1 A ÉTICA DO ESTUDO
O estudo de filosofia é um estudo superior. É superior porque exige uma atitude pessoal que manifesta uma superioridade humana no estudo, isto é, no desempenho do trabalho intelectual.
Superioridade humana não significa ser mais poderoso, mais dotado, mais inteligente, mais convencido do seu saber. Antes, significa ser mais maduro na experiência daquilo que perfaz a essência do homem. E a essência do homem é vida.
Há várias tentativas de buscar a compreensão da essência do viver do homem. Cada tentativa, embora diferente entre si no seu ponto de partida, se for radical na caminhada da busca, nos conduz à experiência única e originária. É nessa experiência única e originária que somos atingidos pela compreensão do que seja a essência do homem, a vida.
O estudo superior exige a superioridade humana. Isto significa: exige a madureza na experiência daquilo que perfaz a essência do homem. Isto quer dizer: exige que sejamos atingidos pela compreensão do que seja a essência do homem, isto é, a vida, numa experiência única e originária, através de uma tentativa radical de busca.
Acontece, porém, que uma tal experiência é o fruto de um longo trabalho. Como pode a filosofia, o estudo superior, exigir de início, de antemão, algo que é o fruto de um longo trabalho?
Contudo, sem a madureza na experiência da essência do homem, isto é, se não formos atingidos pela compreensão do que seja a vida, numa experiência única e originária, através de uma tentativa radical de busca, jamais seremos afeiçoados pelo estudo superior de filosofia.
Sem essa experiência, o estudo superior de filosofia se transforma em “teoria” abstrata, acadêmica, oposto à prática e à concreção; se reduz ao acúmulo do saber para fins pastorais, uma instituição escolar que deve ser tolerada para a formação de um funcionário da Igreja, chamado páraco, vigário ou padre.
Que a filosofia seja assim considerada como meio institucional de formação, como “teoria intelectual”, abstrata, imprática, não é culpa dela. A causa de uma tal consideração está na nossa imaturidade humana que ainda não caminhou suficientemente a viagem da vida, para perceber que uma tal maneira de abordar o estudo superior de filosofia vem da falta de experiência vivida, sofrida e trabalhada do que seja verdadeiramente o trabalho intelectual, a teoria, a abstração, a pastoral. Pois consideramos a realidade, na medida em que vemos. Vemos, na medida em que sabemos. Sabemos, na medida em que somos. E somos na medida em que vivemos. Se eu jamais vivi intensamente o trabalho da teoria intelectual, como posso dizer que ela é abstrata, imprática, sem vida?
A vida não é aquilo que gostaria que ela o fosse. A vida é aquilo que se me impõe através de um paciente e penoso trabalho de uma longa caminhada.
Assim, se agrava a questão acima colocada: se a experiência única e originária da essência do homem é a vida, se a compreensão da vida é a condição primária e necessária para eu poder acolher bem o estudo superior de filosofia e se uma tal experiência é o fruto de um longo trabalho, o que fazer, como fazer para eu poder entrar bem no estudo superior de filosofia?
A resposta dessa questão não se torna visível, a não ser que coloquemos de fato a questão. Colocar a questão não é apenas perguntar assim por curiosidade. Não é também perguntar à guisa de um questionário que já tem uma resposta correspondente dentro de um sistema do saber.
Colocar a questão é antes colocar-se na questão. Ou melhor, ser colocado pela questão, isto é, ser atingido pela questão, de tal sorte que a busca da resposta se torne uma questão de vida e morte. Aqui a resposta nasce, isto é, salta do devotamento à pergunta.
Portanto, a resposta à questão “o que fazer, como fazer para eu entrar bem no estudo superior de filosofia” é um salto. O que fazer, como fazer para saltar por sobre um abismo e alcançar a outra margem?
Correndo de todo o coração, de corpo e alma para ser embalado na afeição do salto.
Como é, porém, a atitude inicial da largada, na corrida para o salto? Não é assim que já no instante da largada eu devo-me abandonar ao salto? Abandonar-me ao salto significa: dar de mim tudo o que posso para o salto, sem me distrair.
Dar de si tudo o que se pode no empenho de um salto chama-se na tradição do Ocidente: ética. A ética é o vigor no trabalho da obra. A ética, o vigor no trabalho da obra, faz exigências. As exigências da ética exigem obediência: obediência da nossa jovialidade. É na obediência da nossa jovialidade que seremos jovens, isto é, participantes do vigor de Jovis: da generosidade de viver divinamente em todos os desafios da vida.
“De como estudar” é apenas uma recordação. Recordação é a codialização do que já sabemos. Recordação da ética da vida que levamos, concentrados no estudo superior de filosofia.
Essa recordação consiste em refletir avulsamente acerca do nosso fazer cotidiano no estudo, à guisa de moralização. Moralização que, bem ouvida, pode servir de indicações para você mesmo fazer a experiência da vida, no trabalho árduo do estudo, na prática demorada da teoria intelectual.
2 O TEMPO DO ESTUDO
Costumamos dividir a vida cotidiana em tempos para fazer uma porção de coisas. Assim, temos o tempo para dormir, o tempo para despertar, o tempo para comer, o tempo para estudar, o tempo para jogar, o tempo para rezar, o tempo para fazer pastoral etc.
O que significa tempo em todos esses tempos para fazer isso ou aquilo?
Significa o tempo cronológico, o tempo do relógio. Esse tempo nada me diz acerca do interesse da vida, no qual faço isso ou aquilo. Por isso, se eu constato que gasto 3 horas por dia para o estudo, a cifra 3 horas nada me diz acerca do vigor do meu estudo.
O tempo do estudo não é o tempo cronológico. Mas é por isso mesmo que o tempo do estudo diagnostica a Vida do meu interesse acerca do estudo, quando gasto muito pouco tempo cronológico para ao estudo.
Como entender isso? Dissemos acima: o tempo do estudo não é o tempo cronológico. Dessa constatação somos tentados a tirar com demasiada precipitação a conclusão: logo, tanto faz o tempo cronológico material que gasto para o estudo. É válida essa conclusão?
Perguntemos pois: por que digo “tanto faz”? Qual o interesse que me faz dizer: “tanto faz”?
Se atrás desse “tanto faz” pelo tempo cronológico que gasto para o estudo estiver o desinteresse, então o “tanto faz” faz muito para o questionamento do meu próprio viver. Onde coloco o interesse da minha vida durante esses anos do estudo superior de filosofia? O que quero afinal na vida, eu que estou aqui, concretamente, hoje, dentro dessa situação chamada Instituto Filosófico-teológico de Petrópolis?
Cada um de nós está aqui porque foi ou está orientado por uma causa que um dia o atingiu. Tem, pois, seu interesse.
Talvez o estudo superior de filosofia em Petrópolis não corresponda à minha causa. Por isso, a partir do meu interesse não acho interesse no estudo e digo: “tanto faz”, pois, o estudo em nada contribui para o crescimento da minha causa.
No entanto, como sei que o estudo superior de filosofia não contribui para o crescimento da minha causa? Quanto tempo perdi para o estudo, para poder dizer isso com responsabilidade diante de mim mesmo? Diz Éxupéry: “É o tempo que tu perdeste por e para a tua rosa que faz a tua rosa tão importante”.
Isto quer dizer que é necessário perder muito tempo cronológico para que uma coisa comece a se tornar importante, de interesse?
Certamente, se algo me é importante, me atinge, me diz alguma coisa, não me importo em gastar para ele muito tempo. Se algo me é importante, o tempo cronológico não conta, isto é, com gosto dedico-lhe todo o meu tempo cronológico à disposição, não meço sacrifícios.
Pode ser que o tempo cronológico, o tempo do relógio em si nada me diga acerca do interesse da Vida, no qual faço isso ou aquilo. Mas, se algo me é importante, me atinge, eu dedico-lhe todo o tempo cronológico que está à minha disposição.
Isto significa: o que comanda, o que move o tempo cronológico, que gasto para fazer alguma coisa, é o vigor do interesse que aciona a minha vida cotidiana. O vigor do interesse é o que move a minha vida, ordena e concentra todas as coisas, todo o tempo cronológico do meu cotidiano para a realização do seu interesse.
É costume chamar esse interesse vital também de tempo. Tempo agora não é mais apenas o tempo cronológico do relógio, mas sim o próprio vigor do interesse da vida que determina o ritmo do meu tempo cronológico. É nesse sentido que falamos por exemplo do tempo da salvação.
E quando falamos do tempo do estudo, entendemos a palavra tempo nesse novo sentido. O tempo do estudo significa portanto: o vigor do interesse da vida que me faz concentrar todas as coisas, todo o tempo cronológico à disposição, todos os meus “interesses”, ao redor do estudo, à maneira de um artista que coloca tudo na jogada do trabalho artesanal para criar uma obra-prima.
Perguntemos pois: tenho algo na minha vida para o qual não meço sacrifícios, para o qual o tempo cronológico não conta, para o qual perco todo o meu tempo à disposição? Qual é pois o tempo dos meus tempos? Pode ser que esse algo, para o qual não meço sacrifícios, não seja o estudo superior de filosofia.
Mas colocar assim dessa maneira o estudo como o centro do interesse do meu cotidiano não é unilateralidade intelectualista? Nós queremos ser, em primeiro lugar, bons religiosos franciscanos e não apenas intelectuais. Onde fica o tempo da oração? Da meditação? Onde fica o tempo do encontro fraternal? Do trabalho pastoral? Não é assim que se recomenda sempre de novo que nos formemos integralmente: a formação do homem todo?
Mas como é isto, a formação integral? Quantas partes tem a formação integral franciscana para poder ser integral? Oração, meditação, encontro fraternal, jogo, pastoral são partes de um todo, uma ao lado da outra sem seccionamentos? O que entendo, pois, quando digo: agora é o tempo da oração, da meditação, do encontro fraternal, do jogo etc.? Não estamos pensando no tempo cronológico? Não estamos representando a Vida como se ela fosse uma coisa, algo como um queijo espiritual, cujas partes estão uma fora da outras?
Não é assim que, para a Vida ser integral, para a minha formação ser total, torna-se necessário ter-se a vida em tudo o que fazemos? Essa maneira de ver a vida em partes, não é ela justamente uma concepção que não sabe, não experimentou ainda o que seja isto: a Vida total, a formação integral?
A formação integral, nós a temos quando meditamos como rezamos, rezamos como estudamos, estudamos como nos encontramos fraternalmente, encontramo-nos fraternalmente como pastoreamos, pastoreamos como meditamos, como estudamos, como jogamos, sim, como comemos e dormimos.
Vamos ilustrar o que dissemos acima com um exemplo:
Se séria e pacientemente assumo dia por dia o trabalho da meditação, ele me transforma com o tempo. Surge no fundo da minha identidade uma serenidade calmamente vigorosa, cresce em mim a força de recolhimento, a concentração, a minha receptividade adquire uma tal afinação que percebo as mínimas diferenças dos fatos, da realidade, do sentido das coisas, da fala, do pensamento, dos desejos etc. Assim, a meditação me conduz à vitalidade do vigor da vida.
Termina a hora da meditação e vou para a aula, para a hora do estudo. Mas a minha identidade com toda a vitalidade do vigor da Vida adquirida na hora da meditação, eu não a deixo para trás. Eu a levo comigo para a aula, pois essa identidade sou eu mesmo.
Como acolhi o texto da Sagrada Escritura na hora da meditação, na serenidade, na concentração recolhida e afinada da vitalidade do vigor da Vida, agora também acolho a fala do professor com a mesma vitalidade. Assim, vivo em cheio a aula como vivi em cheio a meditação. E contínuo assim, crescendo no vigor da meditação na aula. Embora a hora da meditação e a hora da aula sejam diferentes no seu exterior cronológico, na realidade, no fundo da minha identidade, são o mesmo e uno: o crescimento na vitalidade do vigor da vida.
Com o tempo, começo a ver em tudo que eu faço e não faço uma unidade interior. Unidade interior, a integridade da Vida, a formação integral, que não me dispersa e distrai em diferentes aparências disso ou daquilo, mas que, em fazendo isso ou aquilo, me conduz sempre de novo, cada vez mais para a identidade do meu viver. Assim, de repente, descubro que no diálogo fraternal estou escutando o meu irmão como na meditação ouço o texto da Sagrada Escritura, como na aula ouço a preleção do professor e vice-versa; na aula e na meditação estou ouvindo o texto da Sagrada Escritura e a preleção do professor como eu ouço o meu irmão no diálogo fraternal.
A essa altura da reflexão, repitamos a pergunta (n. 6) suspensa no ar: Tenho algo na minha vida para o qual não meço sacrifícios, para o qual o tempo cronológico não conta, para o qual perco todo o meu tempo à disposição? Qual é, pois, o tempo dos meus tempos? Pode ser que esse algo, para o qual não meço sacrifícios, não seja o estudo superior de filosofia.
Se o algo para o qual não meço sacrifícios não for o estudo superior de filosofia e, se por causa disso, o estudo superior de filosofia é uma perda de tempo para a realização da minha identidade, então é necessário perguntar-me, por que afinal esse algo importante não me leva a acolher o estudo com a mesma cordialidade da Vida com que acolho esse algo importante? Por que vejo no estudo a exclusão da minha realização e não a sua inclusão? Não é porque a minha dedicação à causa desse algo satisfaz o meu pequeno eu? Não é porque só consigo viver, vibrar, enquanto posso fazer aquilo que satisfaz o meu pequeno eu? Não é porque construo a vida a partir do ângulo de vista do meu pequeno eu, tentando bitolar a grande Vida dentro daquilo que eu gostaria que ela o fosse?
Se for assim, a causa do meu interesse não é vida, mas sim o produto do meu pequeno eu. E como tal, com o tempo, há de me estreitar de tal maneira o coração que não mais suportarei o desafio jovial da vida. E o desafio da vida está em toda parte.
Não se abrir sempre de novo ao desafio da vida, isto é, não tentar acolher, naquilo que é diferente do meu gosto, a chance de alargar e aprofundar a vitalidade da minha identidade, a unidade interior é, na realidade, abafar a minha juventude, isto é, não ser na força divina da vida.
Percebemos assim que, para podermos estudar bem, é necessário começar nos perguntando, paciente, sincera e tenazmente: como vivo afinal a minha vida? Pois, estudaremos na medida em que vivermos profundamente. Mas, se tentarmos em tudo viver profundamente, haveremos de estudar bem, integral e vitalmente.
A seguir, algumas sugestões para a reflexão:
– O estudo superior de filosofia exige o tempo integral de trabalho, principalmente se venho dos estudos secundários. É necessário que no início gaste todo o tempo à disposição, para acostumar a minha mente à nova situação do estudo, ao novo hábito de estudo.
– Se logo de início não me coloco inteiramente à disposição do estudo, de corpo e alma, terei muita dificuldade nos anos seguintes em seguir o estudo. Arrastar-se por anos na indecisão, no mais ou menos de um estudo mal começado e não bem assumido, leva o estudante e o professor à frustração. Tudo depende do impacto inicial da largada.
– Se estou muito disperso em mil e mil ocupações, é necessário cortar por própria iniciativa essa inflação de ativismo e recolher-me, para concentrar todas as minhas ações no empenho de assumir em cheio esse trabalho do estudo que, por sua natureza, é difícil e exige o tempo integral de dedicação.
– O estudo superior de filosofia requer uma mentalidade aberta, viva, disposta a fazer experiência nova, mais rigorosa, de novo tipo, mais exigente de estudo. Requer, portanto, um novo tempo interior.
Hoje em dia, o estudante que vem do noviciado, costuma estar bitolado e acomodado intelectualmente à opinião pública da sociedade de consumo. Assim, tem muito pouco treino na flexibilidade e na disciplina de pensar, está preso a slogans e a um saber de informação usual, os quais confunde com a realidade e a vida. Essa fixidez no status não lhe permite enfrentar o novo, o diferente, o difícil, o profundo como um desafio para o seu crescimento. Antes, o faz reagir contra tudo isso como algo negativo, bitolado, como falta de didática, pedagogia, falta de compreensão e comunicação.
Essa situação é prejudicial ao estudo superior de filosofia.
– É necessário, pois, abandonar essa tentativa de querer acomodar-se no que sabe, de querer encaixar a nova situação do estudo superior de filosofia dentro daquilo que até agora achava ser pedagogia, didática, comunicação, compreensão etc., para abrir-se com mais coragem e disposição à nova e diferente experiência do estudo.
– Para que possa dedicar-me com eficiência ao estudo superior de filosofia, devo aprender, a partir de mim mesmo, a organizar melhor a minha própria vida cotidiana. Devo, portanto, aprender a dar comando a mim mesmo para me disciplinar num trabalho artesanal do estudo.
– É importante aprender a acolher a imposição do horário do estudo como um dos fatores de crescimento na disciplina interior da minha liberdade para a eficiência do trabalho. Por exemplo, mesmo que guarde bem a pontualidade externamente, se antes não me dei o tempo para me concentrar interiormente para as aulas, não estou bem presente no início das aulas. A imposição do tempo cronológico começa a significar um convite para eu criar dentro de mim um tempo de recolhimento. Aliás, sem o recolhimento interior não há progresso no estudo superior de filosofia.
– O tempo cronológico de estudo individual no recolhimento da cela é indispensável para se progredir no estudo superior de filosofia. Seria útil se perguntar: quanto tempo gasto para o estudo individual? E como faço para aumentar esse tempo de estudo individual?
– É necessário aprender a criar dentro de si um ritmo interior de serenidade e recolhimento. Quem está continuamente agitado não conseguirá acolher a vida do estudo de filosofia. Para essa aprendizagem é muito prático eu aprender a ficar sentado à mesa do estudo, mesmo que sinta a terrível tentação de sair, de fazer algo, de me distrair.
