Frei Marcos Aurélio Fernandes, ofm.
“Bem-aventurados os pobres no espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).
“A romântica nostalgia de I Fioretti na selva de pedra das nossas vicissitudes modernas, seria apenas os últimos ecos de uma tradição que se esvai ou alvores ainda longínquos de um Deus vindouro?” (HARADA, Fr. H. Em comentando I Fioretti).
Advertência: o presente artigo se propõe uma meditação, com Heidegger, que parta da necessidade do desnecessário e que acene para ele. Ela se dá no empenho de abrir um caminho de pensamento, que se compreende como um pensamento inicial, o que significa, também, um caminho pré-cursor. O que isto aqui quer dizer, porém, só pode ficar claro, a partir da leitura do próprio artigo.
Comecemos, pois, esta meditação, com um diálogo do Oriente:
Hui-tzu disse a Chuang-tzu: “Você fala do desnecessário”. Chuang-tzu falou: “primeiramente carece de alguém reconhecer o desnecessário, antes de poder falar com ele do necessário. A terra é larga e grande, e, no entanto, o homem carece, para ficar de pé, só daquele tanto de lugar necessário onde ele põe o pé. Porém, se, ao lado dos pés, se lhe arrancasse toda a terra, abrindo-se-lhe um abismo, aquele tanto de lugar ainda lhe seria útil?” Hui-tzu falou: “não lhe seria mais útil”. Falou, então, Chuang-tzu: “daí resulta com clareza a necessidade do desnecessário”.
Hui-tzu e Chuang-tzu2 são dois chineses. Um é “sabido”, isto é, um hábil discutidor e sagaz orador, ao mesmo tempo em que é um homem pragmático, preocupado em instruir para aquilo que é considerado imediatamente necessário. Já o outro é sábio, pois sua palavra é uma concreção do silêncio e uma ressonância do recolhimento e da quietude. O seu falar e dizer soa como uma floração de serenidade. Ele fala do desnecessário, isto é, a partir do imediatamente desnecessário. O encontro-confronto na linguagem do diálogo faz de ambos oponentes. Entretanto, o diálogo entre eles não promove nenhuma inimizade. É que sua oposição dialogal torna propício o cordial e benigno aparecimento do fundo a partir do qual eles dialogam: o desnecessário que vem à fala na posição pensante de Chuang-tzu, quer dizer, a vigência da grandeza3, profundidade4 e originariedade5 do céu e da terra e a proximidade do caminho (Tao).
Em nossos dias, no ocidente, terra do ocaso, já em meio a uma noite histórica que se tornou planetária, a proximidade do caminho6 fala ao pensamento como um apelo distante, pois nos advém e sobrevém, silenciosamente, da lonjura do desnecessário.
A palavra grandeza, aqui, não designa uma quantidade. Medir a grandeza a partir da categoria da quantidade é um sinal de falta de grandeza. Grandeza, aqui, é um modo de autodoação da totalidade e significa, propriamente, imensidão, “catolicidade” (no sentido de ser “segundo o todo”, isto é, ser segundo o modo de ser da grandeza). Recentemente, frei Harada, numa apostila escrita para educadores, que se reuniam para refletir o tema da virtude, disse: “imensidão é abertura sem fronteiras, sem limites, a grandeza generosa e magnânima que tudo comporta, tudo acolhe cordialmente. Essa catolicidade nós a sentimos na natureza, na mãe terra, no céu aberto, mas também no coração dos pais, no carinho da criança, na nobreza de um cavalheiro, na compassiva bondade de uma mulher, na piedade do varão etc.” (cf. HARADA, Hermógenes. Provirtus, reflexões. Curitiba: Bom Jesus, pro-manuscripto, 2008, p. 5).
“A profundidade é uma totalidade que nos conduz para a imensidão abissal e íntima chamada interioridade humana. É aqui que se abre uma inesgotável possibilidade vital de mil e mil mundos de realizações, cheios de aventuras e venturas, como o destinar historial de cada pessoa, de cada família, de cada povo, nação, épocas de humanidade etc.” (cf. HARADA, Hermógenes. Idem, ibidem).
“E juntamente com imensidão e profundidade abre-se por fim uma outra totalidade radical que costumamos chamar de originariedade, isto é, liberdade criativa que nos acena para o abismo de generosidade, profundidade e vitalidade inesgotável criativa da doação do amor infinito” (cf. HARADA, Hermógenes. Idem, ibidem).
“Caminho” nos soa como uma experiência fundamental do oriente. O Tao-te-king é a saga do caminho per-feito, isto é, do caminho inteiramente percorrido e consumado como caminho. No Japão esta experiência fundamental aparece no étimo “-do”, como, por exemplo, nas palavras “Ju-dô”, caminho suave, ou, ainda, ‘bushi-do’, o caminho da espada, o caminho do samurai, cujos ensinamentos se recolhem no livro de Yamamoto Tsunetomo, Hagakure (“folhas ocultas” ou “oculto pelas folhas”). No ocidente, a experiência fundamental do caminho resta uma experiência fundante, porém esquecida e velada, sim, de certa maneira, apócrifa. O pensamento originário de Heráclito e de Parmênides emerge como caminho (hodós). A autocompreensão da existência cristã também fala a partir da experiência do caminho, à medida que o discipulado cristão é seguimento daquele que se fez o caminho – Jesus Cristo. Assim também, na espiritualidade e no pensamento medieval, que culmina com a mística, o “caminho” é decisivo. Os medievais estavam sempre “a caminho”, nas suas viagens e peregrinações (para São Tiago de Compostela, para Jerusalém etc.). Semper in via summus, nunquam in patriam – estamos sempre a caminho, nunca na pátria – assim ressoa a vós de Agostinho na existência medieval. O homem se torna “homo viator”, homem caminhante. Por isso, Hildegard von Bingen escreve a obra “Scivias” – “saiba o caminho”. Nos Fioretti, São Francisco emerge como aquele que, a caminho, ensina a frei Leão a via da “perfeita alegria” no seguimento de Jesus Cristo, o Crucificado. Uma vez que a teologia é sempre um saber “in via”, São Boaventura escreve o “Itinerarium mentis im Deum”. A mística de Eckhart é o caminho do “homem nobre” e esta mística conflui para o pensamento especulativo a caminho do Não-outro, em Nicolau de Cusa. Mesmo a ciência moderna, desde o seu ponto de partida, mantém uma estranha pertença ao caminho, quando nela o método (metá + hodós) se torna o decisivo. Não à toa o “Discurso do Método” é uma fonte imprescindível para o pensamento moderno. Enfim, ao chegarmos a Nietzsche, e, assim, ao ocaso da consumação da metafísica ocidental, Zaratustra aparece, sempre a caminho, como o porta-voz do super-homem (Übermensch), alertando que, o que há de grande no homem, é ser ele uma passagem (Übergang).
