Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Diferença entre o psicológico e o espiritual e entre a terapia e a orientação espiritual – I

16/04/2021

 

Introdução

O tema é muito vasto.  É, pois, necessário delimitá-lo. Propriamente são dois temas distintos, mas com mútuas implicações. E isto principalmente se se confirmar a suspeita de que na vida espiritual o que denominamos de orientação espiritual, em sua grande maioria, tem o estilo de uma ‘orientação’ a modo de terapia psicológica. Mas, antes de examinar se há ou não diferença entre a terapia e a orientação espiritual, é necessário falar da diferença entre o psicológico e o espiritual. Só que, este último tema é ainda muito vasto. E isto, certamente de modo demasiadamente indeterminado. De tal sorte que, se não impossível, é ao menos muito difícil estabelecer alguma delimitação útil e válida para podermos iniciar os nossos exames. Aqui, de antemão se percebe que se entrarmos nessa de estabelecer distinções e diferenciações possivelmente ‘cabíveis’ sob o tema “a diferença entre o psicológico e o espiritual”, jamais terminaremos a nossa tarefa. Por isso, comecemos as nossas reflexões, partindo de uma determinação em uso entre nós, religiosos, quando falamos do psicológico e espiritual, que poderia ser mais ou menos do seguinte teor de explanação.

  1. O psicológico e o espiritual

De imediato e na maioria dos casos, o tema “o psicológico e o espiritual” está dentro da maneira usual de compreender o ser humano como uma ‘composição’ de corpo, alma e espírito. Como a palavra ‘psicológico’ contém a palavra grega psyché, que usualmente se traduz como alma[1] (psyché + lógos), concluímos sem mais que o psicológico se refere à alma nessa divisão tripartida do ser humano.

No entanto, no tema proposto, o termo psicológico diz respeito à determinação, expressa na composição do próprio termo, a saber, psyché e lógos, portanto, à logia da psyché, à ciência moderna denominada Psicologia e ao seu uso dentro da nossa formação cristã, como meio e subsídio para o crescimento do(a) cristão(ã) na sua propriedade[2] chamada espiritual.

O termo espiritual parece indicar de imediato a última ‘realidade’ que compõe o ser humano, nessa divisão tripartida, a saber, o espírito. Mas aqui de fato, ele se refere à realidade, a partir e dentro da qual se move a espiritualidade cristã, e é dita na expressão usada por São Francisco “o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar[3]. Essa realidade da nossa vida cristã, religioso-consagrada[4] e leiga que se denomina também o Seguimento de Jesus Cristo ou também o Discipulado de Jesus Cristo, soa inteiramente formal, se não a concretizamos de modo bem elaborado e detalhado. Mas, como todos aqui somos cristãos já há muito tempo, e assim todos possuímos uma pré-compreensão operativa do que seja essa propriedade em questão, nós a podemos pressupor.

A seguir, o nosso trabalho consiste em precisar melhor algumas observações acerca dessas ‘definições’ feitas tanto do psicológico como do espiritual.

  1. O psicológico

Como foi dito acima, o psicológico se refere à ciência positiva, chamada psicologia. Há várias escolas de psicologia. No entanto, enquanto ciência, todas elas participam do modo de ser das modernas ciências positivas.

As ciências se chamam positivas, por que elas partem de posição ou colocação inicial-básica, da qual tiram os seus conceitos fundamentais, a partir e sobre os quais constroem e desenvolvem todo um conjunto de conhecimentos certos, concatenados entre si sistematicamente. Nessa construção sistemática o posicionamento inicial-básico é algo como lance prévio a modo de hipótese, algo como pro-jecto de uma interpelação produtiva da realização da realidade, i. é, do processamento e da transformação da realidade[5]. O projeto interpelativo-produtivo é sempre de novo testado na sua validade em repetidos experimentos. E na medida em que se comprova a sua viabilidade, o projeto hipotético provisório adquire a função de teoria. E tão logo, quando se verifica, pelos experimentos, a não possibilidade de seqüência coerente da validez da hipótese que virou teoria, a não possibilidade seqüencial adquire a função de correção reversiva da hipótese inicial, na tentativa de ampliar, aprofundar e purificar o posicionamento inicial-básico. Essa maneira de contínua re-fundação e afundamento corretivo da posição inicial, faz com que as ciências na sua raiz sejam avessas a todo e qualquer dogmatismo e toda a sua teoria jamais é doutrina, afirmação ou negação, absoluta e definitiva.

