Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Curso de História da Filosofia Antiga I – Platão

19/04/2021

 

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

I.  OS GREGOS E A HISTÓRIA

I.1.  História e Tempo-eixo (cfr. Karl Jaspers, Origen y meta de la historia)

I.1.1. A pré-história

  • história: tradição documentada verbalmente: onde nos chega uma palavra é como se tocássemos o chão firme. Os utensílios são, de certa forma, mudos. Só a palavra permite, plenamente, fazer sentir vivamente a interioridade do ser humano de uma determinada época. > 3000 anos a.C.
  • Há história ali onde há um saber da história, onde há tradição, transmissão, documentação, consciência do passado e do futuro. > apropriação do passado > abertura para o futuro.
  • A evolução pre-histórica do homem é a formação do ser humano em sua constituição fundamental; a evolução histórica é o desenvolvimento das capacidades e dotes espirituais e das técnicas adquiridas.
  • Terra: c. de 2 mil milhões de anos; vida: 500 milhões de anos; ser humano: 20 mil anos: homem de Cromagnon > pinturas rupestres encontradas em cavernas na Espanha e França > paleolítico: elaboração de ferramentas de pedra.
  • Época neolítica (pedra polida): 8 a 5 mil a.C. – etapas mais antigas da cultura no Egito, Mesopotâmia, Índia e China.
  • O que aconteceu na pré-história? – A primeira humanização do ser humano: a evolução biológica e a primeira evolução histórica, com a descoberta do fogo e a invenção de ferramentas, a formação da linguagem, a organização em grupos e em comunidades, a instituição de tabus, a criação de mitos.

I.1.2. As primeiras grandes culturas

  • documentos escritos; obras de arte; cidades.
  • 4000 a.C – aparição das primeiras grandes culturas: mundo egéico, egípcio, sumério-babilônico.
  • 3000 a.C. – Índia
  • 2000 a. C – China
  • Rios: Nilo, Tigre e Eufrátis, Indo e Hoang-ho
  • Características: regulação das correntes fluviais, criação de cidades, centralização do poder, burocratização; invenção da escrita (sumérios: c. 3300 a.C; egípcios: c. 3000 a.C; china: c. 2000 a.C; fenícia: alfabeto – c.1000 a.C) – os escribas – funcionários da administração estatal e aristocracia intelectual; formação de povos com unidade de língua, cultura e mitos; mais tarde: impérios: assírio e egípcio; depois: hindu e chinês); o cavalo;
  • consciência e memória; racionalização; figuras de soberanos e sábios; consciência da fugacidade;
  • “Diálogo do cansado da vida com sua Alma” (Egito); “Gilgamesch” (Babilônia)

I.1.3. O tempo-eixo

  • 3 áreas: Índia, China e Ocidente (Gregos e Judeus).
  • Do ano 800 a 200 a.C.
  • China: Confúcio; Lao-Tzu e Chuang-Tzu;
  • Índia: Upanischads; Buda;
  • Iran: Zaratustra;
  • Palestina: Profetas
  • Grécia: Homero; Parmênides, Heráclito, Platão; Sófocles, Tucídes e Arquimedes.
  • Grande irrupção: crise > ruptura e surgimento do novo. Despertar.
  • Características: cidades-estados; a existência humana se converte, como história, em objeto de reflexão; consciência da extraordinariedade do presente; consciência de ser tardio; sentimento de catástrofe; desejo de reforma.> Do mito ao lógos.
  • “A novidade desta época constitui no fato de que nos três mundos o homem se eleva à consciência da totalidade do ser, de si mesmo e de seus limites. Sente a terribilidade do mundo e a própria impotência. Formula perguntas radicais para si próprio. Aspira, desde o abismo, à libertação e à salvação; enquanto toma consciência de seus limites, propõe-se a si mesmo as finalidades mais altas. E, enfim, chega a experimentar o incondicionado, tanto na profundidade do próprio ser, como na claridade da transcendência. Isto resulta da reflexão. Um dia a consciência se faz consciente de si mesma, o pensamento se volta para o pensamento e o faz seu objeto. Produzem-se combates espirituais pelo intento de convencer os demais mediante reflexões, raciocínios, experiências. Ensaiam-se as posições mais contraditórias. A discussão. A formação de partidos, a divisão do espiritual, cujas partes, não obstante, relacionam-se entre si na forma de contraposição, geram inquietude e movimento até lidar com o caos espiritual. Nesta época constituem-se as categorias com as quais pensamos, e se iniciam as religiões mundiais das quais vivem os homens ainda hoje. Em todos os sentidos, os homens se põem de pé no universal. Em virtude deste processo, as concepções, os costumes, as situações são submetidas a exame e à prova, postas em questão, dissolvidas. Tudo cai no vórtice. O que da substância transmitida tradicionalmente estava vivo até então na realidade foi esclarecido em suas manifestações e de modo transmudado”
  • Espiritualização; Surgimento do Pensamento Especulativo.