Nesse kairós7 acontece a erupção de um mundo mais de duas vezes milenar, cuja destinação tomou impulso desde a Grécia dos pensadores originários e, ao mesmo tempo, a irrupção de um novo aión8, em que se faz propício um “outro início do pensar”.
I. Em plena viragem dessa passagem, em 196910, Heidegger, no discurso dos seus 80 anos de vida, saudou o seu amigo japonês Tsujimura, trazendo à fala a apatridade como o destino do mundo contemporâneo e o emergir do que ele quis chamar de “a civilização planetária”. Ele diz:
Há um século ela invadiu o Japão. Civilização planetária significa hoje: predominância das ciências hipotético-dedutivas, significa predomínio e primado da economia, da política, da técnica. Tudo o mais já não é nem mesmo supra-estrutura. É apenas mera para-estrutura toda quebradiça.
É nesta civilização planetária que estamos. Para ela é que se dirigem as discussões do pensamento. Entrementes a civilização planetária atingiu toda a terra. Por isso, Senhor Tsujimura, nossa necessidade é idêntica à sua.
Podemos nos perguntar: que necessidade é esta? Não seria, justamente, a necessidade de um pensar que se mostra, de imediato, como desnecessário, por não se ater e não se restringir às recomendações do útil, sim, por se devotar, única e inteiramente à constrição e ao constrangimento, isto é, aos apertos do questionar? O mesmo discurso de Heidegger parece nos acenar para isto:
Dizia há pouco: a apatridade é um destino mundial na forma da civilização planetária. É como se a civilização planetária, que o homem moderno não criou mas em que foi “destinado”, trouxesse consigo o obscurecimento da existência humana. De fato, é o que parece. Mas seria um erro pensar somente até aí e não ver nada mais, a saber, a possibilidade de uma virada. Mas nós não sabemos nada do futuro. Talvez tudo finde numa grande desolação. Talvez aconteça que algum dia o homem se enfastie dos produtos de suas pretensas produções e de repente comece a questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação atinja tal nível que as necessidades se nivelem a ponto de o homem já nem sentir a decadência interior e o vazio de sua existência. Talvez possa também acontecer outra coisa. Em qualquer caso, como quer que seja ou aconteça: nós não nos devemos queixar, temos é de nos questionar!12.
Ora, o questionamento a que se devota o pensar se detém junto àquilo que é o mais questionável, não meramente no sentido daquilo que é o mais incerto e discutível, isto é, para a filosofia, o que é óbvio e admitido por todo mundo, mas no sentido daquilo que é o mais digno de ser posto em questão pelo pensamento que se dispõe a responder e corresponder ao apelo do “caminho”. No discurso dos 70 anos, em 1959, Heidegger acena para esse “mais digno de ser questionado”, ao nomear “o estado cheio de mistério em que vivemos hoje, nós homens da terra e deste tempo”13. Neste estado, o perigo é grave, mas, nesta gravidade, evoca a necessidade do desnecessário, a necessidade do outro início do pensar:
A propósito do desenvolvimento extraordinário de nossa época e de toda a humanidade, gostamos de falar em derrocada iminente e ameaçadora do homem. Contudo desejava dizer aqui uma coisa, que não é palavra de um profeta. É apenas a suposição de um homem, que se esforçou em refletir sobre tudo isso. Desejava dizer neste instante: não pode ser uma derrocada do homem na terra, porque ainda estão reservadas e poupadas a plenitude e as profundezas do querer e poder.
É a suposição, a suposição de um pensador, que também se chama de filósofo. Quem é filósofo, é o que diz Nietzsche, o pensador, que no mais extraordinário foi sacrificado ao extraordinário: “o filósofo é uma planta rara”, isto é, uma planta que necessita de seu próprio solo…
O raro pensar do outro início nasce da grandeza da terra e nos alcança como o apelo do caminho. Este pensar não tem a pretensão costumeira de originalidade, tão recorrente nos modernos e pós-modernos. Se esse pensar busca uma originalidade, esta não pode ser outra do que a originalidade apropriada ao pensar, no que ele tem de mais próprio, ou seja, a originariedade:
A originalidade própria do pensar não está em descobrir os chamados “novos” pensamentos. A originalidade própria do pensar está na força de se acolherem pensamentos já pensados, de se aturar o que se acolhe, e se desenvolver o que se atura no recôndito de sua intimidade. É então que os pensamentos alcançam por si mesmos o nível a que pertencem, o que chamo o “originário”. É então que cresce a compreensão, de que um pensamento só é verdadeiro pensamento, quando não necessitar ser útil nem precisar comparar-se com a utilidade. Só quando uma paixão assim tiver despertado, é que se poderá talvez conseguir por algum tempo ater-se ao caminho e vir a ser o que se chama de precursor. Refiro-me agora ao pre-cursor, não ao antecessor mas a quem antecipa na antecedência, sem que se note.
Originário é, hoje, aquele pensamento que pode se tornar, na necessidade do desnecessário, pre-cursor do outro início do pensar. Outro é este início, pois, corresponde, na gratidão, ao impensado do primeiro início:
…Pois agradecer (danken) e pensar (denken) não são apenas a mesma palavra, são também a mesma coisa. Agradecer é pensar no sentido de pensar a partir de (an-denken), um pensamento que não remonta ao já passado (das Vergangene) mas ao vigente ainda na concentração de seu vigor (das Gewesene), isto é, ao que recolhido ainda perdura na obra da verdade e nos determina. E assim pensar a partir de significa também pensar os pródromos e em direção daquilo que hoje nos constringe e constrange a nós, a nosso país, à Europa, à terra inteira16.
O pensamento pre-cursor é um pensar que não se precipita num crescimento intempestivo, antes, é um pensamento que sofre as demoras do questionamento, o qual se faz investigação e, assim, aprende a saber esperar a maturação apropriada do tempo:
Saber investigar significa saber esperar, mesmo que seja durante toda uma vida. Numa época, porém, em que só é real o que vai de pressa e se pode pegar com ambas as mãos, tem-se a investigação por “alheada da realidade”, por algo que não vale a pena ter-se em conta de numerário. Mas o essencializante não é o número e sim o tempo certo, isto é, o momento azado, a duração devida. “Pois odeia /O Deus sensato/crescimento intempestivo”. Hölderlin, Do motivo dos Titãs (IV, 218).
