como coisas temporais no tempo infinito. Nós as apreendemos, as descrevemos em simples juízos de experiência. Conhecer estas coisas dadas obviamente em modo objetivamente válido, rigorosamente científico, é a meta da ciência natural. O mesmo vale da natureza no sentido ampliado, psicofísico, respectivamente das ciências que a pesquisam, portanto principalmente da psicologia. O psíquico é não um mundo por si, é dado como eu ou vivência do eu (num sentido aliás bem diferente) e se mostra segundo a experiência ligada às outras coisas físicas chamadas corpos. Também isto é um dado, prévio e óbvio. Pesquisar e determinar objetivamente este psíquico, nesse conjunto psicofísico da natureza, no qual ali está obviamente; descobrir as leis da sua formação e transformação, do seu ir e vir, tudo isto é a tarefa da psicologia. Toda a definição psicológica é eo ipso psicofísica num sentido o mais lato […], de tal modo que ela sempre tem uma conotação física que nunca lhe falta. E mesmo lá onde a psicologia – a ciência experimental – intenciona determinar as ocorrências da pura consciência e não as codependências psicofísicas no sentido estrito, essas ocorrências, no entanto, são pensadas como pertencentes às consciências humanas ou animais, que por sua vez possuem ligação coreferencial aos corpos dos homens ou dos animais. O desligamento do relacionamento com a natureza haveria de tirar do psíquico o caráter do fato natural determinável objetivo-temporalmente, i. é, do fato psicológico. Tenhamos pois bem fixa a tese: cada juízo psicológico inclui o posicionamento existencial da natureza física em si, seja expressamente ou não. […] uma teoria de conhecimento que quer manter o seu sentido unívoco, deve ficar desligada, por princípio, de toda a colocação posicionante, seja científica, seja pré-científica, da natureza; e com isso devem ser suspensas todas as sentenças que implicam posicionamentos existenciais théticos de ‘coisalidades’ com espaço, tempo, causalidades etc. Isto se estende evidentemente também por sobre todos os posicionamentos da existência que atingem a existência do homem pesquisador e de suas faculdades psíquicas etc. Além disso, se a teoria de conhecimento ao mesmo tempo quer investigar os problemas do relacionamento de CONSCIÊNCIA e SER, então ela só pode ter diante dos olhos SER como correlato de CONSCIÊNCIA, como “intencionado” na correspondência-consciência: como apreendido, recordado, esperado, representado figurativamente, fantasiado, identificado, diferenciado, crido, insinuado, valorizado etc. Vemos então que a pesquisa deve estar dirigida sobre um conhecimento essencial científico da consciência, sobre isto que consciência, segundo a sua essência >é< em todas as suas diferenciáveis gestaltizações elas mesmas; ao mesmo tempo, porém, sobre isto, que ela “significa” (bedeutet), assim como sobre os diferentes modos, nos quais, ela in-tende – segundo a essência dessas gestaltizações –, ora  de modo claro, ora obscuro, ora presente, ora representando, ora significativo, ora figurativo, ora simples, ora mediado segundo o pensamento, ora neste, ora naquele modo atencional, e assim em inumeráveis outras formas – como objeto (Gegenständliches) e eventualmente “mostra” como o sendo “válida-’, ‘realmente”.

Cada modalidade de coisa que deve ser objeto de uma fala racional, de um conhecimento pré-científico e então científico, deve se dar no conhecimento, portanto, na consciência e deve ser possível deixar-se trazer à luz como dado, conforme o sentido de todos os conhecimentos” (Edmund Husserl, Filosofia como ciência de rigor, 300-301).

  1. Repetindo: no seu livro já citado “Fenomenologia da consciência atual” diz o fenomenólogo Heinrich Rombach, referindo-se à frase de von Brentano citado no início da reflexão: [com isso] “von Brentano quer dizer que em cada ato-typus entra em jogo uma referência modalizada diferentemente, que se dirige correspondentemente também a objeto modalizado diferentemente” (p. 39).

Esse ato de dirigir-se cada vez como ato-typus, cada vez modalizado diferentemente ao objeto correspondente por sua vez modalizado diferentemente, é o que usualmente chamamos de objetivação (em Husserl constituição).

  1. Sobre essa objetivação diz Husserl (Husserliana III, pg. 83ss): “Graças a essa objetivação, a nós, na impostação natural e com isso como membros do mundo natural, estão de pé diante de e de encontro a nós não somente simples fatos da natureza, mas também valores e objetos práticos de toda espécie, cidades, estradas com instalações de iluminação, moradias, móveis, obras de arte, livros, instrumentos-utensílios etc. Assim, é não somente com objetos concretos, reais, mas também com processos, relações, ligações, o todo e a parte etc. P. ex. não temos somente ocorrências da natureza, mas também ações, mudanças das obras do espírito, objetos culturais de toda espécie e como tal (p. ex. desvalorização das obras de arte por estragos, ou o tornar-se inutilizável de máquinas), estrutura de obras literárias, não como simples coisas da natureza, mas como capítulo de um livro ou como estrutura de obras de uma literatura nacional,  referida a autores, leitores, a nações etc. Em vista dos modos de vir à fala como dados encontramos então não somente “horizonte” coisal como horizonte de possível experiência natural, mas também horizonte de valor e horizonte prático; p. ex. o horizonte prático, que o agente tem cada vez no seu agir teleológico, referido à unidade de uma meta, que por sua vez ela mesma está em ligações de metas mais vastas”.
  2. Comentando esse trecho de Husserl, diz Rombach no livro acima mencionado: “Se a gente lê essa exposição como uma enumeração de possíveis espécies de objetos do mundo circundante, então a gente não tem nada mais do que apenas redundância diante de si; trata-se aqui, porém, de uma enumeração de possíveis espécies de objetividades, e com isso de uma evidência decisiva da fenomenologia”.
  3. Se conseguirmos ver esse processo de objetivação, haveremos de perceber que a realidade é cada vez um conjunto vivo e dinâmico de estruturações como constituição de mundos, cada vez na sua própria identidade para dentro de si e ao mesmo tempo na sua própria abertura de conjunções para com outras possibilidades de estruturações variegadas e concretas. A esse respeito diz Rombach na ‘Fenomenologia da consciência atual’: “Quando um homem apenas ‘conhecido’ se torna por fim um homem ‘odiado’, isto quer dizer: ele se transestrutura de início ao fim, inteira e totalmente para quem odeia, até para dentro dos traços os mais minúsculos enquanto objeto. Um homem odiado é, em outro modo, homem do que um apenas conhecido. Ele não tem apenas outras propriedades […], mas ele é a partir de dentro construído “outramente”, é “outramente” sendo (p. ex. ‘de cabo a rabo’ falso’), de tal maneira que “tudo” nele é odiável. O ódio tem seus olhos próprios, ele “outramente” – e somente porque ele vê “outramente”, o ódio sente “outramente”. Em diferentes espécies de referência formam-se diferentes objetividades com cada vez outras legitimidades e leis. A multiarticulação do mundo salta de uma multiarticulada intencionalidade subjetiva, i. é, da capacitação do sujeito de projetar determinados tipos de dados externos e com isso estruturar o campo de experiência numa forma característica. Certamente não estão à disposição do indivíduo particular quaisquer tipos fundamentais da objetividade, mas somente aquilo que está à disposição da subjetividade como tal. A totalidade de todas as formas intencionais perfaz aquilo que a gente chama de “sujeito transcendental”. O “sujeito empírico”, no entanto, ficará sempre sob o âmbito total das possibilidades intencionais do sujeito transcendental. Alguém não desenvolva talvez o horizonte da objetividade matemática (nota da tradução: o dar-se do mundo matemático) ou talvez o desenvolva, mas não desenvolverá o horizonte estético ou histórico; em todo caso, não segundo todos os seus momentos, partes e aberturas genuínas. Sempre permanece o homem devendo algo à sua essência, à humanidade; não pode captar tudo o que é possível captar ao ser homem, i. é, à humanidade” (p. 39-40).
  4. De tudo isso que viemos refletindo até agora, tentemos tirar uma espécie de resumo de pensamento, concentrando-nos numa evidência que é de decisiva importância para compreender melhor o movimento do pensamento da analítica da existência.

A evidência consiste em nos aclaramos que o que consideramos como a realidade em si é uma interpretação dominante, digamos congelada, do abismo de possibilidades insondável de ser que desajeitadamente chamamos de Ser ou o sentido do Ser. Outros termos que usamos para o Ser é muitas vezes Vida, Universo, Totalidade do ente etc.. Só que, por sua vez, todos esses termos que acenam para o abismo insondável das possibilidades de ser são continua e tenazmente já pré-compreendidos sob a dominação da interpretação usual e dominante do sentido do Ser. E isto de tal sorte que não conseguimos nem sequer vislumbrar de que se trata quando, na impossibilidade de formular adequadamente, dizemos “o abismo de possibilidades insondável de ser”, presos e fixos como estamos na pré-compreensão do Ser como sendo a totalidade da coisa-substância em suas diferentes densidades de manifestações.