I.1.4. Os povos do Oriente: China e Índia – A figura do sábio

  1. China
  • A cultura chinesa, nas suas raízes mais profundas, repousa sobre a família, formada pela mulher.
  • Nos seus começos originários, que remontam aos tempos míticos, a China teve um regime matriarcal. A cultura chinesa nasce da conjunção mágica do feminino com as forças do universo, ainda que, nos tempos clássicos, a sociedade é estruturada e conservada por varões.
  • Na aurora do primeiro milênio a.C., populações nômades se agrupam em Aldeias. As famílias cultuam os deuses familiares e os ancestrais. A primazia da família predomina na configuração da vida. Organização social com base em senhorias feudais.
  • Entre os séculos V e III a.C. a China feudal se desagrega – crise dos “Reinos combatentes”. 206 a.C – começo da dinastia imperial dos Han (até 220 d.C.). Época de inquietação moral e espiritual. Os pensadores chineses reagem contra a religião dos tempos antigos e contra o seu formalismo. Surgimento de uma organização política de cunho estatal. Aparecimentos de sofistas, que ensinam a retórica para a vida política e de legistas. Escola de Mö-tseu (Mo-ti). Pensamento racionalista, relativista, desprendido da injunções estritas da religião.
  • Confúcio (551-479 a.C.) – não deixou nenhum escrito. Sua doutrina foi transmitida pelos discípulos. Fundador de uma escola que passou a representar a inteligentsia chinesa clássica. O confucionismo é a expressão do modo de pensar da classe dos mandarins (administradores e alto-funcionários letrados).
  • 124 a.C – o imperador Wu funda uma escola confucionista, cujo ensino se baseia na leitura e nos comentários dos livros clássicos que a tradição fazia remontar a Confúcio: Mutações, Odes, Documentos, Primaveras e Outonos, Ritos.
  • O confucionismo é uma tentativa de explicação do mundo, que visa eliminar as crenças populares primitivas, mas respeitando o sentido geral da tradição. É racionalista, mas não tanto como o modo de pensar dos sofistas. Confúcio nunca se refere aos deuses e toma distância do culto dos ancestrais: “Aquele que não sabe servir aos homens, como podem servir aos espíritos? Aquele que não conhece os vivos, como haverá de conhecer os mortos?”. Demitização. Tendência de um conhecimento puramente racional e empírico do universo.
  • O confucionismo resulta numa regra de vida , numa moral que tende a manter ordem e hierarquia na sociedade e no Estado e que reage vivamente contra a anarquia intelectual e social dos sofistas e legistas. Definição do bom governo: “que o príncipe seja príncipe, que o súdito seja súdito, o pai pai, o filho filho”. Virtudes pregadas pelos confucionistas: respeito, humildade, submissão e subordinação aos superiores em posição e em idade”.
  • Quase contemporâneo do confucionismo e nascido graças à mesma crise está o taoismo.
  • O taoismo está arraigado na alma chinesa. Ele corresponde à atitude espiritual de fundo da cultura chinesa: inserir-se na ordem da natureza; proximidade com a vida; atitude positiva diante da vida (como a mulher que tem filhos não poderia acreditar na vida?); coragem cavaleiresca (às vezes se deturpa em crueldade); sobriedade e moderação (cfr. a poesia chinesa na sua forma); a religião é tomada em seu sentido cósmico: emoção cósmica; Céu e Terra são os deuses principais. Entre Céu e Terra se insere o Homem. Tudo é regido, porém, pelo Tao. Equilíbrio de Yin e Yang.
  • Tudo atua sobre tudo de uma maneira viva; tudo é, ao mesmo tempo, uma totalidade e uma multiplicidade. O único possível é o penetrar até o centro, através da múltipla realidade viva, para chegar ao último, que é algo vazio, não obstante seja o Tudo. Penetra-se até o centro através do desprendimento das multiplicidades e através de uma contemplação que atravessa todos os degraus dos mistérios cósmicos – mistérios cheios de vida – sem querer resolvê-los; esta contemplação ordena as múltiplas figuras da vida em sua conexão e significado.
  • > ética e política correspondentes (Democracia).
  • A origem do taoismo remonta tradicionalmente a Lao-Tse (“O Mestre”  – personagem mítica? – séc. VII a.C). O livro a ele atribuído, mas que os historiadores fazem remontar ao século IV ou III a.C: Tao-Te-King.
  • Tao é uma palavra hermética, intraduzível. Poder-se-ia, no entanto, arriscar uma tradução por “caminho”.

“Onde homens estão, ali estão caminhos”
“Caminho é uma outra coisa do que senda ou estrada.
Senda, insere-se na natureza.
Estrada, passa ao largo da natureza.
Caminho, isto abre a natureza,
mostra sua configuração, seu espírito.

No caminho homem e mundo encontram-se no meio,
perfilam-se mutuamente!
O homem se deixa guiar pela natureza
e, no entanto, inclui aí a sua vontade.

Caminho é acôrdo,
ajuste de afirmação e desempenho,
graça e gesta,
necessidade e liberdade.
Talvez nada exista de mais sublime
do que este acôrdo.

A experiência fundamental “caminho” diz
que o homem, através do
favor do conseguimento
pode ser conduzido para fora e para além de si,
entretanto, de tal modo
que  ele não é posto de pé pela pressão de um poder estranho,
mas pura e simplesmente na liberdade de si mesmo.

No espírito do caminho
o homem produz o que cresce
deixa vir a ser o que é
é cheio de dedicação e forte,
pensoso e decidido”.

“Lao-Tse”
“Segundo a legenda,
viveu na China, alguns séculos antes de Cristo, um sábio, Lao-Tse,
o qual, a partir da experiência do caminho,
formou um profundo ensinamento.
O livro, que a ele é atribuído,
é denominado Tao-te-king,
o livro do caminho e do atuar.
Em 81 estrofes ele traz à fala a experiência do caminho.
A experiência do Tao é originária e autônoma.
Ela se encontra, em formas transformadas, também em outras culturas e religiões.
Imediatamente pertinente é a experiência
da iluminação. O que diz iluminação
pode ser deduzido somente a partir do conhecimento do caminho..”

“Iluminação”
“Quem possui iluminação é um sábio.
Como galos de briga
estão as coisas postas umas contra as outras.
O sábio não perturba este processo,
ele o mantém no equilíbrio,
ele evita a unilateralidade.
No equilíbrio vive afinação,
na afinação, a vida se equilibra.
Iluminação
é o nível mais elevado
a partir do qual
a afinação é vista,
vivenciada, devida e gozada.
Descobre afinação somente quem
não a procura em determinadas leis
em determinadas ordens.
Ela reluz em tudo,
mas somente para quem
sabe captá-la fulminante
a partir do Nada do entremeio.
Iluminação inesperada.

“A figura do iluminado”
Aparece aqui como frade mendicante,
que todos os seus haveres
leva numa mochila.
Ele possui tanto,
que  é independente dos outros,
e ao mesmo tempo tão pouco,
que é independente de si mesmo.

O sábio dança quando caminha;
jovial e vivaz
mantém-se a massiva figura no topo
como um círculo.
Nele se une
redondo com agudo,
plenitude com ponto,
perfeita quietude com
uma traquina mobilidade.

Nisto se anuncia o Tao.
Iluminação.
Isto significa jovial felicidade.
O sábio
sente equilíbrio,
goza do Tao
em si
e em tudo”.