Nesse sentido, os conhecimentos das ciências positivas jamais são enunciações de decisão acerca da totalidade, mas sempre relativas e ‘parciais’, de tal modo que todo e qualquer posicionamento das ciências positivas diz sempre de novo e continuamente: sob a pressuposição dada, na situação atual das pesquisas, podemos dizer isto e aquilo como resultado provisório da validez de um projeto hipotético inicial. Esse saber da coerência de conhecimentos, concatenados entre si, é a explicitação da implicação do lance inicial hipotético. Embora tenha o seu início no posicionamento da pressuposição básica, está suspenso no seu todo, tanto no início como no meio e no fim, sempre aberto à recolocação, de tal modo que nas ciências, toda e qualquer enunciação acerca do todo e do ab-soluto, se torna inválida como não científica e dogmática. Pascal[6] denominou esse modo de ser do saber e conhecer científicos de espírito de geometria. Encontramos a mais límpida e coerente formulação desse modo de ser geométrico nas ciências naturais, portanto ciências do estilo físico-matemático.

Na psicologia, esse modo de ser geométrico aparece primeiramente na psicologia experimental, depois na psicologia comportamental behaviorista, e em diversas modalidades variantes do estilo mecanicista, depois vitalista e cibernética. Na assim chamada redescoberta da alma e da totalidade-humana, reivindicada pela psicologia analítica e pelas suas inúmeras modalidades, na sua explicitação a psicologia tornou-se certamente muito mais diferenciada, refinada, principalmente na compreensão fundamental do que seja a energia psíquica. Mas na sua estruturação científica, na maneira de abordagem, no método e suas inúmeras reduções e terapias, a psicologia permanece de modo sempre mais sofisticado no ser geométrico das ciências positivas. Isto aparece hoje no ecletismo funcional metódico do processo terapêutico, onde se usam vários tipos de psicologias de diferentes escolas, conforme as conveniências terapêuticas.

Em todas essas modalidades de atuação das psicologias, embora haja grandes diferenças nas suas impostações, valências dos valores e medidas usadas e apreciadas, parece haver na compreensão do psicológico dessas psicologias um momento comum. A esse momento comum, na perplexidade de não o poder dizer de modo mais adequado, o chamemos de redução à concepção antropológica naturalista. De que se trata, quando se denomina essa suposta base comum das psicologias de redução à concepção antropológica naturalista?

A qualificação naturalista se refere aqui ao que Edmund Husserl[7] denominou no seu opúsculo “Filosofia como ciência de rigor” de naturalismo, indicando a mundividência[8] que jazia na pressuposição da psicologia experimental de então. Essa mundividência recebeu o nome de psicologismo, depois de biologismo e nós hoje, poderíamos por fim chamá-la de fisicismo. Trata-se da mundividência que toma o modo de ser das ciências naturais positivas do tipo físico-matemático como modelo, medida e critério para determinar a cientificidade do saber científico.  A questão principal desse confronto de Husserl com o naturalismo reinante na psicologia experimental da época era a interrogação surgida em relação à cientificidade própria da psicologia, se ela em querendo ser um saber de exatidão sobre a psyché e intencionando-o a modo da abordagem e método das ciências naturais, não estava, na sua impostação de base e no seu método, se afastando do rigor científico próprio da sua busca, cujo tema e objeto é psyché, i. é, o ser-humano. O conceito-chave que está na base desse modo de agir das ciências naturais era o conceito natureza como ele era usado nas ciências naturais e as dominava. Daí, Husserl denominar esse tipo de mundividência de naturalismo, e naturalista. Em contraste com esse modo naturalista, se estabeleceu como o conceito básico que dá a qualificação do modo de ser do saber que lida com o ser humano e suas variações o conceito de história[9].