No mundo, porém, em que começamos a suspender, a desligar essa “crença” ingênua na realidade em si a modo de coisa-substância, e descobrimos que a realidade assim simplesmente dada é uma possibilidade entre milhares de possibilidades desse abismo de possibilidades insondável de ser, começam a se abrir cada vez mais e cada vez novos horizontes surpreendentes, e dentro de um mesmo horizonte outros sub-horizontes, numa diferenciação riquíssima de nuances diferenciais, na dinâmica do aparecer. Do aparecer, do desvelar que estrutura, constitui mundos e mundos, cada vez, fazendo surgir constelações vivas de relacionamentos que eclodem a seu modo, como mundo e mundos, mundo e mundos dentro do outro mundo, numa movimentada reciprocidade, ora contrapostos, ora aglutinados, ora inclusos ou exclusos, numa mútua implicância e explicância de estruturação criativa e vital da possibilidade de ser.

  1. E na media em que o nosso ver se livra para a dinâmica dessa liberdade de ser começamos a ver que o homem, isto que nós propriamente somos, a saber, o ser ou a essência do homem, não coincide simples e ingenuamente com o que sempre tínhamos tido como homem, i. é, homem como esse sujeito-coisa como núcleo portador de faculdades, propriedades e acidentes, contraposto aos objeto-coisas diante e ao redor de nós, exatamente porque esse “homem-sujeito e agente-coisa” não é outra coisa do que a coisa congelada do posicionamento de uma determinada interpretação do sentido do Ser que se tornou dominante e determinante na História do Ocidente. Isto significa que, o que Husserl chama de Consciência, ato, fenômeno psíquico, intencionalidade, mais amplamente e mais profundamente de “sujeito ou subjetividade transcendental” é o que constitui a essência do homem, o ser do homem. Isto por sua vez significa que o ser do homem, aquilo que per-faz o próprio do homem, é por assim dizer, a imensidão da abertura atenta, na disposição de receber, trazer à luz, desvelar os toques-criações do sentido do Ser e deixá-los ser como gênesis, eclosão, aumento e consumação do(s) mundos(s), cada vez na sua limitação e finitude, possibilidades e leis da pregnância da estruturação. O homem no seu ser não é outra coisa do que a abertura da responsabilidade de ser dele mesmo e de tudo quanto não é ele mesmo, do mundo.
  2. Esse modo todo próprio de ser do homem, digamos, libertado do congelamento no dogmatismo coisista e coisificante da tradição, se chama existência.
  3. Esse termo, existência, porém, jamais pode ser confundido com o termo tradicional existência (essência e existência) que também no uso que Husserl faz do termo significa a ocorrência de coisas como fatos reais dentro da crença ingênua da existência da natureza. A existência no sentido novo da fenomenologia não coincide também com a consciência de Husserl, por mais que a fenomenologia de Husserl tenha contribuído para abrir a possibilidade de intuir o ser do homem como existência, pois em Husserl, mesmo a subjetividade ou sujeito transcendental ainda de alguma forma se ressente da dominação da compreensão-substância do ente como coisa em si.
  4. A analítica da existência é a tentativa que encontramos na clássica obra inovadora do pensamento contemporâneo, no Ser e Tempo de Martin Heidegger, onde somos conduzidos num processo de “desconstrução” da pré-compreensão dominante tradicional do sentido do Ser, para a busca de uma forma mais total e radical da liberdade do ser do Homem como existência, no trabalho árduo de esboçar os traços fundamentais da estruturação viva e dinâmica do ser do homem: a analítica da existência.

E na medida em que a estruturação interna da existência se desvela e se torna temática, nos é possibilitado dispor-nos cada vez mais para receber a compreensão mais própria e adequada do que seja propriamente o Ser e o sentido do Ser, i. é, nos é dado podermos nos dispor límpida e claramente para a questão do sentido do ser.

analit. 5

A filosofia não busca o ente, mas sim o Ser.

O Ser não é ente. Por isso não pode ser buscado a modo do ente.

Na busca do Ser que não é ente e que por isso não pode ser buscado a modo do ente, o Ser nunca é encontrado como ente, coisa, objeto etc. Ele jamais é encontrado em si.

Para quem o busca, esperando encontrá-lo como ente, em si, o Ser é nada.

Por isso o Ser só pode ser encontrado em interrogando o ente, no seu ser. O Ser só pode ser encontrado como referente ao ente, embora jamais como ente.

A referencia do Ser ao ente aparece como questão da totalidade, como a pergunta pelo todo.

O Ser está sempre referido ao todo do ente. Em referência ao ente Ser significa totalidade do ente. Por isso se diz: o Ser do ente na sua totalidade.

A totalidade ou o todo é cada vez diferente na sua compreensão.

Há fundamentalmente três compreensões da totalidade ou do todo: a extensão; a profundidade; a originariedade.

A extensão, a profundidade e a originariedade não são totalidades uma ao lado da outra. São diferentes modos de ser do Ser na sua referência ao todo. São diferentes aberturas de recepção do desvelamento do Ser, na interrogação do ente no seu ser.

Na extensão o Ser é captado como a condição da possibilidade de o ente ser no seu todo como ocorrência.

Na profundidade o Ser é captado como a condição da possibilidade de o ente ser no seu todo enquanto chamado à unidade como o “a partir do mesmo princípio” e o “para a mesma meta”.

Na originariedade o Ser é captado como a condição da possibilidade de o Ser se desvelar e se ocultar cada vez como a liberdade fontal da possibilidade de o ente ser na sua totalidade cada vez sua.

O modo de Ser na sua referência ao todo na compreensão “ocorrência” aparece como Mundo ou Universo ou Natureza (Cosmologia); o modo de Ser na sua referência ao todo na compreensão ”profundidade” aparece como Deus (tò theion) (teologia natural); o modo de Ser na sua referência ao todo na compreensão “originariedade” aparece como Homem (antropologia filosófica).

Examinar o modo de ser do Ser na sua referência ao todo na compreensão “originariedade” é a analítica da existência (humana): é interrogar o ente todo próprio chamado “existência” no seu ser.

É na medida em que o ser do ente chamado “existência” vem à luz tematicamente, a procura do Ser recebe a sua adequada correspondência própria para o modo de ser próprio do Ser. Assim, nos tornamos translúcidos ao Ser, na cura i. é, na pastoral do sentido do ser na sua totalidade.

Analit. 6

Para podermos captar da melhor maneira possível o que devemos entender por  “cada vez seu” tentemos nos colocar na seguinte situação descrita a seguir:  eu aqui estou  no meio de outros entes ao redor de mim. Esse ao redor de mim pode ter um âmbito bem pequeno, maior ou bem extenso. Tão extenso que se espraia pelo universo a fora, “abrangendo” os entes no seu todo, ou todos os entes do universo. Esse espraiamento e a totalização da “enumeração” de todos os entes tem o caráter de uma abrangência extencional. Os entes no seu todo, porém, podem me cercar num relacionamento diferente ao da abrangência extencional, digamos numa implicância de profundidade, p. ex. de parentesco, de amizade, de todo um mundo de negócios a assumir, da dependência hereditária, de comprometimento religioso etc.  Podem assim surgir como que centrados em mim, mil e mil relacionamentos de diferentes níveis, significações e conteúdos, despertando em mim diferentes atos, comportamentos, ações para com os entes no seu todo e para comigo mesmo. Alguns desses relacionamentos e seus objetos são bem próximos a mim, outros mais distantes, e outros bem longínquos. Mas todos eles estão referidos a mim, de tal sorte que não há nada que não esteja em referência a mim; mesmo o que nada tem a ver comigo, exatamente está referido a mim como nada tendo a ver comigo. Todos os entes que não tem o característico que tenho como ente humano, a saber, p. ex. as coisas físicas, os vegetais, os animais existem ali simplesmente, são-me dados como realidade diante de mim e independentemente de mim no seu existir. Muitas coisas em mim e nos outros entes humanos tem o mesmo caráter das coisas que não são ente humano, portanto são também simplesmente dados como ente em si. Em mim e nos outros entes humanos, no entanto, se “dá” um modo de ser todo próprio que nos realça no meio dos entes, nos ressalta de outros entes, fazendo-nos relacionar-nos com todos os entes de um modo todo peculiar, que nos faz diferentes de todos os entes ao redor de nós. Esse modo de ser todo peculiar, próprio de nós entes humanos, se caracteriza como “CADA VEZ SEU”.