  • O budismo: formou-se na Índia, entre os séculos VI e V a.C. Ali ele foi pouco a pouco rejeitado e assimilado ao hinduísmo. Entra na China por volta do século II, através das conquistas do império chinês. Por três séculos ele é assimilado pelos chineses, primeiro pela elite e depois pelas massas.
  • A princípio há uma contradição entre o budismo e a religião natural chinesa: metacósmico e cósmico; nirvana (dissolução da individualidade no Todo) e imortalidade do corpo (cfr. a alquimia chinesa – O Livro da Flor de Ouro).  No entanto, houve um sincretismo. As práticas externas eram muito semelhantes. Nos séculos VI e VII da era cristã, alguns pensadores se deram conta da impossibilidade de unir o budismo e o taoismo. Surge o zen-budismo. Duas escolas: a do Norte e a do Sul. Cfr. estória contada por Carneiro Leão (Ensaios de Filosofia).
  1. Índia
  • Fisionomia espiritual e cultural inteiramente diferente da China.
  • História: civilização antiga do Indo (3000 a.C – 1400 a.C); civilização indo-ariana ou védica (1400 a.C – VII d.C); civilização medieval hindu (VII d.C – XIII d.C); civilização islamo-hindu (XIII-XVIII).
  • A Índia Védica se constitui em três ou quatro grandes etapas, de 1400 a.C ao século VII d.C. Esses dois milênios são dominados pela invasão e instalação de povos arianos vindos do Turquestão e que, chegando à Índia pelo Noroeste, se infiltram lentamente através das planícies do Médio Indo e, depois, do Médio Ganges. Sua civilização não afeta senão uma parte da planície indo-gangética, mas trata-se aqui, desde já, do coração vivo da Índia.
  • 1ª etapa: antes do ano mil > a invasão; > Livro sagrado: 4 Vedas (Veda = saber), que constituem o manual do sacerdote brâmane; o mais importante: Rig Veda ( o Veda ou “Saber” das Estrofes ou dos Hinos) o livro canônico pelo qual o hotar recita os versos (ric) dos hinos da cerimônia ritual. Cada um dos quatro Vedas compõe-se de recompilação (Samhita) e de glosas (os Brahmanes): indicações para o culto e explicações que terminam em considerações filosóficas e se denominam por isso Vedanta, quer dizer, finais dos Vedas. Mais tarde (na 2ª etapa – já tempo-eixo) destacaram-se as passagens mais importantes destas meditações sublimes, constituindo-se com elas um livro chamado Upanishads (um dos mais importantes: Bhagavad-Gita). Se já nos Vedas se assinalava o empenho da unidade, estes Upanishads representam a doutrina que eremitas e sacerdotes desenvolveram paulatinamente, acerca de Brahmann e sua identidade com Athman.
  • Mitologia e crença de uma primeira religião védica > deuses terrestres, dos ares e do céu; Varuna: mantenedor das leis cósmicas e morais; Indra: herói vencedor do demônio Vitra: ele libertou as águas do céu que, desde então, inundam a terra e a fertilização. Religião pluralista, formal, reduzida a ritos. Epopéia:
  • 2ª etapa: de 1000 a 600 a.C. > conquista e sedentarização; divisões sociais (“varnas” ou castas): no mais alto: os brâmanes – sacerdotes; seguem-se os xátrias – senhores guerreiros; vaixás – pequenos lavradores, criadores, artesãos, mercadores; sudras – indígenas avassalados; religião: tabus > puro e impuro; o sacerdote é o guia do senhor guerreiro; ioga (“domínio de si”); visão metacósmica; reencarnacionismo (contra a individuação); elevar-se acima da vida – transcendência (o “metá” presente no mundo grego) > especulação transcendental; surgimento de “escolas” diferentes.
  • Termos: Brahman: realidade central da religião védica e bramânica; designa também o sacerdote; originariamente designava o poder mágico, força que move os deuses, força autosubsistente, princípio de todas as coisas, ente supremo absoluto, eterno, imutável, simples único e totalmente transcendente e também ao mesmo tempo o mais imanente a todas as realidades relativas. Atman: princípio interior, ato, níveis de ser, cfr. reincarnação. Maya: indica habilidade excepcional, poder divino atrás de todas as manifestações; o que aparece é ilusão. Brahman está sobre todos os entes finitos. É o ente por excelência, o ente propriamente dito, está nele mesmo eternamente, imóvel, infinito. Todo o resto, o ente finito está em transformação, é não ser, somente é tecido como “véu de Maya” e pertence à malha do conjunto de ilusões que envolve o terreno, o finito. O ente finito nos engana, nos dissimula um ser que não tem e nos decepciona na medida em que nos entregamos a ele totalmente. A “sabedoria” consiste em se desilusionar dele, desmascarar esse mundo de ilusões e dissimulações da realidade; em livrarmo-nos da prisão terrestre através do desapego do parcial, das coisas passageiras e mutáveis; em estar aberto ao todo, ao verdadeiro, e sacrificar, oferecer o meu ser aparente Atman a Brahman. Aqui a busca da sabedoria é ascese, i. é, afastar-se, manter-se afastado das aparências e dissolver-se no espírito que é a única, última, a verdadeira realidade: Brahman.
  • 3ª etapa: (s. VI e V a.C). > surgimento de cidades aristocráticas, ligadas ao comércio. os primeiros esplendores do jainismo e do budismo > ambas são religiões de salvação, marginais, “seculares”, adotadas pelas classes dominantes com exceção dos brâmanes e propagadas pelos mercadores.
  • O budismo – cfr. “História em Revista: A elevação do espírito (600 a 400 a.C).
  • O jainismo – “História em Revista: a elevação do espírito 600 a 400 a.C” (“religião dos vencedores”- ji = “vencer”) foi fundado por Vardhamana Mahavira, como uma reforma dentro do hinduismo. Ensina que a salvação depende do esforço de cada um e não dos deuses. Protesta contra o regime de castas e os privilégios dos brâmanes. Vê no sofrimento pessoal e em sua busca uma via eficaz de salvação. Importância do ascetismo, cultivado em comunidades monásticas. Teoria de samkhya, que tenta resolver os problemas gerados pelo reencarancionismo. Dualismo: a realidade é regida por dois princípios últimos: jiva (seres vivos ou almas) e ajiva (seres inanimados). A libertação vem pelo Nirvana (suspensão da vontade de viver), só que, ao contrário do que pensa o budismo, a individualidade é eterna. Não há deuses, nem espíritos, nem demônios.