Quem se torna, nesta paciência do questionar e investigar, um perguntador, se assemelha a um semeador:
Como, porém, o pensador abriga a verdade do ser, senão na grave lentidão do andar de seus passos questionadores e de sua seqüência coerente? Sem dar na vista, a modo dos passos graves, lentos, contidos, sobre o campo solitário e sob o grande céu, o semeador mede com os pés os sulcos da terra e no lançar do braço dimensiona e configura o espaço oculto de todo crescer e amadurecer. Quem consegue ainda, no pensar, levar isto à con-sumação, enquanto a mais inicial de sua força e enquanto o seu mais elevado por-vir?18.
Sendo agradecimento e espera, o pensar cresce na maturação do kairós. Seu crescimento é um erguer-se do humano entre o céu e a terra, conforme nos dizem as palavras de Heidegger, em 1949, por volta dos seus 60 anos de vida:
Crescer significa abrir-se à amplidão dos céus mas também deitar raízes na escuridão da terra. Tudo o que é maduro só chega à maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, ambas as coisas: disponível para o apelo do mais alto céu e abrigado na proteção da terra, que tudo sustenta.
A disponibilidade para morar na proximidade do alto e, ao mesmo tempo, o arraigar-se na pertença à terra tornam o pensamento pre-cursor um pensar que se dá no modo do abrir-se e o constituir-se do “Caminho do campo” (Feldweg). Nele ressoa o apelo do Mesmo. Nele se dá o presentear-se do simples.
O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as coisas maduras, que demoram em torno do caminho, é que instauram mundo. Como diz Eckhart, o velho mestre de vida e leitura: no não dito de sua linguagem é que Deus é Deus.
O pensamento pre-cursor faz surgir homens simples, que reconhecem a necessidade do desnecessário, isto é, que modestamente se recolhem na quietude da escuta da linguagem do caminho:
Mas o apelo do caminho do campo só fala enquanto houver homens que, nascidos em sua atmosfera, puderem escutá-lo. São obedientes à sua origem e não escravos de artifícios. É em vão que o homem tenta pôr em ordem toda a terra se não escutar o apelo do caminho do campo. O perigo iminente é ficar o homem de hoje surdo à linguagem do caminho, cabendo-lhe nos ouvidos apenas o ruído das máquinas que se lhe afiguram, então, como a voz de Deus.
A linguagem do caminho é o caminho da linguagem, que, em sua originariedade, vige como o vigor do silêncio. O silêncio é proximidade. Está-nos tão próximo que raramente o percebemos. É tão simples e discreto, que quase nunca o notamos. O erguer e o crescer humano já sempre dele necessitou para acontecer. É que o silêncio paira, imenso e benigno, sobre o homem, como a proximidade distante e a distância próxima do céu. O céu é o vigor da imensidão, a vigência da claridade, a regência da benignidade, da serenidade e da paz. O silêncio também sustenta e abriga o humano como a escuridão da terra, a terra profunda que, na sua humildade, no seu retraimento, recato e pudor, se vela a si mesma, liberando e, ao mesmo tempo, protegendo e sustentando tudo o que dela nasce, deixando tudo emergir na aberta do que vem à luz e se manifesta.
Quando o humano se desarraiga desta sua pertença ao céu e à terra e ao silêncio como origem essencial do caminho da linguagem, ele se dissipa e passa a vagar desnorteado, pulando de ente em ente, através da multiplicidade útil dos seus afazeres e divertimentos. Seu olhar, então, se embota e já não é mais capaz de ver, numa mirada simples, o próprio simples. Acostumado, então, com a novidade sempre de novo encantadora, mas fugaz, do pro-gresso, ele já não consegue deter-se junto ao simples, pois esta quietude lhe provoca tédio e náusea:
E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado, o simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta. O simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu.
Para o pensamento pre-cursor, homens do por-vir são aqueles que reconhecem a necessidade do desnecessário, isto é, aqueles que conhecem o simples, como o sempre o mesmo que se doa e se retrai no modo de ser de uma fonte inesgotável de criação, que deixa e faz ser, a cada vez, mil e mil diferenças. Entretanto, não se tornam, hoje, raros estes homens? Após a Segunda Guerra Mundial, depois de os homens da civilização planetária terem se espantado com o poder destruidor da bomba atômica, através do terror de Hiroshima e Nagasaki, o pensamento de Heidegger evocou com confiança a presença destes homens, que sobrevivem à desolação de nosso tempo, como uma espécie de “mutantes” da civilização planetária, cujo aparente pro-gresso é digno de ser questionado. Desde então, urge-nos a seguinte pergunta: o que hoje denominamos de progresso, não seria, enfim, um progressivo distanciar de nossa humanidade, vale dizer, de nossa pertença ao céu e à terra, e ao mistério do silêncio e silêncio do mistério? Não se confirmam, assim, as palavras que Brecht colocara na boca do Cardeal Barberini em diálogo com Galileu Galilei?
Vós podeis, com o tempo, descobrir tudo o que é para ser descoberto, e, no entanto, o vosso progresso será somente um pro-gredir para longe da humanidade. O abismo entre vós e ela pode se tornar um dia tão grande, que vosso grito de júbilo sobre qualquer nova conquista e façanha poderia ser respondido por um grito universal de pavor.
Entrementes, enquanto a terra é reduzida a mero palco para o espetáculo da azáfama do desenvolvimento e os homens de nosso tempo são tomados pelo encantamento do progresso tecnológico, raros vão se tornando aqueles que conhecem o simples:
Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhecem o simples, como uma conquista própria de sua propriedade. Mas estes poucos serão por toda parte os que permanecerão. Pela autoridade suave do caminho do campo, poderão sobreviver todo dia às forças e aos poderes gigantescos da energia atômica que o cálculo do homem engenhou e fez dela os grilhões de sua própria obra.
Para o pensamento pre-cursor, porém, não se trata de sair desse mundo da técnica, recorrendo, talvez, a uma forma de vida “alternativa”. Trata-se, antes, de entrar mais profundamente dentro deste mundo, imergindo na sua proveniência, e, por conseguinte, em seu destino:
Sem dúvida que não poderemos saltar para fora do mundo técnico. Ele constitui uma condição necessária da e para a existência moderna. Mas não uma condição suficiente. Pois em sua insuficiência não atinge o horizonte a partir do qual a existência do homem poderá talvez vir a ser libertada. É por isso que pensamento deve começar com a pergunta: o homem de hoje mora na morada de uma reserva do alto?.
“Habitando poeticamente a terra”26, vale dizer, encontrando sua morada junto à riqueza superabundante, mas oculta, do alto, o homem se liberta para a liberdade do caminho:
O apelo do caminho do campo acorda um sentido que ama a liberdade e, no lugar oportuno, suplantará as aflições numa última jovialidade. Esta se opõe à desordem de só trabalhar, uma desordem que, buscada por si mesma, favorece apenas o nada negativo.