O que quer dizer pois “cada vez seu”? Cada vez quer dizer sempre de novo, jamais igual, sempre diferente, ao menos no seu ocorrer.  P. ex. quando o ponteiro do relógio que assinala os segundos faz tic, tac, cada tic, cada tac é cada vez. E embora o tic e tac seja igual na sua unidade de contagem, cada tic, cada tac é no seu momento presente, de sorte que um momento presente não é o momento seguinte no seu ocorrer na sucessão. Assim cada vez indica o momento. E o momento, por menos conteúdo que ele tenha, é dado simplesmente como algo em si. Se compreender o “cada vez” assim,  eu  não captei com rigor o significado da característica cada vez seu que realça  o ente humano de todos outros entes. É que  captar o “cada vez” assim como momento-algo é considerá-lo como simplesmente dado, e como tal eu considero o ente humano no que há de mais próprio nele como se fosse um ente que não  tem o modo de ser  próprio do humano. Mas atenção, aqui ao assim distinguirmos o ente humano do ente não-humano, nessa distinção assim colocada, eu estou na realidade colocando uma distinção que não faz aparecer o próprio diferente do ente humano, pois a diferença que eu coloco entre o ente humano e o ente não-humano não se refere à diferença do ser portanto à diferença ontológica, mas apenas à diferença de modos dentro do igual, uma compreensão do ser como simplesmente dado como ente em si, portanto se refere à diferença ôntica. Assim, temos o universo, dentro do qual estão os entes com suas diferenças, p. ex. entes físicos, entes vivos, entes animais, entes humanos etc. Aqui, enquanto entes são entes simplesmente dados como algo em si, tendo sim suas diferenças, mas dentro do igual, na compreensão do ser como fatos, factualidades e coisas em si ocorrentes, dados. Embora diferentes, e bastante diferentes, todos os entes inclusive o humano estão ali dentro do modo de se dar do ser, são dados de uma determinada compreensão do ser.

Aqui, no entanto, incide uma observação decisiva que deve ser captada com total precisão para que se possa entender o que quer dizer “cada vez seu” como a caracterização do ser do próprio do homem. A observação é a seguinte: esse “fato” de todos os entes inclusive o humano estar ali dentro do modo de se dar do ser, de serem dados de uma determinada compreensão do ser, faz com que a diferença, principalmente a diferença entre o ente humano e outros entes que não são humanos, deixe de aparecer, deixe de ser captada na sua diferença. Mas em que sentido? No sentido de a diferença somente aparecer como diferença entre entes que estão dentro de um determinado sentido do ser e não como a própria diferença do ser, portanto como outro sentido do ser. Essa compreensão diferencial do ente humano ‘contra’ ou ‘de encontro’, ‘junto ou ao lado’ de outros entes, considerada não mais como o diferencial que divide ente e ente, mas sim como a diferença que abre um sentido do ser totalmente diferente, dentro e a partir do qual todos os entes aparecem, são, na novidade radical da diferença ontológica, é o que está assinalado com o termo seu na expressão cada vez seu. Cada vez seu como sentido do ser radicalmente novo só pode ser captado se captarmos bem o que significa o TER-QUE-SER como um outro aspecto da caracterização do ser do homem como  existência. O ter-que-ser está colocado como o termo diferencial ontológico contra o termo diferencial também ontológico do simplesmente dado. Ele indica a Liberdade.

            Mas como pode indicar liberdade se o ter que significa justamente uma obrigação, uma coação? Aqui é necessário desconfiar da nossa compreensão usual da liberdade que é avessa ao ter que,  justamente porque entende o ser do homem a modo de coisa, vegetal ou animal, e jamais na sua diferença ontológica, i. é, a modo do ser da existência. Para podermos ver tudo isso de alguma forma, recordemos a diferença que existe na compreensão da palavra liberdade, quando dizemos “liberdade de” e “liberdade para”. A liberdade de existe quando estou sem nenhum impedimento, sem amarras. Nesse sentido, embora não muito adequadamente, posso representar uma pedra, uma árvore ou um animal como livre de, se ele está ali simplesmente, sem que nenhuma outra força exerça sobre ele uma coação. A única imposição aqui é de ele estar ali simplesmente como algo. Esse modo de ser do ser livre, embora aplicado ao vegetal e ao animal, na realidade, está concebida a modelo de uma coisa física. Assim, o fato de algo estar livre nesse sentido, não lhe garante que ele tenha vida, muito menos liberdade. A liberdade para já indica uma dinâmica de finalização. Para ser livre nesse sentido de para é necessário de alguma forma ter vida e além da vida uma orientação para uma meta e consumação. Aqui ser é um tornar-se, e quiçá tornar-se que vem de dentro do próprio ente. Nesse ser dinâmico de tornar-se, o ente não é simplesmente dado, mas deve se tornar, deve ser, tem que ser. Aqui o ter que ser não indica nem coação, nem imposição que vem de fora ou de dentro, mas diz apenas que o ente não tem o modo de ser do simplesmente dado, mas sim o modo de ser de uma dinâmica perfectiva, i. é, a dinâmica do perfazer-se, do tornar-se. Mas, atenção, pois aqui, se não formos bem rigorosos na mira, deixamos decair a compreensão do ter-que-ser de novo para a compreensão do ser como simplesmente dado, da seguinte maneira: admitimos que o ser livre para seja uma dinâmica do tornar-se; mas representamos sem o percebermos a dinâmica e o tornar-se como se fosse um movimento espacial ou temporal a modo de uma coisa física. Assim, entendemos o ser livre para a modo de evolução, desenvolvimento, progresso etc. Quando dizemos na analítica da existência que um dos traços fundamentais da estruturação da existência é ter-que-ser, queremos evitar todos esses equívocos sutis que nos ameaçam continuamente o pensar, quando queremos intuir o ser da existência como uma diferença ontológica, dentro e a partir da qual podemos compreender o homem e as suas circunstâncias, i. é, o homem e o mundo, adequadamente no que é propriamente o ser humano.  Aqui não basta pensar a liberdade para apenas dinâmica ou vitalmente.

Tentemos intuir de que se trata, quando exigimos que devemos pensar a liberdade, o ter-que-ser para “além” e para “aquém” da dinâmica e vitalidade usual. Para isso tentemos ver diretamente como é diferente a liberdade humana de outros tipos de dinamismo e vitalidade. É que na liberdade humana há “algo” que é irredutível a outros tipos de dinamismo e de vitalidade. Para intuir esse “algo” diferente, recorramos a um texto da Bíblia. Diz Mt 7, 1-2: Não julgueis e não sereis julgados. Pois com o juízo com que julgardes, sereis também julgados; e com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos. Nós entendemos mal essa frase, se pensamos que quem nos julga é Deus severo, moralista que nos castiga por termos sido duros e orgulhosos, em julgando, em pensando mal dos outros. Assim, para nos assegurarmos, nos omitimos de julgar, pensando que com isso estamos salvos. Houve quem assim entendesse essa frase e se deu mal: Chega o outro, dizendo: ‘Senhor, aqui estão as cem moedas que guardei num  lenço. É que eu tinha medo de ti, porque és um homem severo e queres exigir o que não deste e colher onde não semeaste’. Respondeu-lhe ele: ‘Por tuas próprias palavras eu te condeno…’ (Lc 19, 20-22).

Aqui o pivô da questão é intuir diretamente o que quer dizer com a medida com que tiverdes medido, também sereis medidos, por quem? Por mim mesmo! Com outras palavras, eu, para ser, tenho que ser, i. é, eu sou responsável por meu próprio ser.  Estou relacionado para com o meu próprio ser como tendo que livremente assumir a responsabilidade de ser.  Se alguém me pergunta quem és tu? devo responder: sou aquilo que faço de mim mesmo. Mas tudo isso não é uma tremenda pretensão, uma hibris ridícula, eu em sendo finito, limitado, querer ser o que faço de mim mesmo? Não é assim que, nem querendo a vida inteira com a mais intensa vontade, nem sequer posso fazer crescer os cabelos da minha cabeça? Não é assim que tudo recebemos, mesmo a possibilidade de receber? Todas essas objeções estão distraídas de um único ponto nevrálgico sobre o qual deveria incidir a atenção, a saber: seja como for o meu ser finito, tenha limitação que tiver, por menos que seja onipotente, infinito, por mais que para ser deva estar dependente de milhões de coisas, tudo isso que sou simplesmente como dado de antemão, uma vez considerado, referido ao meu ser humano, deixa de ser simplesmente dado, como o seria no caso de pedra, planta ou animal. Aqui, tudo, sem exceção, eu próprio a que tudo está referido, está no seu ser, está no sentido do ser que possa receber, cada coisa em particular e enquanto a totalidade dos entes; portanto, tudo está pendente da decisão de ser, da responsabilidade de ter-que-ser o que já se é. Esse ter-que-ser, essa decisão de ser, não tem nenhuma medida preestabelecida de antemão, esse a priori da necessidade de ter-que-ser, não é um a priori prejacente, ali dado simplesmente, mas sim …na perplexidade de não encontrar como dizer: CADA VEZ MEU – TER-QUE-SER. Uma vez intuído esse modo diferencial de ser da liberdade, que sempre ainda entendemos como que um ato, um modo de ser de uma substância chamada Homem, portanto como diferença ôntica ou como um fenômeno antropológico ou psicológico, tentemos “universalizar” essa diferença ôntica para a diferença ontológica, isto é, tentemos intuir que esse cada vez meu- ter-que-ser não significa qualidade de um ente ou do conjunto de ente-homem, mas sim o ser do ente na sua totalidade, dentro e a partir de cujo sentido do ser, todos os entes, tanto o ente homem como os entes não-homem, se estruturam e se constituem como concreções dessa nova dimensão do ser-existência.