1.1.4.   Os gregos

  • Leitura de: o desabrochar helênico (História em Revista, p. 51-84)
  • A mitologia e os mistérios (cfr. Schelling – Filosofia da Revelação):
  • A mitologia é um processo teogônico que acontece na consciência do homem;
  • O processo teogônico visa a reconstituição da unidade da consciência humana, desde os primórdios dilacerada pelas suas divisões e dicotomias. Neste sentido, a mitologia já visa uma “filo-sofia”, isto é, um retorno ao acordo com o todo (sofoV, sofia > sooV : todo, inteiro, intacto). “A verdadeira filosofia visa somente o todo, e quer reconstituir a consciência na sua totalidade, integridade” (p. 611).
  • O processo é inteiramente natural, isto é, a teogonia é uma necessidade intrínseca da própria consciência humana, não uma revelação divina.
  • Uma vez que acontece somente na consciência humana, este processo só pode se anunciar ou se revelar através de representações ou de produções de representações.
  • Estas representações mitológicas não são, pois, inventadas, não são fruto de invenções poéticas, mas são representações essenciais, necessárias, para a consciência humana, dentro de sua história espiritual. Por isto, estas representações eram vistas como objetivas, ou seja, independentes do pensamento e da vontade humanas. As representações não eram imaginárias, mas eram potências reais, teogônicas, que operavam na natureza e na consciência humana. “Os deuses gregos não têm carne nem sangue como os homens reais, são como seres da pura imaginação, e, no entanto, para a consciência, têm o mais real significado, são seres reais, porque derivam de um processo real. Todo aspecto animal desapareceu; estes deuses são seres absolutamente similares ao homem, ainda que estejam por sobre a humanidade; eles representam na história do processo mitológico aquele momento da história da natureza no qual o princípio da natureza, depois da terrível luta no reino dos animais, morre no homem de uma morte doce, fascinante, verdadeiramente divinizante – por assim dizer, a morte da reconciliação por toda a natureza –; somente no homem, de fato, a inteira natureza é reconciliada”… “A mitologia grega é a morte doce, a verdadeira eutanásia do princípio real, que no seu sucumbir e desaparecer, deixa no seu lugar, ainda, um mundo belo e maravilhoso de fenômenos”… “Os deuses gregos surgem da consciência liberada do domínio do princípio real de modo doce e regular, como uma espécie de formas ou visões beatas, nas quais aquele – o princípio real – desaparece também certamente, mas ainda coopera, no seu desaparecer e desagregar-se, para dar às formas que surgem aquela realidade, aquela determinação que fazem dos deuses gregos os representantes de momentos (conceitos) necessários, eternos, duradouros, e não somente passageiros”.
  • Trata-se, portanto, de um processo involuntário e necessário, que atuava, ao mesmo tempo, na natureza e na consciência, nos primórdios da história humana, antes que a humanidade entrasse no seu período de auto-consciência. “A mitologia não deriva de premissas acidentais, empíricas, por exemplo, invenções de determinados poetas ou filósofos cosmônicos, que se poderia colocar nos tempos arcaicos, nem mesmo de erros ou mal-entendidos casuais; ela se perde, com as suas raízes, no fato primitivo,
  • O processo teogônico teve sua história e esta se reflete nas diversas mitologias da humanidade. As diversas mitologias, as dos diversos povos, são aparentadas e esboçam um certo desenvolvimento sucessivo graças a este processo que perpassou toda a humanidade. Portanto, as mitologias dos diversos povos são somente momentos da mitologia geral, ou seja, do processo teogônico em jogo em toda a história da humanidade.
  • As etapas do processo mitológico – 1) A religião astral > o sentimento religioso se volta para o “exército celeste”; a veneração se dirige não àquilo que há de corpóreo nos astros, o que permanece sempre o acidental, mas àquilo que há de ultracorporal neles, ao teor espiritual deles. A veneração, portanto, se volta para o espírito vivente em tudo, ao uno indestrutível que se encontra nos movimentos aparentemente contrastantes do céu. Esta religião surge na época da humanidade nômade: uma humanidade sem morada fixa, errante, instável, como as estrelas. “aquela mesma necessidade que dirigia o seu espírito às coisas celestes, e que constituía, portanto, a lei da sua consciência, era, ao mesmo tempo, a lei de sua vida. E vice-versa, se pode também dizer: nas estrelas, nômades do céu, e no seu curso uniforme, sujeito somente a variações restritas, no deserto do éter (para usar a expressão de Píndaro), aquela humanidade via somente o supremo protótipo da própria vida”. O exército celeste, por sua vez, aos poucos passou a ser representado como reunido em torno do rei dos céus, ou seja, o espírito que domina nas rotações siderais > cfr. a religião babilônica e persa; cfr. o nome: Dominus Deus Sabaoth. 2) A passagem do culto de Urano (Senhor do Céu: OuranoV) ao culto de Urânia (Rainha do Céu) – representado como filho, irmão ou marido de Gaia (Terra: gh). Os deuses que ele procriava, mantinha-os prisioneiros no Tártaro (nas profundezas infernais): são os seis Titãs e as seis Titanides, os três Cíclopes e os três gigantes Hecatônqueires (“cem mãos”). O culto deste deus pai terrível é contrabalançado pelo culto da Rainha do Céu (Urânia): entre os assírios, babilônios e os árabes (sedentários). Na babilônia, recebe o nome de Mylitta. O deus implacável se torna a deusa terna e favorável. O princípio cego, selvagem, violento se deixa subjugar por um princípio mais humano, simbolizado na figura feminina de Mylitta e de seu filho (a quem Heródoto chama de Diôniso > idéia do “deus libertador”; neste caso, porém, ainda somente como um “daimon”). 