Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Deidade: o desprendimento da liberdade

03/03/2021

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Deidade: o desprendimento da liberdade (sermão 32 de Eckhart)[1]

Introdução

A presente reflexão é comentário da tradução da primeira parte do sermão 32 das pregações alemães do Mestre Eckhart[2]. Nela Eckhart caracteriza o homem pobre dizendo: “É homem pobre quem nada quer e nada sabe e nada tem”. A primeira parte do sermão contém somente a primeira das três características do homem pobre, a saber: pobre é quem nada quer[3].

Texto

Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum (Matth. 5,3).

A bem-aventurança abriu sua boca de sabedoria e disse: “bem-aventurados, os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus” (Mt 5,3).

Todos os anjos e todos os santos, tudo que um dia foi nascido deve silenciar, quando fala a sabedoria do Pai. Pois toda a sabedoria dos anjos e das criaturas é puro nada diante da sabedoria abissal de Deus. Essa sabedoria falou: os pobres são bem-aventurados.

Há, porém, pobreza em dois modos: um é pobreza exterior. Ela é boa e muito louvável no homem que a assume voluntariamente, por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque Ele mesmo a possuiu na terra. Dessa pobreza não mais vou falar. Entrementes, há ainda outra pobreza, uma pobreza interior, que deve ser subentendida naquela palavra de Nosso Senhor, quando diz: “bem-aventurados são os pobres em espírito”.

Peço-vos assim agora, que sejais igualmente pobres, para que compreendais essa fala. Digo-vos, pois pela verdade eterna: se não vos igualardes a essa verdade da qual agora queremos falar, não me podereis compreender.

Diversas pessoas já me perguntaram o que é, pois, a pobreza em si mesma e o que é um homem pobre. A isso queremos responder.

Diz o Bispo Albrecht: esse é homem pobre, quem não tem nenhuma satisfação em nenhuma coisa que Deus criou – e isso está bem formulado. Mas nós vamos dizê-lo de modo ainda melhor e tomamos a pobreza numa compreensão ainda mais elevada: é um homem pobre quem nada quer e nada sabe e nada tem. Desses três pontos quero falar, e peço-vos por amor de Deus que, compreendais essa verdade, se puderdes. Mas se não a compreendeis, não vos inquieteis por isso. Quero, pois falar-vos de uma verdade tão jeitosa, a qual apenas  poucas boas pessoas hão de compreender.

Primeiramente dizemos que é homem pobre, quem nada quer. Muitas pessoas não compreendem corretamente o sentido dessa afirmação. Trata-se de pessoas que se prendem ao seu eu egotista nos exercícios de penitência e nos exercícios exteriores, o que elas têm em grande conta. Que delas Deus se compadeça por conhecerem tão pouco da verdade divina! Chamam-se santas em razão da aparência exterior; mas de dentro são asnos, pois não apreendem o exato sentido próprio da verdade divina. Elas também dizem certamente que é homem pobre, quem nada quer. Mas o interpretam de seguinte modo: que o homem deve viver de tal modo a jamais satisfazer sua própria vontade em coisa alguma; que antes deve aspirar a satisfazer a tão querida vontade de Deus. Nisso estão interessados esses homens, pois sua intenção é boa. Por isso vamos louvá-los. Que em sua misericórdia Deus lhes presenteie o Reino do céu. Eu, porém, digo-vos pela verdade divina, que esses homens não são realmente homens pobres, nem a eles semelhantes. São considerados grandes apenas aos olhos das pessoas que não sabem de nada melhor. Eu, porém, afirmo que são asnos e não entendem nada da verdade divina. Que, por causa de sua boa intenção possam alcançar o Reino dos céus. Mas da pobreza, da qual agora quero falar, nada sabem.

Se alguém me perguntasse agora, mas o que é, pois: um homem pobre que nada quer, a isso respondo e digo assim: enquanto o homem tiver ainda em si isto de ser sua vontade, querer satisfazer a mais amada vontade de Deus, esse homem assim não tem a pobreza, da qual queremos falar. Pois ele ainda tem uma vontade, com a qual quer satisfazer a vontade de Deus, e isso não é verdadeira pobreza. Portanto, se o homem deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão livre de sua vontade criada como o era quando ainda não era. Eu vos digo, pois, junto à verdade eterna: tanto quanto tendes a vontade de satisfazer a vontade de Deus e o anelo da eternidade e de Deus, tanto assim não sois corretamente pobres; pois só é homem pobre, quem nada quer e nada cobiça.

Quando eu estava na minha causa primeira, então eu não tinha Deus, e era a causa de mim mesmo. Eu nada queria, nada cobiçava, pois eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da verdade. Então eu queria a mim mesmo e nada mais; o que eu queria, isto era eu, e o que eu era, isto queria eu, e aqui eu estava livre de Deus e de todas as coisas. Quando, porém, saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus; pois antes que fossem as criaturas, Deus ainda não era “Deus”: ele, muito mais, era o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então Deus não era em si mesmo Deus, mas, nas criaturas, era ele Deus.

Dizemos então que Deus, enquanto é apenas “Deus”, não é o mais elevado fim da criatura. Pois a tal excelência do ser tem também a menor das criaturas em Deus. E se fosse assim que uma mosca tivesse mente e que pudesse por via da mente buscar o abismo eterno do ser divino, de onde ela veio, diríamos então que Deus, com tudo isso que ele é enquanto “Deus”, não poderia sequer dar plenitude e satisfação a essa mosca. Por isso pedimos a Deus que nos tornemos livres de “Deus” e que apreendamos a verdade e a fruamos eternamente lá, onde os anjos supremos e a mosca e a alma são iguais, lá onde eu estava e queria o que eu era, e era o que queria. Digamos, pois assim: se o homem deve ser pobre em vontades, deve querer e cobiçar tão pouco como queria e cobiçava quando ele ainda não era. E nesse modo é pobre o homem que nada quer.