Nesse sentido diz Heinrich Rombach no seu livro “Vida do Espírito”, Editora Herder, Friburgo i. Br. / Basiléia/ Viena, 1977, p. 7: “Nestas análises historiais aqui tentadas somente entra quem compreende o Homem, não como um ente, cujo esboço fundamental prejaz fixo desde o início e sobre cuja “natureza” e “essência” se devam formular sentenças definitivas. Antes, o Homem transforma o seu perfil epocalmente sempre de novo, na medida em que configura novo o traço fundamental do seu existir no evento de sua implicação mútua com o mundo. Esta estrutura fundamental da sua existência sempre de novo encontrada, decide sobre o que ele pode sentir e pensar, fazer e deixar, decide onde estão os limites da sua experiência e para onde mira o seu querer. Assim, também através desse esboço do fundo é decidido sempre de novo sobre as áreas que se interpenetram e se deslocam, dentro das quais os modos fundamentais de comportamento do Homem tem a sua pátria: crer e saber, pensar e agir, trabalhar e festejar, lutar e dominar, amor e morte. Quando o filósofo começa a pensar, o sacerdote a ofertar, o estadista a reger, e o artista a formar, está já – epocalmente – decidido sobre a moldura de fundo do seu fazer”.

Analit. 7

            A caracterização do ser do homem como existência; e a explicitação da sua estrutura  como cada vez seu, se não captada com rigor ontológico, nos pode induzir a pensarmos que a existência e o existencial dizem respeito ao subjetivismo extremo de fechamento total no particular. Se a realidade “eu e a minha circunstância” é cada vez minha, não estamos falando de crasso subjetivismo solipsista?…Esse equívoco é muito comum, embora bastante ingênuo, pois aborda a questão da existência num nível filosófico superficial sem nenhuma desconfiança de que a compreensão do ser que ali está em jogo não é ôntico, mas sim ontológico. Mas, o que quer dizer isso, ontológico?

Dissemos numa das aulas da analítica da existência que o nosso saber cotidiano e principalmente o nosso saber científico distingue entre ente e ente, a partir de um critério comum, i. é, do geral. Assim, ao partir dos entes particulares vamos classificando os entes sob um conceito mais geral, e os conjuntos desses entes agrupados em conceitos gerais são por sua vez classificados sob um conceito mais geral do que os conceitos anteriores e assim adiante até chegar ao conceito mais geral, que é o conceito do ente. Chamamos esse modo de distinguir de generalização. Há pessoas que entendem o ontológico como se fosse essa última generalização, portanto a recondução dos entes particulares à sua compreensão a mais geral. Ontológico seria então um saber que examina o ente, não como este ou aquele ente particular, mas sim enquanto ente. Aqui o que se deve entender por ente, o que é ser já está dado simplesmente. Aqui não há nada a investigar, pois além do conceito de ente enquanto ente nada se pode perguntar, pois ele é o que de mais obvio existe. Nesse sentido caracterizar ontologicamente o ser do homem significaria caracterizar o conceito, o mais geral que possa existir para entender o homem de modo, o mais geral possível, distinguindo-o de um outro grupo geral de entes que são os entes não-humanos. Aqui na analítica da existência, o ontológico não deve ser entendido nesse sentido da generalização. Ontológico aqui diz referência, não ao ente, portanto ao ôntico, mas sim ao ser, portanto ao onto-lógico.

Certamente a palavra grega ón, óntos significa sendo, em latim ens, entis. Ens, entis é o particípio presente ativo do esse, portanto do ser. De tal sorte que ón é em português ente, o ente, o sendo. Só que aqui, em vez de entender o ente como indicativo do algo, de uma coisa, de uma substância, devemos escutá-lo como “verbo”, como a dinâmica do ser (no sentido ativo), como presença de atuação, como vigor reinante, como o todo prenhe pulsante ”ente”, i. é, em sendo. Tentemos intuir de que se trata através de um exemplo. Tomemos um par de sapatos. Descrevendo um par de sapatos, quadro pintado por Van Gogh, diz Martin Heidegger (A origem da obra da arte): Da escura abertura do interior gasto dos sapatos, mira-nos o penar dos passos do trabalho. No peso rude incrustado dos sapatos está sedimentada a tenacidade do lento caminhar através dos longos sulcos, sempre iguais do campo, sobre o qual sopra um vento rude. Sobre o couro repousa a umidade e a saturação do chão. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo pela tarde que cai. No artefato para calçar vibra o apelo calado da terra, a sua silenciosa doação do trigo maduro e o seu não aclarado fracasso na racha desolada do campo hibernal. Através dessa “coisa” passa sem queixa o cuidado trêmulo pela segurança do pão, a silenciosa alegria de mais uma vez sobreviver na indigência, o estremecer no advento do nascimento e o tremor na ameaça da morte. À terra pertence esta “coisa” e no mundo da camponesa é ela abrigada. É a partir dessa pertença abrigada que a própria “coisa” se ergue no seu repousar-em-si”.

            Aqui, os sapatos não são entes ou ente subsumido debaixo do conceito geral p. ex. de artefato, instrumento, vestimenta etc. Aqui os sapatos revelam toda paisagem prenhe de sentidos, significações, vida, uma totalidade que denominamos o mundo do campo. Os sapatos não somente revelam, eles o o mundo e ao mesmo tempo uma concreção desse mundo. Essa pertença, essa atinência na unidade prenhe de presença que contém em si todo um abismo de novas possibilidades de desvelamento os gregos diziam num simples gerúndio: ón, em sendo,  o ente. Aqui ente e ser coincidem, é a totalidade da prenhez de ser, cada vez todo, cada vez pleno, cada vez todo um mundo aberto recolhido como tudo:uno, hèn panta. Essa totalidade da pregnância de ser é indicada pelo termo ontológico. O processo que nos faz aparecer esse tipo de totalidade se chama mostração formal. Formal aqui não significa abstrato, formalizado, mas sim está referido à essencialização, à perfilação, à revelação típica, ao vislumbre do todo na nitidez e rigor de sua estruturação. Aliás, também p. ex. os sapatos que encontramos nas vitrinas da loja de modas podem nos revelar o seu ser, cuja paisagem é bem diferente à do par de sapatos de van Gogh. Mas aqui também trata-se da pregnância da presença desveladora de todo um mundo oculto como fundo na unidade estrutural: o ser dos negócios.

Essas totalidades não estão uma ao lado da outra, mas há entre elas uma referência sui generis de fundamentação, bem diferente à da generalização; fundamentação na atinência à vastidão, à profundidade e à originariedade abissal.

Quando falamos aqui de existência no sentido da fenomenologia, e caracterizamos como um dos momentos da estruturação da existência  o cada vez seu, estamos falando ontologicamente, i. é, falando do ser do homem como a presença prenhe de atuação viva no desvelamento e ocultamento do abismo do ser, portanto do ser do ente na sua totalidade.

Analit.8

Dissemos na aula anterior que a analítica da existência pode ser entendida como uma antropologia filosófica, i. é, informação sobre a existência humana i. é, sobre o homem. Nesse caso existência = homem. As nossas aulas da analítica da existência não são nesse sentido uma antropologia, pois essa disciplina nós a temos no terceiro ano. Como dissemos também na aula anterior, a analítica da existência pode ser entendida como a busca do ser da existência. E como a busca do ser da existência, ela é uma preparação para ontologia fundamental. Nesse caso a analítica da existência seria algo como uma propedêutica para uma ontologia nova, que recebe o qualificativo de fundamental.