3) Culto de Cronos, de Heraclés e de Cibele – a – O princípio cego, selvagem, violento, se mostra ainda como um deus rígido, severo, hostil à liberdade > cfr. o deus principal dos povos que comparecem por primeiro na história: os fenícios, os tiros, os cartagineses, os cananeus. Entre os fenícios: Baal (=Senhor). Entre os cananeus: Moloch (= Rei). Entre os gregos: Cronos. Este é um dos titãs; o único que ajudou Gaia a se livrar do poder tirânico de Urano. Emasculou o seu pai. Mas, em seguida, também ele tornou a confinar no Tártaro os seus irmãos. Casando-se com Rea, engolira todos os seus filhos, logo após o seu nascimento, por medo de perder o seu trono. Filhos: Deméter, Hades, Hera, Hestia (deusa da lareira, virgem protetora dos lares > cfr. a vesta dos romanos), Poseidon e Zeus. Crono era o deus inorgânico. Seus adoradores veneravam pedras. É o tempo do fetichismo. A religião caiu do céu sobre a terra e se voltou, primeiramente, para as pedras e os objetos inanimados, com sua força mágica. b – O princípio divino-libertador aparece na figura de Heraclés (Hércules), o herói pan-helênico por excelência (na mitologia fenícia: Melkarth). Cfr. os doze trabalhos. Cfr. Nietzsche, o “espírito camelo”. Primeiro representante do espírito livre dos gregos: guerreiro invencível e protetor dos fracos. É aquele que é afadigado, carregado de trabalho e de dores, metido numa incessante luta e sempre amante da humanidade. Precursor do deus libertador: Dionísio. Um ser intermédio, entre o homem e o deus. No fim, é divinizado, libertando-se da mortalidade que lhe fora imposta. c – A severidade do domínio de Cronos na consciência se torna mais leve e feminina na figura da deusa Cibele. Origem nas tribos frígias e trácias. Trata-se da “deusa mãe” (magna deum mater) da Ásia Menor. Sua estátua era de uma pedra negra. Favorecia a humanidade com a fertilidade da terra, a saúde, os oráculos, a proteção na guerra. Os que prestavam-lhe culto tinham o dom do êxtase profético e da insensibilidade à dor. Era, muitas vezes, confundida com Deméter (fundadora da agricultura e das cidades). 4) A época da pluralidade dos deuses / Zeus e os deuses do Olimpo / Hades / Deméter e Perséfone – a- Com Zeus é entronizada a pluralidade dos deuses olímpicos. Zeus contra Cronos: a Titanomachia e a Gigantomachia. A vitória dos doze deuses olímpicos: Zeus (luz e raios), Poseidon (mar, águas correntes e lagos), Apolo (deus do arco e da flecha, da profecia, da poesia e da música e da claridade), Ares (deus da guerra), Hermes (inventor da lira e da flauta, aprendeu a arte da profecia com Apolo, arauto de Zeus e das divindades infernais, protetor dos comerciantes e dos ladrões e guia dos viajantes, psicopompo: acompanhante das almas), Hefesto (o deus do fogo e de suas manifestações, dos metais e da metalurgia), Hera (irmã e mulher de Zeus, protetora das mulheres casadas, ciumenta e vingativa), Atena (nascida, já armada para a guerra, da cabeça de Zeus, virgem, protetora de Ulisses e ajudante de Heraclés, inspiradora da bravura, propiciadora também da inteligência e das habilidades manuais, doadora da oliveira a Atenas, seu animal preferido era a coruja), Afrodite (deusa do amor e da fertilidade), Ártemis (Irmã gêmea de Apolo, deusa da caça, virgem, em Éfeso apresentava os atributos da deusa da fecundidade, às vezes era personificada pela lua, assim como Apolo o era pelo sol, protetora das amazonas), Hestia (Deusa da lareira, virgem, símbolo do lar e da família) e Deméter (deusa da terra fértil e dos grãos) – na mitologia romana: Júpiter, Netuno, Apolo, Marte, Mercúrio, Vulcano, Juno, Minerva, Vênus, Diana, Vesta e Ceres – Di Consentes). Zeus: páter andrón te thón te > o mediador entre o mundo puramente espiritual (divino) e o mundo material (divino), o deus dos deuses. b – Hades (Haides ou Aídes: o que não se vê, o invisível). Senhor do mundo subterrâneo (o inferno ou Tártaro). Na titanomachia, usava um capacete que o tornava invisível. Raptou e esposou Perséfone, filha de Deméter. Deus inflexível. Não era invocado pelo seu nome (o que provocava a sua ira), mas por eufemismos, como, por ex., Plutão (“Rico”). O seu nome também foi dado ao seu reino, ou seja, o reino dos mortos, separado pelo mundo dos vivos pelos rios Aqueronte, Cócito, Pririflegeton e Estige, aos quais se acrescentava, na poesia latina, o Lete. Trata-se do divino restituído à sua invisibilidade. A pluralidade dos deuses (visíveis) repousa sobre o fundamento de sua invisibilidade. Se ele se tornasse visível, os deuses desapareceriam. Por isto diz-se que os deuses tinham horror de seu reino. Quer dizer: se aquele vazio inicial, aquele nada primordial, do qual todos os seres da natureza emergem se tornasse visível, então toda a variedade dos seres seria anulada, desagregada e destruída. É o uno que está em todos os deuses. c – Deméter e Perséfone. Deméter – esposa de Poseidon e mãe de Perséfone. cfr. o conto do rapto de Perséfone (por Hades). Deméter como a mãe aflita, triste e irada, por causa da perda da filha. É a deusa fundadora, introdutora da agricultura. Com a introdução da agricultura desapareceu aquela vida instável, errante, semelhante àquela dos animais, dos tempos mais antigos, e, no seu lugar, entrou a vida verdadeiramente humana, tornada sólida pelos costumes e pelas leis. Por isto, Deméter é também a deusa legisladora, tesmofóros. Representa a conquista da consciência, ou seja, a saída do encanto ao qual o homem estava ligado. Perséfone: “o grão de trigo”. “É a semente da consciência de Deus, aquela semente que, se não caísse na terra deixando o invólucro que a envolve, restaria só, ou seja, sem fruto; semente que deve cair na terra (…) para produzir muitos frutos, a fim de que o silencioso e não expresso conhecimento da consciência originária se torne mais alto e expresso…”. Celebrações dos mistérios eleusinos.
  • Os mistérios gregos e Diôniso – Deméter e Perséfone são as figuras em torna das quais se dão os mistérios eleusinos. Estes mistérios eram também chamados mistérios de Deméter ou mistérios de Diôniso. Contudo, a relação deste deus com os mistérios é, de início, obscura. Tentemos esclarecer. 1) O culto público de Diôniso – em geral, nas antigas religiões, a presença de Diôniso ou sua ação sobre a consciência se manifesta, antes de tudo, como um entusiasmo frenético, chamado de orgasmo. A consciência se livra princípio real e se torna ébria. Emergem manifestações desenfreadas e frenéticas. Muitas vezes, haviam procissões fálicas (símbolo da emasculação do deus inflexível-princípio real?). Desde o início, nas religiões astrais, existiram orgias como celebrações religiosas. Muitas vezes o Estado proibiu tais celebrações, como ameaças à moralidade pública. Estas festas chegaram aos gregos vindas de outros povos (Egípcios? Fenícios e Tiros?). Este Diôniso era filho de Semele, uma mortal, e Zeus. Semele é destruída e desaparece quando, instigada por Zeus, pede-lhe uma manifestação de sua glória. Semele é a consciência, que é anulada quando emerge o deus Diôniso. Segundo o mito, Diôniso, antes de nascer, esteve escondido nas coxas de Zeus. Isto significa: Diôniso é o deus que nasce a partir da pluralidade dos deuses, que é concebido como o estágio posterior e transcendente da pluralidade dos deuses. O nascimento de Diôniso na consciência grega é seguida de crises e de resistências. Ele significa um novo horizonte do divino. O culto profano ou orgiástico deste Diôniso, também chamado Baco (as Bacanais), não pode ser considerado grego e nem