Como, no entanto, se mostra esta jovialidade do pensamento pre-cursor? Não é a leveza de sua serenidade o que os homens de hoje não conseguem suportar?
No ar do caminho do campo, variável com as estações, nasce e cresce uma jovialidade sábia, cujo semblante muitas vezes parece carregado. Este saber jovial é a “serenidade”. Quem não a possui, não poderá adquiri-la e quem a possui, é do caminho do campo que a tem. Em sua via, se encontram a tormenta do inverno e o dia da colheita, em sua via se cruzam a mobilização estimulante da primavera e o fenecer tranqüilo do outono, na sua via se surpreendem nos olhos o lúdico da juventude e a sabedoria da maturidade. Tudo, no entanto, se jovializa numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo, indo e vindo, arrasta consigo.
A jovialidade sábia é uma abertura para o eterno. Sua porta gira nos gonzos que um hábil ferreiro forjou, um dia, com os enigmas da existência.
A gênese do caminho do campo em que o pensamento pre-cursor abre a sua trilha, se dá, pois, na simplicidade do recolhimento no um, em que vige a con-juntura do céu e da terra, do humano e do divino. Nele ressoa o apelo do mesmo, a partir do qual a cada um, na sua diferença, é restituída a sua identidade, podendo cada um viger no seu modo de ser mais próprio, isto é, apropriado.
O sempre o mesmo provoca estranheza e liberta. O apelo do caminho do campo é agora totalmente claro: É a alma que fala? É o mundo? É Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz morar de novo uma origem distante, onde a terra natal nos é restituída.
II. O apelo do caminho do campo nos chega, hoje, como a solicitação e a interpelação da necessidade do desnecessário. Como nos advém e sobrevém esta necessidade? Resposta: como o emergir de uma indigência. “Toda necessidade se enraíza em uma indigência”.
Como, porém, vem à luz a indigência de nosso tempo? Qual o sentido dessa indigência?
Antes de tudo, não podemos responder a esta dupla pergunta a não ser tomando-a como uma questão do pensamento – nunca chegamos a questioná-la de fato e a alcançar uma sua “resposta” tomando-a como um mero problema do conhecimento. Sim, mesmo o conhecimento historiográfico não nos ajuda nesta busca. Querer seguir este caminho seria comportar-se como alguém que entra na lama para limpar-se da lama.
A empresa de representar e de objetivar o nosso tempo, isto é, nossa situação epocal, talvez não seja somente impossível, mas também desnecessária e contraindicada. Parece coisa das famosas estórias do Barão de Münchehausen, que pretendia ter-se arrancado a si mesmo das águas, puxando-se pelos próprios cabelos. É que o próprio querer representar a nós mesmos, em nossa situação epocal, vale dizer, o próprio querer objetivar o tempo é uma marca de nossa própria época, que segue a tendência de querer conhecer, para poder saber mais, para poder controlar mais, para poder dominar mais. Dominando, pelo conhecimento, o nosso presente, pensamos poder nos assegurar mais, em face de nosso futuro, sim, pensamos poder até mesmo prevê-lo e antecipá-lo. Sentimos a necessidade de contar o nosso presente, para podermos calcular o nosso futuro e, assim, graças a esse cálculo, podermos dominar os processos do porvir. Hoje, estamos sempre controlando as informações sobre o nosso presente, a fim de projetar conjecturas a respeito de nosso futuro. A sociedade industrial teve que se tornar sociedade da informação e esta, por sua vez, deve poder se tornar sociedade do conhecimento. Por sua vez, o conhecimento científico deve poder nos ajudar a projetar, planificar e planejar o nosso futuro, em vista do aumento das possibilidades de ação do homem e de seu domínio sobre o real.
Nessa concepção, o futuro é visado como aquilo que vem ao nosso encontro ou de encontro a nós; é apreendido como aquilo que se aproxima de nós e chega até nós. Nessa perspectiva, portanto, o futuro é representado como advento. O que advém, no entanto, é apreendido apenas a partir da perspectiva da atualidade e é estimado tão somente em função de sua expectativa. Nessa perspectiva, o futuro é tão somente a atualidade estendida. Nesse modo de visar o futuro, por conseguinte, nós permanecemos presos à perspectiva da atualidade e ao modo como ela, a atualidade, lida e conta com as possibilidades do porvir.
Esta atitude, entretanto, em face do presente e do futuro, bem como, mais fundamentalmente, em face do tempo e sua temporalidade, é um traço de nossa época. Ela se imposta como uma concepção técnico-científica:
Toda mera caça ao futuro, a fim de calcular sua imagem, de tal modo que se prolongue o atual, pensado pela metade, se move ainda na atitude do representar técnico-calculador. Todas as tentativas de pôr o real efetivo que aí está, morfologicamente, psicologicamente, na conta de decadência e perda, de fatalidade e catástrofe, de ocaso, são apenas uma conduta técnica. Esta opera com o aparato da enumeração de sintomas, cuja verificação se multiplica ad infinitum e pode ser sempre de novo variada. Estas análises da situação não notam que elas trabalham só no sentido e no modo de cortes e recortes técnicos e assim se entregam à consciência técnica, isto é, à representação historiográfica e técnica do acontecer, que lhe é conforme. Mas nenhum representar historiográfico da história enquanto acontecer conduz para dentro do relacionamento conveniente e apropriado para com o destino e absolutamente não conduz à sua proveniência essencial no evento apropriador da verdade do ser.
Se não é o conhecimento científico, calculador e, em sua essência, técnico, a via que pode nos conduzir para dentro de um relacionamento apropriado para com a nossa destinação, então qual seria o caminho? Não será o caminho do pensamento que medita, isto é, que pensa o sentido, a verdade do ser?
Meditar (Besinnen) é trilhar um caminho no empenho de pensar o sentido (Sinn). Pensar, aqui, não significa o mesmo que representar, objetivar e calcular o ente, dentro do movimento de uma pesquisa positiva. Pensar, aqui, significa questionar o que para o conhecimento já sempre permanece inquestionado, por passar despercebido, por não dar na vista, por já ser sempre por demais óbvio. Pensar é questionar o mais digno de ser questionado.
O que cabe pensar mais cuidadosamente? Neste tempo a pensar, onde ele se mostra? O que mais cabe pensar cuidadosamente mostra-se no fato de ainda não pensarmos. Insistentemente ainda não, apesar da situação mundial tornar-se cada vez algo a se pensar mais cuidadosamente.