Comentário

Diz Eckhart: É homem pobre quem nada quer. O verbo quer está destacado em itálico. O  destaque gráfico poderia nos orientar para entendermos o querer nada, no sentido de um querer potecializado. Embora não se tenha objeto do seu querer por ser aqui objeto nada, em nada se diminui a potência do querer; pelo contrário aumenta. A nulidade do que se quer não influi no vigor do querer, mas pelo contrário, o impulsiona a mais querer, a ponto de em se dizendo tudo quer ou nada quer, este parece exigir um querer maior do que aquele. Um querer que se estenda para além de tudo ou que não necessite de nada para querer. Nessa acepção nada quer deve ser entendido não como não querer o querer, mas sim como querer o não querer[4].

Por outro lado, nada quer pode ser entendido na acepção da expressão “Meu irmão está tão abatido que não quer nada”. Aqui o nada querer não está dizendo que se queira o não querer, mas sim que se está na astenia da vontade, que se está sem vontade. Assim, nesse caso nada querer é um estado de deficiência na vontade, cujo querer não é mais querer, mas sim total indiferença, portanto abulia.

Pobre é, portanto, homem que nada quer no sentido da deficiência da vontade, i. é, aquele que não tem vontade?

À pergunta, Eckhart nos responde, reproduzindo a opinião usual de que o homem pobre “deve viver de tal modo a jamais satisfazer sua própria vontade em coisa alguma; que antes deve aspirar a satisfazer a tão querida vontade de Deus”. Portanto segundo essa opinião, nada querer não tem nada a ver com abulia, mas sim com não satisfazer minha própria vontade em coisa alguma; e somente querer satisfazer a tão querida vontade de Deus. Por conseguinte nada querer não é não querer, mas sim querer absoluta e totalmente só a Vontade de Deus[5]. Entrementes, diz Eckhart das pessoas que possuem tal opinião:

“Nisso estão interessados esses homens, pois sua intenção é boa. Por isso vamos louvá-los. Que em sua misericórdia Deus lhes presenteie o Reino do céu. Eu, porém, digo-vos pela verdade divina, que esses homens não são realmente homens pobres, nem a eles semelhantes. São considerados grandes apenas aos olhos das pessoas que não sabem de nada melhor. Eu, porém, afirmo que são asnos e não entendem nada da verdade divina. Que, por causa de sua boa intenção possam alcançar o Reino dos céus. Mas da pobreza, da qual agora quero falar, nada sabem”.

O que é, pois: um homem pobre que nada quer? Diz Eckhart: “Se alguém me perguntasse agora, mas o que é, pois: um homem pobre que nada quer, respondo e digo assim: enquanto o homem tiver ainda em si isto de ser sua vontade[6], querer satisfazer a mais amada vontade de Deus, esse homem assim não tem a pobreza, da qual queremos falar. Pois ele ainda tem uma vontade, com a qual quer satisfazer a vontade de Deus, e isso não é verdadeira pobreza. Portanto, se o homem deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão livre de sua vontade criada como o era quando ainda não era. Eu vos digo, pois, junto à verdade eterna: tanto quanto tendes a vontade de satisfazer a vontade[7] de Deus e anelo da eternidade e de Deus, tanto assim não sois corretamente pobres; pois só é homem pobre, quem nada quer e nada cobiça”.

À primeira vista tudo isso soa como se Eckhart afirmasse a total e absoluta exclusão do querer ou mais ainda da vontade. E essa exclusão parece resultar num estado de total apatia, ou, mais precisamente, de total aniquilação da vontade: “Portanto, se o homem deve possuir verdadeiramente pobreza, deve estar tão livre de sua vontade criada como o era quando ainda não era[8]”. O que é, porém, quando ainda não era? O que não é chama-se nada! O que ainda não é chama-se também nada. Mas e o que é “quando ainda não era” é também nada no mesmo sentido do “que não é” e do “que ainda não é”?[9]. Entretanto, no que concerne tanto ao ser como ao não ser, diz Eckhart com precisão: que o homem pobre “deve estar tão livre de sua vontade criada como o era, quando ainda não era”[10]. O que quer dizer essa formulação? “Estar livre da sua vontade criada” dá para entender. Mas, o que quer dizer “como o era quando ainda não era”?

O que “não é”, e muito mais o que “ainda não é”, é nada, mas é o que pode ser. O que é, pode ser não ter sido, portanto, pode ser o que é quando ainda não era. Eckhart parece assim insinuar que se dá ser além ou aquém do ser e não ser atual. E diz Eckhart:

“Quando eu ainda estava na minha causa primeira, então eu não tinha Deus, e era a causa de mim mesmo. Eu nada queria, nada cobiçava, pois eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da verdade. Então eu queria a mim mesmo e nada mais; o que eu queria, isto era eu, e o que eu era, isto queria eu, e aqui eu estava livre de Deus e de todas as coisas. Quando, porém, saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus; pois antes que fossem as criaturas, Deus ainda não era “Deus”: ele, muito mais, era o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então Deus não era em si mesmo Deus, mas, nas criaturas, era ele Deus”.

Ao ler essa resposta, imediatamente ligamos as afirmações: “Quando eu ainda estava na minha causa primeira…” e “quando ainda não era” e “quando saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado”. Eckhart parece, pois, se referir à criação, a saber, ao homem no seu surgir, i. é, ao ser do homem enquanto criatura. E segundo a doutrina metafísica tradicional da Criação, a causa primeira é o Deus Criador[11]. No entanto, no sermão de Eckhart, essa referência à criação, insinua uma complexidade que nem sempre é refletida quando falamos da criação como causação das criaturas[12] por um ente supremo, Deus. Pois diz Eckhart:

Quando “recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus; pois antes que fossem as criaturas, Deus ainda não era ‘Deus’: Ele, muito mais, era o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então Deus não era em si mesmo Deus, mas, nas criaturas, era Ele Deus”.

Assim, segundo o que segue no sermão, aqui “quando eu ainda estava na minha causa primeira, e então era a causa de mim mesmo; quando nada queria, nada cobiçava, porque eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da verdade; quando eu queria a mim mesmo e nada mais; e quando o que eu queria, isto era eu, e o que eu era, isto queria eu; e quando eu estava livre de Deus e de todas as coisas” – aqui portanto – a causa primeira, no ser e tempo de todos esses quandos, não deve ser identificada com a primeira causa como, causador do universo criado na acepção categorial metafísica de causa e efeito. Há, pois, Deus antes da criação e depois e com a criação? Do mesmo modo, há  homem antes da criação e depois e com a criação? Há também ser e tempo antes da criação e depois e com a criação?