  1. Natureza e história

Os termos natureza e historia, na realização da realidade, não indicam o que usualmente é captado na compreensão geral. A saber: as duas regiões, que subsumem, de um lado os entes que surgem, permanecem e findam, a partir e dentro do horizonte das coisas naturais, coisas cujo modo de ser denominamos de espontâneo, portanto, das coisas que ainda não foram tocadas pela ação da indústria do homem; e por outro lado, os entes que dizem respeito ao homem e suas conquistas, portanto aos produtos da sua realização, a saber, coisas culturais, coisas que são feitas através do destinar-se, do historiar-se do homem. Nessa acepção natureza e história indicam duas grandes áreas específicas do ente, nas quais se podem dividir os entes, considerados sob o seu sentido geral de entidade simplesmente ocorrente, em área dos entes naturais e em área dos entes culturais. Esse tipo e o modo de ser da divisão e subdivisão dos entes e sua classificação geral e específico, ao ordenar os entes, é caracterizado na filosofia como divisão ôntica do ente. Esse tipo de divisão dos entes debaixo de um modo de ser geral pressuposto e determinado como entidade ou como ocorrência simplesmente dada possibilita as divisões e subdivisões dos entes em classificações padronizadas das ciências positivas. Aqui, como pressuposição, a mais geral e básica de todas as ordenações dos entes em classificações e padronizações está um sentido do ser bem determinado, acima denominado de entidade ou ocorrência simplesmente dada. Esse sentido do ser como entidade dá a todos os entes o cunho de neutralidade e generalidade, uma ‘comunidade’ abstrata e formal, a partir e dentro da qual o próprio e a qualificação de cada ente não vêm à fala e se retraem, como que encobertos pelo sentido preestabelecido e unívoco do ser e seu modo neutro e indiferenciado de ser. Esse achatamento neutral do sentido do ser próprio é o tom dominante e fundamental do saber que caracterizamos como ciências positivas. Aqui o sentido do ser da natureza e da história enquanto dimensão diferencial, velamento e abertura de todo um mundo da possibilidade de ser, não aparece na sua propriedade nasciva, na sua percussão própria. A tonância do sentido do ser, aqui, se torna neutra, opaca numa objetivação indefinida e generalizante. Essa neutralidade reduz a diferença e a concreção do ente dentro e a partir da indiferente generalização da entidade e não consegue entoar a identidade da diferença e diferença da identidade do sentido do ser, cada vez novo na sua propriedade e no seu destaque originário, enquanto o sopro vital da sua gênese que impregna o ente. O homem, ao despertar para a novidade simultânea da identidade e da diferença do sentido do ser como o salto originário do surgir, crescer e consumar-se de todo um mundo da realização da realidade, se percebe, em sendo, ser ele próprio a aberta do toque fontal do sentido do ser de todas as coisas.  Então ele compreende que esse seu destinar-se, essa sua tarefa de ter que ser assim aberto, livre na soltura da recepção e responsabilização do sentido do ser, é a história. Na grande tradição do Ocidente, esse ser do homem como história, ou destinar-se da ausculta do sentido do ser se chama espírito.