mesmo ser identificado com os mistérios eleusinos. Mas, qual o sentido daquelas celebrações? Este Diôniso é o deus do vinho, como Deméter era a deusa do trigo. O vinho significa a fermentação da materialidade, ou seja, a espiritualização do divino. O vinho era, para os antigos, a recordação do sangue dos titãs abatidos. O vinho, em diferença do grão de trigo, não é um imediato fruto da natureza, mas é um suco espremido com a força, que, passando através de uma espécie de morte, obtém uma vida espiritual. O vinho é, portanto, o dom do deus já espiritualizado. “Assim como o grão de trigo é o fruto que nutre o corpo, o vinho é o dom que desperta a vida mais alta do espírito e faz surgir as alegrias escondidas e as mais profundas dores da vida”. A ebriedade era o bem-estar da consciência que se libertava da potência opressora do princípio real. Dos cortejos dionisíacos faziam parte os sátiros. Eram representados com a parte inferior do corpo igual à de um cavalo (ou bode) e a parte superior igual à de um homem. Em ambos os casos ostentavam uma cauda longa e volumosa e um membro viril descomunal e permanentemente ereto. Eles representavam a vida animalesca da qual a humanidade deveria ser libertada por Diôniso. Isto se mostra, por exemplo, na figura de Sileno, o companheiro fiel de Baco. Seu traço fundamental é a ironia inteligente e sagaz, que se revela nas brincadeiras e que reflete, assim, a serenidade conquistada da libertação. Outra figura que acompanhava Baco era Pan, deus dos rebanhos e dos pastores, ou melhor, da natureza pacificada, que se reflete na quietude dos bosques, no silêncio dos campos e no trabalho dos pastores. É um deus amigo, que agrada a todos. Segundo o mito, tinha sido o tutor do jovem Diôniso. Este Diôniso, porém, não era aquele que era cultuado nos mistérios. 2) O Diôniso mais antigo: Zagreu – Trata-se do primeiro Diôniso, gerado por Zeus, que se uniu a Perséfone, na forma de uma serpente. Criado por Apolo e pelos Curetes (Gênios dançantes). É chamado o impiedoso, o selvagem, o brutal, o hostil, o desumano, o sinistro. Fora cortado em pedaços e devorado pelos titãs. Sobrou apenas o seu coração.  Segundo uma versão do mito, Zeus teria mandado Semele engolir o coração do menino, fazendo-o conceber o segundo Diôniso. Em outra versão, o próprio Zeus teria engolido o seu coração, antes de gerar Diôniso de Semele. O segundo Diôniso é, por  conseguinte, uma transformação do primeiro Diôniso (Zagreu) em um deus benéfico, terno, dispensador de alegrias e de dons; contudo, é também ainda um Diôniso imperfeito, que espera por uma terceira forma, mais perfeita. 3) O terceiro Diôniso: Íaco. Este, sim, é o deus condutor das procissões dos iniciados nos mistérios de Elêusis. Segundo algumas versões, era filho de Deméter. Era muitas vezes representado como o menino que se amamenta nos seios de Deméter. O que significa Deméter? A consciência que está entre o princípio real e o deus libertador. Ela rompe com o princípio real. Daí a sua dor e a sua tristeza. Ela procura a sua filha, Perséfone, isto é, aquele estágio da consciência em que se torna propício o nascimento de um deus espiritual (a conciliação de Hades e Zeus). Somente depois que recupera Perséfone é que  Deméter gera Íaco. Íaco exprime o júbilo dos libertos. Íaco se esposa com Cora (a “moça”, a “virgem”, uma nova alusão a Perséfone). Cora é a Perséfone celeste, superiora, transfirgurada. O seu matrimônio era o auge dos mistérios.
  • O conteúdo dos mistérios – são a interioridade, o esotérico da mitologia (o exotérico). A iniciação (mýesis) era baseada sobre temor, consternação e horror. Estes temores eram suscitados através de visões horrorosas, que refletem a luta da consciência para se libertar da inconsciência. O que entrava neste processo fazia a experiência, alternadamente, de trevas e luzes. Trata-se do que se chamava de ‘entusiasmo’ (o estado de quem era invadido pelo deus). Depois desta provação, a alma entrava num estado de tranqüilidade e de quietude. Através de cantos, a alma era libertada do orgasmo e reconduzida à serenidade. A iniciação era, portanto, a consumada (teleté) com a epopteia, um certo estado de beatitude. Quem vencia todas as lutas interiores e se tornava livre era coroado. Segundo Platão, os mistérios tinham como escopo justamente a libertação da materialidade, ou seja, nos mistérios se tinha uma transferência da consciência do reino das puras formas materiais àquele das puras potências espirituais.
  • Sentido dos mistérios – o iniciado seria introduzido no conhecimento do processo intrínseco da própria mitologia. Ele conhecia as potências divinas primordiais e sua orientação teleológica. Este conhecimento, porém, não era teórico, mas através de ações. Despertavam um saber religioso, para além de um saber cosmogônico e de um saber moral. Este saber religioso, contudo, era voltado para a unidade dos três diônisos e para o sentido do terceiro diôniso. Este representaria o futuro: o advento de um deus que liberaria a consciência humana de toda a necessidade do próprio processo mitológico. Íaco representava, assim, um outro Senhor do mundo, futuro, no qual a liberdade humana seria plenamente realizada.
  • O orfismo – cfr. a estória de Orfeu e Eurídice. O orfismo como seita religiosa. Oposição ao segundo Diôniso. Cosmogonia.
  • Homero – a testemunha da crise do politeísmo: “Homero mesmo é somente o testemunho da última crise de todo o processo mitológico, do qual justamente por isto, ele não tem consciência; de tal modo que a força de todo aquele obscuro passado é conservada nele mesmo, pelo seu resultado, mas o passado mesmo desapareceu completamente. Homero é Homero justamente porque nele nada mais é visível da profundidade, do segredo do processo mitológico; aparece nele o puro resultado, sem recordação do passado…
  • Sentimos em Homero a frescura jovial da humanidade que acabava de se libertar, de expulsar o desforme, o monstruoso. Difunde-se o belo mundo das puras formas; mas toda admiração por Homero que não tenha como obscuro fundamento o sentido do passado subjugado naquelas formas é insossa e vazia. Só dali deriva, de fato, a sua força e aquele valor universal que têm os deuses, em virtude do qual estes devem ser reconhecidos por qualquer um como seres de significado universal.
  • A poesia homérica não é obra de um homem, e nem mesmo é, na sua última origem, o produto de um povo particular como tal. Ela é, se pode dizer, uma obra da humanidade. Por quanto, de fato, tocada a um povo singular, esta pertence aos últimos resultados daquele processo comum no qual não era compreendido um povo em particular, mas a humanidade.