– O horário de todos os dias cria rotina. No entanto, a rotina é importante para o crescimento real e constante do estudo. Se a rotina é concentração de força para o recolhimento ou se é um arrastar-se monótono e indiferente da minha frustração, isto tudo depende de como eu acolho a rotina. Pode ser que nada faço com a rotina porque não estou acostumado à disciplina interior na qual eu devo cada dia de novo assumir o estudo com novo ânimo e iniciativa. Se detesto a rotina, devo examinar-me se não estou apenas buscando novidades e vivências como fuga do trabalho árduo, lento e paciente do estudo.
3 A IMPOSIÇÃO DO ESTUDO
Para aquilo que nos toca, nos importante, não medimos esforços. É fácil dedicar-lhe o tempo. Mas, por outro lado, é o tempo que perdemos para o estudo que faz o estudo importante.
Se o estudo ainda não me é importante, então há a necessidade de eu dedicar-lhe tempo. Mas dedicar tempo para o que ainda não me é importante é forçado.
O que significa forçado? Forçado é o que exige força. É o que não flui espontaneamente, gostosamente, sem esforço. Que força é exigida no estudo forçado? A força do meu querer.
O querer é auto-determinação. É auto-imposição. Eu me imponho a mim mesmo o que não vai comigo. Mas o que é que costuma ir comigo? O agradável.
Acontece, porém, que eu sou na medida em que vou. Se o agradável é o que vai comigo, então sou somente na medida em que as coisas me vão agradavelmente. Um tal caminhar não tem o desafio do crescimento. Não tem o vigor da auto-superação para o gosto da autodeterminação.
Torno-me adulto somente na medida em que começo a gostar da auto-imposição, pela qual eu me imponho livremente a mim mesmo o que não vai comigo. É na medida em que gasto o tempo para o crescimento dessa auto-imposição que os desafios da vida se me tornam importantes.
O estudo superior de filosofia, ao menos no início, reclama a auto-imposição da autonomia. Reclama, portanto, o trabalho forçado, imposto por mim a mim mesmo.
A nossa dificuldade está nisto que organizamos a vida segundo o princípio do agradável. Que o façamos, pertence à vida. Somente que o nosso agradável é anêmico demais para poder constituir o vigor jovial que consegue achar no trabalho penoso e artesanal do estudo um nível superior de gosto da vida.
Por isso, torna-se necessária a imposição exterior do trabalho forçado, horários, programas, créditos, exames, a instituição. Se deixarmos o trabalho do estudo ao nosso bel-prazer, se facilitarmos, permaneceremos parados no agradável infantil dos nossos desejos, sem jamais nos abrir para o horizonte livre dos desafios da grande vida.
Assim, desde o início do estudo superior de filosofia, é de grande utilidade para o progresso do estudo e sua eficiência encarar e acolher livremente as imposições do trabalho escolar como o caminho de ascese e de disciplina para o crescimento da autonomia no poder de auto-imposição. Livremente, porém, não significa à maneira do meu gosto, mas sim: de modo a descobrir e a acolher um sentido mais profundo da vida naquilo que vem sobre mim como imposição da minha situação.
Certamente, tudo isso pode soar ao iniciante no estudo superior de filosofia como uma moralização demasiadamente séria, sem muita compreensão da pedagogia nem da psicologia da juventude. No entanto, quem inicia o estudo superior de filosofia e até então estava acostumado às maneiras e aos métodos de motivação da juventude, à “pastoral da juventude”, faz bem se ele deixa para trás a sua concepção e se abre incondicionalmente a um modo de caminhar que visa diretamente, através das vicissitudes do trabalho, o crescimento mais adulto e profundo da auto-identidade.
Algumas sugestões para a reflexão:
– Obedecer à imposição da situação, venha ela donde vier, com coragem e inteligência da auto-imposição. Obedecer não significa ser “bonzinho”. Significa muito mais: significa assumir a imposição como se fosse um comando dado por mim a mim mesmo.
– Nessa obediência, não perder nem tempo nem energia com a tentativa de esquivar-se das dificuldades da imposição.
– Combater logo de início, de todo o coração, a poluição emocional que vem do descontentamento ou do receio de não conseguir dar conta do recado. Toda a tomada de posição feita de antemão, como por exemplo medo, desagrado, dúvida, descontentamento não é suficientemente livre para poder ser realmente obediente ao desafio da imposição. Não perder a energia com coisas laterais, não questionar o fato da imposição. Antes, acolhê-la como a coisa mais natural da Vida e imediatamente arregaçar as mangas para se perguntar: o que e como fazer para melhor realizar aquilo que a imposição está exigindo de mim, para o meu próprio crescimento?
– Evitar críticas “acríticas” à imposição. Criticar significa: decidir para purificar, purificando-se. Jamais confundir a crítica com lamúria ou amargura de um descontentamento que trai a falta de identidade. Uma tal “crítica” lamurienta envenena a minha própria vida com decrepitude. A jovialidade da crítica, isto é, a juventude da crítica é a alegria divina em assumir as imposições como possibilidades do aumento da minha autodeterminação.
– É somente na medida em que cresço na identidade serena e vigorosa da autodeterminação que eu tenho o poder e domínio para mudar as imposições, proporcionando-me uma outra imposição mais perfeita.
– Não pedir nem desejar que o professor facilite o trabalho. Não pedir, nem desejar que o professor desça de nível, para me facilitar a compreensão. Descer de nível não é boa pedagogia para o estudo superior de filosofia. Pois, em descendo, jamais superamos a nossa acomodação. Antes, eu mesmo, tenaz, paciente e corajosamente devo tentar subir para o nível em que está a imposição do professor.
– Para isso, lutar contra a timidez e o medo de ser ignorante, perguntar sempre de novo o que não entendeu. E isso não só na aula, mas também em particular.
Mas, ao perguntar sempre de novo, procurar perguntar de tal maneira que não seja uma mera repetição à toa sempre igual. Pensar para perguntar bem, trabalhar eu mesmo na minha própria pergunta antes de ir perguntar. E, se levar uma bronca do professor por causa da minha pergunta, não perder o sangue frio, não me encolher para dentro da timidez e do descontentamento. Aproveitar a bronca para melhor pensar e formular a pergunta.
– Considerar todas as imposições, críticas e repreensões do professor como se fossem imposições, repreensões e críticas de um treinador de esporte, como etapas do trabalho de um treinamento para um jogo muito importante. Ter uma boa memória para o que me foi dito e aproveitar bem as críticas e as repreensões do professor.
– Para cada aula, tentar vir preparado. Isto é, estudar no dia anterior ou já antes, o que se falou na aula anterior. Ir, portanto, para a aula como quem vai preparado para o trabalho difícil e não como quem vai preparado para um passeio ou para o cinema.
– Tentar não exigir que os professores ensinem, ajam de modo igual. Não comparar um professor com outro. Entrar na jogada de cada professor e do modo de ser da sua disciplina. Não se deixar perturbar pelos defeitos do professor. Antes, ver com coragem a coisa ela mesma, a causa real daquilo que ele ensina.
– Quando a imposição do estudo exigir horas extras de trabalho, fazer essas horas extras com cordialidade.
– Se receber uma tarefa para fazer, começar logo o trabalho no mesmo dia. O mesmo vale para a preparação para o exame ou para as provas. E não confiar no dia de amanhã. É muito mais inteligente eu acelerar o ritmo do trabalho bem no início do que no fim, quando já começa a me inquietar. Criar um hábito nesse sentido.
Esse método de obediência cordial à imposição pode parecer um método que me leve à falta de personalidade própria e à falta de espírito crítico, principalmente se, sem muita crítica bem refletida, estou influenciado e acomodado à opinião pública do status quo acerca do que é personalidade e crítica; um tal método pode parecer acomodação à imposição. No entanto, o método, se assumido, me conduz à uma real autonomia e ao vigor da crítica.
O estudo superior de filosofia deve nos levar ao espírito crítico, isto é, ao vigor crítico. Vigor crítico não é opinião do meu pequeno eu, mas sim o faro e a intuição vigorosa que crescem de uma longa caminhada de experiência. O faro e a intuição eu só os adquiro se, aceitando a imposição de uma situação bem concreta, trabalhar em mim mesmo, paciente e tenazmente, um certo tempo, na absoluta obediência, até começar a sentir que sou mais forte do que a coisa criticada. Assim, por exemplo no esporte, eu devo-me sujeitar um longo tempo à imposição do treinador até começar a crescer em mim a medida certa do meu saber, do meu poder.
– Ao elaborar um trabalho, ser exigente consigo mesmo. É dolorido e humilhante ser criticado naquilo que me acho ser bom. No entanto, aqui também abandonar a sensibilidade narcisista de auto-agrado, para me expor corajosa e jovialmente à crítica. E não ter medo de fracassar. Não ter medo de ter que escrever muitas vezes o mesmo trabalho, até que ele saia perfeito. É tentando-se sempre de novo que se cresce para o rigor e o vigor do Espírito.
– Mais do que em qualquer outro exercício espiritual, é no exercício do trabalho e da disciplina sob a imposição do estudo que aparecem os nossos defeitos. Pois, sob a pressão da realidade impositiva, vem à luz as fraquezas da nossa fibra espiritual. Aproveitar, pois, a imposição do estudo para nos conhecer e, com calma, mas com tenacidade, corrigir-nos, aproveitando o próprio tempo e as dificuldades do estudo.
– Quais são os defeitos da sua pessoa que já estão aparecendo ao sofrer sob a imposição do estudo?
– Diz Dietrich Bonhoeffer:
“Se partes em busca da liberdade, aprende, antes de tudo, a disciplina dos teus sentidos e da tua alma, a fim de que teus desejos e teu corpo não te levem à aventura. Que teu espírito e teu corpo sejam afinados, inteiramente submissos a ti, e que obedientes procurem a meta que lhes é assignada. Ninguém experimenta o mistério da liberdade, se não na disciplina”[1].
4 O TRABALHO DO ESTUDO
É de grande importância para a realização pessoal no estudo superior de filosofia assumir o estudo como um trabalho profissional. A profissão do filósofo é intelectual. O ser do intelectual como nós hoje o imaginamos está deformado. Deformado, porque, não sei por qual opinião superficial, o opomos ao ser prático e produtivo de uma vida pastoral ou vivencial mística. Se não abandonarmos radicalmente esse preconceito anti-intelectual, corremos o risco de nos arrastarmos pela vida de nossa vocação franciscana como um ser híbrido de meia tigela que, por não ser profunda e vigorosamente intelectual, nem é intelectual, nem prático e nem vivencial.
Intelectual vem do verbo latino intelligere. Intelligere significa ser no vigor da inteligência. Inter-legere é ler entre as coisas, ler no relacionamento exterior das coisas o interior, a essência das coisas. Ler, legere significa colher, ajuntar, acolher. O inter-lectual é portanto aquele que, no vigor do espírito e na sensibilidade vital da sua percepção, penetra através da superfície da realidade para acolher com admiração, amor e reverência, o cerne, o coração, a vida das coisas. Isto significa: o ser inter-lectual é a profissão do santo, do poeta e do pensador. Nesse sentido originário do intelectual, São Francisco de Assis foi um dos maiores intelectuais da história.
Ora, o estudo superior de filosofia é o lugar e o tempo de exercício para o aperfeiçoamento dessa nossa profissão do intelectual. Todo o nosso trabalho pastoral do futuro depende disso: se nós, através do estudo superior de Filosofia, nos tornamos bons profissionais dessa intuição essencial. Isso porque, sem essa intuição intelectual, sem essa sensibilidade radical para a essência da realidade, a pastoral se transforma em mera imposição da nossa grossura, da nossa mediocridade, da nossa ideologia superficial.
Hoje, fala-se muito da necessidade de preparar os candidatos à vida religiosa para o serviço da Igreja atual, para o serviço aos irmãos etc. etc. Fala-se também que essa preparação deve ser prático-pastoral, adaptada ao homem de hoje, às áreas de trabalhos futuros etc.
Na perspectiva dessa orientação, a tendência é de eliminar aos poucos o estudo de cunho mais especulativo, teorético, que não tenha aplicação “concreta” e “prática” na vida, para acentuar o estudo de uso imediato na ação.
Essa maneira de conceber o estudo superior de filosofia é superficial. Ela jamais poderá formar os religiosos porque uma tal visão de filosofia e da vida já está completamente fora da dimensão religioso-espiritual. Essa concepção, aliás hoje dominante, é ingênua. Ela não percebe que está cegamente sob a dominação de uma ideologia, da mesma que está atrás da práxis de uma firma industrial.
Se o estudo superior de filosofia é um meio para formar técnicos e funcionários ingênuos e bitolados de uma ideologia de dominação pastoral, que quiçá produz muito, se agita muito, faz muito barulho, mas nem sequer percebe o esquecimento da sua própria identidade, então o nosso estudo de filosofia em Petrópolis está fora da moda, alienado, e não serve para nada.
A pressuposição, a afeição, sim a paixão que dita e comanda o nosso estudo superior de filosofia é diferente. Ela é decididamente devotada ao trabalho de uma formação especulativo-teorética. E isto, não porque se despreze a prática e a pastoral, mas porque compreende a práxis e a pastoral não como o fazer da dominação, como o acionar de uma ideologia, mas sim como uma caminhada, como um crescimento lento, profundo e radical que nos transforma, nos converte em hermeneutas sensíveis e vigorosos, obedientes e afinados do mistério de Deus na terra dos homens. Para isso é necessário ser inter-lectual no sentido originário da palavra intelectual acima insinuado. É necessário realizar um trabalho árduo, sofrido de experiência na existência especulativo-teorética para libertar o vigor do espírito, a percepção bem afinada e temperada em referência às “coisas” de Deus. E é na medida em que crescemos nesse vigor de percepção das “coisas” de Deus, por si mesmo, sem o acréscimo de aplicação “prática”, que todo o corpo da nossa existência é em si e por si prática e pastoral.
Assim, o próprio caminhar do estudo, isto é, do intelectual, da formação especulativo-teorética é o mesmo caminhar da práxis e da pastoral e vice-versa.
E a nossa profissionalização, a nossa profissão de religiosos está nisso: em sermos bons inter-lectuais, isto é, em sermos hermeneutas, os anjos do mistério de Deus. E não esqueçamos: a essência, o vigor radical do homem e tudo que se refere ao homem, o humano, recebe o sentido e a vida do mistério de Deus.
Por isso, o trabalho do estudo superior de filosofia deverá ser não só nesses 6 anos mas por toda a nossa vida, o trabalho full time da nossa profissão. É o trabalho profissional da nossa identidade, identidade de religiosos franciscanos.
Esse nosso trabalho profissional, o trabalho inter-lectual exige a cura, o cuidado constante, para que cresçamos sempre e pacientemente no vigor do espírito, no arar, no mondar o terreno da nossa existência, evitando assim de confundir o nosso trabalho profissional de hermeneutas do mistério de Deus com a ação de um fazer ideológico dos técnicos e funcionários do poder.
Assim, um senhor feudal de Ch’ang Wu disse a Tsu-Lao:
– Ao governar um país, não o faças a grosso modo, sumariamente. Ao reger o povo, não o faças de modo dispersivo, de qualquer jeito. Outrora cultivei trigo. Se, ao arar a terra, o fazia a grosso modo, sumariamente, a terra me correspondia com colheita sumária, vazia, a grosso modo. Se, ao mondar o campo, o fazia de modo dispersivo, de qualquer jeito, as mudas, uma vez crescidas, me correspondiam de modo dispersivo, de qualquer jeito com colheita imprestável, misturada de joios. Nos anos seguintes, mudei o modo de trabalhar. Arei a terra com cuidado, lenta e profundamente. Pulverizei os torrões grossos com paciência. Ao mandar as mudas, arranquei com cuidado joio por joio. Cobri as raízes das mudas uma por uma com terra macia, carinhosamente. As mudas cresceram. Abriram-se flores do trigo e surgiram espigas generosas. Assim gozei de abundância por ano inteiro.
Chuang-tsu ouviu essas palavras e disse:
– Hoje em dia, muita gente, ao reger a forma do corpo, ao dispor o coração à realização da sua identidade, faz como o fez de início o senhor feudal de Ch’ang Wu. Foge da paciência dos céus; afasta-se da sua natureza; destrói o seu sentimento; apaga a sua jovialidade; se preocupa com a representação alheia; vive arrastada pela opinião pública. Quem assim ara a grosso modo, sumariamente a sua terra, e monda o seu campo de modo dispersivo, de qualquer jeito, per-mite a inflação confusa e a proliferação de cobiças e inclinações na sua natureza. De início a inflação da cobiça parece criar e aumentar o vigor do crescimento. Com o tempo, porém, ela se revela como uma perigosa inchação da vida, que ao se agitar, se esvazia totalmente, envenenando, pela raiz, o vigor do crescimento. E quanto, então, explode, brotam por toda parte feridas purulentas, e todo o corpo da existência arde em febres, infeccionado pela urina, misturada de pus.
Algumas sugestões para a reflexão:
Numa profissão, antes de se tornar um bom profissional, é necessário gastar um bom tempo para se familiarizar bem com as coisas elementares do trabalho profissional. Esses elementos não são menos importantes do que as obras-primas. Pois a qualidade das obras-primas depende da elaboração dos elementos. Por isso é de importância eu me preocupar com o treino constante:
– da memória, quando devo decorar com precisão dados e fatos;
– da fortaleza da atenção, quando ouço preleções;
– em me escutar, quando falo nas discussões;
– do bom manejo crítico e preciso das palavras, das frases e suas concatenações, quando devo escrever um trabalho;
– da paciência comigo mesmo, quando o trabalho não vai como eu gostaria;
– em fazer o pouco que posso de todo o coração, sem me precipitar;
– em animar-me a mim mesmo, quando me assalta o sentimento de desânimo e inutilidade do meu trabalho;
– em primeiro executar o exigido, para depois dedicar-me ao agradável;
– em crescer passo por passo num trabalho artesanal, sem dar saltos inflacionários da minha capacidade atual;
– em agüentar a solidão do trabalho na minha cela, etc.
– É muito útil eu não me deixar distrair pela preocupação: será que uma tal teoria ou especulação é útil para o futuro?