  1. O espiritual

No início, na tentativa de, ao menos formalmente, determinar o que se entende pelo termo espiritual aqui nessa nossa reflexão, dissemos que por espiritual entendemos o próprio da espiritualidade cristã, a saber, o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” ou “o Seguimento de Jesus Cristo” ou “o Discipulado de Jesus Cristo”. Só que essa ‘definição’ não nos serve quase para nada, pois ela já é entendida por nós dentro de uma padronização prefixada, chamada espiritualismo que desfigura bastante, para não dizer inteiramente, o sentido do ser do que chamamos espiritualidade cristã. Aqui apenas mencionemos, e isso de modo ainda muito formal, um desses pré-conceitos sob o qual é classificado o espiritual, i. é, o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar, a saber: “O espiritual é o que diz respeito à vida interior, em contraposição ou em complementação à vida exterior. A vida interior tem então a conotação de: subjetiva, particular, privativo-pessoal, passiva, receptiva, ensimesmada, em contraposição à vida exterior que tem a conotação de objetiva, comum, social, ativa, generosa, dadivosa etc. Esse preconceito, se bem analisado, é qual a pequena ponta visível de um iceberg e oculta no seu bojo subterrâneo todo um mundo imenso de pressuposições, cujo sentido do ser toca nas questões fundamentais do pensar, cuja formulação p. ex. na filosofia toma formas de binômios como p. ex. o subjetivo e objetivo; o transcendental e o empírico; o ontológico e o ôntico; liberdade e necessidade; carisma e instituição; existência e ocorrência etc. Por aqui percebemos que essa nossa questão proposta no tema da nossa reflexão não se resolve sem mais nem menos, a não ser que com firme decisão, paciência e tenacidade, comecemos a nos ‘conscientizar’ que questões aparentemente banais e ‘concretas’ do cotidiano da nossa vida espiritual exigem de nós uma perspicácia mais aberta e ao mesmo tempo mais concentrada e mais fundamental, mais generosidade e volume em estudar, em pensar, em examinar toda a nossa situação histórico-epocal, na qual vivemos, nos movemos e somos, hoje. O que aqui estamos fazendo, embora muito apoucado e modesto, é despertar para esse trabalho de assumirmos a tarefa proposta pela nossa situação de cristãos, hoje.

Aqui, para esse começo, vamos nos concentrar no seguinte ponto:

Nós partimos na nossa reflexão, da colocação usual tripartida do ser do homem como corpo, alma e espírito. E referimos a psicologia à alma, por ser ela a ciência da alma (psyché+logia). No entanto, dissemos que a psicologia no seu modo de ser pertence às ciências. E caracterizamos a ciência como um saber positivo, que a partir e dentro de um fundamento previamente dado na vida, edifica todo um sistema de conhecimentos certos, mutuamente concatenados entre si numa coerência lógica, numa exatidão toda própria.

Vamos melhorar esses dados e os precisemos ao ponto de nos servirem de fio condutor, para levar adiante a nossa reflexão sobre o tema “a diferença entre o psicológico e o espiritual” e “a diferença entre terapia e orientação espiritual”.

  1. Dimensão científica e dimensão pré-científica

Na perspectiva das características dadas acerca do saber científico, no entanto, estabeleceu-se um pré-conceito, uma fixação indevida de um estado de coisa. Por isso é útil precisar com mais rigor essa colocação acima mencionada. Dissemos acima que o saber científico constrói a partir do posicionamento prévio. Essa posição com o seu positum é realizada e então destacada, na e da experiência da vida. E a partir dali se monta todo um sistema do saber, coerente, fundamentado logicamente, constituindo um conjunto de conhecimentos, certos, confirmados e verificados na sua certeza e validez. Essa colocação, se não for mantida limpidamente sob o rigor de uma atenção toda própria no exame da ação constitutiva das ciências, facilmente deixa que se contrabandeie a suposição e a conclusão que não estão no primeiro e originário toque e repercussão da colocação, a saber, o pré-conceito de que a experiência da vida, a assim chamada dimensão pré-científica[10] é primitiva, não elaborada, subjetiva, não objetiva, vaga, confusa e indeterminada, portanto inexata e irracional. De tal sorte que, nessa dimensão pré-científica, os conhecimentos são infantis, de menos valia, necessitando da elaboração e explicitação objetiva, feitas nas ciências, para que esses conhecimentos cheguem ao status do conhecimento certo, assegurado que nos pode dar a medida universal do nosso saber.  E o que, segundo esse preconceito, nos pode libertar de todo e qualquer erro e permanência na ignorância ou queda num saber ainda irracional, supersticioso, mítico, sem critério objetivo esclarecedor da realidade é o saber científico, exato e verdadeiro.