Ulisses

  • O mito de Ulisses representa uma experiência do espírito. Caso se queira compreendê-la corretamente, então deve-se fitar o acontecer no seu todo e procurar o seu traço fundamental. Nisto, exprime-se que se trata de uma forma de vida, que não pertence ao homem individual, mas de uma tal que funda uma comunidade de vida. Trata-se do espírito comum, que recolhe os homens em torno de um meio, do meio da força e da liberdade. Caso queiramos entender o teor essencial do mito de Ulisses, então não nos é permitido transferir para ele nossas representações. “Rei” não é uma figura de poder. “Homem” não é o indivíduo. Os “deuses” não tronam no além.
  • Ulisses, senhor de Ítaca, deixa sua mulher Penélope e seu filho Telêmaco, para marchar contra Tróia. Depois do fim da guerra, ele só acha o caminho de casa através de um desvio de uma viagem errática que durou uma década. A Odisséia é a história das errâncias e do reencontro. Este acontecer tem um polo quieto, Penélope. Somente através do seu resistir e de seu aparente agir contraditório é que o retorno de Ulisses se torna um voltar para casa. Penélope tece em um pano. À noite ela desfaz aquilo que, de dia, teceu. Ela adia o fim do trabalho, quando ela devia se decidir por um dos pretendentes. Através do seu tecer, ela se nos apresenta como a figura simbólica do ânimo humano, cujas forças do sentir produzem uma tessitura, que não conhece nenhuma moldura e, no entanto, conduz para uma durabilidade indestrutível. Caso a tessitura do ânimo deva ser desfeita, então carece-se de fiar novamente com cuidado, de tal modo que o caminho da alma possa ser reconduzido passo por passo. Na figura do tecer é fixada aquele antigo achado do espírito, que, por primeiro, trouxe ao homem aquilo que, pura e simplesmente, nós chamamos de “ânimo”. Na relação de Penélope com Ulisses é simbolizada a co-pertença e a referência rica de tensão de “espírito” e “ânimo”; onde “espírito” significa, agora, a nova forma fundamental do homem. Enquanto a alma não encontrou a sua ligação, nada se liga também em seu interior. Ela permanece embrulhada, cega. E enquanto o “espírito” não encontrou o seu lugar onde pode estar em casa, ele é somente violento, mas não poderoso, somente cheio de astúcia, mas não soberano. Ulisses e Penélope pertencem um ao outro. Eles formam a figura dupla de ânimo e pensamento. O pensamento sem ânimo é vazio, o ânimo sem pensamento é cego. Todavia, a figura dupla não permanece incólume, se os dois são fortes. O ânimo é susceptível de uma errância; múltiplos pensamentos solicitam a sua mão como enfadonhos pretendentes, e o grande número das possibilidades de uma alma rica torna uma decisão impossível. Deste modo, a alma precisa sempre de novo descoser o tecido da vida; ela projeta um novo tecido e sente, no entanto, que todas aquelas possibilidades não são aquela única, que ela, no fundo e desde o princípio, procurou e quis. Os pretendentes se relacionam com as possibilidades da vida susceptíveis de serem escolhidas, as quais concorrem umas com as outras. Tais possibilidades, sempre aí em grande número, são examinadas de antemão pela alma. Em verdade, possível é para ela somente aquela única possibilidade, que é a incomparável, a que unicamente prepara e cria para ela um ambiente adequado. Ela não pode receber o seu “reino”; ela precisa merecê-lo; mas este ganho é uma coisa totalmente diferente de uma compra.
  • Polifemo – Ulisses se afasta de Tróia e põe-se no caminho de casa. O caminho é infinitamente mais longo do que se pensava. Uma das aventuras conduz Ulisses e seus companheiros à ilha dos Cíclopes e o traz ao reino de Polifemo. Polifemo tem somente um único olho. Polifemo é a figura daquele existir, que só conhece uma verdade, que só vê um lado, que só persegue um objetivo. Esta atitude empresta, é verdade, grandes forças e poder, mas ela torna pesado, unilateral e, assim, fraco. Precisa-se encontrar a figura monstruosa no seu ponto decisivo, em sua cegueira de um olho, para desmascarar seu verdadeiro desamparo. Ulisses cega o Cíclope com uma estaca ardente. Polifemo significa: o muito falado, o famoso. O mito conserva, manifestamente, a experiência de que, freqüentemente, aquilo que se faz falar de si, são somente unilateralidades. Ulisses representa, contra Polifemo, o humano, a medida, a variedade de aspectos, o livre jogo das forças na unidade de uma figura equilibrada. Compreende-se falsamente a aventura de Ulisses, se se a toma somente como uma viagem externa. O mito fala do acontecer interior, a saber, do encontro e dos riscos do espírito em relação a si mesmo. Com Polifemo Ulisses vence sua própria tentação para a “grandeza”, sua tentação para a cegueira de um olho só, que tudo simplifica e que à toa se ganha.
  • Circe – uma ulterior aventura conduz Ulisses à feiticeira Circe. Ela enfeitiça seus companheiros e os transforma em porcos. Uma magia contrária, vinda de Hermes no último minuto, protege Ulisses. Ele puxa a sua espada e obriga a feiticeira a re-transformar os companheiros. Eles tinham se tornado “animais”, porque esqueceram a pátria; o animal se instala em qualquer lugar. A “erva medicinal”, ao contrário, é a saudade, a íntima tensão espiritual da alma, sua mobilidade, a coragem. Circe tem a ver, do ponto de vista da linguagem, com kirkos, círculo. O homem que circula dentro de si e em torno de si está à mercê do encanto indissolúvel, do qual somente a “espada bem afiada” (e um deus prestimoso) – o firme retalhar do auto-referimento ( e a faculdade de se ver e de se julgar, desde fora e desde cima) – podem salvar. Ao espírito verdadeiramente humano pertence o pulso firme, um tenaz estar a caminho, que tem a distância não em fora de si, mas em si.