A utilidade da teoria ou da especulação não está na sua aplicação. A sua prática e utilidade já está nela mesma, enquanto, se bem trabalhada, me transforma e me aumenta a sensibilidade da percepção das coisas. Aliás, é muito imprático preocupar-me sobre o fazer no futuro, pois não é possível determinar de antemão a situação concreta em que vou cair. É muito mais prático aumentar o vigor e a sensibilidade do espírito, da percepção, de tal sorte que tenha no futuro a capacidade de perceber cada vez de novo a medida certa do meu fazer em diferentes situações da vida. Teoria e especulação são treinamentos para o aumento do vigor do espírito.
– Ter sempre de novo à mente que o estudo superior de filosofia não é um cursinho técnico que me informa como fazer isso ou aquilo na pastoral, mas sim ele mesmo já é um fazer atual e concreto, em cujo exercício transformo-me e faço crescer em mim o vigor do espírito.
5 DE COMO TRABALHAR NO ESTUDO
O que segue é apenas indicação. A indicação é imperfeita e esquemática. Ela só tem valor se você mesmo procura se observar, se experimentar com muita iniciativa, para descobrir um modo de caminhar próprio. Vá para as aulas, sente-se à mesa do estudo individual, discuta, leia como alguém que explora uma nova terra em busca de dados para poder estabelecer no coração dessa terra a sua habitação.
5.1 AS PRELEÇÕES
As preleções são aulas expositivas. Quem fala é o professor. Quem ouve é o estudante. Isto tudo é óbvio. Mas o fato de o professor falar e o estudante escutar determina o estilo, o modo de trabalho que eu, o estudante, devo realizar. Se estou nas preleções é necessário guardar bem o estilo todo especial desse trabalho.
O trabalho do estudante aqui nas preleções tem o estilo do ouvinte: é ouvir. É de grande importância perceber que ouvir, ser ouvinte é um trabalho difícil, o qual quer ser exercitado. O mau ouvinte não tem boa chance no estudo superior de filosofia. Ouvir não é um simples assistir, um apenas estar ali “passivo” diante da ocorrência da fala do professor. Antes, é uma intensa atividade da atenção, da participação.
Quando se fala da atenção, da participação, surge aqui um pernicioso equívoco a respeito das preleções no estudo superior de filosofia. O estudante que não tem ainda a experiência do estudo superior espera encontrar na exposição do professor as motivações que lhe facilitem a prestar a atenção, a participar das aulas com gosto. Se quiser ser fiel a sua causa e não se degradar ao ensino ginasial, é necessário que o estudante de ensino superior de filosofia corte pela raiz tais expectativas.
O tempo em que o professor devia motivar o aluno a prestar atenção tornando-lhe a exposição mais agradável, mais gostosa, por meio de “truques” de motivação, deve ser para o estudante teólogo uma época passada. Do contrário, ele jamais sairá da mentalidade primária ou ginasial.
Nas preleções, o professor concentra todo o seu esforço em expor a sua matéria como ela é, com todas as suas dificuldades reais, sem camuflar a realidade. Quanto mais ele o fizer, tanto melhor a sua exposição. Pois, assim, está devotando toda a sua energia, sem dispersão, à causa, à coisa ela mesma da sua ciência. Se precisar se preocupar em animar sempre de novo os ouvintes a lhe prestar atenção, em cuidar que os ouvintes guardem o silêncio e a concentração, que os ouvintes não se distraiam, ele gastará a metade da sua energia naquilo que essencialmente não pertence à causa ela mesma da sua ciência.
Exige-se portanto do estudante teólogo o suficiente brio diante de si mesmo e a maturidade para que não espere nem exija da exposição a realização daquela parte do trabalho que cabe a ele, na sua autonomia. Com outras palavras, as preleções já pressupõem como algo mais natural do mundo adulto que o estudante está ali para trabalhar no duro e não para primeiro ser motivado e animado a trabalhar; e, se o estudante não tem na hora a disposição do trabalho, que ele mesmo na sua autonomia procure se motivar para o trabalho.
Criar em si, por sua própria iniciativa a disposição de trabalho na audiência de uma preleção é a primeira tarefa desse trabalho que denominamos: ouvir, ser ouvinte. Essa primeira tarefa se concretiza em diferentes empenhos para a autoformação da atitude do ouvinte. Exemplifiquemos alguns deles, indicando o que não é bom trabalho no desempenho da disposição de bem ouvir:
– Se eu chego na aula em cima da hora, ainda ofegante da corrida, ou com a atenção completamente presa à atividade anterior, não começo a trabalhar bem na audiência da preleção.
– Se durante a aula, quando a minha atenção enfraquece pela monotonia ou chateação – e isto acontece a qualquer um de nós –, se não reajo contra mim mesmo, se eu me largo, desligo e começo a me distrair, conversar e fazer outra coisa, etc., não estou trabalhando bem na audiência da preleção.
– Se por qualquer imprevisto acontecer durante a preleção uma interrupção da exposição, se ao ouvir uma piada engraçada, ao explodir uma alegre risada, eu me largo para a algazarra, e não me controlo imediatamente, quando a exposição prossegue, se procuro prolongar o gozo daquele desabafo, não estou trabalhando bem na audiência da preleção.
– Se ao tocar o sinal para o término da aula, começo a me agitar e a falar, sem deixar que a exposição chegue ao término do pensamento iniciado, então estou mais interessado no descanso do que no trabalho e não estou trabalhando bem na audiência da preleção.
Percebemos assim, pelos exemplos relacionados, que o recolhimento interior é uma das condições fundamentais para o bom desempenho no trabalho da audição, do bom ouvir.
Um dos fatores que mais enfraquece o vigor do recolhimento no trabalho da audição é o distúrbio emocional. Acontecem casos em que o estudante, na sua atividade pastoral, se envolve num caso sentimental. Com o tempo, esse envolvimento absorve de tal maneira que, estando na aula com o seu corpo, está completamente ausente da audição da preleção. Se o estudante já não tem em si uma grande maturidade de autonomia e tarimba na auto-imposição e na experiência da vida, uma tal situação pode infernizar o trabalho do estudo. A sua existência de operário no trabalho intelectual parece ser sem gosto, alienada, sem vida. Torna-se monótona, sem qualquer sentido.
O problema aqui não é mais apenas uma dificuldade de atenção. É, antes, um problema acerca do sentido da minha vida: por que e para que estou aqui nesse instituto de estudo superior de filosofia?
Assim, numa tal situação, o problema do trabalho da audição de uma preleção se transforma no trabalho da audição do sentido de toda a minha existência. Se aqui eu não me recolher séria e sinceramente em mim e não fizer uma total revisão da maneira de ver a minha própria vida, a minha pastoral etc., corro o risco de me arrastar na confusão e, é bem possível, que esteja perdendo o meu tempo.
Algo semelhante se pode dizer por exemplo de cinemas, televisão, vídeo, Internet etc. Se no dia anterior, até altas horas da noite, eu me deixei emocionalmente impressionar e me perturbar por espetáculos visuais ou programações de sites, chats e outros, pode ser que no dia seguinte não consigo trabalhar bem na audição de uma preleção. Falta-me o devido recolhimento para me concentrar por causa da demasiada poluição emocional.
Surge aqui uma questão metodológica para o trabalho do estudo: por que e para que deixo-me assim impressionar emocionalmente, de tal sorte que me torno imprestável para o trabalho que é minha vida?
A reflexão não está dizendo que estou proibido de assistir aos espetáculos às altas horas da noite. Está apenas colocando uma questão prática, concreta e fundamental da vida: como assumo a minha vida meu compromisso intelectual para o crescimento real da minha identidade e maturidade humana no trabalho do estudo superior de filosofia?
Pode ser que esteja fazendo tudo isso para justamente amadurecer em mim mesmo a identidade emocional ou para ajudar realmente o outro. É necessário, no entanto, perguntar-me, para o meu próprio bem, se essa maneira de eu querer amadurecer ou de ajudar o outro não é como diz o texto chinês acima mencionado:
a inflação confusa e proliferação de cobiças e inclinações da minha natureza ainda imatura. De início a inflação da cobiça parece criar e aumentar o vigor do crescimento. Com o tempo, porém, ela se revela como uma perigosa inchação da vida, que ao se agitar, se esvazia totalmente, envenenando, pela raiz, o vigor de crescimento.
A reflexão não está minimizando “intelectualisticamente” a importância da emoção. Antes, pelo contrário, é porque toma a sério a importância vital da emoção que se coloca a questão acerca da seriedade do meu querer na busca da maturidade emocional. Emoção não é apenas vivência extática, fogaréu de palha, mas sim um vigor firme, constante e forte da identidade bem experimentada no crescimento lento e bem trabalhado. É pois o mesmo vigor da identidade a que aspira e pelo qual luta o estudo superior de filosofia.
A primeira condição fundamental e primária para a eficiência no trabalho de ouvir as preleções é portanto o recolhimento interior. O recolhimento interior e o silêncio exterior vão juntos. O recolhimento interior causa espontaneamente um recolhimento exterior. Mas não é o recolhimento exterior que causa o recolhimento interior. No entanto, num instituto de estudo onde não há o recolhimento exterior ou lá onde o recolhimento exterior deve ser exigido à força da lei, não há condição elementar para o trabalho sério do estudo, pois, não há lugar para o ouvinte.
Aqui a única instância onde se pode apelar é a autonomia, a auto-imposição, a corresponsabilidade. Pois, enquanto eu não me decidir a criar em mim mesmo o recolhimento interior e não organizar a minha vida para isso, todo e qualquer apelo para se criar um ambiente de audiência no estudo gera descontentamento. E o descontentamento é poluição acústica do recolhimento interior.
No entanto, quem livremente não busca o recolhimento interior no estudo e não organiza o seu fazer e não fazer para o seu crescimento é infantil. E, se é religioso, “ainda” não fez o noviciado. Pois, o que vale no noviciado para a oração e o silêncio, vale no estudo superior de filosofia para o próprio trabalho do estudo.
Assim, percebemos que a disciplina monacal do recolhimento não é algo do passado. Antes, pelo contrário, é a tarefa e o desafio da modernidade. Pois a disciplina monacal do recolhimento está mais do que nunca presente na modernidade. Não lá onde se dá a inchação da burguesia de consumo da modernidade, mas sim lá onde se criam os valores da modernidade, como por exemplo nas oficinas do trabalho técnico, nos laboratórios, nas salas de planejamento industrial, nos centros de pesquisas científicas.
5.1.1 Tipos de preleção
Conforme a intenção da fala do professor há diferentes tipos de preleção. Cada tipo de preleção quer ser ouvido a seu modo. É o trabalho do ouvinte ajustar cada vez de novo o registro da sua audiência ao tipo de preleção que está ouvindo.
- a) Existe, por exemplo, a preleção informativa sobre “coisas”, onde se relatam nomes, ocorrências, estruturas, fatos etc. Nesse caso, a minha atenção há de procurar fixar na memória, o mais que pode, os dados fornecidos na preleção.
Aqui não devo exigir da preleção reflexões profundas. Se faço perguntas, essas devem se referir aos dados e não às pressuposições reflexivas acerca de fundamentação e interpretação que dizer respeito ao sentido radical da própria disciplina, da qual a preleção é uma exposição. Por exemplo, se numa preleção a exposição dá informações arqueológicas sobre o uso de um utensílio litúrgico, não devo exigir dessa exposição que ela faça uma reflexão acerca da essência da liturgia ou acerca do sentido ontológico do uso ou do utensílio.
Em se tratando de preleção informativa desse tipo, o estudo em casa sobre essa preleção deverá ser muito mais um trabalho de guardar de cor os dados fornecidos e saber bem o relacionamento que existe entre um dado e outro. Aqui entra em ação o importante trabalho de aprender de cor e relacionar um dado com o outro, através de raciocínio ou também através de associação de imagens.
- b) Existe a preleção informativa, onde se expõe um sistema de conceitos, ou do professor ou de um outro autor. Aqui, a exposição não fica só na informação, pois, em se tratando de conceitos, entra-se, mesmo não querendo, na reflexão. No entanto, a intenção da preleção é mais informativa. Procura-se expor o conjunto de conceitos que constitui uma interpretação da vida.
A minha atenção há de fixar os conceitos principais que sempre de novo ocorrem na exposição.
Dentro de uma tal exposição há dois tipos de conceitos. Um tipo de conceitos que são fixos, como que tema fundamental de uma sinfonia. Estes conceitos são os fundamentais e principais. Há também um outro tipo de conceitos que não estão fixos, mas que modulam a sua significação como que variações do tema fundamental de uma sinfonia. Esses conceitos que variam servem para explicitar, explicar, fazer soar os conceitos fixos fundamentais.
Essa explicação de dois tipos de conceitos não é muito exata nem rigorosa. A realidade de uma exposição e dos conceitos é muito mais complexa e diferenciada. Mas representemos a realidade da preleção em conceitos fixos e em conceitos variantes, só para pegar o jeito de ouvir bem a exposição de um sistema de conceitos.
Vamos dar um exemplo de conceitos fixos e de conceitos variantes.
O professor na aula expõe:
Antes de abordarmos teologicamente o tema do purgatório, convém, como dizia o Pe. Congar, proceder a um purgatório do purgatório. Como acerca do inferno, também sobre o purgatório a tradição homilética e popular acumulou representações absurdas, indignas da esperança libertadora do cristianismo. Apresentou-se o purgatório não como uma graça concedida por Deus ao homem para se purificar em vista do futuro com Deus, mas como um castigo e uma vingança divina em vista do passado do homem (Boff, 1973, p. 56-7).
Aqui o conceito fixo é o purgatório. E todos os outros conceitos são variantes. Os variantes cercam o conceito fixo purgatório. E levantam suas vozes em diferentes modulações para me dizer de vários modos o que a preleção entende por purgatório. Em si, só a palavra purgatório, se ela existisse ali só no mundo, não diria nada, seria muda. Acontece porém que ela nunca está só, pois já antes de ouvir essa preleção, nós a ouvimos em outras ocasiões, cercada de outros conceitos variantes. Mas, se a palavra purgatório realmente ali estivesse isolada, só num sentido absoluto, ela nada significaria. Ela começa a falar somente através das modulações dos conceitos variantes.
Vejamos alguns conceitos variantes para ver como funciona a explicação do conceito fixo purgatório.
O conceito fixo: purgatório: a atenção da audiência fica em alerta e eu abro a orelha do meu coração na expectativa: o que será que o professor vai dizer do purgatório?
Os conceitos variantes:
– “Antes de abordarmos teologicamente o tema purgatório”: a atenção de audiência começa a vibrar: Aha! a preleção vai só abordar o purgatório teologicamente! Isto quer dizer que existem outros ângulos de abordagem do purgatório? O purgatório tratado aqui, agora, na preleção é, portanto, o que a gente entende na filosofia por purgatório. Escutemos pois o que a filosofia entende por purgatório.
– Como dizia o Pe. Congar, “convém proceder a um purgatório do purgatório”: que negócio é esse purgatório do purgatório? Duas vezes a mesma palavra? Mas atenção! Escute bem! O primeiro purgatório não soa igual ao segundo purgatório… O segundo purgatório é um conceito fixo, constante. É o mesmo conceito que acima foi explicado como aquilo que a gente entende na filosofia por purgatório. O primeiro tem uma outra modulação: purgatório do purgatório! Escute bem! Purgatório do purgatório… Aha, o primeiro purgatório aqui soa assim como purgante! Está dizendo: convém purgar, purificar o conceito fixo do purgatório. Isto quer dizer que o conceito fixo do purgatório como a gente o entende na filosofia não é limpo? De que sujeira a gente deve limpá-lo?
E assim por adiante com outros conceitos variantes como: – “como uma graça concedida por Deus ao homem para se purificar em vista do futuro – como um castigo e uma vingança divina em vista do passado do homem” etc. etc.
De variante em variante, o conceito fixo principal purgatório vai me comunicando o que a preleção entende por purgatório. Assim, o estudante ouvinte fixa bem na mente o conceito fixo principal ou os conceitos fixos principais. E então vai arrolando ao lado dele ou deles os conceitos variantes correspondentes. Ordena resumidamente o que os conceitos variantes disseram do conceito fixo principal e tenta memorizar esses dados conceptuais da melhor maneira possível.
É necessário, porém, observar que quando ocorrem vários conceitos fixos principais, um conceito principal pode funcionar por sua vez como conceito variante do outro conceito principal.
Certamente, todos esses passos de explicitações funcionam sem que eu me dê conta deles tematicamente. Mas é interessante e é muito útil observar mais conscientemente esse funcionamento para aguçar o nosso ouvido e assim treinar a boa audição de uma preleção acerca do sistema de conceitos.
- c) Existem também preleção reflexiva que não intenciona informar, mas apenas fazer o movimento de reflexão. Esse tipo de exposição é a mais difícil de ser ouvida.
De início, esse tipo de preleção não difere muito da exposição informativa, onde se tenta comunicar um sistema de conceitos. Mas logo as modulações dos conceitos variantes começam a vibrar em questionamentos. Começam a interrogar pelo sentido pré-jacente de todos os conceitos em operação. Em fazendo isso, o movimento de reflexão, aos poucos, se recolhe num único questionamento, sempre de novo repetido, acerca do sentido radical do ser. Os conceitos fixos do saber do ouvinte começam a fluir numa baila caótica, o estudante ouvinte começa a não mais entender o que antes sabia com toda a segurança. Mas, se permanecer tenaz e recolhido na audiência, surge desse caos um silêncio de estranhamento e de reverência, não diante de uma solução, mas sim diante do abismo do próprio questionamento.
O trabalho de audiência de uma tal reflexão é antes padecer na intensa atenção de ausculta a co-agitação dos conceitos e nesse padecimento deixar-se afetar por um recolhimento estranho de admiração do mistério do ser.
Para isso são exigidas do estudante muita paciência e a coragem de permanecer alerta com o ouvido colado à audiência obediente da reflexão, mesmo que nada compreenda por longo tempo. É pois uma audiência, onde com todo o corpo da existência o estudante começa a fazer a experiência do servo inútil do desvelamento e do velamento do mistério do ser, da verdade. Uma tal experiência da audiência radical não pode ser descrita adequadamente. É necessário pois fazer a experiência.