Aqui, repetindo, existência não significa ocorrência. Ocorrência em alemão se diz Vorhandenheit. Vorhandeiheit é um dos conceitos fundamentais da analítica da existência. Significa a qualidade de estar ali diante de, como coisa. Eu posso considerar tudo, desde os atos psíquicos os mais fugidios até o maciço conjunto de montanhas rochosas, como coisa que está ali prejacente; desde o pó o mais minúsculo até Deus e sua majestade como coisa que está ali prejacente; desde o concreto armado o mais palpável e ‘real’ até o invisível e supra-sensível espírito o mais etéreo como coisa ali ocorrente na prejacência. A palavra existência no sentido usual e tradicional significa essa qualidade de ser real, de ser de fato presente, em contraposição com o ainda não real mas apenas possível. Existência no sentido da analítica existencial não significa essa ocorrência. Indica sim o que? No semestre passada dissemos: indica o Homem. E exclusivamente o Homem. De tal sorte que nesse sentido devemos dizer: as coisas como planta, pedra, animal, Deus não existem. Essa afirmação é válida e continua válida no segundo semestre. Só que devemos limpar um equívoco que se estabelece infalivelmente sempre de novo na nossa mente. É o seguinte: quando dizemos exclusivamente o homem podemos pensar assim: eu tenho diante de mim vários entes ou coisas como pedra, planta, animal, Deus, espíritos etc. Todos esses entes são ocorrentes no sentido de ser real, de ser presença do que é de fato, não são apenas possibilidades. O homem também na realidade é ocorrente nesse sentido. Só que o homem é um ocorrente de tipo todo próprio, diferente de pedra, planta, animal, Deus etc. Para indicar essa qualidade todo própria do homem que entre outros entes ocorrentes tem o seu modo próprio (embora ele também seja ocorrente) a analítica da existência reservou o termo existência exclusivamente para o homem. Se entendeu assim, você entendeu a analítica da existência como antropologia filosófica e não como propedêutica de uma nova ontologia. Como pois entender a existência nesse sentido todo especial da propedêutica da nova ontologia, nesse sentido novo que ultrapassa o sentido da existência como o indicativo do próprio especial do homem?

Aqui é necessário manter com muita atenção as seguintes recomendações na arte de disciplinar a sua mente: 1. Manter a compreensão da existência como o indicativo disso que o Homem tem de próprio, portanto manter a compreensão da existência no sentido da antropologia. 2. Em mantendo essa compreensão da existência como indicando esse modo todo próprio de o homem ser, observar com clareza que continuo entendendo o ser do homem como ocorrência. Nessa clareza o homem é um ente ocorrente ao lado de outros entes, mas que tem a qualidade todo própria de ocorrer que recebeu o nome na analítica existencial de existência. 3. Em tendo claramente consciente esses pontos, agora com acuidade questionar: essa compreensão do ser do homem que é a compreensão usual, corrente e tradicional do ser consegue deixar ser isto que eu caracterizo como existência ou existencial?  Não é assim que nesse próprio do homem que chamamos de existência se anuncia outro sentido total do ser que não pôde se manifestar até hoje porque estava como que soterrado sob a dominância da compreensão usual do ser como ocorrência, como Vorhandenheit? E que esse outro sentido total do ser é mais originário do que a compreensão do ser como ocorrência; e que esse novo sentido do ser pode inaugurar uma nova ontologia i. é, ciência do ser que pode servir de fundamento para variegadas e diversificadas compreensões do ser como a totalidade do ente como tal, cada vez na sua diferença, portanto de uma ontologia fundamental? 4. A partir agora desse questionamento e desse lance de suspeita e pressentimento, analisar a existência do homem que à primeira vista aparece como qualidade ou conjunto de qualidades do ente  homem, não para obter informações sobre o homem ocorrente como um ente especial, mas para fazer a ausculta do sentido do ser que se prenuncia nessas pretensas ‘qualidades’  do homem, isto é, buscar o ser da existência.

Portanto, esses passos acima mencionados no 1,2,3,4 devemos manter continuamente. Mas como é dificílimo mantê-los sempre e a cada passo, caímos continuamente no equívoco de entender a analítica da existência enquanto propedêutica dessa nova ontologia, fundamental como sendo uma descrição antropológica do homem na sua ocorrência especial.

O segredo da boa compreensão na disciplina chamada analítica da existência consiste em ter uma grande paciência e cordialidade de suportar, i. é, carregar esse empenho de manter-se continuamente na “complicação” desses passos acima mencionados, e ali sempre de novo limpar os pré-conceitos que naturalmente se estabelecem na nossa mente, e em nos limpando dos preconceitos não ficar apenas no vazio escancarado do nada saber, mas sim afiar a atenção, afinar a sensibilidade do pensar para captar o novo sentido do ser que vem de encontro a nós, na medida em que intrepidamente nos ativermos a esse modo de busca existencial.

A partir dessa colocação acima mencionada, vamos tentar analisar características principais da existência.

Elas são assim na primeira abordagem:

-1) Cada vez meu; 2) ter que ser; 3) no mundo: esses três momentos constituem o existencial que recebe o nome de: ser-no-mundo.

Temos na analítica da existência vários termos que devemos distinguir: o existencial e o existenciário.  O existencial corresponde no uso do termo em francês e no alemão ao existenzial; o existenciário ao existenziell. Há mais três termos que podemos guardar, o termo existencialidade que corresponde no alemão ao Existenzialität. Também o termo existência, em alemão Existenz e pre-sença, em alemão Dasein. O que é a existencialidade? o existenciário? e o existencial? a existência, a pre-sença?

Nas notas explicativas que vêm no fim do I volume do Ser e Tempo na tradução brasileira, temos:

Existencialidade: “O vigor de integração de estrutura e limites nas estruturações. A força deste esforço provém da copertinência originária de existência, existencial, existenciário nas épocas da pre-sença. Por isso, impõe-se uma diferença constitutiva entre as estruturações da existência, os existenciais, e as estruturações dos demais seres, as categorias”.

Existenciária (o): “Indica a delimitação fatual do exercício de existir que sempre se propaga numa pluralidade de singularidades, situações, épocas, condições, ordens etc.”

Existencial: “Existencial remete às estruturas que compõem o ser do homem a partir da existência em seus desdobramentos advindos da pre-sença.”

Existência: Existenz em alemão. “A palavra existência resulta da aglutinação da preposição ek e do verbo  sistere. No plano meramente vocabular, existência diz: 1) um movimento de dentro para fora, expresso na preposição; 2) a instalação que circunscreve e delimita um estado e um lugar; 3) uma dinâmica de contínua estruturação em que se trocam os estados, as passagens e os lugares.

Devido à pregnância desse conjunto semântico é que Ser e Tempo reservou “existência” para designar toda a riqueza das relações recíprocas entre pre-sença e ser, entre pre-sença e todas as entificações, através de uma entificação privilegiada, o homem. Nessa acepção, só o homem existe. “A pedra é” mas não existe. O carro “é” mas não existe. Deus “é” mas não existe. Privilégio não diz aqui exercício de poder e dominação mas a aceitação do dom da existência que lhe entrega a responsabilidade e a tarefa de ser e assumir esse dom. A resposta a essa doação se dá como história. Na história do Ocidente, a resposta predominante tem sido a era da metafísica. Nela, a existência reduz-se à instalação que circunscreve e delimita um estado e lugar na tensão com a essência. Por isso, qualquer inversão da ordem entre essência e existência consolida e não supera a resposta metafísica (cf. Carta sobre o Humanismo, Ed. Tempo Brasileiro).”

Pre-sença = Dasein: “Pre-sença não é sinônimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e Tempo, traduz-se, em geral, para as línguas neolatinas pela expressão “ser-aí”, être-là, esser-ci etc.  Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binômio metafísico essência-existência; 2) para superar o imobilismo de uma localização estática que o “ser-aí” poderia sugerir. O “pre” remete ao movimento de aproximação, constitutivo da dinâmica do ser, através das localizações; 3) para evitar um desvio de interpretação que o “ex” de “existência” suscitaria caso permaneça no sentido metafísico de exteriorização, atualização, realização, objetivação e operacionalização de uma essência. O “ex” firma uma exterioridade, mas interior e exterior fundam-se na estruturação da pre-sença e não o contrário; 4) pre-sença não é sinônimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua história etc. (cf. entrevista de Heidegger ao Der Spiegel, Rev. Tempo Brasileiro, n. 5O, julho/set. 1977).

Comentar na aula essas “definições” e esclarecê-las com exemplos.

1) Cada vez  meu: Jemeinigkeit

Texto: “O sendo que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos.

O ser deste sendo é sempre cada vez meu.

Em seu ser, isto é, sendo, este sendo se refere ao seu ser.

Como sendo deste ser o sendo é responsabilizado ao seu próprio ser.

O ser é, por isso, o que neste sendo está cada vez em lance.”