Toda essa maneira de ver o relacionamento entre a dimensão pré-científica e a dimensão científica é no fundo a mundividência do positivismo evolucionista. É a ideologia dominante no nosso saber usual do que seja o saber científico.

A captação simples e direta do fenômeno, porém, nos faz ver outra coisa. A dimensão pré-científica, onde nos movemos vivemos e somos, de imediato e na maioria dos casos, é lá, donde nos é dada a determinação inicial, da qual as ciências tiram o seu posicionamento ou o positum do seu construir sistemático. Longe de ser vaga, primitiva, subjetivo-particular ou confusa, ela é antes a pré-jacência, a imensidão, profundidade e liberdade da densidade criativa da vida, qual uma imensa e abissal possibilidade de ser. Ela é matriz, a mãe-terra, da qual tudo que surge, cresce e se consuma recebe o seu vigor de ser, sua lógica de coerência e originariedade próprias e multifárias, sua abertura e consistência, o seu assentamento e sua fundamentação. Essa dimensão da vida é a morada de mil e mil possibilidades do desvelamento do sentido do ser na sua novidade e criatividade, que cada vez, por sua vez, se abre em leques de estruturação como mundo, como universo de entes.

  1. O espiritual como a dinâmica da disposição na espera do inesperado, na liberdade da gênese do sentido do ser

Para podermos nos mover, divisar e ganhar clareza a partir, na e para dentro dessa dimensão pré-científica e ali captar as modalidades diversificadas e multifárias das possibilidades de ser-mundo, é necessário conservar, cuidar e exercitar-se no iluminar-se inato, nascivo em nós que a grande tradição do Ocidente denominou de espírito.

Embora, a espiritualidade cristã, na propriedade todo sui generis, seja única, essa unicidade ou singularidade, esse ser una, não indica exclusividade de fechamento, de prioridade elitista, mas a generosidade da liberdade de soltura de doação, que tudo inclui e acolhe na entrega livre de si a todas as coisas. E isso de tal modo que, sempre do mesmo único modo da fidelidade incondicional, serve a todas as coisas, i. é, a cada coisa, como se, nessa pré-sença ab-soluta, ela fosse apenas modalidade de cada coisa. Nesse sentido, o ‘Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar’ é e se torna cada vez coração do modo de todas as coisas, se encarna e se insere, a serviço e no serviço, como propriedade desta e daquela coisa, de tal maneira que nos é permitido dizer aqui: a espiritualidade cristã está a serviço e assim pertence no seu ser a esse modo de ser do espírito. Por isso, uma espiritualidade, e a fortiori a espiritualidade cristã que ignora ou se esquece da sua pertença a essa dimensão matriz da vida, e negligencia por muito tempo o cuidado e o cultivo próprio de si para dentro dessa dimensão, torna-se cega, árida e neutra ou inteiramente indiferente para a originariedade e originalidade da sua própria vitalidade diferencial[11]. É interessante observar que a nossa linguagem usual de dizer a coisa do cristianismo é de afirmar em primeiro lugar o caráter originário, primeiro e absoluto do que é cristão para dizer que as outras dimensões de alguma forma pertencem ao cristão e somente tem sentido, na media dessa pertença. O modo de ser cristão aqui refletido, porém, diz: o modo de ser primeiro, originário e absoluto do ser cristão não possui essa prioridade, esse ‘ranking’, esse caráter de uma medição a modo de excelência e do poder. Pois em tudo que dá e recebe, é simplesmente, de imediato o modo de ser do serviço, no qual se torna cada vez, de novo o último de todas as coisas, para de alguma forma poder receber do outro a permissão de poder se lhe doar e lhe ser útil na dádiva gratuita e grata de si. É nessa maneira de se doar ao outro no jeito de serviço, que esse modo de ser cristão é único, necessário, eterno, todo poderoso e onipresente, numa palavra ab-soluto, i. é, solto, espontâneo, fontal e nascivo na imensidão, profundidade e liberdade da entrega de si. É o que denominamos antes o abismo da possibilidade de ser, i. é, a dimensão da Vida cujo sopro, cuja vitalidade, cuja vigência se chama: a vida divina do Deus de Jesus Cristo, i. é, a vitalidade da deidade da Encarnação. Chamamos de espírito o modo de ser do ‘encosto’ imediato e simples, sem mais nem menos, portanto, do contacto corpo a corpo, na disposição do ser, pensar, querer e sentir, com a vitalidade dessa deidade da Encarnação. E a concreção da deidade da Encarnação se chama Jesus Cristo, ele enquanto corpo, alma e espírito e o seu modo. E esse seu modo, cuja concreção possui a dinâmica do modo todo próprio do serviço na Encarnação coincide com o que acima denominamos de dimensão vida, que na tradição do Ocidente surge, cresce e se perfaz como o que acima se chamou de espírito. A essa dimensão do espírito, Pascal, o grande pensador e místico da nossa Idade Moderna denominou de espírito de finura, cujo protótipo aparece, segundo ele, como revelação cristã, cuja ciência da positividade de uma afirmação generosa de tudo na graça e na beleza do sentido do ser da deidade encarnada, se chama teologia. Nós diríamos: espiritualidade cristã.