As preleções do estudo superior de filosofia nunca se apresentam limpidamente de maneira exclusiva como um desses tipos da exposição acima mencionados. Quase sempre os três tipos se acham numa única exposição como que misturados. A habilidade do estudante na arte de ouvir consiste em que ele, cada vez que se apresentam esses tipos de exposição dentro de uma preleção, ajuste o ouvido à maneira típica da exposição correspondente.
5.1.2 Algumas sugestões práticas no trabalho de ouvir as preleções
– Se ocorrer um termo desconhecido, perguntar sem receio ao professor ou procurar no dicionário pelo sentido do termo.
– Mas também experimentar a capacidade de descobrir o sentido de um termo desconhecido, tentando adivinhá-lo através do contexto da preleção.
– Quando houver barulho ou se o companheiro me estorva, em vez de tentar eliminar esse estorvo, em vez de gastar a atenção em reagir contra esse estorvo, aumentar a intensidade de concentração na preleção. O mesmo vale quando um defeito, a linguagem, ou o tom de voz do professor me irrita. Portanto, não dividir a energia de ausculta, deixando-me tentar pelo desejo de eliminar o estorvo, reagindo contra ele. Antes, só cuidar de não dividir a energia, isto é, concentrar-me cada vez mais na preleção.
– Quando algo me preocupa, procurar imaginar que aquela hora da preleção é a única realidade real que de fato existe. Nós só existimos no presente. Nós só podemos o que podemos aqui e agora na hora presente.
– Quando a exposição é enrolada, não ter medo da complicação. A maior parte das dificuldades em compreender com clareza a realidade diferenciada e complexa vem da impaciência em percorrer passo a passo as etapas de uma estrutura e em querer simplificar a realidade vitalmente complexa que não se deixa reduzir a um esquema unidimensional.
– Quando entra a confusão de conceitos, não perder a cabeça só porque não entendo quase nada. Tentar fixar ao menos o pouco que penso ter entendido. É desse pouco que nascem os fios condutores que nos levam a ordenar a complexidade de uma coisa.
– Treinar no trabalho difícil de ouvir com atenção uma longa exposição. Esse treino hoje é mais do que nunca necessário e útil, pois a humanidade está ficando cada vez mais raquítica e anêmica nesse ponto.
– Quando a atenção diminui durante a preleção, tentar reanimar-se, inventando para mim truques de auto-reanimação.
– Cuidar da posição do corpo. Ela pode influenciar mais do que eu penso a alerta e a presença da minha audição.
5.2 O SEMINÁRIO
O seminário, no estudo superior de filosofia, não é bem o que se denomina usualmente de seminário, por exemplo, nas páginas dos jornais, quando se notifica: “Realizou-se ontem na PUC um seminário sobre os meios de comunicação”. No estudo superior de filosofia, o seminário, talvez até mesmo mais do que a preleção, perfaz o coração, o centro do nosso trabalho do estudo.
Quem se dedicou de corpo e alma, ao menos uma vez, ao trabalho artesanal de um seminário bem feito, começará a experimentar o gosto e as vicissitudes, a ventura e a aventura do trabalho operário intelectual. O seminário é a oficina do trabalho inter-lectual.
A palavra seminário vem do latim seminarium que designa ao mesmo tempo o campo, o canteiro, o terreno onde se semeia e o próprio trabalho de preparação do terreno, a ação de semear, a semeadura e o cuidado no crescimento lento das sementes. O terreno somos nós. As sementes são o saber, o pensamento e a nossa própria transformação na idade madura da identidade inter-lectual. A semeadura é o nosso trabalho paciente e tenaz, cuidadoso e afeiçoado nesse crescimento.
Muitas vezes chama-se também de seminário o lugar onde se realizam as reuniões do seminário. Em geral, nas universidades antigas, esse lugar é formado de duas ou três salas. Numa sala se acha uma biblioteca especializada, mesas e cadeiras onde o estudante num absoluto silêncio pode estudar e se reunir na hora do seminário; uma outra sala contígua à primeira acima mencionada é a sala do assistente. Este trabalha ali o dia todo e está à disposição dos estudantes para as consultas. E por fim uma terceira sala, onde o professor trabalha e recebe os estudante para orientação.
Esse conjunto é por assim dizer uma espécie de pequena oficina, especializada no trabalho e é por isso que serve também para representar, de modo geral, a secção da disciplina universitária de um professor catedrático. Assim se chama também de seminário o departamento de uma disciplina universitária.
Em geral, o como realizar o trabalho de um seminário difere de professor para professor.
5.2.1 O espírito do seminário
O importante no seminário não é tanto a técnica do seu fazer, mas sim o modo de ser, o espírito, o vigor que o anima.
O vigor da alma do seminário é o discipulado.
À primeira vista, o discipulado designa o relacionamento do discípulo com o mestre. O discípulo segue o mestre, aprende dele. O mestre nesse caso seria aquele que sabe mais e melhor, o poderoso no saber: o condutor. O discípulo, aquele que sabe menos e pior, o fraco no saber: o conduzido.
Essa concepção do discipulado é decadente. Não trás à luz o verdadeiro sentido e o vigor do discipulado.
O discipulado não é um dever do discípulo em relação ao mestre e um dever do mestre em referência a esse dever do discípulo. Antes, é um e o mesmo dever do mestre e do discípulo, unindo-os numa amizade sui generis de questionamento e de desafio mútuo.
O que é isto, o terceiro que afeiçoa o mestre e o discípulo numa amizade de questionamento e de desafio mútuo?
O aprender, o eu-aprender, em latim dis-cipio, do qual deriva a palavra dis-cípulo. Dis-cípulo significa: eu capto, apreendo o sentido radical daquilo que afeiçoa a minha decisão de total empenho da busca.
E o que é isto que afeiçoa a minha decisão de busca no estudo superior de teo-logia?
Dizemos: é Deus, ho théos. A logia significa: o vigor da acolhida, da apreensão. teo-logia significa portanto: ser no dis-cipio de Deus.
No entanto, a irreverência do nosso saber diz com facilidade: é Deus. E esquece na sua pretensão o fascínio tremendo do mistério inominável, o qual nenhum mortal é digno de mencionar. Mas, por outro lado, é o fascínio tremendo do mistério inominável que afeiçoa, e-voca, envia e consuma a nossa busca. Mas como captar sob a nossa pergunta o que é anterior à própria pergunta e constitui a própria possibilidade de eu perguntar? Como posso querer captar o mistério inominável, Deus, se ele é anterior ao meu querer e constitui a própria possibilidade de eu querer? Como pois saber, querer, captar, apreender, o que é inacessível ao meu arbítrio do querer, saber e poder, por ser ele anterior a tudo isso?
O mestre chinês Dschau-dschou costumava ensinar:
– O supremo caminho do mistério inominável – a theo-logia – não é difícil. Apenas inacessível à escolha do arbítrio. Lá onde nem se afirma e nem se nega existe a claridade, aberta, sem nuvens,
Um discípulo lhe perguntou:
– Se a gente já não se acha na claridade sem nuvens, para que se empenhar? O que buscar?
Respondeu o mestre:
– Eu também não sei!
Disse-lhe o discípulo:
– Se o senhor não sabe, como pode dizer que não se acha na claridade sem nuvens? Para saber que não sabe é necessário saber o que não sabe.
Respondeu-lhe o mestre:
– A questão acerca da busca tu já a colocaste. Resta inclinar a cabeça com reverência e retirar-te.
Seja qual for o tema, no caminho da teo-logia, na medida em que se caminha na busca radical de Deus, o nosso saber é colocado ante a face do mistério inominável. Em vez de saber mais e melhor, começamos a apreender o abismo escuro do mistério.
Nós que começamos a caminhada, querendo saber mais e melhor acerca de Deus e da sua causa, começamos a inclinar a cabeça em espanto, admiração ante a face do mistério inominável. O nosso saber se transforma em recolhimento de um silêncio claro na humildade da reverência: eu também não sei.
O discípulo é aquele que apreende na sua própria caminhada do saber esse não-saber reverente ante a face do mistério inominável que chamamos tão frivolamente de Deus. E o mestre é aquele discípulo que, na sua própria caminhada do saber mais e melhor, apreende esse mesmo não saber reverente e tenta permanecer sempre de novo, com rigor, na afeição desse silêncio claro da reverência. No entanto, a precisão de seu silêncio repercute na caminhada dos outros, a-cordando-lhes a afeição crescente do gosto pelo não-saber reverente ante a face do mistério inominável. O mestre é, portanto, aquele que mais e melhor aprende o não-saber reverente e no seu aprender arrasta os outros na afeição do mesmo aprender.
O mestre e o discípulo são, pois, discípulos do não-saber do mistério inominável de Deus.
O espírito do seminário é, pois, a paixão desse aprender que faz o mestre e o discípulo cada vez mais pobres na pretensão do seu saber, para uni-los na amizade da mútua provocação, ao crescimento dessa disposição reverente em face do mistério inominável. Por isso, o relacionamento do professor e aluno no seminário não se dá a modo de um ensinar “paternal” do professor ao aluno sobre algo que o professor já sabe e que o aluno ainda não sabe. É antes um caminhar juntos no rigor do seguimento de um empenho do saber, onde cada qual caminha o seu caminho para a humildade radical do saber ante a face do Senhor. Essa caminhada pessoal, no entanto, se relaciona no seminário não a modo de cada qual para si e Deus para todos, mas sim como o desafio mútuo, no qual quem mais e melhor caminho provoca o outro a caminhar com mais empenho, mais rigor e obediência.
Se a amizade está nesse desafio, então eu não poderei contentar-me mais ou menos com a mediocridade do outro. Assim, por causa da amizade típica dessa caminhada, o aluno e o professor se tornam mutuamente rigorosos na crítica a um trabalho mal feito.
De tudo isso percebemos que o seminário não é um trabalho grupal. Eu não me encosto no outro nem o outro em mim para facilitar o trabalho. Antes, eu me coloco diante de mim mesmo, o outro se coloca diante de si mesmo no empenho da busca discipular, na disciplina do discipulado, no sentido acima mencionado. A provocação mútua para o rigor na fidelidade ao discípulo é o elo de união que congrega os participantes do seminário, professor e aluno, não numa dinâmica de grupo, não na técnica de criatividade, mas sim na comunidade do munus inter-lectual.
Por isso, o seminário exige de cada participante um devotamento pessoal ao trabalho e à tarefa do seminário, durante o tempo de preparação para o seminário. A reunião do seminário é de 1 a 2 horas semanais, conforme a determinação de cada professor. No entanto, essas horas de reunião semanal são como que uma pequena parte, como que a ponta de um iceberg, formado de horas de preparação pessoal da semana que precede à hora da reunião. No seminário tudo depende dessa preparação pessoal.
Por isso, não é aconselhável fazer diversos seminários no mesmo semestre. É melhor fazer um só seminário por semestre com toda a dedicação de que sou capaz.
Falamos acima do espírito do seminário como do empenho de caminhada para o não-saber reverente ante a face do mistério. Uma tal explicação pode ser mal entendida. O seminário não é o lugar onde se semeiam as vivências “espirituais” de um fervorinho devocional. É antes uma oficina de trabalho do estudo, do saber rigoroso e sistemático. A caminhada para a pobreza do espírito deve se dar não como a negação do saber a favor de vivências devotas, mas sim na radicalização do próprio saber. É do seio do próprio saber que deve repercutir a piedade do pensamento como o silêncio claro da louvação do Senhor, na sobriedade contida de um não-saber bem experimentado na labuta apaixonada do nosso saber.
5.2.2 Como fazer o seminário
Como dissemos acima, o modo como realizar o seminário depende da orientação do professor. Geralmente, na primeira reunião, o professor expõe a finalidade e o modo de proceder do seminário. Por isso, para a técnica do seminário, a primeira reunião é importante. O estudante, então, tentará seguir da melhor maneira possível as orientações técnicas do professor.
Como no caso das preleções, a intenção do professor ao fazer o seminário e o modo de ser da disciplina em questão influem na maneira de como proceder no seminário.
Usualmente distinguimos tipos de seminário, seminário temático, seminário de leitura de um texto, seminário coloquial ou colóquio, seminário de pesquisa.
.a) O seminário temático
No seminário temático o trabalho individual e as reuniões do seminário se processam sob um tema.
O que é tema? Tema é o produto da monografia. Monografia é afirmação. O que é afirmação? Afirmação é tomada de posição. Só podemos tomar posição na posição em que estamos. A posição em que estamos é o que somos, a partir donde afirmamos e negamos. O que somos, a partir donde afirmamos e negamos é o nosso saber. É do nosso saber que partem os enfoques nos quais e pelos quais apreendemos, analisamos e ordenamos a realidade.
Tema é o enfoque produzido pelo nosso saber. Tema é a abertura de uma perspectiva, determinada pelo nosso saber, através e dentro da qual tentamos apreender, analisar e ordenar a realidade.
No seminário temático enuncia-se o tema, o enfoque dentro do qual se quer examinar o material. O material é aquilo sobre o qual impostamos o enfoque para estudar. O material pode ser diverso: um fenômeno, por exemplo, a vida do camponês; uma obra, por exemplo, Os Escritos de São Francisco de Assis; as opiniões dos outros, por exemplo, o que dizem os Santos Padres acerca do batismo das crianças etc.
O que dá unidade ao seminário não é o material. Cada participante pode receber diferentes materiais para examinar, mas os examina sob o aspecto do tema que comanda o seminário.
Em geral, o próprio material que examinamos já está sob um tema, sob um enfoque. Por exemplo, se num seminário de filosofia, cujo tema é libertação, eu recebo uma monografia escrita por um psicólogo. Esse material já está na perspectiva do tema psicológico. Nesse caso, conforme a determinação do professor, o meu trabalho pode consistir somente em examinar o que diz o autor acerca de um certo assunto sob o enfoque psicológico. Mas, conforme a determinação do professor, pode ser também que esse trabalho seja só uma preparação para o meu trabalho propriamente dito no seminário, a saber, o de confrontar o enfoque psicológico com o enfoque teológico, o tema propriamente dito do seminário.
É importante, portanto, antes de mais nada, tentar ter clareza acerca do tema do seminário. Por isso, é necessário desde o início do seminário, na medida do possível, gastar o tempo suficiente para examinar, esclarecer o tema do seminário.
Acontece, porém, que toda e qualquer determinação do tema é provisória. De início, estamos seguros do nosso saber. Na compreensão usual das coisas, pensamos saber o que significa o título que designa o tema do seminário. De tal maneira que até estranhamos a exigência de determinar melhor e com maior clareza o tema. No entanto, na medida em que, a partir do tema, começamos a enfocar o material a nós confiado para o estudo, começamos a perceber a imprecisão, a falta de determinação, a confusão do tema. Assim, o próprio tema a partir do qual iniciamos a caminhada, começa a caminhar e se torna a própria questão do nosso tema. Mas é na medida em que o próprio tema sente a necessidade de uma determinação mais rigorosa que o seminário está caminhando na viagem de um confronto radical com o que sabemos, conosco mesmos, caminhando na busca da afeição da reverência do não-saber acerca da verdade, que nos envia à busca, na tematização de todas as coisas por amor à verdade.
Assim, no seminário, ao tematizar o material, o próprio tema caminha para a compreensão sempre mais rigorosa dele mesmo.
Mas, para que essa caminhada se dê realmente, passo a passo, sem a dispersão confusa, na qual se passa de um tema a outro sem fio condutor de crescimento, é necessário determinar bem o tema do seminário.
Quanto melhor se determina o tema, tanto mais existe a possibilidade de o próprio tema entrar em autoconfronto consigo mesmo. Se o tema fica vago, de tal sorte que sob o “tema” se pode falar de tudo, então há o perigo de se estar falando de nada, por não surgir a diferença de concreção e, assim, estar se pulando de um tema para outro, não se tomando nada a sério, numa diarréia confusa de opiniões.
- b) O seminário de leitura de um texto
A finalidade desse tipo de seminário é ler um texto fundamental. Escolhe-se geralmente obras de grandes autores clássicos. Aqui se trava uma espécie de luta livre, corpo a corpo com o texto, em cuja contenda se dá o confronto do nosso saber consigo mesmo e a pré-compreensão da nossa existência vem à luz na sua nudez, acordando em nós a afeição de uma estranha reverência diante da obra do pensamento.
Sobre o movimento da caminhada desse tipo de seminário falaremos depois, quando falarmos da leitura.
- c) O seminário coloquial: o colóquio
A finalidade desse tipo de seminário é entrar num movimento de colóquio, isto é, de diálogo, a partir de um assunto qualquer.
O diálogo aqui não é uma discussão, isto é, contenda de posição, na qual uma das posições, a certa, elimina as outras, as erradas, no triunfo definitivo da razão. Não é também uma espécie de “meditação comunitária”, na qual cada participante expõe “em partilhas” a sua opinião e suas vivências subjetivas. É antes uma rigorosa caminhada de busca, na qual os dialogantes deixam-se conduzir pela disciplina do discipulado à evocação da verdade.
Sobre o movimento da caminhada desse tipo de seminário falaremos depois, quando falarmos do diálogo.
- d) O seminário de pesquisa
O seminário de pesquisa é temático. Tem-se um enfoque e a partir e dentro do âmbito do enfoque se procura examinar o material, para melhor definir o significado do material para o enfoque.
No entanto, no seminário de pesquisa, o tema não é colocado em questão. Não é, pois, como no caso do seminário temático, onde o movimento principal consiste no auto-confronto do tema com a sua própria possibilidade.
No seminário de pesquisa, o tema é o pressuposto operativo, em cujo ocular se examina e se tenta ordenar o material, sem colocar em movimento o próprio pressuposto.
Aqui, diferem, conforme cada disciplina, os enfoques e o modo de examinar o material sob esses enfoques. Cada professor dará para a sua disciplina a orientação necessária sobre o método de abordagem do material.