Entretanto, ouve-se dizer por toda parte: chega de pensar! É preciso agir! E isso, quanto mais urgente é a situação em que nos encontramos, nesta “civilização planetária”. Contudo, este imperativo é, mais uma vez, a voz de nossa própria época, que de há muito tem privilegiado o agir, mas sem pensar a essência do próprio agir, isto é, caindo na inessência do agir, ao interpretá-lo como um mero fazer. Assim, a ação, sem pensamento, se torna, em sua inessência, dissipação e agitação. Daí a suspeita: “E, no entanto… Talvez, já desde séculos, o homem vem agindo demais e pensando de menos”.
A ação sem pensamento não pode reconhecer na não-ação do pensamento a sua própria essência, isto é, a proveniência essencial de seu vigor. Entretanto, em que consiste a essência da ação?
De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a essência do agir. Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade. A essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua essência. Levá-la a essa plenitude, producere.
Em que sentido, porém, é o pensar a ação primordial, já que o pensar parece “não fazer nada”? De fato, o pensar não age, se por agir entendemos o fazer alguma coisa, o produzir de um ente. Entretanto, o pensar age e o seu agir se dá como a consumação da referência da existência humana ao “nada”, isto é, ao que não é nenhum ente, ao ser. Ora, toda ação junto ao ente já sempre pressupõe a doação e a vigência do ser:
Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o ser. O pensamento con-suma a referência do ser à essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação, mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação do ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem.
No cuidado de restituir ao ser a referência humana para com o próprio ser, isto é, a linguagem, o pensamento age e age como a ação fundamental e primordial:
O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a referência do ser ao homem. Toda produção se funda no ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo ser a fim de proferir-lhe a verdade. O pensamento con-suma este deixar-se.
A não-ação do pensar é a ação mais simples e elevada. Simples é esta ação, pois, nos põe na proximidade do simples. Elevada é esta ação, pois nos faz morar junto do alto. Pensando, somos reconduzidos ao “em casa” do mistério:
O que o pensamento, que, pela primeira vez, procurou expressar-se em Ser e tempo, pretende alcançar, é algo de muito simples. Por ser simples, o ser permanece misterioso, a proximidade calma de um vigor (Walten), que não se impõe. Essa proximidade se essencializa como a linguagem.
Entretanto, em nossa época, apenas conhecemos a inessência da linguagem, à medida que a reduzimos à mera possibilidade de expressão subjetiva e comunicação intersubjetiva. Dissipada na tagarelice impessoal da comunicação de massa, de há muito a linguagem é ignorada no seu vigor mais próprio. Somos convencidos, até mesmo, de que há linguagem porque e à medida que nós falamos. Como se a linguagem fosse um produto, dentre outros, do fazer do homem… Não será, com efeito, o contrário? Não é, justamente, por se encontrar no medium da linguagem que é dada ao homem a possibilidade de falar? No pensamento, o empenho do falar consiste em dizer. Dizer significa, porém, deixar-ser a saga do próprio ser: a poesia originária da linguagem, na qual se dá o recolhimento e oclusão do silêncio da terra e a eclosão e abertura do discurso do mundo.
Pois bem, ao interpretarmos o pensar como representar e objetivar, o agir como fazer e produzir e a linguagem como comunicação e expressão, e, ainda mais, o ente como objeto e recurso e o ser como nada, torna-se patente a indigência de nossa época. Contudo, esta indigência só é reconhecida por quem reconhece a necessidade do desnecessário e experimenta, hoje, a possibilidade do pensar como uma possibilidade impossível. E isso é o mais digno de se pensar: que, em nosso tempo, nos é vedado o pensar. Cabe-nos, porém, permanecer nessa possibilidade impossível e esperar que, de repente, talvez silenciosa e discretamente, ela se transforme na impossibilidade possível de um outro início do pensar.
Hoje, nos é vedado pensar. De onde nos vem este impedimento, que nos constringe e constrange, como indigência de nosso tempo?
O que maximamente a partir de si mesmo dá a pensar – o que mais cabe pensar cuidadosamente – deve mostrar-se no fato de ainda não pensarmos. O que quer dizer isso, agora? Resposta: ainda não atingimos propriamente o âmbito disso que, a partir de si mesmo e antes de tudo e por tudo, “gostaria” de ser pensado. Por que ainda não atingimos tal instância? Seria, talvez, porque nós, homens, ainda não nos voltamos suficientemente para o que permanece como o que cabe pensar cuidadosamente? Neste caso, o fato de que ainda não pensamos seria uma mera negligência por parte do homem. Assim sendo, este mal precisaria poder ser humanamente remediado através de medidas convenientes em relação ao homem40.
Certo? Nossa tendência é, de fato, esta: compreender a indigência de nosso tempo como um desatino do humano e considerar que o tomar medidas que supram a sua negligência seja o bastante. De resto, de onde vêm estas medidas? De nossos humanismos. Entretanto, os nossos humanismos estão tão permeados e impregnados do niilismo de nosso destino e tão comprometidos com uma concepção do humano marcada pela compreensão metafísica do “animal rationale” que precisam ser questionados em sua insuficiência:
Todo humanismo ou se funda numa metafísica ou se converte a si mesmo em fundamento de uma metafísica. Toda determinação da essência do homem, que já pressupõe, em si mesma, uma interpretação do ente sem investigar – quer saiba quer não – a questão sobre a verdade do ser, é metafísica. Por isso a característica própria de toda metafísica – e precisamente no tocante ao modo em que se determina a essência do homem – é ser “humanista”. Em conseqüência, todo humanismo permanecerá sempre metafísico. Ao determinar a humanidade do homem, o humanismo não só não questiona a re-ferência do ser à essência do homem. Ele até impede tal questionamento, uma vez que, devido à sua pro-veniência da metafísica, nem o conhece nem o entende41.
Certamente, não se trata de se ser “anti-humanista” ou “antimetafísico”. Quem é “anti-” participa também, no modo da re-ação, daquilo contra o que ele se volta. No modo da re-ação, ele se torna presa daquilo contra o que reage. Tanto o humanismo quanto o anti-humanismo, tanto a metafísica quanto a anti-metafísica, participam da mesma destinação, pela qual não nos é dado, ainda, pensar. Também não se trata de escolher entre a alternativa do pessimismo e do otimismo, pois ambos pertencem ao modo de valoração do real que tem suas raízes na mesma metafísica, em que vigora o não pensar, isto é, o esquecimento da re-ferência do ser ao homem. Por isso, para nos dispormos a alcançar o âmbito do que “gostaria” de ser pensado, mas que ainda não pensamos, o que nos cabe não é fugir de nossa “sombra” epocal, mas é entrar mais profundamente naquela sombra maior de onde esta nos advém. É o que nos ensina uma outra estória de Chuang-tzu:
Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de outra.
Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade.
Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra.
O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas42.
Entremos, portanto, na “sombra maior” da indigência de nosso tempo e compreendamos de maneira nova o fato de ainda não pensarmos a sua proveniência:
Ainda não pensamos. Isto, porém, de modo algum se dá porque o homem não se avia suficientemente para isso que, desde si mesmo, gostaria de ser pensado. Ainda não pensamos – isto se deve mais ao fato de que o próprio a-se-pensar se desvia do homem e até mesmo, de há muito, dele mantém-se desviado.
O ser, o mais digno de ser pensado, o pensável por excelência, o que “gostaria” sobremaneira de ser pensado, já sempre se desviou do homem, destinando-o pelas vicissitudes e peripécias de uma história, em que predominaria, cada vez mais, o ente e o domínio do homem sobre o ente. É justamente no modo do des-vio que o ser se a-viou ao homem em sua destinação, perfazendo assim o que chamamos de “história ocidental” e, hoje, “civilização planetária”:
Mas dá-se desvio somente onde já se deu um aviar-se. Se o que cabe pensar cuidadosamente mantém-se num desvio é porque isso se dá precisamente tão-só no interior de seu “aviar-se”, isto é, de tal modo, que ele já deu a pensar. Em todo desvio, o a-se-pensar já se aviou para a essência do homem. Por isso, o homem de nossa história também sempre já pensou de um modo essencial. Ele pensou mesmo o mais profundo. Na verdade, de uma maneira estranha, o a-se-pensar permanece sob a guarda deste pensamento. O pensamento até hoje vigente de modo algum considera o fato e em que medida o a-se-pensar também se retrai.
No atual momento de nossa história, na “indigência de nosso tempo”, a re-ferência do ser ao humano, o seu aviar-se e doar-se ao humano, se dá, de modo inexorável, no modo do retraimento e da recusa. Este é, pois, o modo como o ser se dá a pensar, a nós, hoje. E isso é o que mais nos dá a pensar e o que mais cabe pensar cuidadosamente:
O que mais cabe pensar cuidadosamente em nosso tempo, que tanto nos dá a pensar, revela-se no fato de ainda não pensarmos. Ainda não pensamos porque o que cabe pensar se des-via do homem e não porque o homem não se en-via, de maneira suficiente, a isto que cabe pensar. O que cabe pensar desvia-se do homem. O que cabe pensar retrai-se para o homem à medida que dele se retira. O que se retira, porém, sempre já se nos mostrou. O que se retrai no modo de um retirar-se não desaparece. Como então saber o mínimo que seja a respeito disso que assim se retrai? Como sequer nomeá-lo? O que se retrai recusa o encontro. Retrair-se não é, porém, um nada. Retração é retirada e enquanto tal – acontecimento. O que se retrai pode concernir ao homem de maneira essencial e reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que aí está e o afeta. De bom grado, costuma-se tomar o que nos afeta através do real como o que constitui a realidade do real. Mas o ser-afetado através do real pode justamente bloquear o homem em relação a isso que lhe concerne – que lhe concerne certamente de uma maneira enigmática, segundo a qual o concernir dele se desvia à medida que se retrai. Por isso, a retração, o retrair-se do que cabe pensar poderia agora, como acontecimento, ser mais presente do que tudo quanto é mais atual.
A revelação do ser através de seu retraimento e de sua recusa é o acontecimento fundante de nossa história e do hoje de nossa “civilização planetária”. Nessa condição, o ser só pode mesmo nos afetar como nada. E sua presença só pode mesmo viger como ausência. Com efeito, a recusa é o modo de sua doação. O retraimento, o modo de sua atração:
O que de nós se retrai à maneira mencionada, afasta-se para longe de nós. Mas precisamente isso nos leva junto e, à sua maneira, nos atrai. O que se retrai parece estar absolutamente ausente. Mas essa aparência engana. O que se retrai se faz vigente – a saber, através do fato de nos atrair, quer percebamos agora, depois ou mesmo nunca. O que nos atrai já concedeu encontro. Tomados pela atração da retração, já estamos no impulso para isso que nos atrai, à medida que se retrai.
A recusa do ser e seu retraimento como o mistério do nada, nos atrai. Seu retraimento é a suavidade serena da autoridade do mistério: “Por ser simples, o ser permanece misterioso, a proximidade calma de um vigor (Walten), que não se impõe”.
Atraídos pela retração, se-duzidos pela recusa do ser, somos hoje, então, levados para a noite do deserto. Ao se consumar a “morte de Deus”, a entrada nessa noite se nos tornou um destino inexorável. Desde então, nós podemos, talvez espantados, dizer como o homem louco, isto é, o homem tres-loucado, des-locado, trans-tornado, da Gaia Ciência (n. 125):
Como pudemos nós sugar o mar? Quem nos deu a esponja, para apagar todo o horizonte? O que fizemos nós, quando libertamos a terra de seu sol? Para onde ela se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos contínua e progressivamente? E para trás, para o lado, para frente, para todos os lados? Ainda existe um em cima e um embaixo? Não erramos através de um infinito nada? Não nos sopra ao rosto o espaço vazio? Não se tornou mais frio? Não cai a noite e sempre mais noite? Não terão de ser acendidas lanternas ao meio dia?
Ao evocar o dito poético de Hölderlin “…E para que ser poeta em tempos de penúria?”, Heidegger acena para a indigência dessa noite:
Longo é o tempo de penúria da noite do mundo. Esta carece, primeiro, se alongar para chegar ao seu meio mais próprio. Na meia-noite dessa noite a penúria do tempo chega ao máximo. Então, o tempo indigente não consegue nem mesmo e não mais experimentar a sua indigência. Esta incapacidade, através da qual mesmo a indigência do indigente cai no escuro, é a indigência pura e simples do tempo. A indigência se torna plenamente obscura pelo fato de que ela ainda só aparece como a carência que quer ser encoberta.
No meio da noite da indigência de nosso tempo, a indigência não é reconhecida propriamente como indigência. Não é, muito menos, suportada e assumida. Não é, ainda menos, compreendida. No máximo é advertida como carência e miséria e julgada como decadência. Pouco se sabe dela como da ressonância da necessidade do desnecessário, como o que nos constringe e constrange para a necessidade das mais próprias e elevadas possibilidades da história.
No meio dessa noite, a nossa época se caracteriza como o tempo que só conhece problemas, mas desconhece o mais próprio questionar do pensamento, que põe a pergunta de todas as perguntas, a questão do ser: “Na era da in-finita penúria que parte da oculta indigência da falta de indigência, esta pergunta tem de aparecer necessariamente como a conversa mais inútil, da qual, de resto, já se escapou a tempo”.