Tudo isso que dissemos tem por corolário a seguinte suspeita e observação: o que de inicio denominamos de concepção usual tripartida do ser humano em corpo, alma e espírito como composição, não se refere com esses termos (corpo, alma e espírito) a três entes da entidade, a três coisas, empírico-ônticas, mas sim a três modos de ser-humano, cada vez uma totalidade una. Espírito é o modo de ser-humano na sua plenitude, no seu originário; alma, o mesmo, mas na plenitude diferente à do espírito, no seu originário, cujo ser diferencial consiste em não se perfazer na plenitude a modo do espírito; corpo, o mesmo mas na plenitude diferencial, no seu originário, distinta da do espírito e da alma. Aqui, sem tentar examinar mais profunda e detalhadamente em que consiste esse modo de ser na identidade do mesmo na diferença, apenas observemos o seguinte: o modo de ser da plenitude chamada espírito se dá na dinâmica da ambigüidade. Uma vez se refere ao que está presente tanto no modo de ser espírito, como no modo de ser alma, como também no de ser corpo, numa presença de retraimento para dentro da plenitude do abismo insondável da possibilidade inesgotável de ser, sempre de novo tornando-se, na concreção do mesmo diferencial corpo, alma e espírito. É como a possibilidade do toque na percussão e nas repercussões da repetição do mesmo. Outra vez, na alegria e gratidão de poder ser cada vez a concreção, a repercussão da percussão da sempre fiel doação do sopro vital da potência, do toque da possibilidade do abismo inesgotável da gratuidade de ser. No momento em que essas concreções como modos de “ser o mesmo do ser humano” se esquecem dessa misteriosa presença-retraimento do toque da possibilidade abissal do ser, os modos corpo, alma e espírito se reduzem ao ente-coisa como três entes da entidade, proporcionando-nos a concepção defasada do ser-homem como composição de três coisas diferentes[12].