“O ser que está em lance no ser deste sendo é sempre meu. Nesse sentido, a pre-sença nunca poderá ser apreendida ontologicamente como caso ou exemplar de um gênero de entes simplesmente dados. Pois, para os entes simplesmente dados, o seu “ser” é indiferente ou, mais precisamente, eles são de tal maneira que o seu ser não se lhes pode tornar nem indiferente nem não indiferente. A interpretação da pre-sença deve dizer sempre também o pronome pessoal, devido a seu caráter de ser sempre minha: “eu sou”,  “tu és”.

A pre-sença se constitui pelo caráter de ser minha, segundo este ou aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo a pre-sença é sempre minha. O sendo, em cujo ser, isto é, sendo, está em lance o próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como a sua possibilidade mais própria. A pre-sença é sempre sua possibilidade. Ela não “tem” possibilidade apenas como uma propriedade simplesmente dada. E é porque a pre-sença é sempre essencialmente sua possibilidade que ela pode em seu ser, isto é, sendo, “escolher-se”,  ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se “aparentemente”. A pre-sença só pode perder-se ou ainda não se ter ganho porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma. Os dois modos de ser propriedade e impropriedade – ambos os termos foram escolhidos em seu sentido verbal rigoroso – fundam-se no fato de a presença ser determinada pelo caráter de ser sempre minha. A impropriedade da pre-sença, porém, não diz “ser” menos nem um grau “inferior” de ser. Ao contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção da pre-sença em seus ofícios, estímulos, interesse e prazeres”.

Analit. 10

  1. Dimensões de profundidade da existência humana
  2. Vida atual: vida individual

acontecimentos sociais

a realidade vivida

  1. Condicionamentos

sociais:                        direito

condições políticas

condições técnicas e científicas

  1. Consciência

epocal:                         racionalidade funcional do pensar; história do espírito; história da consciência.

  1. História do ser: palavras originárias: essência, substância, sistema, pessoa, “ser”.
  2. História funda-

mental:                         evento originário da gênesis elementar que aparece como p. ex. idade das pedras,

cidade, cruz etc.

  1. A constituição existencial do Da: o Da-sein como disposição (Befindlichkeit)

Na analítica da existência começamos a compreender que a maneira usual de representar o ser do homem como substância (=coisa chamada sujeito em contraposição à coisa chamada objeto) e o ser dos entes que não são homem, também como substância, embora substâncias diferentes, não corresponde à vivência que nós temos de nós mesmos e do mundo. Na medida em que tentamos captar o ser do homem, em vivendo a nós mesmos, intuímos que o homem no concreto da sua estruturação fundamental é Dasein. E o modo de ser próprio do Dasein como a sua estruturação fundamental se chama existência. Ser-no-mundo, ser com, atinência à fala, a propriedade e impropriedade etc. são momentos constitutivos essenciais da estruturação da existência.

No entanto, por mais que repitamos a nós mesmos sempre a mesma observação, é difícil intuir a dinâmica do ser do Dasein e da sua existência, pois sempre de novo caímos na fixação da representação, tendo o Dasein como uma coisa ou um algo. É pois necessário sempre de novo liquidificar a representação e despertar o nosso interesse para captar ou intuir o movimento da estruturação do ser Dasein.

Uma das tentativas de nos conduzir para essa intuição da dinâmica do ser de Dasein é analisar o que, em Ser e Tempo, Heidegger chama de Stimmung, que a prof. Márcia Cavalcanti traduziu por humor. A seguir vamos ler um bom trecho do parágrafo 29 que tem o título: A presença como disposição. Antes, porém, algumas observações preliminares.

  1. Disposição é um termo que indica o existencial (ou ontológico). O existencial-ontológico é o modo de ser essencial que caracteriza a existência. Esse modo de ser, por ser ele não uma coisa simplesmente dada mas sim a vigência do existir na sua estruturação essencial e interna, não pode ser visto simplesmente como se vê uma coisa, mas sim deve ser “intuído” (intuir = intus ire) em diferentes e repetidos embalos de análise, a partir do seu aparecer concreto no existenciário (ou ôntico) do Da-sein. Por isso diz Heidegger: O que nós ontologicamente indicamos com o título disposição, é onticamente o mais conhecido e o mais cotidiano: o humor, o estar-humorado.
  2. A tarefa é pois de intuir o existenciário Humor. Para isso é necessário distinguir esse Humor do humor no sentido psicológico. É que a mira psicológica sempre ainda considera o Dasein como Homem-coisa-sujeito. Depois de colocar bem o existenciário, é necessário ler nesse existenciário o existencial. Por isso diz Heidegger: “Antes de qualquer psicologia dos humores, ainda bastante primitiva, trata-se de ver este fenômeno como um existencial fundamental e delimitar sua estrutura”.
  3. É necessário observar que intuir existencialmente o humor não coincide simplesmente com intuir a disposição. Pois intuir existencialmente o humor é um dos embalos de intuição para intuir cada vez mais plenamente a disposição como um dos momentos estruturantes da dinâmica do ser do Dasein, da existência.
  4. Do humor diz a nota (N45), Ser e Tempo, p. 321: HUMOR = STIMMUNG. O étimo alemão Stimme (= a voz, o voto) constitui, na experiência que exprime, uma fonte de inúmeras derivações e composições. Como Stimmung, designa o estado e a integração dos diversos modos de sentir-se, relacionar-se e de todos os sentimentos, emoções e afetos bem como das limitações e obstáculos que acompanham essa integração. A tradução por HUMOR empobrece essa riqueza conotativa. Não obstante, presta-se melhor do que “estado de alma”, “estado de ânimo”.
  5. A seguir textos de Heidegger no Ser e Tempo, parágrafo 29:

Analítica da existência 1997-4

Antes de nos concentrarmos na segunda palavra (= existência) que perfaz o título da nossa disciplina, falemos ainda, como repetição, sobre a analítica no seu sentido não mais originário do verbo grego analuein, mas na forma de dissecar, decompor, i. é, de analisar. Pois, analisar no sentido hodierno de decompor, dissecar pressupõe uma compreensão do ente na sua totalidade, como sendo um ente uma coisa, um algo, composto ou simples, que deve ou pode ser dissecado, decomposto, i. é, analisado por nós homens, sujeitos e agentes da ação de analisar. Ao passo que, no sentido originário explicitado nas apostilhas anteriores, anluein indicava o surgir, eclodir, crescer e florescer da jusiV no seu desvelamento, na vigência do vigor de ser. Nesse modo de ser originário da vida, todo o conteúdo do ser, em mil e mil diferentes concreções do surgir, eclodir, crescer e consumar-se como mundo é o vir à fala, é o desvelar-se vivo e concreto dos entes no ser e ser nos entes. É como uma sinfonia no seu nascer e fluir em infinitas concreções de tons, tonalidades, percussões e repercussões, silêncios e ritmos, constituindo sempre de novo e cada vez novo mundo, mundos, mundo dos mundos, mundos com mundos de sonoridade musical. E nesse vir a ser, nesse vir à fala, cresce sempre mais a presença insondável do que chamamos de musicalidade, de modo cada vez mais imenso, cada vez mais profundo e abissal no seu vigor criativo. O ser do homem aqui não é outra coisa do que a ausculta, a acolhida, ou melhor, a própria “consciência”, a claridade interna, a liberdade pregnante da totalidade sinfônica ela mesma no seu concrescer. É como o abrir-se da sensibilidade conduzida e condutora do maestro. Esse modo de ser que caracterizava o homem se chamou, em grego, nouV, depois espírito.

Acontece, porém, que essa vigência concreta do ser, do viver na sua imediatez concreta, está continuamente se constituindo como mundo; e este por sua vez é o próprio vir à fala, vir à obra dessa presença imensa do ser. Essa estruturação do mundo, em concreto, no entanto, tem dentro de si a tendência de se concentrar no vigor de entificação, i. é, no vigor de vir à obra como ao ente, de tal sorte que toda a dinâmica de emergência, de abertura e de aprofundamento para dentro do abismo insondável do ser (jusiV) se dá operativamente no ocultamento silencioso. Assim, o que conserva, o que faz permanecer essa vigência maravilhosa do desvelamento do ser é o ente, aqui concreto, no seu vigor. O ente é pois o fruto do vir à fala, do vir à obra do ser. Isto significa que, o que mais próximo nos está presente como desvelamento do ser são entes circundantes como o meu mundo. Nesse tornar-se presente do ser como mundo, como obra, como ente, está a tendência de o movimento, a dinâmica do vir a ser e ser ficar como que entificada, coisificada, digamos contida como algo.