Esses tipos de seminário acima mencionados podem-se entrelaçar num seminário. Por exemplo, num seminário temático, podem ocorrer o modo de ser do seminário de leitura, do diálogo, da pesquisa como etapas de preparação ou de realização do seminário.
A seguir, vamos dar algumas sugestões referentes ao seminário. As sugestões não se referem ao movimento interno do seminário nem ao seu espírito. Referem-se antes à práxis externa, sem uma definição mais rigorosa do modo de ser dos seus elementos.
Como o tipo de seminário mais em uso entre nós é o temático e o de pesquisa, as sugestões que seguem valem mais para esses tipos de seminário. Sobre a práxis externa do seminário de leitura e do colóquio é difícil falar, pois varia, cada vez, conforme o andamento da leitura e do diálogo.
5.2.3 O tema do seminário
Meditar bem o tema. Ter a coragem de tomar o tempo suficiente para isso. Na medida do possível devo ter claro o tema. Do contrário, poderei perder o tempo, examinando assuntos que não pertencem ao tema. Se não entendi os termos que ocorrem no tema, não os deixar na compreensão vaga e confusa.
Conforme o tema, perguntar-me o que devo fazer. Por exemplo:
– descobrir os componentes de um conceito;
– achar e descrever, enumerar as características de um fenômeno;
– resumir um assunto;
– criticar os argumentos de uma tese;
– defender e fundamentar com argumentos uma tese;
– descobrir as pressuposições ocultas de uma afirmação;
– ver a evolução histórica de uma idéia, de um sistema;
– constatar a situação histórica de um acontecimento etc.
5.2.4 O material para o seminário
Em geral, o material dos nossos seminários é documento escrito: fontes escritas, monografias, artigos. No manuseio do material surge a dificuldade das línguas.
Existem certas disciplinas filosóficas onde se exige no seminário, além do português, o conhecimento de línguas como, por exemplo, hebraico, grego, latim, francês, alemão, espanhol etc.
Quem estuda essas línguas no primeiro ou segundo graus ou já sabe algumas dessas línguas de casa deveria continuar se aperfeiçoando nelas durante o estudo de filosofia. É na medida em que se afeiçoa no estudo de filosofia, que se começa a sentir a necessidade de saber uma determinada língua. Então o estudante deverá começar a estudá-la. Em 5 a 6 anos, com tenacidade e constância se faz muita coisa na aprendizagem de uma língua.
Na busca do material para o trabalho do seminário, sob a indicação do professor, vasculhar a biblioteca à caça do material.
Na busca do material:
– olhar os catálogos bibliográficos;
– olhar enciclopédias, dicionários e manuais clássicos de filosofia;
– olhar os dados bibliográficos nas obras e nos artigos já conhecidos.
Muitas vezes, é necessário folhear página por página uma obra ou um artigo para ver se encontra uma pista para o material. Depois de ajuntar o material bibliográfico, selecioná-lo. Se encontro uma boa monografia que já tratou bem do assunto em questão não é necessário recomeçar a pesquisa desde a estaca zero.
Para que possa encontrar o material, é necessário que me familiarize com a biblioteca. Há pessoas que tem medo de entrar na biblioteca. É que, no início, a aparente confusão dessa imensa floresta de livros nos atordoa. No entanto, a biblioteca é armazém do material de estudo. Um comerciante que não ama o seu armazém e não sabe onde estão as mercadorias do seu armazém é um péssimo profissional.
Para me familiarizar com a biblioteca é útil fazer o seguinte: passar na biblioteca algumas horas por dia, só para ver a ordem de colocação dos livros em diferentes seções, passar à vista livro por livro, lendo com curiosidade os títulos dos livros. E se encontro um livro curioso, experimentar folheá-lo. Entrar, assim, em contacto corporal com a biblioteca. Com o tempo, a confusão desaparece e eu começo a sentir-me em casa dentro desse imenso armazém do meu estudo. Examinar o fichário, olhar os títulos dos livros e tentar ver se consigo encontrar os livros ali assinados.
Cada classe, no início do estudo superior de filosofia, deveria, por própria iniciativa, pedir ao bibliotecário que a conduza através da biblioteca.
5.2.5 O trabalho individual de preparação para o seminário
Esse trabalho é essencial. Aqui o importante é ver o problema, analisar o material sob o enfoque do tema, descobrir algumas idéias centrais e sintetizar o que analisou.
Concentrar todo o esforço nesse trabalho, sem me preocupar muito, por enquanto, com o problema: como vou apresentá-lo no seminário. Quanto mais eu ordenar as minhas idéias, tanto mais facilmente eu as consigo ordenar numa exposição.
Muitas vezes o estudante tem a dificuldade de se expressar. No entanto, se a parte do estudo de análise for bem feita, a apresentação pode ser falha, o trabalho, porém, é valioso. Pois a exposição que eu faço no seminário não é a exposição de uma bela conferência. A minha função de expositor é de suscitar questionamento bem colocado, sugerir soluções novas, provocar e dinamizar a discussão. Muitas vezes, basta eu descobrir uma única idéia interessante e trabalhar bem sobre essa idéia. A descoberta pode ser uma valiosa contribuição para o seminário.
Se na análise do material não conseguir avançar, não ficar frustrado. Pode ser que o material não preste. Pode ser que eu ainda não tenha trabalhado o suficiente sobre o material. Pode ser que esteja abordando o material de maneira inadequada. Persistir no trabalho, insistir, tenaz e pacientemente. Se, porém, o trabalho ficar completamente bloqueado, então não ficar parado, desanimado. Fazer alguma coisa, por exemplo, buscar auxílio com um colega ou com um professor, não para me encostar neles e me poupar o trabalho pessoal, mas para receber deles um empurrão e o ânimo, a fim de eu acionar em mim mesmo a inventividade, a iniciativa criativa e talvez uma nova abordagem mais prática e melhor do material.
O segredo da eficiência no trabalho individual reside em grande parte nisto: em eu me dar pontapé a mim mesmo para que eu me anime, de qualquer jeito, a avançar realmente na busca.
E enquanto assim analiso o material individualmente, conversar e discutir sobre o assunto com os colegas do seminário. Eu posso receber dessa conversa muita inspiração para o meu trabalho.
Vamos agora especificar um pouco mais o trabalho de preparação para o seminário, sugerindo como trabalhar o material.
Uma vez ajuntado o material, distinguir entre o material principal e secundário. O material principal são as fontes e as obras conhecidas como as fundamentais em referência ao tema. Ao lado destas, existem trabalhos e artigos menores, menos fundamentais que constituem o material secundário. É a assim chamada literatura secundária.
Em primeiro lugar, começo lendo o material principal. E como fazer? Ler bem devagar todo o texto. Tentar entendê-lo. Depois de ler, largar o livro e se perguntar: do que eu acabei de ler, o que é que posso aproveitar para o meu tema? O que o texto diz em referência ao meu tema? Divagar, meditar, examinando ainda que de modo indeterminado as possibilidades de perguntas e respostas em referência ao meu tema.
Depois disso, ler o texto de novo. Desta vez, porém, só e rigorosamente sob o enfoque do meu tema. Ficar de olho, atento, ao que o texto me pode dar como perguntas, respostas, questionamentos acerca do meu tema.
Ao fazer isso, não olhar somente no texto os trechos que falam direto e explicitamente do meu tema, mas também e principalmente os trechos que falam dele indireta e implicitamente. Desenvolver assim a capacidade de farejar os vestígios do meu tema, também no texto onde os vestígios estão ocultos atrás de assuntos aparentemente indiferentes.
Talvez seja útil aprender a fixar em fichas o que li e analisei sob o enfoque do meu tema. Assim tenho o material analisado à mão, quando vou redigir o trabalho para o expor no seminário.
Tomar uma ficha, e colocar em cima, em forma de um título ou em frase telegráfica o que encontrei acerca do tema.
Citar o texto encontrado ou resumir o seu conteúdo.
Indicar o autor, o título do livro, a cidade, a editora, o ano da edição e a página onde se encontra o texto etc., conforme as normas da ABNT, que no geral são seguidas por todas as universidades do país, de acordo com as referências que vêm ao final do texto, nos elementos pós-textuais.
Vamos supor que eu tenha queexpor no seminário como tema o conceito de Filosofia em Nietzsche: Sucumbir / filosofar; conceito de filosofia / em Nietzsche. O texto: “Um burro, pode ser ele trágico? Sucumbir sob o peso, que não pode suportar, nem pode lançar fora. Eis o caso do filósofo…” (Nietzsche, Friedrich, Goetzen-Daemmerung, Obras editadas por Schlechte, tomo II, Darmstadt, 1960, p. tal e tal).
O resumo: sucumbir significa: ir ao fundo das realidades humanas. Isto significa: sucumbir, isto é, fracassar: o trágico. Filosofar é ser trágico. Mas o que é ser trágico?
Se, durante a leitura, encontrar citado uma boa monografia ou um bom estudo sobre o meu tema, fazer logo fichas bibliográficas dessas obras. Na ficha devem constar:
– o nome completo do autor, sublinhando-se o nome de família que vem antes;
– o título da obra; se for tradução, tradução de que língua para que língua;
– a que coleção ou série pertence;
– em que edição está a obra;
– o nome da editora;
– o lugar da edição;
– o ano da edição;
– o número de páginas.
Se o assunto for, por exemplo, o fraternismo universal, os elementos da citação de um livro referente ao assunto aparecem assim:
MOIX, Candide. O pensamento de Emmanuel Mounier. Tradução de (…), série Encontro e Diálogo, volume 10, 2. ed. Guanabara: Paz e Terra, 1968, 368 p.
Depois de ter, assim, analisado e colecionado os dados, abandonar o livro e familiarizar-se com os dados que ajuntou:
– meditar cada ficha;
– comparar os vários dados das fichas;
– agrupar as fichas em unidades de dados semelhantes;
– contrapor os dados contraditórios;
– tentar ver uma certa ordem de pensamento no conjunto de dados;
– tentar ver um fio condutor através de diversos dados;
– meditar, mexer os dados, até ter uma intuição núcleo.
Tentar ver então os dados ajuntados e meditados numa unidade organizada:
– qual é o pensamento central?
– quais os pensamentos que enriquecem, completam, interpretam o pensamento central?
– quais os problemas que surgem do conjunto?
– quais os pensamentos que não se encaixam no conjunto?
– o que tiro de tudo isso para o meu tema?
Depois de ter trabalhado bem o material principal e ter conseguido uma visão fundamental de seu conteúdo acerca do meu tema, examinar o material secundário:
– comparar o resultado obtido no estudo do material principal com o que diz o material secundário;
– se o que diz o material secundário for medíocre, deixá-lo de lado;
– se o que diz o material secundário for bom e confirmar o resultado do meu estudo obtido através da análise do material principal, citá-lo;
– se o que diz o material secundário for bom e não concordar com o resultado obtido através da análise do material principal, citá-lo e refutá-lo, se estou convencido da superioridade do resultado do meu estudo;
– se o que diz o material secundário for bom e tem uma visão melhor e mais profunda do que a visão obtida pelo meu estudo do material principal, adotá-lo e citá-lo, corrigindo o resultado do meu estudo.
Só depois desse trabalho todo, começar a redigir a exposição para o seminário.
5.2.6 A redação da exposição a ser apresentada no seminário
Não devo me preocupar em escrever bonito, mas sim: claro, simples e ordenado; ter um fio condutor que perpasse toda a exposição. Não fazer nem retórica nem fervorinho, mas em tudo ser sóbrio e “objetivo”.
Tudo o que não pertence ao tema, tudo o que é supérfluo, cortar fora, mesmo que me doa. Mas, nos pontos importantes ao tema, ser detalhado e explícito.
O critério supremo da exposição é dizer da melhor maneira possível o que se intuiu.
Cuidar do estilo só depois de ter redigido os pensamentos. O estilo deve estar em função do critério supremo, acima mencionado.
Planejar a introdução do trabalho junto com a conclusão, portanto, só depois de ter redigido o corpo da exposição.
Um esquema que pode ser proposto para a redação da exposição é o seguinte. Uma exposição deve ter sempre bem definidos: introdução, corpo e conclusão.
1 Introdução
Apresentar o tema:
– anunciar o tema;
– esclarecer os termos do tema;
– delimitar o tema;
– dar a impostação ao problema do tema.
Apresentar o método:
– dizer como se examinou o material;
– declarar sumariamente como se vai expor o assunto, as partes principais, a divisão;
– explanar os termos que se usa num sentido todo especial etc.
2 Corpo
O modo de expor depende do tipo do tema. Examinar cada vez, em concreto, o tipo do tema. Talvez consultar os respectivos professores.
Sugestões gerais:
– ser claro, medir bem as palavras que uso;
– preocupar-me em mostrar sempre de novo o fio condutor que unifica a exposição;
– não só afirmar, mas argumentar bem;
– se a exposição ficar muito abstrata, ilustrá-la com exemplos;
– mencionar os problemas que não estão resolvidos como perguntas abertas.
3 Conclusão
Escrever a conclusão juntamente com a introdução: tentar sintonizar o começo e o fim. Dar um resumo e um apanhado geral muito bem feito do pensamento principal.
4 As citações
No trabalho, quando se expõe o pensamento de um outro autor, é necessário citá-lo. Há diversas maneiras de citar um autor. É bom a gente adotar uma única maneira de citar. Salvo raras exceções, na elaboração desses trabalhos acadêmicos, exige-se hoje o seguimento das normas da ABNT.
Seja qual for a modalidade da citação, é necessário ser sempre bem preciso e completo na citação. A precisão da citação é uma espécie de serviço fraternal ao leitor. Dá-lhe indicações exatas e completas para que ele possa encontrar com facilidade a obra que eu usei.
Sempre coloco o texto do autor citado entre aspas, para indicar que não é meu texto. Para indicar donde tirei o texto citado posso fazer assim:
– Colocar no corpo da minha exposição, depois do texto citado entre aspas, em parêntesis os dados bibliográficos. Por exemplo:
Como disse Francisco Pereira: “As águas de Amazonas não afogam o Mar Adriático” (Pereira, Francisco, o Brasil no Ano 2001, Coleção Problemas Brasileiros, volume IV, Editora Andrômeda, Petrópolis, 1978, p. 56).
– Ou assinalar a última palavra do texto citado com um sinal (algarismo, alfabeto) e dar no rodapé da mesma página, onde se encontra a citação, os dados bibliográficos, colocando-lhes na frente o sinal (algarismo, alfabeto) correspondente ao sinal que assinala a última palavra do texto citado.
– Ou assinalar a última palavra do texto citado entre aspas, com um sinal (algarismo, alfabeto) e dar no fim da exposição num apêndice especial os dados bibliográficos, colocando-lhes na frente o sinal (algarismo, alfabeto) correspondente ao sinal que assinala a última palavra do texto citado. Por exemplo:
Como disse Francisco Pereira: “As águas de Amazonas não afogam o mar Adriático”1
No rodapé ou nota de fim:
- PEREIRA, Francisco. O Brasil no Ano 2001. Coleção Problemas Brasileiros, vol. IV, Petrópolis: Andrômeda, 1978, p. 56.
Para ser preciso na citação, seria bom acostumar-se a colocar os dados bibliográficos numa certa ordem sempre constante, mais ou menos na ordem como se fichou a obra de Candide Moix, O pensamento de Emmanuel Mounier, quando falamos acima de ficha bibliográfica.
Quando o trabalho citado é artigo de uma revista, é necessário indicar o ano em que saiu a revista, o mês e o número da série.
Na técnica de citação a Revista REB é exemplar. Estudar nessa revista como a gente poderia padronizar a técnica de citação.
Quando eu resumi o texto de um autor ou disse o seu pensamento com minhas palavras ou o interpretei, então não devo usar aspas, pois estas palavras são minhas de certa forma. Mas devo indicar a sua procedência, citando o autor e a sua obra como acima se exemplificou, mas colocando antes dos dados bibliográficos a abreviação “cf.” que significa confira.
Se cita sempre de novo diferentes textos do mesmo autor e da mesma obra, ao invés de cada vez repetir todos os dados bibliográficos, abreviá-los com “loc. cit., p.” …. Loc. cit. significa: no lugar já citado; ou com ibidem p. … Idibem significa: no mesmo lugar.
5.2.7 A apresentação do trabalho feito, no seminário
Há vários modos de apresentar o trabalho e realizar o seminário. Talvez para o nosso uso, a seguinte modalidade funcione bem.
Para cada reunião, todos estudam o mesmo tema. Mas em diferentes materiais, por exemplo em diferentes autores. Conforme a conveniência, em vez de cada um tomar um autor, podem 2 ou 3 tomar o mesmo autor e trabalhar em equipes.
Na reunião anterior determinar a pessoa que vai expor o seu trabalho na seguinte reunião.
Só esta pessoa vai expor na reunião seguinte. Os outros que não expõem, já que estudaram o mesmo tema, ouvem a exposição, ficam de olho no que o expositor apresenta e anotam os seguintes pontos:
– o que coincide e concorda com o que examinei no meu material?
– o que contradiz o que eu examinei no meu material?
– o que difere daquilo que examinei no meu material?
– o que se assemelha ao que examinei no meu material?
– quais os pontos novos que não tenho no meu trabalho?
– quais os pontos que tenho no meu trabalho e que o expositor não tem no seu trabalho?
– quais os problemas suscitados pela exposição?
– quais foram a ampliação, a limitação, os esclarecimentos que o enfoque do tema sofreu durante ou através da exposição.
5.2.8 O expositor
No começo da apresentação é bom dizer brevemente o estado da questão: de que se trata, o problema, o enfoque do tema.
– Expor então o que descobriu. Pode ler o trabalho ou se é muito grande resumi-lo.
– No fim da exposição, repetir com as suas próprias palavras os problemas que acha ser novos, os pontos que não conseguiu resolver ou não compreendeu etc.
– A exposição deve ser clara, precisa, centrada no essencial. Durante a exposição não perder tempo no acidental. Seria bom se não falasse mais de 30 minutos. O tempo ideal é de 15 a 20 minutos.