Nem se suspeita da possibilidade de que, em nossa época, a coragem do crer coincide com a paciência do questionar e de que aqueles que insistem e resistem nesta paciência são radicalmente crentes, não no sentido de serem confessores de algo que retêm por verdadeiro, mas no sentido de serem radicados na experiência da verdade do ser:
Os perguntadores deste tipo são os originária e propriamente crentes, ou seja, aqueles que, fundamentalmente, tomam a sério a verdade mesma e não somente o verdadeiro; aqueles que põem a decisão se a essência da verdade vige e se esta vigência carrega e conduz a nós, os que sabem, os que crêem, os que agem, os que criam, em breve, os historiais.
Estes, os historiais, enquanto os que buscam, custodiam e vigiam, são aqueles que se deixam requisitar, constringir e constranger pela necessidade mais premente: a de guardar, no ente, a verdade do ser, a de transformar a indigência do abandono do ser naquela necessidade do criar que restitui ao ente o ser abrigado na verdade do ser51. Entretanto, “somente poucos estão de pé na claridade deste raio. A maioria tem aquela ‘felicidade’ de se encontrar em algo de já dado e assim empreender, em favor do todo, o que é seu, seguindo o útil”.
Nesse tempo, o empreender impõe a aparência de ser um criar, o fazer, de ser um agir, o produzir, de ser um con-sumar: “por toda parte falta a necessidade do que cresceu, mas, com isto, falta também a abissalidade do criativo”.
Entretanto, criador é aquele que pode iniciar à medida que se dispõe a deixar-ser o vigor do início:
Pois o início é o oculto, a origem ainda não abusada e empreendida, que, sempre retirante e em retraimento, do modo mais largo sempre se capta previamente e assim custodia em si o mais elevado domínio. Este poder não desgastado da oclusão das mais ricas possibilidades do coração (do querer afinado e sabedor do evento-apropriação) é a única salvação e superação da prova54.
O pensamento que deixa-ser o vigor do início é o pensamento inicial. Este pensamento é o necessário por excelência em nosso tempo:
O pensamento inicial, enquanto con-fronto entre o primeiro início, que há de ser reconquistado, e o outro início, que há de ser desdobrado, é, a partir deste fundo, necessário; e esta necessidade constringe e constrange o pensar para a mais ampla e aguda e resistente meditação e veta toda fuga diante de decisões e todos os desvios.
O pensamento inicial tem a aparência da marginalidade e do inútil. E, no entanto, caso já se queira que se pense no útil, o que é mais útil do que a salvação no ser?.
Tal pensamento não é imediatamente necessário, se partirmos da utilidade que se atém ao real e efetivo do ente. Entretanto, enquanto se atém à singularidade e estranheza do ser, ele é, de longe, a necessidade mais necessária, a mais premente:
Porque este pensamento pensa o singular e o estranho, o ser, o que, de resto, é o mais comum e o mais corriqueiro na compreensão do ser, este pensamento permanece necessariamente raro e estranho. Mas porque ele tem em si esta falta de utilidade, tem que, imediatamente e de antemão, promover e afirmar aqueles que podem arar e caçar, manufaturar e dirigir, cultivar, construir e erigir. Ele mesmo tem que saber que, em todo o tempo, vale como esforço sem recompensa.
Este pensamento inicial, enquanto questionar, se dispõe, na disponibilidade e prontidão resoluta, para a meditação e para a perseverança paciente na indigência. De tal meditação e de tal paciência surge um saber feito de renúncia, que se dispõe à longa preparação do outro início:
Este saber se desdobra como o muito antecipador perguntar pelo ser, cuja dignidade de pergunta constringe e constrange todo criar na indigência e erige para o ente um mundo e salva o abandono da terra.
Entrar nesta indigência é reconhecer a necessidade do desnecessário. E isto é ser pobre. Heidegger, em 27 de junho de 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, medita a respeito de uma palavra de Hölderlin, que acena para o mistério desta pobreza, que é o destino de nosso tempo: “Junto de nós, tudo se concentra no espiritual. Nós ficamos pobres, para nos tornarmos ricos”.
O espiritual, aqui, não pode ser compreendido, metafisicamente, como o imaterial. É que esta compreensão do espiritual permanece presa ao material, dele se distinguindo e a ele se contrapondo. Também não pode ser compreendido como o subjetivo. O espiritual não é, per se, nem objetivo nem subjetivo. O espiritual, antes, é aquilo que sobrepuja ou está aquém a toda relação sujeito-objeto, quer esta relação se instaure numa perspectiva de conhecimento, quer numa perspectiva de ação, quer, ainda, numa perspectiva dialética de ambos. O espiritual designa, pois, uma relação anterior, mais ampla, mais alta e profunda, mais originária do que toda a relação sujeito-objeto que possa se instaurar no relacionamento do homem com o ente. Trata-se da relação ser-homem:
A relação elevada, na qual o homem está de pé, é a relação do ser para com o homem, de tal modo que o ser mesmo é esta relação, que puxa para si da essência do homem, enquanto aquela essência que está de pé nesta relação e, subsistindo nela, a custodia e a habita. No aberto desta relação do ser para com a essência do homem, nós experimentamos o “espírito” – ele é o que suavemente reina (das Waltende) vigorando a partir do ser e, presumivelmente, em favor do ser.
Que agora tudo se concentre no espiritual, isto é, que agora se dê um recolhimento que encontre o seu meio, o seu centro, na relação do ser com a essência do homem, isto é o evento. Trata-se de um evento que não pode ser constatado historiograficamente como um fato ou um conjunto de fatos observáveis, datáveis, computáveis, calculáveis. Por isso, a palavra de Hölderlin nomeia, poeticamente, um evento oculto, “que se alonga distante daqui em um vindouro, que só poucos, ou talvez só aquele que o diz e o pensa, conseguem pressentir”.
Por graça deste evento, “nós ficamos pobres, para nos tornarmos ricos”. Mas, que pobreza é esta? Não é outra senão a “pobreza no espírito”? O que é ser pobre? O que é ser rico? Qual a essência da pobreza e da riqueza? Segundo a representação usual, pobreza e riqueza, pobre e rico, se definem a partir da posse, do ter: “Pobreza é um não-ter e, precisamente, um carecer do necessário. Riqueza é um não estar privado do necessário, um ter além do necessário”.