Esta entificação pode nos fazer esquecer da vigência do ser (jusV), e com isso esquecer a íntima participação dos entes no seu ser, e colocar-nos diante das formas terminais de toda uma dinâmica do surgir. Esse esquecimento possibilita que a totalidade do ente, constituída como entes ou coisas que povoam o mundo, se agrupe em entidades de diferentes áreas ou regiões dos entes, começando pela região inanimada de matéria bruta, passando pela escalação de intensificarão de ser como região dos viventes, região dos animais, região dos homens, até alcançar a região a mais plena dos espíritos. Essa constituição do mundo-universo como regiões dos entes na sua potencialização cada vez crescente de ser, embora já operando na entificação coisificada, esquecida da vigência do ser, ainda guarda a pregnância e a atualidade da vida na sua manifestação, de tal sorte que, mesmo fixada e coisificada a modo de materialização opaca, a totalidade do ente como ordem e universo não coloca o homem como sujeito e agente do relacionamento e comportamento sobre o objeto, mas sim como coparticipante e cocriador dessa constituição do universo. Essa situação é a colocação da ontologia medieval e nossa, enquanto vivemos o cotidiano de modo imediato e simples. É a situação do “realismo” concreto e vivo das nossas vivências.

Essa situação gerada pelo esquecimento da regência do ser nos entes pode cair ainda mais no esquecimento, de tal sorte que por assim dizer a pregnância e a atualidade vital desapareçam dos entes. Assim, a totalidade do ente se torna um imenso espaço indefinido, e dentro, espalhados por toda a parte, os entes, como que átomos, pontos homogêneos, inclusive o homem, circulando no universo infinito.

Temos assim a paisagem do ente no seu todo como coisas e conjunto de coisas, inclusive o próprio homem, também considerado como coisa, paisagem, digamos, achatada do ente no seu todo. É dentro dessa paisagem achatada do ente no seu todo que dividimos os entes em duas grandes áreas, em homem e natureza, em conjunto das coisas humanas e em conjunto de coisas da natureza; e dali a divisão que se nos tornou óbvia da cultura e natureza. Esse esquema de divisão por sua vez varia em divisões similares ou modulações da mesma divisão cultura e natureza, a saber, em subjetivo e objetivo,  em sujeito e objeto, em interior e exterior do homem. E conforme se  se acentua ora o subjetivo, ora o objetivo, se dá a diferença de orientação do que chamamos na manualística da filosofia de realismo e idealismo.

Essa contraposição do realismo e idealismo, no entanto, não traz à fala a diferença essencial entre o realismo e idealismo. É que ambos não passam de variantes do mesmo que é aquela situação acima mencionada da compreensão do ente na sua totalidade, proveniente do esvaziamento da pregnância e atuação da vida na sua manifestação como o vir à fala do ser (jusiV). A diferença somente começa a aparecer de modo essencial, na colocação feita pela filosofia moderna, na redução do princípio da realidade ao sujeito-eu, no sentido da subjetividade do cogito sum.

Assim, a analítica da existência somente se torna satisfatoriamente compreensível, se primeiro fizermos essa passagem da compreensão do sujeito, como é colocado pelo esquecimento e esvaziamento sofrido pelo “realismo” concreto e vivo das nossas vivências, para a subjetividade, onde o sujeito-eu tenta aparecer propriamente no seu ser. Examinemos bem, pois, primeiro, em que consiste a “idéia” do subjetivismo, para então fazer a passagem do subjetivismo para a subjetividade.

Programa:

  1. O esquema do subjetivismo.

– Mostrar que esse sujeito do subjetivismo é na realidade uma coisa do realismo.

– A impossibilidade de entender a subjetividade moderna, sem quebrar esse concreto armado achatado.

  1. O modo de ser da subjetividade.

– res cogitans e res extensa.

– A que nos conduz a descoberta da subjetividade?

– O medo da subjetividade.

3, Existência, Existencialidade como limite da subjetividade.

Aex15-1997

Examinemos as 8 determinações do conceito de Da-sein, tiradas de uma conferência intitulada O conceito de tempo, pronunciada no anos de 1924, aos teólogos da Universidade de Marburg.

  1. O Da-sein é o ente que é caracterizado como ser-no-mundo[1]. A vida humana não é um certo sujeito, que deve fazer um certo artifício para vir ao mundo. Da-sein como ser-no-mundo significa: ser no mundo no modo, em que esse ser quer dizer: lidar com o mundo: permanecer junto dele num modo de efetuar, de fazer obras, de executar, mas também da reflexão, do interrogar, do determinar que considera e compara. O ser-no-mundo é caracterizado como o cuidar.
  2. O Da-sein como este ser-no-mundo é uno com o ser-com-mutuamente, ser com outros: ter o mundo ali, achar-se mutuamente, ser mutuamente no modo do ser para um ao outro. Mas este Da-sein é ao mesmo tempo ser simplesmente ali para outros, a saber, também assim como está ali a pedra, que não tem ali nenhum mundo nem dele cuida.
  3. Ser no mundo um com outro mutuamente como tê-lo mutuamente tem uma destacada determinação do ser (Seinsbestimmung). O modo fundamental do Da-sein do mundo, o tê-lo ali (Dahaben) mutuamente é o falar. Falar é visto plenamente: o falar expressamente com um outro sobre algo. No falar se processa preponderantemente o ser-no-mundo do Homem. Isto já sabia Aristóteles. (to zvon logon econ). Nisso, como o Da-sein no seu mundo fala sobre o modo da lida com seu mundo, é dada justamente uma auto-interpretação do Dasein, expressa como o que o Da-sein cada vez se compreende a si mesmo, como o que, pelo qual se tem. No falar um com outro mutuamente, no que a gente assim fala acerca de, jaz cada vez a autointerpretação do presente que repousa nesse diálogo.
  4. O Da-sein é um ente que se determina como “eu sou”. Para o Dasein é constitutivo o ser cada vez (Jeweiligkeit) do “eu sou”. Dasein é portanto tão primariamente como o é o ser-no-mundo, também meu Dasein. É cada vez próprio e como próprio cada vez. Se este ente deve ser determinado no seu caráter de ser, então não se pode abstrair do caráter de ser cada vez como cada vez meu. Mea res agitur. Todas as características fundamentais devem assim achar-se juntas no ser cada vez como no ser cada vez meu.
  5. Enquanto o Dasein é um ente que eu sou, e ao mesmo tempo é determinado como ser-um-com-outro-mutuamente, eu sou meu Dasein, na maioria das vezes e medianamente, não eu mesmo, mas os outros; eu sou com os outros e os outros com os outros igualmente. Ninguém é na cotidianidade ele mesmo. O que ele é e como ele é, isto é ninguém: ninguém, e no entanto, todos um com outro. Todos são não eles mesmos. Este ninguém, pelo qual nós mesmos somos, vivido na cotidianidade, é o “a gente”. A gente diz, a gente ouve, a gente é a favor, a gente se preocupa. Na tenacidade da dominação desse “a gente” estão as possibilidades do meu Dasein, e é a partir desse nivelamento que é possível o “eu sou”. O ente que é a possibilidade do “eu sou”, é como tal, quase sempre um ente que a gente é.
  6. O ente assim caracterizado é um tal, ao qual no seu ser-no-mundo cotidiano e cada vez se trata do seu ser. Como em todo o falar sobre o mundo jaz um expressar-se do Dasein sobre si mesmo, assim toda a lida preocupada é um preocupar-se do ser do Dasein. Isto com o qual eu lido, com o qual eu me ocupo, ao qual me amarra a minha profissão, sou em certa medida eu mesmo e ali se processa o meu Dasein. O cuidado acerca do Dasein colocou cada vez o ser no cuidado, como ele (ser) é conhecido e compreendido na interpretação dominante do Dasein.
  7. Na medianidade do Dasein cotidiano não jaz nenhuma reflexão sobre o eu e o próprio, e no entanto, o Dasein se tem a si mesmo. Ele se acha junto de si mesmo. Ele ali se encontra a si mesmo com o qual comumente lida.
  8. O Dasein como ente não é para provar, nem sequer demonstrar. A referência primária ao Dasein não é consideração, mas o “sê-lo”. O se-experienciar como o falar-sobre-si, a autointerpretação, é apenas um determinado modo destacado, no qual o Dasein se tem a si mesmo cada vez. Em média a interpretação do Dasein é dominada pela cotidianidade, por aquilo que a gente pensa assim sobre o Dasein e sobre a vida humana no modo tradicional por “a gente”, pela “Tradição”.

Aex16-1997

As 6 significações da palavra História

(Pensamentos tirados de: HEIDEGGER, Martin. Phänomenologie der Anschauung und des Ausdruckes, p. 43-39).

A palavra História possui diferentes significações. Significações que, em sendo diferentes, formam entre si uma unidade de concatenação de sentido.