5.2.9 Os ouvintes
Ouvir com muita atenção, procurando seriamente seguir a exposição. Essa observação é tão óbvia que seria uma ofensa aqui mencioná-la, se não fosse o ponto em que se falha com maior freqüência na prática. Pois ouvir o outro falar é difícil, mormente se o assunto é seco. No seminário, se uma ou mais pessoas se desligam, isso pode diminuir sensivelmente a dinâmica e a comunicação do pensamento. O seminário é um convívio do pensamento.
Durante a exposição não objetar criticamente uma contratese. Se interrompo o expositor, fazê-lo somente para pedir esclarecimento sobre os pontos que não consegui entender na exposição. A discussão e a crítica vêm depois. Durante a exposição o meu esforço deve-se concentrar de preferência em compreender da melhor maneira possível o ponto de vista do expositor. Se há críticas contra, pontos em que discordo, anotá-los silenciosamente no papel e guardá-los para a discussão.
Depois da exposição o expositor pergunta aos ouvintes se restou alguns pontos da exposição que não ficaram claros.
5.2.10 A discussão
Depois da exposição e depois de o expositor ter esclarecido os pontos não bem entendidos da sua exposição, entro na discussão.
É de grande importância, na discussão, evitar debates descontrolados. Que todos não devem falar ao mesmo tempo é evidente. Em geral, nesse ponto não há problemas, pois a educação e o bom senso nos fazem evitar essa falha.
Mas há um ponto essencial muito negligenciado, a saber, o de evitar uma discussão dispersiva em relação ao tema. Quando por exemplo dois estudantes estão discutindo. A discussão está seguindo um fio, uma direção de pensamento. Os ouvintes não seguem esse fio, porque se “desligaram” ou intervêm com objeções que nada têm a ver com o fio do pensamento em discussão. Tudo isso descontrola completamente a discussão. Os ouvintes devem pois seguir o fio da discussão e então julgar: vale a pena ir nessa direção ou não?
Se vale a pena, então as intervenções devem ser no sentido de contribuir no esclarecimento e aprofundamento da questão, na direção em que está caminhando a discussão. Antes de intervir com objeções, portanto, examinar a mim mesmo para ver se não estou querendo fazer objeções a partir de uma posição que está fora do assunto atualmente em discussão.
Mas uma discussão pode seguir um fio de pensamento que em vez de progredir ser afasta do tema. Então os ouvintes devem intervir e chamar a atenção para o desvio da discussão, do tema.
Recordar sempre de novo que a discussão deve crescer no pensamento, contribuir para andar, aprofundar, esclarecer. Não ficar na simples troca de opinião. Não repetir, pois, sempre de novo as mesmas objeções, as mesmas explicações que o outro já deu, a não ser que eu queira insistir num ponto, porque está se correndo demais na discussão, sem aprofundar o assunto.
Aqui algumas sugestões para a discussão:
– A discussão no fundo deve ter o movimento de um diálogo. Uma espécie de jogo de ping-pong para o esclarecimento mútuo.
– A única medida válida nesse jogo é a evidência. Vence quem consegue mostrar mais a própria realidade. Mostrar, porém, não é um simples afirmar. E, muitas vezes, ocultar é a única maneira de mostrar.
– Ouvir atentamente o outro para ver se consigo colocar-me na sua perspectiva e entrar na sua pele.
– Tentar ver aquilo que o outro parece estar vendo.
– Não se fixar fanaticamente na literalidade da expressão do outro. Pois pode ser que o outro tenha uma boa intuição, mas não sabe se expressar. Atrás das palavras do outro ver a sua intenção.
– Não opor o meu juízo contra o juízo do outro. Mas tentar medir a mim mesmo e o outro dentro do questionamento: será que o outro não está vendo mais do que eu?
– Se percebo que o outro vê mais do que eu, ou se percebo que não entendi com precisão o ponto de vista do outro, pedir-lhe esclarecimento e ouvir.
– É muito prático repetir o que o outro disse, com as minhas próprias palavras e pedir-lhe que controle, se o que repito corresponde ao que ele quis dizer antes.
– Se percebo que vejo mais do que o outro, procurar descrever da melhor maneira possível o que vejo e controlar sempre de novo se o que quis dizer saltou também na evidência do outro.
– Não querer convencer o outro, mas sim, mostrar o fenômeno para que o outro veja também.
– Se objeto, pergunto, explico algo ao outro, ter sempre a mim mesmo sob a mira do questionamento: será que o que digo não é uma afirmação dogmática, faltando-me também a evidência concreta da própria realidade.
– Ter sempre como lema: ouvir, ver a realidade, ela mesma. Mas nem sempre, ou quase nunca, o que acho ser real é realidade!
– Cuidar muito na precisão da fala. Falar de qualquer jeito, usar palavras-chave, slogans sem pensar é preguiça mental.
– Fugir do formalismo das palavras: não se iludir com as palavras.
– Ter muita paciência comigo e com os outros, nesse jogo de vai-e-vem da discussão.
Antes de começar a reunião o professor escolhe um coordenador. Mas é bom lembrar sempre de novo que somos todos coordenadores, enquanto contribuímos para o andamento da reunião.
5.2.11 O protocolo
No começo da reunião deve-se determinst o protocolante. O protocolo não deve conter tudo o que se passou na reunião. Ele tem a função de dar continuidade e síntese do problema em questão para a reunião seguinte. Não se trata, portanto, de uma documentação histórica dos fatos. Não é necessário registrar o que o expositor apresenta. Mas, se conseguir, é muito útil resumir em poucas palavras os pensamentos centrais da exposição.
O importante é registrar a discussão. Mas só devem ser registrados:
– problemas novos;
– novos enfoques dos problemas;
– novas tentativas de solução;
– novas sugestões;
– problemas que ficam abertos;
É importante, sobretudo, apresentar uma síntese do que se disse na reunião, no sentido de mostrar um fio crescente na compreensão do tema geral do seminário.
O protocolante deve elaborar um pequeno protocolo, isto é, exposição para ser lida no início da reunião seguinte. No máximo uma exposição de 5 a 10 minutos. Tem a função de relembrar o assunto da reunião passada na sua problemática e dar continuidade às reuniões. É um trabalho muito difícil, e, por isso, o protocolante deve gastar um bom tempo para elaborar o protocolo.
Seria ideal se cada participante do seminário elaborasse uma exposição daquilo que estudou e pesquisou e fizesse um protocolo.
Os trabalhos escritos, juntamente com os protocolos, serão então arquivados e postos à disposição dos outros seminários para fomentar a mútua inspiração.
6 A LEITURA
No estudo superior de filosofia, a leitura é uma atividade elementar e básica do nosso trabalho profissional. No entanto, talvez por ser elementar e básica seja uma atividade difícil de ser exercida. Exige-se, portanto, o trabalho da leitura.
Como, pois, fazer a leitura?
Para fazer a leitura é necessário pegar o livro. Pegar o livro não é apenas estabelecer um qualquer contato entre uma coisa chamada mão e uma outra coisa chamada livro. Pegar o livro é um contato todo especial. Eu posso, por exemplo, agarrar o livro com as duas mãos e dar-lhe uma mordida. Com isso ainda não peguei o livro. Pegar o livro para fazer a leitura significa certamente segurá-lo, agarrá-lo, tocá-lo com as mãos. Mas esse sentido físico de pegar está assumido por um sentido concreto humano específico de pegar. E, ao pegar o livro para a leitura, o que importa é esse sentido concreto humano específico de pegar.
Quando dizemos “é necessário pegar o livro”, a palavra pegar evoca aquele sentido que nela está contido quando exclamamos: Meu amigo, agora sim, te peguei! A exclamação pode supor diversas situações. Talvez ando, há muito tempo, atrás do amigo para cobrar dele uma dívida; talvez o surpreendi numa fossa, a ele que me intrigava por estar sempre alegre e jamais triste; pode ser que eu o convenci de uma idéia, depois de muito argumentar etc. Mas, seja qual for a situação em que se dê essa exclamação, ela nos indica o pegar como um contato bem concreto de afeição do interesse. “Te peguei” não tem a indiferença abstrata de uma ação física do contato de uma coisa com a outra. É muito mais. É diferente. É um contato de afeição do interesse. É nesse sentido concreto humano que o camponês pega a enxada; o piloto de fórmula I, o volante; o sacerdote, o cálice; a mãe, a fralda; o esfaimado, o pão; o moribundo, o crucifixo; Romeu, a mão de Julieta etc.
Pegar o livro é, portanto, um fazer movido por todo um mundo de afeição do interesse. Se pegar o livro é tudo isso, então o que significa para mim a afirmação: para fazer a leitura, é necessário pegar o livro?
A minha dificuldade no estudo superior de filosofia é pegar no livro. Pegar no livro é ser pego por afeição de todo um mundo do interesse, afeição essa que me faz pegar o livro como as mãos trêmulas do sedento pegam o copo de água salvadora. Portanto, a condição da possibilidade da leitura não é a capacidade de manejar o alfabeto. Antes, é a afeição do interesse do analfabeto, a sede e a fome de pegar, com ambas as mãos do não-saber reverente, o livro. Sem essa afeição do interesse não podemos ler. Sem essa afeição do interesse não pegamos o livro, apenas o tocamos na indiferença do consumidor, cheio de letras mortas.
Estar cheios de letras mortas é nossa situação hoje. Vivemos saturados de livros. A saturação, no entanto, aparece mais lá, onde o nosso saber engole tudo, lê tudo, sempre mais e mais em quantidade, sem poder demorar-se na acolhida de um questionamento simples e bem experimentado. É que perdemos o sentido para o elementar. Para poder ler é necessário, pois, recuperar o sentido para o elementar.
Na recuperação do elementar devemos ser corporais. Na corporaridade do contato com o livro, voltemos talvez elementarmente à afeição do livro. Por isso, antes de iniciar a leitura, pegar do livro, tateá-lo, olhá-lo de todos os lados, cheirá-lo, experimentar folheá-lo, contemplar os tipos de letras, a qualidade das folhas etc., enfim: criar a proximidade corporal com o livro. Essa familiaridade de contato corporal com o livro é útil, pois a nossa tendência é de colocar-nos reticentes diante do livro na estranha opacidade vazia do usual sempre já conhecido.
Depois, folhear o livro e tentar aproximá-lo de mim, tomando suas folhas sob o tato dos meus olhos. Passar a vista no índice, procurando ver a estrutura da divisão do conteúdo, os capítulos, os títulos dos assuntos anunciados. Folhear os capítulos e passear com a vista sobre as frases ali expostas.
Depois dessa aproximação, ler de novo o índice. Agora, porém com um olhar mais severo, tentando fixar a divisão e a subdivisão do livro em secções, capítulos, subcapítulos, parágrafos, procurando descobrir o fio lógico da divisão, isto é, a razão da divisão. Só então começar a ler, capítulo por capítulo, frase por frase, o livro. Ler lentamente, como que tateando, como que me enroscando, me tropeçando nas palavras, como que demorando nelas. Ler como se no mundo só existisse este livro, este capítulo, esta página, esta frase. Deixar então vir a mim idéias, emoções, perguntas, dúvidas. Sentir bem os trechos estranhos, sentir o obscuro do que não entendo. No entanto, não divagar. Voltar sempre de novo ao elementar corporal da letra, ali escrita.
Assim, pegamos o livro. No entanto, não pegamos o livro como pegamos um pedaço de queijo, pois o que buscamos, em pegando o livro, não é uma coisa.
Mas, então, o que é isto que buscamos, em pegando o livro?
É a compreensão. Compreensão de quê? Do que diz o livro. O que diz o livro? Depende do livro. Mas atenção! O livro é uma coisa que me diz alguma coisa?! Sim: o livro diz! Fala!
Como diz? Como fala?
Por meio de discursos fixados por escrito. Temos, pois, diante de nós letras que se compõem em palavra. Palavras se compõem em enunciação. Enunciações se compõem em oração. Palavras, enunciações e orações são signos escritos. Signos escritos são coisas. Coisas, feitas de tinta preta sobre um fundo branco, chamado papel. O que faz essas coisas pretas sobre fundo branco serem signos é a referência que essas coisas tem a alguma coisa diferente delas. Os signos nos remetem adiante para uma outra coisa.
Quando vemos as letras escritas em preto sobre o branco, a nossa atenção não fica parada nessas coisas pretas, feitas de tinta. Logo embarca no movimento de referência que nos leva adiante. Adiante, para onde?
A nossa tendência irrefletida é a de responder: para as coisas, para a realidade. Depois, pensando melhor, respondemos: para as idéias que indicam as coisas, a realidade. Assim, as letras, formando signos em diferentes combinações, palavra, enunciação e oração, indicam as idéias. As idéias podem se formar como conceito, juízo e discurso. A palavra indica o conceito; a enunciação, o juízo; a oração, o discurso. As idéias são imagens mentais da realidade. Elas indicam as coisas da realidade.
Temos, pois, três coisas ou conjuntos de coisas, um indicando o outro? As letras ou os signos como coisas escritas, indicando as idéias; as idéias como coisa mental, indicando as coisas da realidade?
Aqui, não é o lugar para tematizarmos essa questão. Examinemos a questão apenas o suficiente para mostrar um preconceito que nos pode dificultar a leitura.
Que preconceito é esse que nos dificulta a leitura? O de imaginarmos os signos, as idéias e as coisas da realidade como coisa!
Mas como? A coisa da realidade, ao menos ela, não é coisa? Não. Por que não? Não está ali diante de mim, concreta e visível?
Mas que coisa é essa, a concretude? Que coisa é essa, a visibilidade? Que coisa é essa que faz com que a coisa seja realidade, a coisidade?
Não disse já de ante-mão: coisa? A coisa é realidade? Ou não é antes uma idéia? Se com calma examinarmos o nosso saber, percebemos que tudo é idéia no nosso saber. Quando dizemos que a idéia não é real, não é coisa, já estamos operando em idéias “idéia”, “não é”, “real” e “coisa”. Tudo isso significa: o que chamamos de realidade não é aquilo que pensamos sê-lo. O que é? Não sabemos!
A leitura, se é boa, nos deve conduzir para esse não-saber. Mas, para que a leitura possa bem começar, já pressupõe que de alguma forma estejamos nesse não-saber. E como estaremos de alguma forma nesse não saber? Em considerando que tudo que sabemos são idéias.
Isto significa: os signos escritos em preto sobre branco nas folhas do livro nos remetem às idéias. Mas as idéias não nos remetem às coisas da realidade como nós estamos imaginando a coisa, a realidade, pois esta é na realidade uma idéia.
Mas, ao lermos o livro, não buscamos compreender a realidade? Não como nós imaginamos a realidade. Mas que realidade buscamos, queremos compreender? A realidade do jogo de idéias. Que realidade é essa, a do jogo? O próprio jogo. Mas para que afinal jogamos o próprio jogo das idéias? Para apreender o sentido unitário que comanda, relaciona, ordena e movimenta as idéias numa totalidade coerente e concreta. Uma tal totalidade coerente de idéias se chama: mundo. O jogo de idéias é pois a expressão do mundo. O que vem à fala na expressão do mundo? A vida, a realidade.
A realidade, isto é, a vida não é portanto nenhuma coisa. Para quem vê tudo como coisa, a vida é nada. Ela só é, cada vez diferente, mas sempre mais na compreensão crescente, nos diferentes jogos de idéias.
Mas, para compreender a vida no jogo de idéias, é necessário jogar o jogo, isto é, jogar-se no jogo, à maneira de um jogador de xadrez que, em jogando o xadrez, começa a compreender a vida do xadrez.
Cada jogo tem a sua regra. Cada livro tem a sua regra de jogo: são as palavras e as combinações de palavras que ali estão. Mas é na medida em que entro na regra do jogo e começo a mexer as peças que constituem o jogo que começo a compreender o sentido unitário da vida. Da vida que comanda o jogo do livro que estou lendo.
Assim, de jogo em jogo, de leitura em leitura, de livro em livro, cresce em mim a experiência para com a fala da vida, a fala da realidade que se expressa no jogo de idéias como todo um mundo de significação, unificando num sentido fundamental. E tudo que nos importa fundamentalmente, como por exemplo liberdade, felicidade, verdade, realização humana, pecado, mal, história, evangelho, Jesus Cristo, São Francisco, Deus, amor, encontro, decisão etc., é uma outra palavra, cada vez diferente para dizer a vida, de tal sorte que também vem à fala, expressando-se no jogo de idéias.
Se é assim, então ler não é uma atividade alienada de um acadêmico longe da vida, mas sim a própria atividade pela qual acolho o vir-à-fala da própria vida. Esse alerta do jogo em que, apreensivo, estou atento na ausculta da vida, que aparece como fala, é o sentido original grego da palavra idéia e teoria.
Do que dissemos até aqui pode-se tirar uma importante observação acerca da leitura: é necessário ler cada livro como se cada vez jogasse um jogo diferente.
Certamente, em diferentes livros, ocorrem sempre de novo as mesmas palavras. No entanto, essas palavras não tem significação em si, independente das outras palavras que constituem a rede da totalidade do jogo chamado “este livro”. Por isso, não basta saber a significação de uma palavra que está no dicionário. Pois, conforme a sua posição no jogo de um livro, a palavra tem significação toda diferente. Mas até mesmo dentro de um mesmo jogo, isto é, dentro do mesmo livro, conforme a posição da palavra no processo do jogo, varia a sua significação.
E aqui surge uma questão que atinge o ponto crucial de toda leitura: a leitura de um livro é sempre e cada vez sair de um jogo para entrar num outro jogo; e para sair de um jogo, é necessário antes entrar seriamente no próprio jogo, do qual se quer sair.
Como entender isso? É que, quando pego do livro para ler, isto é, para jogar o jogo deste livro, eu já estou num certo jogo, no jogo do meu saber, sem saber que o meu saber é apenas um jogo.