Mas, isto significa que há uma realidade, um ser para além do supremo ser, há um quando para além da eternidade, um Deus para além do deus, criador?  Refere-se a essa distinção, quando Eckhart distingue entre deus e deitas, entre ser e nada?

Mas de quem é essa estranha fala que diz: “Quando eu ainda estava na minha causa primeira, então eu não tinha Deus e era a causa de mim mesmo”? Do homem “tão livre de sua vontade criada como o era quando ainda não era”, do homem antes da criação”[13]? Não é, porém, absurdo algo como criatura humana antes da criação, cuja fala soa num tom de ‘superioridade’ presunçosa: “Quando saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu tinha um Deus, pois antes que fossem criaturas, Deus ainda não era “Deus”[14]?

Mas o que há de estranho nessa resposta de Eckhart? Não está falando da alma cristã e da sua decisão de ser em Deus? Da união da alma fiel a Deus na intimidade com Ele? Da experiência mística subjetiva e privativa do homem, cuja crença é mundividência? Mas e essa fala toda abstrata e metafísico-especulativa do modo de ser do homem como era quando ainda não era; do homem quando ainda estava na sua causa primeira? O verbo ser no contexto da formulação “era quando ainda não era”; o verbo estar no seu contexto da formulação “quando ainda estava na sua causa primeira”; e a própria expressão causa primeira significam uma “realidade” subjetiva ou objetiva?

Essa pergunta poderia ser respondida de antemão, sem tanto senões e complicações, se dizendo que: nos sermões alemães, trata-se da ‘realidade’ subjetiva da experiência e vivência pessoal privativa da ‘alma’ religiosa, aqui cristã-medieval católica. Ao passo que nas suas obras filosófico-teológicas, escritas em latim, Eckhart tenta elucidar todos esses fenômenos religiosos, digamos psicológico-subjetivo-pessoais da alma religiosa cristã, numa especulação teorética filosófico-teológica, em uso na Idade Média. E a quem pertence por convicção ao que se chama usualmente de Religião cristã, todas essas especulações são místico-teológicas, e se referem não apenas às vivências subjetivas pessoais dos crentes, mas à realidade sobre-natural (sobre-natural, em latim super-naturale, em grego meta-physika), transcendente, para além de toda e qualquer tentativa de explicação natural, de modo que o que Eckhart diz é a tentativa suprema de dizer o que por intelecto apenas humano não pode ser captado ‘positivamente’, mas apenas ‘negativamente’, i. é,  o que essa ‘realidade sobrenatural’ não é. E o que é positivamente essa ‘realidade’ do além, só se pode captar pela Fé cristã. E esta crença cristã não pode dispensar a tese de que aqui se trata de uma realidade realíssima, por excelência, absoluta e perene, portanto não apenas subjetiva, mas sim em grau supremo ‘objetiva’. Entrementes quem não pertence à acima mencionada ‘Fé Cristã’, por mais que se respeite uma tal convicção e a conduta ética coerente que dali pode surgir, não pode, se quiser permanecer sincero consigo mesmo, admitir que uma tal explicação, especulação ou teoretização esteja referida à ‘realidade’ objetiva em si. Para ele tudo isso não passa de um processo de explicitação do que chamamos de mundividência, i. é, dum determinado modo que as pessoas ou grupo de pessoas tem, de interpretar e viver o mundo e a vida. Como tal, mundividência não é outra coisa do que crença subjetiva, não fundamentada num saber objetivo, comprovado e universal como o seria no caso do conhecimento científico. Assim, por mais sublime que seja o que Eckhart fala nos seus sermões e nos seus tratados filosófico-teológicos especulativos, não passa da expressão de uma crença, mundividência, subjetiva e privativa dos cristãos.

Essa colocação é bem razoável e correta. Explica também porque Eckhart uma vez fala de “querer, não saber e não ter”, portanto do aspecto antropológico, subjetivo, i. é, referido ao sujeito-homem e seu agenciamento e outra vez de “ser e não ser, do nada, do quando ainda não era”, portanto do aspecto ontológico, objetivo, i. é, referido ao ‘objeto’, “coisa”, ao que é em si, anterior à existência ocorrente e ao relacionamento desse sujeito-homem com a ‘coisa’ existente. No entanto, ao classificarmos a fala e o saber de Eckhart nos seus sermões espirituais como ponto de vista da fé, a saber, da mundividência ou crença subjetiva de um grupo denominado cristão, teísta ou crente, contrapondo-os a uma ‘evidência objetiva’ de um saber sistemático comprovado ou a ser comprovado pela constatação objetivo-científica de confronto com a ‘realidade’; portanto, em operando também na divisão binômia do subjetivo-objetivo, qual dessas “vidências” detém a primazia do critério da realidade do sentido do ser?

Nisso tudo, entrementes, é interessante observar que todos os nossos arrazoados acerca do ser e não ser, portanto da ‘realidade ontológica’ (objetiva!?) e do querer e não querer, portanto da ‘realidade antropológica’ (subjetiva!?), o sentido do ser é simplesmente pressuposto tanto para o otológico como para o antropológico como obviamente comum, geral a ambos, de modo indeterminado. Esse sentido do ser obviamente pressuposto e tido como indeterminado e sem problema, sem tematizar em que consiste essa sua indeterminação e obviedade, esconde um problema que dificulta uma melhor aproximação na compreensão do que Eckhart nos propõe no seu sermão 32. O problema consiste numa suspeita. Na suspeita de que a pré-compreensão do sentido do ser comum tanto ao ontológico como ao antropológico na sua indeterminação generalizante, com o qual operamos hoje, e a compreensão toda própria do sentido do ser, operante na estruturação do universo na visão medieval são bem diferentes; e nos convida examinarmos um pouco, ainda que de modo bastante diletante e deficiente essa diferença. Eis o resumo da estruturação do universo na visão medieval, cujos dados foram ajuntados dos manuais usuais da história da filosofia:

Na explicação da concepção medieval do relacionamento ‘entre’ Ser (comum) e ente (duas grandes regiões do ente na sua totalidade, a saber, mundo sensível e mundo supra sensível) se diz que não se trata de relacionamento do gêneroespécie (= gênero + diferença específica, cf. árvore porfiriana). Portanto a comunidade do Ser não é a do gênero. Assim, essa comunidade sui generis do Ser se denomina transcendental (no sentido da metafísica medieval). Ser não é pois o gênero supremo que no caso da árvore porfiriana estaria implícito na espécie Homem (gênero  animal + diferença específica racional); nem gênero ínfimo, implícito na espécie substância sem vida: matéria). Pois transcende, vai para além dessa imensa região dos entes que compõem os degraus do ente que vai desde a matéria sem vida  até o homem, dotado de razão ou espírito (matéria → planta → animal → homem) = (substância → vivente (substância + vivente) → animal (vivente + sensível) → homem (animal + racional). Nessa imensa região dos entes, onde vale o relacionamento mútuo entre os degraus do ente, cuja esquematização é atribuído a Porfírio (circa 232 – circa 304) sob o título de árvore porfiriana como referência de composição entre gênero + diferença específica → para formar uma espécie, em vez de referimento gênero, diferença específica, espécie, se usava também o relacionamento mútuo do binômio matéria e forma em diferentes processos ascendentes de composição. Ser não está presente nessa escalação dos degraus do ente a modo de gênero, pois está a cada momento presente também no gênero, na diferença específica e na espécie e ultrapassando essa região dos entes visíveis do mundo sensível, se torna presente de modo cada vez mais excelente na imensa região do ente onde se dão os entes espirituais. Assim no próprio homem, na racionalidade que constitui a sua diferença específica surgem degraus ou melhor intensidades da presença do Ser como intellectus, spiritus, e mens; e nos entes espirituais que não são humanos, mas dotados de conhecimento e vontade, portanto  nas diferentes regiões ascendentes dos espíritos se dão as diferentes hierarquias dos ‘coros’ celestes, portanto dos anjos, até tudo culminar no ente supremo, transcendente denominado Deus. Aqui nessa região dos espíritos o processo de intensificação hierárquica da presença do Ser na sua excelência se dá através da mútua implicação do binômio potentia-actus e não mais do binômio matéria-forma. O ente supremo, Deus, é chamado então de actus purus.  Aqui o ente supremo, Deus é o ente, cuja entidade consiste em ser ipsum esse ou suum esse, i. é, ser Ser por excelência, de tal modo que Nele o Ser e o ente coincidem. Essa coincidência é tal que propriamente Deus contém o Ser todo, a ponto de “fora” Dele não poder haver Ser no sentido próprio e originário. Mas então o que acontece com os entes criados que não são Deus? Que ‘realidade’ é essa que contem em si o Ser todo, e é fonte de todos os entes, sem que os entes assim participantes do Ser não sejam eles mesmos o próprio Deus, seu prolongamento? E observemos que aqui nessa pirâmide de hierarquia dos entes, o Ser não deve ser entendido como gênero supremo agora num nível mais sublime e hierarquicamente superior da realidade do mundo supra-sensível. É que a presença do Ser, no ente supremo, Deus, nos anjos, nos homens, nos animais, nas plantas e na matéria, digamos desde a excelência suprema da divindade até ao pó e esterco ínfimo do chão, portanto, a comunidade do ser é tal que está presente tout court em todos os entes e em todos os momentos e composições dos entes, sejam eles de que grau forem.  Assim o Ser é onipresente em todos os entes, certamente em níveis de intensidade de ser diferentes, mas realmente (?!). Mas então como evitar que tudo isso não seja panteísmo; que os entes não sejam prolongamento de Deus? Assim na tentativa de evitar o panteísmo e de salvaguardar a identidade de Deus e a identidade dos entes como cada qual sendo em si, surge a questão da analogia entis (Sto Tomás) e univocitas entis (Duns Scotus) com tudo que ela implica. E no nominalismo posterior à época áurea dessa concepção do pensamento medieval, Ser perde todas essas conotações ‘reais’ ontológicas para se reduzir aos poucos à pura abstração conceitual lógica, ens rationis, e por fim apenas ressonância vocal (flatus vocis), portanto termo vocal ou gráfico que não têm nenhuma correspondência real fora da mente, ou mesmo nem sequer na mente.

Se agora examinarmos atentamente o resumo bastante simplificado e indiferenciado da História do sentido do ser no pensamento medieval acima proposto, podemos ali divisar, ainda que não nitidamente, a seguinte situação: há algo não dito nesse caráter comum do ser enquanto transcendental, silenciado como fundo indeterminado do sentido do ser, que na nossa acepção usual, cotidiana, óbvia e autoevidente é considerado como o sentido geral, lógico do conceito ser[15]. Esse sentido geral é fixado na nossa linguagem comum usual com o termo algo. Tentemos examinar mais em detalhe o uso desse termo algo, dando um exemplo. Michel Foucault, no livro As palavras e as coisas[16] reproduz um trecho de Jorge Borges, onde se fala de “uma certa enciclopédia chinesa”, onde está escrito que “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, f) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.

Todas essas entidades de diversas procedências, modo de ser, realidades e sentido, podem ser, no entanto, ajuntadas num conjunto, sob o termo algo. Se aplicarmos esse modo de classificar as realidades no conjunto assinalado algo à ‘realidade’ da ordenação do mundo dos medievais, poderíamos afirmar: não sei bem o que seja Deus, anjos, homem, animal, planta e matéria. Não sei bem o que seja alma, espírito, a realidade interior e a realidade exterior, o que seja deidade e Deus nas criaturas em Eckhart; não sei o que seja subjetivo, objetivo, o que seja lógico, psicológico-antropológico, ontológico; não sei bem o que seja ser e nada: mas sei muito bem que cada um desses ‘itens’ pode ser predicado por algo, dizendo: deidade é algo; matéria é algo; conceito lógico é algo; a vida interior da alma é algo; e também nada é algo (!?)…

Aqui, entrementes, ficamos perplexos. E de imediato objetamos: nada não pode ser algo; pois nada diz exatamente que é não algo. Logo, porém, nos corrigimos, observando: por que então dizemos é não algo? Não é assim que até do próprio nada dizemos que é nada? Mas a cópula é apenas termo de ligação, não possui nenhum conteúdo. Por isso no ‘nada é algo’ e no “nada é não algo” o significado do é permanece inalterável, vazio, apenas ligação entre sujeito e predicado…