  • As sereias – mais tarde Ulisses é tentado pelas fatais sereias, que o seduzem com uma doce canção. Ele se abandona à sedução, contudo, em previsão de sua fraqueza, ele mandara ser amarrado no mastro. Os companheiros não ouvem a canção; eles têm cera nos ouvidos. A figura é, aqui, decisão. Na decisão o espírito se arma de tal modo que ele, por um tempo, torna-se insensível, recusa-se o sentimento imediato da correção de sua ação. Ele fica firme na sua decisão, mesmo se, no momento, tudo, até mesmo sua voz mais íntima, fala contra ele. Ulisses se aliena; ele se divide em um meio puramente sensível e no círculo das forças que somente ainda atuam. No espaço aberto deste círculo da decisão, a sereia se precipita.
  • Retorno para casa – “Então acordou o nobre Ulisses / repousando sobre o chão da pátria que há muito havia deixado. E ele não a conheceu… Odisséia, 13. canção.”. Pátria é o espaço, no qual alguém tem sua incomparabilidade. Este espaço lhe é reservado, no entanto, ele não lhe está simplesmente à disposição. Os “pretendentes” não se acham na “pátria”; eles pensam que se poderia obter algo assim, com simples meios. O que retorna para casa não sobrevem arrombando as portas; ele vem como pedinte. Ninguém o conhece, com exceção do pastor de porcos Eumaios, o cão sarnento Argos e a criada Eurikléia. Quem é Eumaios? Não somente a figura da fidelidade, mas também a figura do vileza. O caminho para o domínio perfeito no próprio não conduz através das possibilidades deslumbrantes, mas através daquilo que passa despercebido por todos e que é por todos desprezado. São os meios aparentemente inúteis aqueles a partir dos quais brota o verdadeiro domínio. Eumaios tem a melhor memória, o olhar mais livre, a palavra mais sincera. A criada tem o saber acerca do repente; ela conhece a grandeza nos sinais modestos. No entanto, o saber acerca da verdadeira possibilidade não pode emergir cedo demais. Ainda não é o tempo para a irrupção violenta, que brota do surgimento radiante.
  • A luta – no átrio de seu palácio se manifesta o herói. Ele retesa seu arco, que ninguém conseguira manusear, e lança a flecha através do olho de doze machados. No próprio crescem as forças, que o fazem vir para fora para além de si mesmo e, com isto, sobre todos os outros. O ser-trazido-para-fora-para-além-de-si-mesmo cria aquela incomparabilidade, junto da qual toda outra possibilidade de escolha é posta de lado. Este ser posto de lado o mito representa com o morrer dos pretendentes, que são sacrificados, sem exceção, pela flecha, símbolo do radiante. Um banho de sangue, que, em cruel nitidez, mostra que nenhum número de medidas medianas que se associam é maior do que a superioridade daquele que tira as suas forças do encontro consigo mesmo. Sua força não é seu poder, não é sua ela “se lhe aumenta”, na medida em que ele conhece o âmbito como seu – e o âmbito se torna o seu, à medida em que suas possibilidades modestas são agarradas sem reservas e são trazidas à plena consonância. Aquele que é chamado conduz as coisas ao tinir. “Solerte enfim Ulisses o examina:/ qual estende perito citaredo / com nova chave do alaúde as cordas, / as torsas adaptando ouvinas tripas, / fácil o atesa, a destra o nervo estira, / que soou como chilro de andorinha./ De côr os procos doloridos mudam”.
  • Atena – Quando Ulisses retesa o arco e afasta de si os pretendentes, é como se uma força sobrehumana surgisse dele. Esta força haurida do instante e do “insight” os gregos guarneceram com a dignidade da divindade e chamaram-na de Atena. Atena é a força divina do instante e da clareza. Ela salta da cabeça de Zeus em figura completa e plena de armadura; ela é belicosa; o seu escudo corisca; ela é virgem. A força é instantânea, invencível e indisponível. Esta força não está à disposição. Ela é destinada àquele que é o chamado. Na medida em que ela se levanta por sobre ele, ela cria a grandeza; uma grandeza, que não é do homem e que, no entanto, não surge sem ele. A grandeza divino-humana é o espaço, no qual o único é ele mesmo. Também outros, que se colocam por debaixo desta mesma força, tomam parte nesta grandeza. Ainda hoje nós interpelamos esta força animadora que, de maneira não injustificada, fora denominada uma divindade, quando nós falamos de grandeza, de um homem soberano, de um povo soberano. Liberdade real e independência são, nisto, intencionadas.
  • O herói – o mito de Ulisses responde à pergunta: como soberania nasce – soberania como aquela altura e grandeza, no qual o homem verdadeiramente se afirma como homem, como espírito livre. A elevação do ser vivente peculiar, que é envolvido com tantas privações, ao ser real “homem”, acontece no ato vivente da educação da comunidade. Isto é a experiência da Pólis grega, da cidade como comunidade vivente. Soberania, como se chega, portanto, a isto? – Não através do talento inato de um indivíduo. Também não através do contrato social de todos. Através, porém, de um movimento de conquista, o qual, depois de muitos sofrimentos, finalmente, permite ao único encontrar o seu próprio, aquele que lhe estava, na verdade, reservado, mas que, de maneira alguma, lhe é dado de graça e que lhe fizera crescer, no acontecer cambiante, forças insuspeitas. As forças o elevam. A imagem da elevação é a divindade. Ela está relacionada com um espírito, que une muitos homens e que lhes outorga uma comum e historial liberdade. Em sua elevação o homem obtém uma imortalidade historial; nela participam todos os companheiros de comunidade. A partir desta imortalidade “heróica”, ou seja, fundada sobre o herói, mais tarde, o cristianismo elabora aquela imortalidade “pessoal”, que é atribuída a cada indivíduo. No entanto, também esta imortalidade está ligada a um “herói”, a Jesus, o novo Ulisses. O ser atado no mastro é elevado, nisto, à morte na cruz. – A mesma figura fundamental, a mesma pergunta, quase a mesma resposta.

Interpretação da tragédia de Édipo Rei – de Sófocles (133 –135)

Leitura da Antígona de Sófocles – comentário de Heidegger.

(Intr. à Met., p. 170 – 186)

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