  1. Diferença entre a terapia e a orientação espiritual

De tudo quanto viemos falando até agora, deduzamos, assim de modo bastante provisório e formal, as seguintes colocações:

  1. Há uma diferença essencial entre a terapia psicológica e a orientação espiritual.
  2. A terapia psicológica possui o modo de ser da ciência positiva. Por isso, quando fala do ser-humano e sua vida ou seu ser-no-mundo e fala de si como saber objetivo sobre ele, opera na pré-suposição do seu modo de ser, ora naturalista, ora vitalista, ora humanista ou personalista, mas sempre predominantemente projetivo hipotético, a partir e dentro de um posicionamento prévio. Nesse modo de ser, a meta funcional de sua ação ou atuação sobre o ser-humano é o que a psicologia interpreta como realidade, a saber, a realização de re-condução do ser-humano à normalidade, pré-estabelecida a partir e dentro do seu projeto hipotético de realização da realidade como ela como a ciência positiva lança diante de si. Assim, a terapia não diz respeito ao sentido do ser do destinar-se da vida no seu perfazer-se como história de uma existência humana. O que a terapia psicológica chama de projeto de vida, saúde, normalidade, não se refere ao sentido do ser, mas sim ao prévio do projeto da sua realização, enquanto interpelação produtiva de uma medida assumida e posta como projeto. Aqui se trata de corretivo dos desvios, trata-se de dirigir para a normalidade, para a correção ou retificação ideal, como o dever-ser. Mesmo ainda no seu princípio de deixar ser cada qual na sua naturalidade própria, há o dirigismo para um ideal projetado que é posto como o que e como pode e deve ser. Aqui ela opera a partir e dentro de um ponto cego na sua impostação, de tal sorte que a partir dela não pode captar o sentido do ser de seu projeto científico enquanto um determinado destinar-se da existência humana. Embora parta de um posicionamento tomado da dimensão da vida, falsifica a vida como objeto de seu projeto hipotético, de tal sorte que obstrui na sua vigência o contato de retorno à fonte do seu vigor. Desse esquecimento da sua origem, surge o estilo de objetividade formal, neutro, generalizador que achata todas as diferenças, reduzindo-as a fugidios eflúvios momentâneos de vivências subjetivas.
  3. A orientação espiritual é algo bem diferente da terapia psicológica. Ela não se refere ao projeto de vida, nem é uma condução ou direcionamento de alguém a um determinado ideal. É antes orientação. É algo bem sintomático que a palavra orientação para nós, hoje, signifique em primeiro lugar ação de dirigir, de conduzir para uma determinada meta de um projeto, e no caso de desvio, para sua correção. Orientação, orientar ou orientar-se tem tudo a ver com oriente, com o verbo latino oriri (orior, ortus sum,oriri), i. é, nascer, originar-se, surgir, e por conseqüência, crescer e consumar-se. Surgir, crescer e consumar-se são momentos da dinâmica do perfazer-se como história, ou destinar-se da existência humana. Não é, pois, fato, ocorrência, não é um prévio dever ser, é concreção da disponibilidade cordial e obediente, na plena atenção em captar e seguir o historiar-se do sentido do ser que nasce, cresce e se consuma como possibilidade livre de ser, constituindo a vida, i. é, a ‘dynamis’ e a ‘enérgeia’ de cada ente, principalmente da existência humana. Orientação nessa acepção é a vigência de co-nascimento, cada vez novo e de novo, na autoconstituição do ente, no nosso caso, da pessoa humana no seu perfazer-se como história de uma existência. Na espiritualidade, até há pouco tempo, diríamos: como história de uma alma.
  4. O elemento, o vigor fontal desse “originar-se, crescer e se consumar”, se chama espírito, a saber, sopro vital. É a sua vigência que perfaz toda a imensidão, profundidade e liberdade, e creatividade da dimensão vida, anteriormente denominada de pré-científica.

Conclusão

Se isso que acima de modo muito grosseiro e provisório foi insinuado é orientação espiritual, como se deve configurar a espiritualidade cristã em todas as suas normas, proibições, disciplina, instituições, doutrinas e exercícios, no que ela chama de aprendizagem do Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, ou do Seguimento ou do Discipulado de Jesus Cristo? O que é, pois, na sua essência a formação cristã?