Ou não poderia ser bem diferente a situação? Em que sentido? No sentido de que essa pura função lógica copulativa do verbo ser, sem conteúdo, sem nenhuma implicância nem com a “realidade” ontológica nem antropológica, ou melhor, anterior a toda e qualquer tendência de “inclinação concrescível” para o lado objetivo ou subjetivo, portanto, o comum dessa generalização formal, apenas impossibilitada pelo princípio de não contradição, esconde, debaixo de sua neutralidade e lisura formal, abismo de amplidão, profundidade e vitalidade criativa, que  mal contido, vibra numa pulsação infinitesimalmente tão diferenciada, suave e retraída para dentro da sua identidade profunda, qual tinir do silencio abissal, qual pudor do ocultamento, a ponto de não percebermos  a não ser, como que de longe, de fora, como a extensão superficial do seu ‘desprendimento’ ora como o a-priori lógico da objetividade empírico-fisicista (algo), ora como a infinitude da possibilidade ilimitada do horizonte de fundo da subjetividade transcendental[17] (nada). E nesse a-priori da objetividade empírico-fisicista e na infintude do horizonte de fundo da subjetividade transcendental, portanto, nesse algo e nada parece estar sedimentado um bem determinado sentido do ser que de antemão se estabelece como tonância fundamental de todas as coisas sem distinção. O é, portanto, já está ocupado de antemão pelo sentido do ser que está implícito na palavra algo, quando dizemos disso e daquilo, quando predicamos de tudo e de nada: é algo. Assim, para que se seja ou não se seja, já se deve estar de alguma forma no horizonte do algo. Mas, o que é algo? A pergunta na sua suposição parece insinuar que algo é quê. E, o quê? É a forma, a mais abstrata, a mais desidratada, ou melhor, desvitalizada do que a tradição do ocidente chamou de substância. Substância que na escala do ser dos medievais, é a da substância mais ínfima, a do gênero ínfimo implícito na espécie ínfima, i. é da matéria, e esta por sua vez ainda mais despojada de toda e qualquer resquício de “realidade”, portanto apenas como pura possibilidade. Isto significa que no horizonte do algo, nenhuma outra entidade da ordenação do mundo sensível pode aparecer na sua diferença específica e muito menos da ordenação do mundo supra-sensível na sua identidade diferencial própria na hierarquia da escalação do ser do esquema medieval. Assim, nivelando todas as diferenças ao nada, esse horizonte substancialista formal e abstrato permite que tudo seja assegurado como algo, sem conteúdo, a não ser como núcleo vazio de ponto de referência da possibilidade de ser, cujo sentido unívoco e homogêneo se torna garantia da realidade e da objetividade. Assim, o ser da vida (planta), o ser da sensibilidade (animal), o ser da razão (homem), o ser do conhecimento, da vontade, do amor, do espírito em mil e mil diferentes variações e intensidades, o ser de Deus, da divindade, e o próprio ser da matéria e do nada, da possibilidade e da realidade, se retrai para o fundo, não vem à fala, e é considerado como menos ser, como não ser em si, e apenas como um acréscimo, propriedade, acidente do quê: isto é do ser (=substância ínfima ajeitada e formalizada a modo de um sentido universal básico)[18].

Como seria tudo isso, se a situação de fundo das pré-suposições do sermão 32 de Eckhart, no que diz respeito à ordenação dos entes no ser fosse diferente, sim contrário do que acima expomos, referido ao sentido do ser cuja fixação toma a forma de algo? Mas em que sentido, contrário? Contrário no sentido de na ‘ontologia’ medieval, ser é Deus (e não: Deus é ser). E isso de tal maneira que, se digo ser, já disse Deus e se digo Deus, já disse ser: Deus est suum esse. Toda a dificuldade de com precisão perceber o sentido do ser que aqui opera, é de se ficar inteiramente livre do horizonte do sentido do ser geral e formal, cuja determinação aparece como algo, acima explicitado. Para de alguma forma facilitar essa percepção imediata do sentido do ser pulsante na formulação medieval Deus est suum esse, experimentemos uma hipótese: na ordenação ascendente da intensidade do ser na hierarquia dos entes que vão da esfera da matéria até a suprema esfera do anjo, portanto do espírito supremo, e para além até o próprio Deus como suum esse, o que constitui o sentido do ser não é a substância (entendida no horizonte algo), mas sim a diferença que na preponderância do algo como o sentido básico do ser, se retrai e não vem à fala. Aqui a intensidade do ser, a excelência do ser não é avaliada pela substância como tal, em geral, mas a própria substância recebe o sentido do seu ser, segundo a qualificação diferencial que lhe é atribuído como sua propriedade. Assim o ser da substância homem deve ser captado a partir e dentro da percepção imediatamente própria da “racionalidade”. O mesmo vale da racionalidade na sua ‘intensificação’ ontológica como intellectus, spiritus, mens; e a fortiori de todos os “graus” acedentes dos coros angélicos, i. é, dos espíritos “celestes” que desembocam em Deus, Criador, fonte de todos os entes; e para mais além, como três pessoas do Deus uno e trino. Portanto, o recolhimento abissal para dentro da unidade da diferença da sua identidade, ser livre e solto, desprendido em si mesmo, o suum esse Deus, a Deitas diz de si:

“Quando eu ainda estava na minha causa primeira, então eu não era ainda Deus, e era a causa de mim mesmo. Eu nada queria, nada cobiçava, pois eu era um ser livre e solto e um conhecedor de mim mesmo na fruição da verdade. Então eu queria a mim mesmo e nada mais; o que eu queria, isto era eu, e o que eu era, isto queria eu, e aqui eu estava livre de ser Deus e de ser Ser de todas as coisas. Quando, porém, saí da livre decisão da vontade e recebi o meu ser criado, então eu era um Deus; pois antes que fossem as criaturas, eu ainda não era “Deus”: era, muito mais, o que era. Quando as criaturas se tornaram e receberam seu ser criado, então eu não era em mim mesmo Deus, mas sim nas criaturas, eu era  Deus”.