  1. Exemplo: Digo: “Meu amigo estuda História e não Direito ou Matemática”.

Aqui entendo por História uma disciplina escolar. Disciplina escolar que ensina História. Aqui “ensina História” se refere à(s) Ciência(s) histórica(s) ou à Historiografia. História como Ciência(s) histórica(s) se refere a um comportamento da existência humana que podemos caracterizar como: um empenho bem decidido de tomada de conhecimento, i. é, de conquista do saber. Nessa conquista do saber eu quero me introduzir e crescer num modo de proceder, i. é, num método, numa tomada de conhecimento bem conduzida, em vista de um fim que orienta e coordena cada passo do meu empenho do saber, de modo coerente e fundamentado. Este comportamento bem decidido da existência humana diz respeito ao passado histórico, mas num modo todo próprio, denominado científico. Portanto: “Estudar História quer dizer: fazer que se torne acessível o ‘mundo histórico’, mas na forma de um introduzir-me, crescer em e assimilar a pesquisa histórica como ciência. História aqui significa, portanto: ciência como impostação ‘teorética”. NB: ciência pode estar no nível de ensino e pesquisa. Pesquisa fundamenta o ensino.

  1. Alguém que faz monografia aborda um problema filosófico. O seu professor lhe dá um conselho e lhe diz: “Oriente-se, por favor, um pouco pela História”, ou o professor diz do seu aluno: “De filosofia mesma, ele não entende muita coisa. Mas ele é um extraordinário conhecedor da História”.

Aqui História não significa primeiramente História como Ciência, mas sim a realidade factual. Orientar-se pela História significa portanto: na elaboração do problema filosófico deixar-se guiar pelo fato. Conhecedor da História é aquele que conhece os fatos acontecidos do passado. Trata-se pois daquilo que se constata historicamente como sendo assim e assim; aquilo que, antes no passado foi assim e assim; aquilo que ali ocorreu; aquilo que foi então ensinado, aquilo que foi assim e assim concebido, defendido.

            III. Fala-se de tribos e de povos sem História. Aqui essa expressão não está dizendo que eles ainda não possuem ciências históricas. Também não se está dizendo que seus antepassados não existiram, que não eram fatos, nem que tribos e povos não são produtos da realidade factual que lhes precedeu. Aqui se está dizendo que eles não possuem Tradição.

Nesse sentido da História como Tradição, quando falamos de tribos e povos sem História, não estamos querendo dizer que eles não escreveram nem publicaram documentos e memórias do seu passado, porque lhes faltou a possibilidade de ter acesso, dentro da sua experiência concreta da vida, a uma determinada impostação teorética para enfocar cientificamente um campo de fatos; também não se quer dizer que a eles não tivesse ocorrido um anterior, um passado; que este fato atual do ser das tribos e dos povos não tivesse tido um fato anterior que lhe precedesse.

As tribos e os povos atualmente, hoje, viventes, são pois posteriores dos anteriores, são hoje, do ontem, mas não tem História… Isto quer dizer: eles não têm nenhuma Tradição, eles não se “sentem” como posteriores dos anteriores. O passado para eles não possui aquele caráter no qual eles agora vivem de fato; não possui aquele caráter que impregna de algum modo o conteúdo da sua experiência da vida; eles não cultivam o passado. As tribos e os povos sem História (sem Tradição) não vivem em situações que estejam impregnadas, prenhes de valores e referências do passado significativo e de importância para o círculo da vida em que de fato vivem, mesmo que seja essa pregnância apenas latente. Eles vivem então o cada dia dentro e para dentro de cada dia, vivem o que cada dia traz, nada mais. Assim também não possuem o futuro, nenhuma tarefa. E o que eles fizeram, o que viveram não lhes interessa. E também as realizações como presentes e atuais lhes são também indiferentes. Aqui, não se trata de eles não conhecerem o seu passado. Pois, a gente pode possuir uma Tradição muito rica, viver a partir dela e com ela e nela, sem conhecer propriamente factualmente o passado. A Tradição na sua maioria é acentuadamente operativa.

  1. Pode-se falar da História p. ex. como grande mestra da vida, haja vista para a Política. Assim, temos a expressão latina: historia, vitae magistra. Aqui História não significa própria e primeiramente: ciência(s) histórica(s); nem região de fatos, de conteúdos de fatos ocorridos como o correlato da tomada de conhecimento historiográfico; mas também não, no sentido da Tradição. Certamente todas essas significações podem estar presentes nessa IV significação da palavra História, mas elas não constituem a significação própria dessa IV acepção da História.

História aqui se refere ao passado e isto, visto a partir de uma bem determinada tendência existente na vida concreta factual. O passado aqui possui um caráter, proveniente da referência toda própria para com esta tendência. Esta tendência que pertence à experiência da vida enquanto fato da vida atual, presente, tem o caráter de disponibilidade. A História, não a Tradição, mas justamente a não própria, a alheia, deve estar à minha disposição, para me dar orientações à vida presente, na media em que esta busca tende para uma meta. Nesse sentido, todo um passado, não somente político, mas sim numa extensão muito mais vasta, pode estar à disposição de um político; e isto não propriamente no modo de uma tomada de conhecimento teorético e da inferência desse conhecimento em tirar conclusões para alerta ou para uso prático, concreto, e moralizante, mas sim no sentido de que a ele, ao político, na sua vida factual política de agora, a partir dela, o passado lhe é familiar; e a partir dessa familiaridade atua no presente, determinando uma nova experiência histórica. Cf. a releitura ideológica do passado.

  1. Por História entendemos uma outra coisa, quando dizemos p. ex. “Esta cidade tem uma História conturbada” ou “Este homem tem uma História triste”.

A palavra História aqui, embora possua uma nova significação própria, está relacionada de certa maneira com as significações anteriores. Ver esse relacionamento e ao mesmo tempo destacar o sentido próprio é o que queremos fazer. Pois esse sentido próprio é que constitui a significação a mais originária da História, da qual dependem todas as outras significações.

A gente poderia de início dizer: História é igual com “o passado”. O que quer dizer “o passado” a gente o compreende de imediato no modo grosseiro e não nítido do uso factual. A frase acima mencionada quer então apenas dizer que este homem tem um passado, e que esse passado é um passado triste, de tal modo que por isso, ele se diferencia de outros homens, enquanto o homem é algo que “se torna” em um desenvolvimento, num processo de percurso temporal, que pode ser caracterizado assim ou de outro modo?

Ou “ter um passado, i. é, ter História” não quer dizer  algo novo, inteiramente novo em comparação com as significações anteriores, de tal sorte que as concatenações das significações anteriores não conseguem atingir o significado próprio que aqui de modo originário e autêntico é pensado pela palavra História?

Na frase “este homem tem uma História triste”, a palavra ter possui uma acepção toda própria, que, bem entendida, caracteriza a compreensão própria, originária da História. Ter aqui não significa propriamente possuir, ter à sua disposição, não significa lhe pertencer, nem lhe advir. O ter aqui insinua: o passado triste me atinge, de tal sorte que ele me é próprio, perfazendo o meu destinar-me, o meu destino, a minha História, não como ocorrência, não como algo que ali está à disposição, ou algo com o qual me familiarizo para o meu uso, algo a que eu pertenço, mas sim o passado que carrego comigo, novo, como o meu próprio, cada vez, conservando-o como o destinar-se da minha existência, ao qual estou responsabilizado. Há aqui nesse ter o momento de responsabilização do passado e com isso do futuro, entendidos nas significações anteriores, principalmente da II, III, IV; responsabilização do passado e futuro, no sentido de ter que ser cada vez, em assumindo a alteridade do já constituído como sendo cada vez meu, e a partir dessa responsabilização, eclodir como todo um mundo de constituição, a saber, como ser-no-mundo, e, ao mesmo tempo, referir toda e qualquer disposição do ter que ser cada vez “meu” ao abismo de possibilidade, cada vez nova de ser como criação originária da nova epocalidade.

  1. Eu pergunto: “De novo? Que História é essa?” ou digo: “Me aconteceu uma História!…” Aqui a História significa simplesmente: um acontecimento, um caso, um evento que me tocou, no qual estou engajado.

 Conclusão: Eis um resumo mal feito e simplificado de todo um texto complexo que inclui muito mais detalhes e profundidades. Percebemos mesmo nessa simplificação que a significação V é o núcleo originário, a partir do qual todas as outras significações partem e de algum modo têm o seu sentido. Esse resumo é só para provocar reflexão e discussão acerca da História, quando falamos da História da Filosofia e o seu ensino.


[1]  As palavras em itálico são indicações minhas para, na reflexão, chamar a atenção sobre a palavra. As palavras em negrito são indicações do próprio texto.
Download Nulled WordPress Themes
Download WordPress Themes
Download Best WordPress Themes Free Download
Premium WordPress Themes Download
udemy course download free
download xiomi firmware
Download Premium WordPress Themes Free
free online course