Eis, colocada a questão do nosso encontro.


[1] Psyché se traduz mais adequadamente como vida. Mas como nós entendemos vida também de modo tripartida em vida corporal e anímica e espiritual, talvez fosse mais adequado traduzir psyché por existência no sentido da fenomenologia da existência (= Da-sein = Pré-sença; o ser-aí; a existência ) com todas as suas implicâncias ontológicas.
[2] Propriedade aqui não significa tanto um ‘acidente’ essencial de uma substância, mas o que é o próprio de.
[3] Francisco de Assis, RB, cap. 10.
[4] A formulação ‘religioso-consagrada’ é para questionar o nosso modo muitas vezes impensado de interpretar a vida consagrada cristã dos religiosos e das religiosas com a categoria geral das ‘religiões’, e contrastando ou opondo à vida cristã secular dos leigos como ‘menos’ cristã. O ‘religioso’ das religiões indica antes o modo de ser sócio-cultural do que propriamente o modo de ser essencial do ser cristão.
[5] Nós costumamos identificar a realidade com o que encontramos diante e ao redor de nós como mundo fora de nós, i. é, com os entes. Esse ‘tipo’ de ‘realidade’, aqui na reflexão denominamos de realização. O que é a realidade ‘em si mesma’ nós não sabemos de antemão, a não ser a partir, dentro e através da realização, i. é, da dinâmica da existência ou presença, que sempre e cada vez se constitui como sendo, ‘em-sendo-mundo’. A realidade aqui então não aparece como ente, conjunto de entes, não aparece em si, mas somente e enquanto, cada vez como condição da possibilidade do surgir, crescer e consumar-se do mundo. Esse modo da presença retraída se chama Ser, ou na nossa reflexão, de imensidão, profundidade, liberdade do abismo da possibilidade de ser.  O seu adjetivo é ontológico. Cf. o que mais tarde se diz da dimensão pré-científica.
[6] Blaise Pascal (*Clarmont-Ferrand, 1623-+Paris, 1662).
[7] Edmund Husserl (*Prossnitz 1859-+Freiburg i. Br. 1938).
[8] É necessário sempre de novo distinguir entre a essência da ciência e as mundividências que se aninham nas autoexplicações que as ciências fazem de si mesmas nos seus operadores.
[9] Husserl chamou a mundividência que explica o fenômeno humano em contraste com o naturalismo, usando como o conceito base ‘história’, de historicismo. Mas como a história era ainda entendida no modo de ser da ciência historiográfica, que enquanto ciência positiva tinha o modo de ser das ciências naturais, o próprio do modo de ser da história na sua temporalidade existencial se tornava deformado e defasado.
[10] A expressão pré-científica já coloca o modo de ser da ciência e o seu reino como superior, como medida decisiva. E isto de tal maneira que o pré-científico não aparece como dimensão, mas como modo deficiente do científico, mais ou menos como a imensidão e o assentamento de uma base firme, donde se deslancha um salto, são considerados como modo deficiente do movimento de salto.
[11] Ilustrar concretamente esse modo de ser da onipresença do Ser através da presença da musicalidade em todas as notas, conjunto de notas, de melodias, de temas e constelações de temas, de toda a sinfonia em cada uma de suas partes e momentos como percussão, repercussão de generosidade e liberdade de doação como serviço a cada possibilidade da concreção musical.
[12] Uma defasagem desse teor pode acontecer p.ex. na terapia da psicologia analítica, quando a experiência da morte no nível do processo de individuação não se interpreta arquetipicamente, mas empírico-coisisticamente e assim, em vez de assumir o arquétipo “morte”, se suicida, entendendo que a morte aqui é aniquilação do corpo. No que toca ao tema do nosso encontro do ano passado, “masculino e feminino”, examinar se a mesma defasagem das dimensões não cria o problema do homosexualismo e das per-versões na área da sexualidade.
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