De imediato protestamos contra tal violência de interpretação, mostrando que no sermão 32 de Eckhart essa fala, não é de Deus, mas sim da alma, da criatura-homem. Entrementes, porém, é fala do homem pobre que nada quer. Que nada quer, tão livre de sua vontade criada como o era quando ainda não era. Isto é, quando ainda estava na sua causa primeira. Na mente do Deus criador? No projeto, no planejamento de Deus como idéias eternas, como sua representação? Mas esse Deus, Criador, sujeito e agente do ato de Criação, portanto a causa do efeito-criaturas, não coincide com a causa primeira do texto acima citado de Eckhart, como já comentamos antes. Não somente não coincide, mas esse Deus Criador não é propriamente Deus no seu ser próprio, “livre e solto, conhecedor de si mesmo na fruição da verdade”, mas ele mesmo ainda um ser criado, co-criado juntamente com as criaturas[19], algo como o fundo, horizonte a partir e dentro do qual se tornam possíveis as criaturas, algo como condição da possibilidade do ser das criaturas: portanto não mais Deus no seu desprendimento, na plenitude da solidão e liberdade da diferença da sua identidade, a saber, na sua Abgeschiedenheit. Isto significa que há no ser do homem uma ‘realidade’ igual à deidade na sua Abgeschiedneheit? Essa ‘realidade’ não é res, não é algo, não é substância, mas a própria intimidade do Deus uno-e-trino no seu abissal recolhimento para dentro da sua identidade; o encontro da união de Deus e Homem no mistério da Filiação divina: o ser do homem como filiação divina, a saber, ser tout court igual a Deus na sua Abgeschiedenheit. É por isso que a última parte do texto que fala do homem pobre, como aquele que nada quer diz Eckhart no seu sermão 32:

“Dizemos então que Deus, enquanto é apenas “Deus”, não é o mais elevado fim da criatura. Pois uma tal excelência do ser tem também a menor das criaturas em Deus. E se fosse assim que uma mosca tivesse mente e que pudesse por via da mente buscar o abismo eterno do ser divino, de onde ela veio, diríamos então que Deus com tudo isso que ele é enquanto “Deus”, não poderia sequer dar plenitude e satisfação a essa mosca. Por isso pedimos a Deus que nos tornemos livres de “Deus” e que apreendamos a verdade e a fruamos eternamente lá, onde os anjos supremos e a mosca e a alma são iguais, lá onde eu estava e queria o que eu era, e era o que queria. Digamos, pois assim: se o homem deve ser pobre em vontades, deve querer e cobiçar tão pouco como queria e cobiçava, quando ele ainda não era. E nesse modo é pobre o homem que nada quer”.

Conclusão

O ser de Deus, a deitas, a unidade e unicidade da Abgeschiedenheit não pode ser percebido nele mesmo a não ser nele mesmo, a partir dele, sem nenhum ponto comum de comparação, portanto na solidão perfeita da sua propriedade. Isto dito de outro modo, o ser de Deus é simplesmente Abgeschiedenheit. Como, porém, compreender essa unicidade única, se ela é radical outra, inacessível a todas as nossas compreensões, de antemão? Não é assim que exatamente por causa dessa inacessibilidade, tudo que nós sabemos, dizemos e compreendemos desse ser-Abgeschiedenheit é o que ele não é? É daí que vem a classificação do pensamento de Eckhart como um dos representantes mais coerentes e exigentes da teologia negativa.

No entanto, se observarmos atentamente tudo que viemos refletindo até agora, a solidão ab-soluta da Abgeschiedneheit não diz inacessibilidade. Pois, inacessível se refere, queiramos ou não, ao querer, saber e ter. E aqui, querer, saber e ter são compreendidos de alguma forma como atos do sujeito homem, atos através dos quais tenta se adequar ao seu ‘objeto’ Abgeschiedenheit. Portanto, dito com outras palavras toda essa maneira de considerar o pensamento de Eckhart, já está de antemão na perspectiva da Teoria de conhecimento. Isto significa que se fala do ser não ontologicamente, mas ‘epistemologicamente[20]. Mas não é a grande conquista da Teoria de Conhecimento, ela nos ter mostrado que todo e qualquer ‘contacto’ com o ser, i. é, com a ‘realidade’ se dá mediante o conhecimento? Que a teoria do conhecimento é a Prima philosophia, o saber o mais geral e abrangente que se refere a todos entes, sejam de que tipo forem, portanto trata do ente enquanto ente?[21]

Entrementes, na reflexão feita acima acerca da ascendente qualificação do sentido do ser, na ordenação do universo, na medida em que passamos da esfera ínfima (matéria, substância-algo) para as esferas do reino dos espíritos, nos adentrando para dentro da dimensão de Deus-Deidade, o que dita a medida da excelência de ser são as propriedades diferenciais da identidade do ente de cada esfera, até em Deus encontrarmos um ente único, singular, incomparável que é o sentido de ser nele mesmo, de tal modo que esse ente é o suum esse, o Ser simplesmente. Mas em que consiste esse proprium diferencial que identifica o Ser simplesmente? Eckhart responde: Abgeschiedenheit. Outros pensadores medievais de modo geral responderiam: o ser a se, a Aseidade. Não haveria um outro termo mais acessível para nós hoje, em vez de Abgeschiedenheit e Aseidade? O próprio Eckhart usa de vez em quando a palavra Liberdade. E recordemos que abgeschieden é traduzido usualmente como desprendido, Abgeschiedenheit como Desprendimento. E desprendido e desprendimento deve ser lido diretamente como não preso, solto, livre. Isto quer dizer: solto, livre, à vontade no próprio de si mesmo que é Liberdade[22]. E o ser da Liberdade não pode ser captado no horizonte do sentido do ser entendido como algo, seja esse algo algo sem vida, algo com vida, algo humano, algo espiritual ou algo divino, por ser esse horizonte algo modo deficiente da pré-compreensão do ser, cuja plenitude se expressa como Abgeschiedenheit. Com o risco de no fim criar uma compreensão totalmente equivocada de tudo que dissemos, poderíamos experimentar dizer que o ser da Abgeschiedenheit é Pessoa, não no sentido psicológico-antropológico (sujetivo-objetivo), mas de novo no sentido todo próprio no seu uso operativo, quando Eckhart ‘descreve’ a igualação da alma e Deus e de Deus e alma na união íntima incondicional como sendo alma e Deus a unidade da dinâmica da nossa Filiação Divina no ‘interrelacionamento’ trinitário das ‘três’ ‘pessoas’ na Unicidade da Abgeschiedenheit[23] Numa tal colocação que parece constituir o fundo silenciado do sermão acerca da pobreza como nada querer, nada saber, nada ter, Eckhart não nos convida a nos recolocarmos de modo totalmente novo na questão do sentido do ser?[24] Concluamos esse comentário desengonçado com um trecho do sermão n. 1 das pregações alemães do Mestre Eckhart:

“Quando esse templo[25] se torna (…) livre de todos os impedimentos (…) brilha tão belo e esplende tão puro e claro por sobre tudo e através de tudo que Deus criou, que ninguém pode lhe ir de encontro com igual esplendor,a não ser unicamente o Deus incriado.  E em plena verdade: a esse templo ninguém é igual a não ser somente o Deus incriado. Tudo que está abaixo dos anjos se iguala, de modo algum, a esse templo. Mesmo os anjos, os mais elevados, só se igualam a esse templo da alma nobre até um certo grau, mas não plenamente. Que eles se igualem à alma em certa medida, isso vale para o conhecimento e o amor. Todavia, foi-lhes posto um acabamento;para além do qual não podem ir. Mas a alma pode muito bem ultrapassá-lo. Se uma alma –e, a propósito, a de um homem que ainda vivesse na temporalidade – estivesse na altura igual ao mais elevado dos anjos, esse homem poderia, assim, sempre ainda, em sua possibilidade livre, alcançar imensuravelmente mais alto por sobre o anjo, a cada instante, novo, sem número, i. é, sem modo e por sobre modo do anjo e de toda a razão criada. Só Deus é livre e incriado, e por isso só Ele é igual a ela segundo a liberdade, não, porém, em vista da in-criaturidade, pois ela é criada. Quando alcança a luz sem mistura, a alma percute para dentro do seu nada, no nada, tão distante do seu algo criado que, pela sua própria força, não pode por nada retornar ao seu algo criado. E Deus com a sua incriabilidade, se coloca sob o nada da alma e a mantém no Seu algo. A alma ousou tornar-se nada e também por si mesma não pode se alcançar a si mesma, tanto assim ela se esvaiu de si mesma antes de Deus ter-se colocado de baixo dela”[26].

E diz o sermão 32: “É homem pobre, quem nada quer e nada sabe e nada tem”, a não ser senão o toque da percussão do silêncio na fala da abissal sabedoria do Pai, que em seu Filho nos “amou primeiro” (1Jo 4, 10) iguais a seu filhos.

Seria dizer demais, suspeitar que hoje mais do que nunca, na redução nominalista-positivista do sentido do ser a simples algo; e na liquidação desse algo como resto do quê da substancialidade abstrata formal ao puro fluir das seqüências de funcionalidades virtuais; sem o querer, sem o saber, sem o poder, estamos na possibilidade de alguma forma, ser feridos e nos tornar mais dispostos a nada querer, nada saber e nada ter?