Antes de mais nada, sabemos um mundo de coisas: o título do livro; a importância do livro; quem escreveu; de que se trata no livro; o que é o autor, a autoria; o que é ler; o que é o alfabeto, letra, conceito, discurso; o que sou eu; o que é a realidade etc. Sabemos também o que as palavras significam, o que é o significado das palavras tiradas do dicionário. É por isso que conseguimos ler um livro. Esse nosso saber é um jogo. Jogo do nosso usual cotidiano.
Ao pegar o livro para ler, eu o faço de tal modo que continuo jogando esse jogo. O livro e a leitura entra dentro da regra desse meu jogo, transformando-se numa peça do jogo usual cotidiano.
Mas, desse jeito, compreendemos o livro? Compreender o livro não é entrar no jogo de idéias do livro? Mas existe um outro jeito de ler o livro? O livro só é, quando o leio. E quando o leio, sempre o leio a partir e dentro do meu saber usual e cotidiano.
Isto significa que ao ler o livro sempre o leio na medida da minha possibilidade? Que, no fundo, leio a mim mesmo, projetado naquilo que entendo do livro? Que ao ler o livro não saio de mim mesmo? Que, em lendo o livro, estou mexendo a mim mesmo, agitando todo um mundo de idéias que constituem o jogo do meu saber, da minha existência? Que ao ler o livro, estou é entrando cada vez mais em mim mesmo? Sim.
Mas, então, para que ler o livro? Para jogar bem o jogo do meu saber, o jogo da minha existência usual e cotidiana. O que significa, porém, jogar bem o jogo? Significa agitar-me no mundo de idéias que constituem o jogo do meu saber, para experimentar o recolhimento na vida, na realidade que me fala da interioridade dessa agitação. Não diz o oráculo de Delfos, sabiamente: gnõthi seautón (Conhece-te a ti mesmo)? Não diz Santo Agostinho: Noli foras ire, in te redi, in interiore homine habitat veritas?
Mas para que me agitar no mundo de idéias que constituem o jogo do meu saber? Para liqüidificar, quebrar a fixidez da pretensão do meu saber que confunde palavras e idéias com a realidade, com a vida, sem poder ver a realidade, a vida do meu próprio jogo.
Na medida em que, na leitura, me agito no jogo do meu saber, começo a sentir que o meu saber é um jogo. Em jogando esse um jogo, começo a sentir que para além desse meu jogo há outros jogos bem diferentes, diferentes em dimensão, diferentes em profundidade, que constituem diferentes níveis da minha própria interioridade. Ao ler o livro, o livro é sempre o espelho daquilo que eu entendo dele. No entanto, esse entendimento, que é o meu saber usual e cotidiano, não consegue entender que o não saber, o não entender é o anúncio de outros níveis mais profundos de mim mesmo. Na medida em que o meu saber usual e cotidiano deixa-se afetar e provocar por esses níveis desconhecidos da minha interioridade, aumenta em mim, o vigor de percepção. E na medida em que aumenta o vigor de percepção, se me torna possível deixar-me embalar pela agitação de um outro jogo e assim abrir-me à fala da vida, sempre nova, sempre a mesma, sempre mais profunda e exigente na sua evocação.
Depois dessa reflexão, vamos dar algumas sugestões referentes ao fazer de uma leitura.
– Abordar o texto do livro numa atitude de suspensão do dogmatismo do meu saber. Suspensão do dogmatismo do meu saber não significa negar o que sei. Eu só entendo do livro o que sei. O meu saber é o ponto de partida, donde abordo o livro. Por isso deixar que o texto desperte em mim significações como eu as tenho usualmente. Tomar esse meu saber a sério. No entanto, não tomar esse saber como se fosse a última palavra. Não confundir o meu saber com a realidade. Tomá-lo a sério, mas deixá-lo em suspensão, em estado provisório, para uma eventual correção, na medida em que avanço na leitura.
– Em primeiro lugar, ler o texto no seu teor literal. Examinar todas as palavras, a sintaxe, o estilo, o uso de verbos, substantivos, adjetivos, advérbios, preposições e conjunções; tentar entender o texto a partir do cabedal comum do vocabulário lexicográfico. Usar muito o dicionário. Primeiro, fazer bem esse trabalho, pois, hoje essa abordagem inicial literal e primária do texto é muito negligenciada. Recordar tudo o que aprendi no curso secundário sobre sintaxe.
Ao ler assim literalmente uma ou mais vezes o texto, começa-se a perceber um certo conjunto de idéias ou de conceitos que, por assim dizer, forma o esqueleto do trecho. A compreensão ainda é vaga, formal, mas já é ordenada.
Sentir assim uma certa ordem de idéias no que se lê é sinal de que eu, a partir do meu pretenso saber, estou tentando ordenar o que, na leitura, vem surgindo em mim de emoções, idéias, evocações e questionamentos.
Mas ao assim tentar ordenar a realidade despertada em mim pela leitura, percebo logo que o texto me faz resistência.
A palavra que na primeira enunciação “a” do texto eu entendi de um modo, ao ocorrer de novo numa outra enunciação “b” já não funciona na mesma significação antes ocorrida na primeira enunciação “a”. Não abandonar sem mais nem menos a significação da palavra que entendi na primeira enunciação “a”. Tentar ver, se a significação da mesma palavra que agora ocorre numa outra enunciação “b” não é uma ampliação, uma diferenciação, um aspecto mais profundo, mais vasto, mais oculto da significação que ocorreu na primeira enunciação “a”. Depois de fazer isso, tentar esquecer completamente a primeira enunciação “a” e experimentar ler a enunciação “b” como se fosse a primeira enunciação que eu leio. Tentar extrair a significação daquela palavra no contexto da enunciação “b”. Agora, a partir da significação daquela palavra na enunciação “b”, dirigir-me à enunciação “a” e ver se ali a significação daquela palavra não é uma ampliação, uma diferenciação, um aspecto mais profundo, mais vasto, mais oculto da significação que ocorreu na enunciação “b”.
Nesse vai-e-vem comparativo pode surgir uma terceira significação que assume e integre numa crescente unidade da riqueza de conteúdo a significação da palavra na enunciação “a” e a significação da mesma palavra na enunciação “b”.
Assim, nesse vai-e-vem sempre crescente da complexificação na significação da mesma palavra começa a se formar um núcleo significativo prenhe de significações unificadas. Um tal núcleo significativo se chama categoria.
Quando descubro num texto várias categorias, portanto, vários núcleos significativos, aplico o processo comparativo acima mencionado de vai-e-vem entre as diversas significações da palavra, agora às categorias. Se a leitura for bem feita, há de surgir desse movimento um novo núcleo significativo fundamental que subsume e integra os conteúdos das categorias numa única intuição radical, a partir de onde todas as idéias recebem a claridade da sua significação. Essa intuição, no entanto, é antes um silenciar compacto e recolhido de reverência ante a face do abismo inesgotável de evocação do mistério da vida, que me colhe na sua profundidade.
Ser colhido assim na evocação do abismo da vida é o sentido original da palavra légein, da qual deriva a palavra ler, e leitura.
Por ser a leitura o silenciar radical, é necessário ao ler, fechar-me na cela do recolhimento monacal, como se estivesse numa solidão absoluta. É necessário, pois, exercitar-me em suportar com alegria a solidão do recolhimento da leitura. O amor à solidão é a fonte inter-lectual de uma intuição viva, na qual me é dado o verdadeiro vigor para a comunidade universal. Pois há comunidade somente quando deixo-me colher na minha interioridade radical pelo vigor unificante do abismo da vida.
7 O DIÁLOGO
Hoje, para nós, o diálogo está em função do poder. Por diálogo costumamos entender a discussão pela qual queremos convencer o outro, ou ser convencidos pelo outro, a aceitar o que sabemos e queremos, o que é certo e deve ser. É nesse sentido que ouvimos dizer e dizemos: para resolver esse impasse é necessário dialogar.
7.1 A DISCUSSÃO
Na discussão partimos de diferentes posições, mas queremos que no fim as diferenças desapareçam para haver unanimidade numa posição comum, aceita igualmente por todos. Por isso, na discussão bem feita, sempre há no fim uma solução definida, uma combinação pela qual se entra em acordo sobre um ponto de vista, uma tese, uma norma comum que recebe então o nome de objetivo.
Para que possa haver bom andamento na discussão, é necessário, antes de discutir, estabelecer uma plataforma de discussão, sobre a qual se possa debater as diferenças de posições.
Portanto, na discussão, há sempre pressuposições preestabelecidas intocáveis, expressa ou tacitamente. Em geral, na discussão, essas pressuposições funcionam como idéias ou conceitos evidentes que todo mundo compreende e deve aceitar. A evidência de tais conceitos entra em pane na discussão, quando se reflete mais profunda e tematicamente acerca deles. Arma-se então confusão de conceitos, a discussão discorre em debates e se diz então que uma tal discussão é teorética e que ela não leva a nenhum fim prático, útil, positivo e concreto.
No entanto, se examinarmos bem o modo de ser da discussão, a confusão já existia na base da discussão. Não é o questionamento da reflexão que cria a confusão. O questionamento apenas traz à luz a indeterminação, isto é, a confusão latente na base. Se os debates desandam em discursos infrutíferos e inúteis é porque os conceitos pressupostos como a plataforma da discussão são, na realidade, vagos e indeterminados, sem a fundamentação essencial con-creta. Para que a indeterminação confusa da base pressuposta não venha à tona, é necessário que haja uma imposição. Imposição que afirma: é necessário não tocar em certos pontos básicos, para que possamos levar adiante a discussão; do contrário, jamais chegaremos a um resultado comum.
Poder-se-ia até dizer: na discussão tudo é permitido, apenas é proibido dialogar acerca daquilo que constitui a possibilidade da discussão, a base comum, a obrigação de se chegar a um resultado, a um objetivo comum. O que há, portanto, na discussão é combinação, conscientização de uma base comum que desde o começo todo mundo já deve ter aceito como a condição de uma discussão.
Geralmente, hoje, quando falamos de diálogo, não usamos essa palavra no seu sentido rigorosamente originário, mas sim no sentido de combinação imposta. O mesmo fazemos quando exigimos do outro um diálogo. A exigência do diálogo é sintoma de que entendemos o diálogo como combinação imposta, portanto, combinação do poder.
A discussão é importante no estudo superior de filosofia. Por isso, é necessário aprender a discutir bem, com exatidão e rigor.
De como discutir, já falamos, quando falamos do seminário, embora sem fazer uma distinção nítida entre a discussão e o diálogo propriamente dito.
A importância da discussão, no entanto, não está no poder de derrotar e convencer o outro, para levá-lo a concordar numa única e igual posição. A sua importância está antes nisso que ela nos mostra a indeterminação, a confusão dos conceitos pressupostos e impostos como base na discussão. Mas para que se dê essa descoberta da base na sua indeterminação é necessário antes acionar bem, com rigor, o vai-e-vem da própria discussão, onde as posições começam a atrair a sua pertinência à base comum não alisada e confusa.
Há uma forma de discussão usada na escola da Idade Média que se mostra muito eficiente em ordenar as nossas idéias para uma boa discussão. Essa forma era usada nas assim chamadas quaestiones disputatae (questões disputadas), onde os dois contundentes se atracavam numa espécie de torneio ou duelo intelectual. Ela se chama utrum.
Utrum significa uma interrogação que pergunta: porventura, se por acaso, será que é ou não é assim?
Daremos a seguir mais ou menos um esquema dessa forma de discussão.
– Utrum: a discussão começa colocando em título de interrogação a tese, iniciando-se com a palavra utrum, por exemplo, Ultrum, isto é, se porventura Deus existe ou não?
– Status quaestionis: em seguida, vem o status quaestionis (o estado da questão) que é a explicação da tese, ou melhor a explicação da questão, isto é, do que se busca na tese, dos termos que ali ocorrem, demarcando-se assim o âmbito e o nível onde se dá a discussão. Dá-se, pois, o estado da questão. Por exemplo, a questão aqui discutida é uma questão que não pertence à fé. Portanto, não se trata aqui de uma questão da filosofia. Pressupõe como a condição da discussão apenas a luz da razão. Trata-se, pois, de uma questão filosófica.
– Videtur quod sic: a seguir, afirma-se videtur quod sic, isto é, parece que sim. Faz-se então um levantamento dos argumentos a favor da tese.
– Videtur quod non: vem a seguir a afirmação videtur quod non, isto é, parece que não. Faz-se o levantamento dos argumentos contra a tese.
– Respondeo dicendum: depois de colocar os argumentos a favor e contra, começa-se a expor o que se deve dizer, respondendo à pergunta Utrum da tese. Respondeo dicendum significa: coloco-me à disposição responsável ao que se deve dizer da tese. É o corpo da discussão, onde se examinam e se pesam os argumentos a favor e contra a tese, de tal sorte que se chegue numa reflexão à conclusão, a favor ou contra a tese.
Por fim, a partir da decisão tomada na reflexão, a favor ou contra a tese, a discussão volta-se para os argumentos arrolados no videtur quod sic e videtur quod non, criticando-os: confirmá-los, diferenciá-los, purificá-los, se os argumentos forem a favor da conclusão do respondeo dicendum; rejeitá-los, refutá-los, distingui-los, se os argumentos forem contra a conclusão do respondeo dicendum.
7.2 A MONOGRAFIA
Em qualquer faculdade ou universidade exige-se, hoje, para a validade do curso, que cada estudante, sob a orientação de um professor a sua escolha, escreva uma monografia. A monografia é um trabalho escrito, de formato científico, acerca de um tema dentro da matéria que escolheu para fazer a monografia.
A estrutura básica da monografia é no fundo a estrutura de utrum, embora não nessa forma tão esquematizada, acima mencionada.
Como fazer a monografia, depende muito da orientação de cada professor. No entanto, se o estudante, durante o seu estudo, aprendeu bem o modo de fazer a exposição do trabalho do seminário e essa forma de discussão do utrum, conseguirá compor com facilidade uma monografia.
É muito útil o estudante, durante o tempo do estudo, examinar as monografias publicadas como monografia e estudar o modo como trabalhar numa monografia, através da análise da estrutura da sua construção.
7.3 O DIÁLOGO PROPRIAMENTE DITO
O diálogo tem um modo de ser diferente da discussão. No entanto, uma discussão bem feita, nos leva à necessidade do diálogo.
Para a mentalidade e para o interesse da discussão que não percebe a indeterminação da sua pressuposição, o diálogo não serve para nada, é inútil, imprático, não leva a nenhum resultado positivo, só serve para confundir, é perda de tempo. Para que serve então o diálogo? Para nada.
O que acontece, porém, comigo, à existência utilitarista da discussão, ao entrar em contato com o nada?
Pode ser que a-corde na percepção da inutilidade da minha colocação que deixa de ser útil à vida, por viver apenas quando me utilizo da vida.
Mas o que é o diálogo? Existe um pequeno texto medieval que pode orientar a compreensão da essência do diálogo. O texto é de São Francisco de Assis:
E todos os irmãos se guardem de caluniar a alguém. Não façam contendas no nível das palavras. Antes, apenas se empenhem em reter o silêncio, na medida em que Deus lhes alargar o coração com a sua jovialidade.
Não briguem entre si nem com outros, mas cuidem de antemão responder dizendo: somos servos inúteis. Não se irritem, não julguem, não condenem, não considerem nos outros nem se quer os mínimos pecados. Antes, apenas mais e mais se voltem à própria identidade no mordente de um empenho sofrido na doação total de toda a sua alma” (Silveira, 1983, p. 79-80).
A condição fundamental para que se possa dar o diálogo é o silêncio, a capacidade de silenciar. Silenciar não é fechar a boca. Pois em fechando a boca, posso estar gritando um protesto de rejeição, na atitude indiferente ao outro ou na agressão de uma censura. E posso estar falando, mas num recolhimento tal que as palavras me caem da boca como pesados pingos de silêncio.
Silêncio é modo de ser. Para haver o silêncio nesse sentido é necessário que esteja livre de desejos de dominar, da vontade de ter razão, da precipitação em ter vez, da convicção de superioridade, do saber de antemão, de preconceitos, de gavetas de informações, do sentimento de inferioridade, do medo de perder a posição, do medo de não ser reconhecido, em suma, eu devo estar livre no coração e no intelecto, da ocupação, do enchimento do próprio eu.
Mas, para que se dê o silêncio vigoroso, não basta estar livre de tudo isso. É necessário concentrar serena e pacientemente todo o meu ser no recolhimento de auscultar, para o que der e vier, como o servo que inclina o seu ouvido e se dispõe: fala Senhor que o teu servo escuta!
Silêncio é, pois, ser todo ouvido no recolhimento, na ausculta de uma precisão límpida de acolhimento. Para que tudo isso? Para não haver interferência do meu próprio eu, quando ressoar no meu ouvido a diferença do outro.
Um tal ouvir, qual instrumento de alta fidelidade na precisão, capta as mínimas nuances da diferença do outro. Não ouve só as palavras. Ouve a modulação da voz que pode estar dizendo algo bem diferente do que dizem as palavras imediatamente. Ouve nas palavras o sentido oculto que o outro não consegue ou não quer dizer. Esse silêncio não só capta com recato o que diz o outro. Capta também o mistério insondável da interioridade da pessoa humana, do destino humano, da vida, e silencia com pudor e reverência diante do mistério, deixando o mistério ser na sua liberdade. Uma tal liberdade é a jovialidade de Deus que alarga o coração.
Há poluições acústicas, usualmente dominantes que impedem o recolhimento da audição no silêncio. O texto enumera algumas delas:
A calúnia: calunio quando atribuo ao outro a falta que ele não cometeu. No entanto, há também uma espécie de calúnia numa discussão. A calúnia na discussão consiste em atribuir ao outro uma posição que ele não defende, isto é, em colocar o outro numa posição em que ele não se acha. Essa atitude de calúnia pode acontecer não só em relação aos homens, mas também em relação aos acontecimentos. Por falta de silêncio interior atribuo aos acontecimentos um sentido que eles não têm é uma espécie de calúnia contra Deus, a blasfêmia.