Entretanto, esta representação usual da pobreza e da riqueza não nos ajuda a captar o essencial, pois o essencial não se dá na dimensão do ter, e sim na dimensão do ser: “A essência da pobreza repousa, no entanto, em um ser. Verdadeiramente ser pobre diz: ser de tal modo, que não careçamos de nada, a não ser do desnecessário”.
A verdadeira pobreza consiste em não poder ser sem o desnecessário e inteira e unicamente a ele pertencer.
A indigência de nossa época nos constringe e constrange para a necessidade do desnecessário. Ela, por assim dizer, como que nos obriga a ficarmos pobres. Ao ficarmos pobres e à medida que ficamos assim pobres, porém, nós nos tornamos ricos. Nós nos libertamos da constrição e do constrangimento da indigência. Daí, a força libertadora do desnecessário: “O desnecessário é aquilo que não vem da indigência, isto é, aquilo que não vem da constrição e do constrangimento, mas sim do livre”.
O livre é o que permanece intocado, guardado, o que não foi alcançado pela utilização. Somente o livre liberta. Libertar significa, aqui, poupar, no sentido de tratar com cuidado, atenção e carinho. Com outras palavras: “deixar repousar em sua própria essência, através do desvelo que custodia e salvaguarda”64. Vê-se que é muito mais do que o mero não tocar, o não-utilizar e o não explorar.
No mais próprio custodiar repousa o livre. O liberto é aquele que é deixado em seu ser e que é protegido da constrição e do constrangimento da indigência. O libertador da liberdade, de antemão, dá as costas à indigência ou a contorna. A liberdade é o que gira a indigência. Só na liberdade e no seu libertar protetor reina a necessidade. (…) Somente a liberdade é, em si, a necessidade. (…) A liberdade é a necessidade, à medida que é o que liberta, que é o necessitado não por meio da indigência, que é o des-necessário.
Agora, o que é ser pobre se determina assim: “não carecer, a não ser do desnecessário – nada mais carecer do que do livre-libertador”.
Este carecer, entretanto, tem o modo de ser do pertencer, do não poder ser a não ser na relação com ele: “Ser pobre – isto é: carecer unicamente do desnecessário, isto é, unicamente pertencer ao libertador, ou seja, estar de pé na relação com o libertador”.
Entretanto, o que é, no pensar, este livre, que é libertador? Heidegger responde:
Agora, porém, é justamente o ser, que todo ente, a cada vez e sempre de novo, deixa ser, o que é e como é, o libertador, o que deixa cada coisa repousar em sua essência, isto é, o que a cada coisa trata com cuidado e carinho.
Por graça do evento, a possibilidade impossível se transforma em impossibilidade possível, isto é, nós ficamos pobres:
Caso a essência do homem propriamente se põe de pé na relação com o ser libertador, isto é, caso a essência humana careça do desnecessário, então o homem se tornou pobre no sentido mais próprio.
E isso quer dizer: o homem se centrou e se concentrou no espiritual, vale dizer, na relação ser-homem, que é o próprio ser como evento. Na linguagem da Carta sobre o humanismo, o homem se tornou o pastor do ser:
O homem foi “lançado” pelo próprio ser na verdade do ser, a fim de que, ec-sistindo nesse lançamento, guarde a verdade do ser; a fim de que, na luz do ser, o ente apareça como o ente que é. Se e como o ente aparece, se e como Deus e os deuses, a história e a natureza ingressam, se apresentam e se ausentam da clareira do ser, isso não é o homem quem decide. O advento do ente repousa no destino do ser. Para o homem, a questão é, se ele encontra o que é “destinado” à sua essência, correspondente ao destino do ser. Pois é de acordo com esse destino, que, como ec-sistente, ele tem de guardar a verdade do ser. O homem é o pastor do ser. É somente nessa direção que pensa Ser e tempo, ao fazer, “na cura”, a experiência da existência ec-stática.
Ao se tornar o pastor que, em sua pobreza, cuida da verdade do ser, o homem se torna rico. A riqueza, aqui, não é algo que se acrescenta à pobreza, como uma conseqüência da pobreza. Ela não é, de modo algum, algo que lhe segue, como um efeito. Antes, o ser pobre é, verdadeiramente, o ser rico:
À medida que nós, a partir da pobreza, não carecemos de nada, temos tudo, de antemão, nós estamos na superabundância do ser, a qual super-flui, de antemão, toda premência da indigência.
Ser verdadeiramente pobre é ser verdadeiramente rico: é ser e estar de pé na plenitude do mistério fontal do ser, que se doa, discreta e humildemente, como evento-apropriador:
Riqueza jamais é só posse; menos ainda conseqüência da posse, pois ela é sempre o seu fundamento. Riqueza é a superfluência daquilo que garante a posse do próprio ser, em abrindo o caminho para sua apropriação e permanecendo inesgotável na oferta da maturação para o próprio.
Superfluência, porém, não é superfluidade que está sempre diante do saturado como o que lhe resta. O autêntico supérfluo é o superfluir que a si mesmo superflui e assim se supera. Numa tal superação o superfluente aflui a si mesmo de volta e experimenta que não se satisfaz a si mesmo, porque sempre já se tem superado. Mas este jamais-se-satisfazer-a-si-mesmo por ser sempre superante é a origem, o salto originário.
A riqueza é essencialmente fonte, em cuja proximidade, somente e então, o próprio se torna propriedade. A fonte é o desdobramento do uno por e para a inesgotância da sua unidade. O uno assim é o simples.
Só pode ser rico quem sabe usar livremente a riqueza e sabe antes vê-la como tal na sua essência. Isso o pode somente quem pode ser pobre no sentido da pobreza, que não é nenhuma privação. Pois, a privação sempre se enreda num não-ter, que gostaria de tudo ter com imediatez, com igual imediatez, com que ela não o tem, isto é, sem a propriedade para ter. Esta privação não brota do vigor da pobreza. A privação que quer ter não passa de indigência, que continuamente se apega à riqueza, sem poder saber da sua verdadeira essência, sem querer assumir as condições da sua apropriação.
A pobreza essencial é o vigor, a coragem do simples, que só é na originariedade.
Essa pobreza admira a essência da riqueza e sabe dali a sua lei. O querer ser rico deve ir através da superfluente superação de si. Essa via, porém, é e quer ser aprendizagem.
O evento-apropriador é o acontecer da união ser-homem. É amor, no sentido de que a pobreza do homem não quer ser a não ser na carência do ser e que a riqueza do ser não quer ser a não ser na carência do homem. A vontade do evento é o amor. Sua irradiação, alegria. Entretanto, “a pobreza é a aflitiva alegria, de nunca ser pobre o bastante. Nesta silenciosa inquietação repousa sua serenidade, que está acostumada a consolar-se de toda a penúria”.