[1]  Esse texto foi publicado no primeiro número da Revista Scintilla, da Faculdade de Filosofia São Boaventura, Curitiba 2004.
[2] O texto que serviu de base para a tradução foi tirado de “Meister Eckhart (Deutsche Predigten und Traktate), editados e traduzidos para o alemão moderno do alemão medieval, por Josef Quint, Carl Hanser editora, Munique 1963, pp. 303-305.
[3] No texto desse sermão de Eckhart, onde aparece no abismo do mistério do que denominamos Deus no termo Deidade  (deitas) e Abgeschiedenheit (Desprendimento), se acena para lá, onde se encontra o sentido, o mais originário da Liberdade dos filhos de Deus.
[4] Poder-se-ia dizer que no tudo querer, querer depende de tudo, como do objeto; ao passo que no nada querer, o querer é puro querer como querer o querer do seu querer? Mas, sempre ainda querer.
[5] Para querer o querer de Deus, se supõe do querer uma potência infinitamente maior do que querer ou não querer um querer humano. Nesse sentido poder-se-ia achar bem viável o raciocínio: se tivesse uma vontade do ‘tamanho’ da vontade de Deus poderia querer fazer a vontade de Deus, poderia satisfazê-la plenamente. Esse raciocínio, no entanto, não se vê, pois uma tal escalação da vontade, apenas pontencializa em infinito a vontade entendida como ato do querer humano. É como perguntássemos diante da grandeza da nobreza de uma mãe que doa sua vida para salvar seu filho: quantos metros tem essa nobreza?
[6] Usualmente entendemos a ‘proibição’ de não fazer a sua vontade própria, para fazer somente a vontade de Deus como o ponto nevrálgico da questão. No entanto, aqui poderíamos suspeitar que o pivô da questão pode estar localizado não tanto na ‘diferença’ entre eu (leia-se minha identidade) e Deus (leia-se identidade de Deus), mas sim na total alteridade no que se refere ao ser da vontade. Nesse sentido, se entendermos a Vontade de Deus (o seu querer) a modo da vontade que eu tenho (o eu quero), então não ‘compreendemos’ de modo igual a Vontade de Deus como Ele o é, mas sim igualamos a Vontade de Deus à nossa vontade. Se, porém, somos tornados iguais a Deus, então posso igualar a minha vontade a Vontade de Deus. (Deixemos aqui suspensa a pergunta: mas isto não é panteísmo? O problema do panteísmo pode não surgir da igualação Deus e eu enquanto filho de Deus, mas sim da dominação do horizonte coisista do sentido do ser, a partir e dentro do qual miramos tudo como algo).
[7] A acepção do termo vontade deve mudar, quando se fala aqui da “vontade de Deus”.
[8] Isto significa que o homem possui vontade incriada?
[9] Mas o sentido do ser quando se diz ser e não ser na questão metafísica e o sentido do ser quando se diz não ser da vontade num sermão como esse de Ekhardt, coincidem?
[10] Essa fala parece ser na sua tonância bem diferente à da afirmação da abulia, mas também da afirmação da potencialização infinita do querer da vontade e quem sabe, também da questão ‘especulativa’ digamos metafísica do ser e não ser.
[11] Cfr. as usuais provas da existência de Deus na Teodicéia tradicional.
[12] Crf. Rombach, Heinrich, Substanz System, Struktur vol. I, Editora Karl Alber, Freiburg/München 1965, p.58, onde mostra que os medievais achavam possível creatio ab aevo (a aeviternidade).
[13] Mas ao mesmo ‘tempo’, falando depois de e com a criação?!…
[14] A não ser que Eckhart esteja falando de Jesus Cristo, da segunda pessoa da SS. Trindade, do Verbo feito carne, portanto de Jesus Cristo homem-e-Deus e do homem como a nova criatura em Jesus Cristo, segundo a doutrina cristã tradicional…?!
[15] Ser é conceito o mais geral que abrange tudo que é possível no sentido de não contradição. Assim é o mais vasto na extensão e o mínimo no conteúdo.
[16] Foucault, Michel, As palavras e coisas (Uma arqueologia das ciências humanas), Portugália Editora, Lisboa 1968, pg. 3.
[17] Transcendental na acepção da metafísica moderna da subjetividade transcendental.
[18] Esse sentido do ser como substância ínfima ajeitada e formalizada a modo de um sentido universal básico, portanto esse ‘algo’ ainda pode ser considerado como resquício da coisificação da compreensão da substância na acepção medieval mais concreta como a da matéria. Pois matéria aqui nessa ordenação do universo medieval não é ‘extensio’ no sentido da filosofia moderna como p. ex. em Descartes.  Aqui pode surgir a pergunta: a categoria ôntica quantintas da ontologia tradicional coincide com a extensio na acepção moderna da palavra extensão indicando quantidade físico-matemática? E o conceito do ser na lógica formal a modo da lógica medieval, onde se diz que ali há o mínimo de conteúdo e o máximo de extensão,  que esse conceito não é outra coisa do que ens ratinis, coincide com o sentido do ser prejacente no formalismo lógico-matemático das ciências naturais, cujo modelo excelente é o das ciências físico-matemáticas? E quando se fala do transcendental no sentido da subjetividade transcendental na filosofia moderna, em que consiste o ser dessa transcendentalidade? Não poderia ser assim que tanto na inclinação para o lado ‘subjetivo’ da transcendentalidade da subjetividade como também na inclinação para o lado ‘objetivo’ da formalização físico-matemático da objetividade, no fundo permanece ainda como que numa suposição sorrateira não tematizada, digamos um resquício da acepção da substância medieval na sua forma, a mais ‘deficiente’ de algo?
[19] Talvez falte precisão dizer “co-criado juntamente com as outras criaturas”. Talvez é melhor dizer: tornando-se co-criado a serviço das criaturas para ser igual a elas, pedindo-lhes que sejam iguais a Ele na plenitude da liberdade de ser como seus filhos (Criação = Filiação = Encarnação). Nessa direção a Abgschiedenheit da deidade inclui no mais profundo da sua intimidade, ser Ele criatura, igual a nós em tudo, a tal ponto de se retrair na “transcendência” radical da imanência como “non aliud” (Cfr. Nicolau de Cues). Isto quer dizer: a deidade é tão radicalmente ‘outra’  (aliud) da creaturidade, de modo que dizer ‘é outra’ é negar a alteridade, pois, se é radical-outra deve ser ‘outra’ num sentido inteiramente outro (non-aliud) do que no sentido anterior. Isto equivale a dizer: Deus é tão aliud da criatura que é igual a ela e ela a Ele. A igualdade dessa com-veniência não é equivalência no sentido usual do ser ‘algo = algo’, mas sim a singularidade única e uma do Eu:Tu na plenitude intacta da Liberdade. Cfr. a Conclusão.
[20] Aqui o termo epistemológico não está sendo usado na sua acepção própria e mais estrita como referido à teoria das ciências; mas sim no sentido lato, referido à Teoria do conhecimento.
[21] Cfr. a divisão do saber na tabela de classificação das disciplinas filosóficas e científicas de Christian Wolff (1679-1754), onde a lógica (leia-se epistemologia) é ciência propedêutica, na perspectiva da definição da Filosofia que é “a Ciência de tudo que é possível, de tal modo que todas as coisas devem tornar-se objeto da Filosofia, sejam elas como forem, quer existam quer não existam”.
[22] Segundo Trübners Deutsches Wörterbuch, (ed. por Alfred Götze, editora Walter de Gruyter, Berlin 1940, pg. 430) na palavra frei (livre), Freiheit (Liberdade) que se refere ao estado de nobreza de quem não trazia ao redor do pescoço a argola de escravo, contem na sua raiz indogermânica, o significado de amável, amado, querido, desejado, e assim como substantivo: esposo, esposa. Frei significa também solto, à vontade na plenitude da inocência do seu ser, i. é, intacto.
[23] Cfr. Sermão 2: Intravit Jesus in quodam castellum et mulier quaedam, Martha nomine, excepit illum in domum suam. Lucae II. (Luc 10, 38).
[24]Surge de novo aqui a questão insinuada na nota 16. Toda essa conclusão não é apenas viável somente para quem está na ‘mundividência’ cristã? A recolocação da questão do sentido do ser, no entanto, não é uma questão da doutrina cristã, mas da ontologia que transcende o particularismo das crenças e mundividências que são subjetivas.  No entanto, a proposta do sermão 32 não é de colocar o fundo silenciado do sermão sobre a pobreza como tese, mas de nos convidar, (seja qual for a crença, mundividência, teologia, filosofia, sim ciência a que nos atenhamos, sejamos o que for, teistas, panteístas, ateus, realistas, idealistas, ou positivistas e cientificistas) para examinarmos com cuidado o sentido do ser que quer operativamente, quer tematicamente atua no fundo do nosso saber e da nossa abordagem, e nos perguntarmos, se ele é suficientemente aclarado e aprofundado, para intuir o que um sermão medieval como este do pobre que nada quer, nada sabe e nada tem tenta mostrar no seu ser.
[25] Templo i. é, a alma como ser do homem.
[26] Sermão 1: Intravit Jesus in temp lum et coepit eicere vendentes et ementes (Mat 21,12), Eckhart, o. cit. p. 156.
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