Contendas no nível das palavras: contendas no nível das palavras é a ocupação com discussões vãs.
Ocupar-se significa encher o meu ser de tal sorte que não sobre mais o espaço de jogo, não há mais lugar livre para poder ouvir, poder ressoar. Um tambor ocupado não repercute mais.
Discussão vã é quando cada qual está cheio de palavras mortas, posicionadas, de tal maneira que não há mais a troca recíproca de comunicação.
Palavras mortas posicionadas são a expressão de uma posição fixa da minha existência, onde coloco a segurança do meu próprio eu.
Para haver a troca, a comunicação, cada qual deve poder movimentar a sua posição, ceder, dar lugar a, por em questionamento a si mesmo, vivificar suas palavras.
Paradoxalmente, quando há contendas no nível das palavras, isto é, quando há choque irredutível de duas posições em oposição, as duas posições se acham no mesmo nível de compreensão, embora em lugares opostos e extremos. Assim, tanto um que diz sim como o outro que diz não, estão de antemão ocupados pela posição fixa comum que nenhum dos dois põe em questão. Por exemplo, X diz que fez tudo para dialogar com Y. Y diz que X nada fez para dialogar com ele. Mas tanto X como Y já estão ocupados e fixos na mesma fixação da palavra “diálogo” e da palavra “fazer tudo para o outro”. Estão também fixos na mesma exigência da posição de requerer do outro o dever de retribuir o esforço que a gente faz pelo outro.
O texto de São Francisco insinua: uma tal paralisação do pensar é vã, pois, não caminha. Para se caminhar é necessário abandonar a posição e a fixação das palavras, para se dispor à atitude do servo inútil, isto é, do servo que não faz a reivindicação da sua posição, do seu direito, e que se abre jovial e acolhedor ao serviço da verdade, não como a gente gostaria que ela fosse, mas como a vida me dita no seu ad-vir.
Quase sempre na contenda, quero ter razão, quero provar que tenho razão. Mas, na vida, a realidade é tal que de nada serve para o crescimento na acolhida da vida e da sua verdade, do seu desvelamento, eu ter razão!…
As contendas no nível das palavras são agressão em palavras, o homicídio. Toda e qualquer agressão polui a audição no silêncio do recolhimento. Pois, ou me endureço na posição de defesa, ou obrigo o outro a se fechar na sua própria posição. Isso tudo não deixa a mim mesmo e ao outro viver na cordialidade livre da vida. É uma espécie de homicídio, esse não deixar viver o ser na cordialidade da vida.
A irritação: a irritação não é propriamente a explosão inocente de uma indignação vigorosa. Irritação não tem a inocência do vigor de uma indignação cordial. É antes uma espécie de exacerbação, diria, neurótica de sensibilidade ferida. Como tal é sintoma de fraqueza e falta de vigor.
Há na irritação a agressão e o espírito de vingança de quem defende o seu pequeno eu que se sente ameaçado ou se sente impaciente, porque o outro, a Realidade, a Vida não é como gostaria que fosse.
Para que aumente o vigor de audiência serena, recolhida, atenta e acolhedora, é necessário pois um trabalho lento, tenaz e constante em mim mesmo, sem olhar, julgar os outros. É necessário a concentração de pouca força que tenho, para trabalhar em cheio em mim mesmo. E, é na medida em que eu voltar à identidade profunda de mim mesmo, no empenho mordente e sofrido de uma longa caminhada, que me disponho ao silêncio acolhedor, no qual me é dada a clareza do olhar, a afinação da audição, para poder em verdade julgar e considerar o outro na sua diferença.
Como é, pois, o ser do diálogo? Para descrevê-lo, tomemos o exemplo acima mencionado: X diz que fez tudo para dialogar com Y, mas digamos que Y se fechou completamente e não aceita o diálogo, nem mais fala com X.
Como se manifesta o ser do diálogo numa real situação? Se houver o silêncio recolhido de audição, X há de ouvir a vida, em situação, lhe colocar as seguintes perguntas:
– Você diz que Y não se comunica, não fala, não dialoga com você. Mas não está percebendo que a mudez, o fechamento de Y está falando, sim está gritando de tal maneira, que você fica perturbado? Não percebe que o não falar, o não dialogar é também um modo de falar? Falar que não é de Y, mas sim a fala da vida que fala bem alto através da mudez de Y? A sua atitude diante da vida, como é? Você não é uma pessoa superficial que só ouve, pensa, sente o que está diante de si materialmente, sem perceber que, em tudo, a vida está nos comunicando um sentido?
– Você não está colocando Y num lugar em que ele não está, você não o está caluniando? Não é assim que você está acostumado a só ouvir o que se fala expressamente, e jamais sensibilizou o seu ouvir ao que está silenciado? Talvez Y seja uma pessoa introvertida. Não é assim que você no seu “fiz tudo” jamais respeitou e acolheu esse modo de ser diferente de Y?
– Você diz que fez tudo. Você já se ouviu, em dizendo isso? O que está realmente dizendo? Não está dizendo: eu já fiz o meu dever, agora exijo que ele, o Y também faça o seu dever? Ou, eu me empenhei tanto por ele e ele não me retribui o meu favor?
O que aconteceu nessa conversa da vida com X? X está caminhando para dentro dele mesmo, está desvelando, des-cobrindo as posições fixas dentro dele mesmo, vai percebendo essas posições, per-correndo, atravessando as suas próprias pressuposições e ao fazer isso, vai ouvindo o que a vida vai lhe ditando. Esse per-correr a si mesmo para dentro do abismo da própria interioridade, esse movimento é o que o termo grego diá quer exprimir na palavra diá-logo.
E o que se dá nesse per-correr a si mesmo, nesse diá? A percepção de X vai ajuntando, recolhendo a constituição da sua própria interioridade. E, ao assim se recolher, ao assim se ajuntar, ele vai desvelando, vai se colocando à luz diante de si mesmo, vai se abrindo a seus próprios olhos, como ele é.
Esse recolher, esse ajuntar a sua interioridade e, em assim fazendo, ir se desvelando, ir se colocando aberto a seus olhos é o que o verbo grego légein, cujo substantivo é lógos do diá-logo quer significar.
Légein significa originariamente ajuntar, colher, recolher. Légein é, porém, também, o termo, cuja raiz deu origem ao verbo alemão legen, que significa colocar, pôr, no sentido de colocar alguma coisa estendida, aberta, por exemplo, sobre a mesa. Mais tarde légein, lógos começou a significar a fala, o dizer, a palavra, o discurso, justamente porque esse modo de desvelar a interioridade, colocando-se à luz, é a essência da fala: o vir-à-luz de uma coisa.
É na medida em que X assim se dia-loga, se desvela a si mesmo diante de si, de ponta a ponta, isto é, diá, que cresce nele o silêncio de respeito diante do mistério da interioridade abscôndita da sua própria existência. E é só na medida em que cresce em silêncio respeitoso acerca da profundidade de si mesmo, que X começa a ser capaz de fazer justiça à diferença de Y.
Diálogo, portanto, é sempre um caminhar comigo mesmo para dentro de mim.
Mas isto não é ensimesmamento? Não. Pois, em assim caminhando, estou dialogando com a vida. É na medida em que dialogo com a vida que me disponho a poder dialogar com o outro, pois o outro jamais é só aquela coisa que está na minha frente, mas sim a manifestação do mistério da vida que está também no outro como em mim na diferença de cada identidade. Como tal, não há nada que não seja o desafio do diálogo. A própria falta de diálogo do outro é também o desafio que a vida me faz para o diá-logo da experiência no dia-légein.
Mas para assim poder caminhar em tudo, para o vir-à-fala da minha interioridade, cujo fundamento último e profundo é o mistério da vida, é necessário me dispor à caminhada que caminha, não porque o outro caminha, mas caminha na gratuidade livre e generosa dos próprios passos, na medida em que Deus alarga o coração com a sua jovialidade.
Depois desse comentário do texto de São Francisco podemos fazer mais algumas observações acerca do diálogo a título de sugestões para a repetição na reflexão:
– Na discussão há sempre duas ou mais posições diferentes. A tendência da discussão é a de eliminar as diferenças. No diálogo só há uma posição, a minha própria posição. A posição do outro, a diferença do outro jamais aparece como ela é, enquanto eu não perder no diálogo a minha própria posição. Com outras palavras, a posição do outro, a diferença do outro jamais é diferente de mim, jamais é do outro, enquanto não percorrer a minha posição até o fim, no diálogo. Pois o outro, a diferença é apenas a projeção da minha posição.
– Isto significa: no diálogo não se dá o relacionamento entre a minha posição e a do outro, mas sim entre a minha posição e a condição de possibilidade, isto é, a interioridade da minha própria posição. Trata-se pois de um questionamento radical do fundamento da minha própria posição.
– Como, porém, o que chamo de minha posição é a minha própria existência na sua totalidade, o diálogo é o questionamento radical do fundamento da minha existência total.
– Ora, tudo o que sei e posso pertence à minha posição, à totalidade da minha existência. Na medida em que me aprofundo no movimento do diálogo e questiono o fundamento, a condição radical da possibilidade da minha existência total, começo a nada saber, a nada poder. O fundamento da minha existência total vem a mim como nada do silêncio claro do não-saber, do não-poder. Esse não-saber, esse não-poder não é, porém, um não-saber que espera um dia superar o seu não-saber, não é um não-poder que espera um dia superar o seu não-poder. É antes um modo de ser totalmente diferente, o modo de ser da reverência no recolhimento de ausculta.
– Esse modo de ser nada sabe, nada pode. É apenas algo como a quietude serena e clara do silêncio, onde a minha própria posição, a posição do outro, enfim, todas as coisas aparecem, cada qual, na sua diferença como são. Por isso, a tendência do diálogo não é a de eliminar a diferença. Antes, pelo contrário, a sua tendência é a de recuperar, conservar, restituir a cada coisa a sua própria diferença, isto é, a sua própria identidade, no frescor, na nascividade originária da inocência da vida.
– No diálogo caminho comigo mesmo para lá aonde não quero, para lá onde jamais estive, para lá, cujo caminho desconheço. Caminho comigo mesmo, sempre de novo, para lá onde se dá a liberdade da vida, liberdade essa que sempre foi, é e será, sempre de novo a interioridade de mim mesmo, o lugar onde sempre estive.
8 OS EXAMES
Os exames pertencem à imposição do trabalho do estudo. Como fazer, pois, esse trabalho imposto pelo estudo? No entanto, são necessários, realmente, os exames? No estudo superior de filosofia, quem vai responder essa minha pergunta sou eu mesmo.
Digamos que responda com toda a convicção: sim. Digamos que responda com toda a convicção: não. Diga sim, diga não, eu nada disse propriamente de real, enquanto não disser o que é necessário, a necessidade para mim.
A palavra necessário vem do latim e é composto de non e cedo. Non é a negação. Cedo, cessi, cessum, cedere significa: ceder, dar lugar a, retrair, ir (no sentido da expressão “o negócio vai indo”). Necessário significa, portanto, o que não dá lugar, não cede, não recua, não dá passagem, não vai. Daí, o necessário é o que não dá de outro jeito, o que não tem outra possibilidade de ser.
Os exames são necessários nessa acepção acima mencionada? Certamente que não! Mas quem diz: certamente que não? Eu mesmo. A quem o digo? A mim mesmo. Dizer a mim mesmo, porém, significa: responsabilizar-se diante de mim. Isto quer dizer que para mim os exames podem ceder, recuar, deixar de ser? Sim. Mas o que significa esse sim na responsabilidade de mim a mim mesmo?
Significa que eu no estudo consigo trabalhar de tal maneira que os exames podem ser dispensados. Isto significa, por sua vez, que eu na responsabilidade, na real efetividade do trabalho no estudo, tenho uma decisão firme e assumida de tal sorte, que esse meu querer não cede, não recua, não deixa de ser diante de nenhuma dificuldade. Com outras palavras: os exames não me são necessários, porque o estudo se me tornou necessário.
Somente quando o trabalho do estudo se me torna necessário, portanto, se me torna uma necessidade do meu viver, agora e aqui, os exames podem se tornar desnecessários.
Quem acha que os exames não são necessários deve provar no próprio trabalho real do estudo cotidiano que não precisa de exames, porque nele o trabalho do estudo é necessário, isto é, porque ele não pode senão estudar, ou melhor, não pode não estudar.
Não poder senão estudar, não poder não estudar é necessidade. Uma tal necessidade significa: a plenitude do vigor interior da autonomia. Trata-se, pois, de uma força da autonomia que não cede, não recua, não deixa de ser, por mais e maiores dificuldades que tenha de enfrentar.
Se procuro no estudo um crescimento para uma tal força da autonomia, o trabalho do estudo se me torna uma necessidade e a necessidade dos exames um desafio da minha necessidade. Com isso os exames deixam de ser necessários.
Lá onde não há a busca da autonomia, surge a imposição institucional. Com outras palavras, onde o meu querer é fraco na vontade de trabalhar no estudo, surge a necessidade de incentivo exterior chamado exames. Quem provoca, pois, a necessidade da imposição dos exames é a fraqueza do meu próprio querer trabalhar.
Se não quero gostar de trabalhar no estudo, se não me empenho e acho que os exames são desnecessários, eu não sei o que quero, não sei o que digo.
Se eu não quero gostar de trabalhar no estudo, se não me empenho e faço os exames de qualquer jeito, só para passar de ano por sorte, não sei bem o que quero na minha vida.
Se eu não quero gostar de trabalhar no estudo, se não me empenho, mas uso de truques nos exames para enganar o professor e para assim me assegurar da nota suficiente, pode ser que eu me engane a mim mesmo.
Se, porém, quero gostar de trabalhar no estudo, se me empenho, pacientemente, constante e tenazmente, mas não consigo corresponder às exigências dos exames, devo enfrentar esse fracasso aparente como se fosse um desafio para o crescimento na minha vida. Se assim o fizer, correspondendo plenamente ao sentido dos exames e mesmo que não passe de ano, passei bem nos exames da vida. O empenho, se continuado, sempre aparece, vem à luz como vigor do espírito.
Como pois fazer os exames? Existe uma única resposta a essa pergunta: estudando, sempre, constantemente, dedicando-se de todo o coração ao trabalho do estudo.
9 A POESIA DO ESTUDO
“De como estudar” foi o título da preocupação da nossa reflexão. O como do estudar não é uma estrada traçada ou traçável. É antes o próprio crescimento da vida no estudar. Estudar, porém, é querer, a busca do que não se possui para ser.
O querer, a busca do que não se possui para ser, se concretiza no estudo superior de filosofia em diferentes disciplinas escolares que recebem nomes como Introdução à Filosofia, Lógica, Metafísica, Epistemologia, Antropologia, História da Filosofia Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea etc.
O estudar, o querer, busca em todas essas concretizações o que não se possui para ser. O que é isto que buscamos, porque não o possuímos, para ser? O próprio querer do estudo nos responde: é Deus.
Buscamos a Deus? Para possuí-lo? Deus é algo que podemos buscar para possuí-lo? Não. Por que então o buscamos? Para ser. Mas, para ser, não é necessário possuí-lo? No entanto, Deus não pode ser possuído!? Por que, pois, o buscamos? Para sermos mais e mais apenas a própria busca!
Sermos mais e mais apenas a própria busca quer dizer: tornamo-nos sempre mais nítidos, puros na determinação da busca. Determinação da busca é o que perfaz a identidade da busca. Na medida em que nos tornamos nítidos, puros na determinação da busca, vem à fala sempre mais límpido o limite da busca.
Limite da busca, porém, não é a demarcação do que a busca pode e ainda não pode. É antes o vir-à-fala do poder da busca na consumação como a impossibilidade de não poder a não ser o poder do seu poder.
No estudo superior de filosofia buscamos a Deus. Buscamos, não para possuí-lo, mas sim para sermos mais e mais apenas a própria busca, isto é, para tornar-nos mais e mais nítidos e puros na acolhida do limite da busca: da impossibilidade de a busca não poder a não ser o poder do seu poder.
O que há de bom numa tal acolhida? Ela permite deixar Deus ser Deus, na sua diferença como o mistério do radical-outro. O mistério do radical-outro que sempre de novo inacessível, insondável, inefável, a-corda silencioso o coração da busca na afeição de um toque qual apenas um sopro acerca de nada.
Na disciplina das disciplinas teológicas cursamos o fazer de uma busca que na consumação do seu poder termina na límpida determinação do seu poder, em cuja impossibilidade de não poder a não ser o poder do seu poder, silenciamos reverentes na acolhida de uma entoação: fala Senhor que o teu servo escuta!
Esse fazer do estudo, no empenho do trabalho decidido que ama o silêncio recolhido no limite da sua consumação, se diz em grego poiein, donde deriva poiesis, a poesia.
Tão-somente quando o estudo se tornar poesia no rigor e na disciplina da sua determinação, na pureza científica da sua busca, começaremos a ser afeiçoados pela poesia do estudo, na evocação silenciosa de um sopro acerca de nada, do espírito do Senhor.
Como o aceno da via, na busca consumada do estudo superior de Filosofia entoa o poeta a poiesis da teo-logia:
Um Deus o pode. Como, porém, dize-me, deve
Um homem segui-lo pelo frágil fio de uma lira?
Sua afeição é dis-corde. No cruzamento
De dois caminhos do desejo
Não surge nenhum Templo a Apolo.
Canto, como tu lhe ensinas, não é cobiça,
Não a busca acerca de um por fim ainda alcançado;
Canto é ek-sistência. Para o qual
Deus, a leveza.
Quando, porém, somos nós? E quando volta ele
Ao nosso ser a Terra e as Estrelas?
Isto não o é, ó Jovem, que tu amas, mesmo quando
A voz a boca te eclode. –
Aprende esquecer, que tu entoaste. Isto discorre.
Em verdade cantar, é um outro hálito.
Um hálito acerca de Nada. Um sopro, em Deus. Um vento (Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, I, 3).
Muito obrigado HH.
Petrópolis, segundo semestre de 1974.