Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Apostila de Antropologia filosófica

20/04/2021

 

 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

AFIL1-1997

  1. AF se distingue de outras antropologias por ser ela filosófica. As antropologias como ciências positivas são ônticas ou positivas. AF é ontológica ou filosófica.
  2. Por isso, o filosófico da AF não indica:

– Ciências positivas

– Mundividências

> Mas sim: uma ciência filosófica.

Existe diferença qualitativa entre esses dois modos de ser: das ciências ônticas e da Ciência ontológica. Tentemos ver essa diferença.

  1. A filosofia antropológica, se comparada às outras ciências positivas que falam do homem, parece apagada, imprática, alienada.

– P. ex. Medicina Þ sob o ponto de vista da saúde > doença; > envelhecimento; > morte>\ VIDA!

– Biologia Þ todo o maravilhoso funcionamento e melhoria; prolongamento da vida; clone etc.

– Paleontologia Þ busca o lugar do homem dentro do reino dos entes, sua origem, sua maneira própria como criador da cultura etc.

– História Þ investiga aquelas ações do homem, através das quais foi criado e cunhado o universo do homem e que produziu o nosso mundo cultural.

– cf. sociologia, psicologia etc.

  1. Surge a pergunta: resta ainda um ponto de vista, um aspecto de sobra para ser enfocado pela filosofia? Resta ainda um lugar par a AF? Não é assim que, cada ponto de vista sob o qual o homem pode ser considerado, já está ocupado, bem servido por ciências positivas, precisas, metódicas e eficientes? Queremos dar à filosofia uma função de ser meta-ciência no sentido de síntese? Þ Diletantismo e ecletismo enciclopédico?
  2. Mas, cada ciência tem sempre um determinado ponto de vista, horizonte da sua pesquisa: o homem é mirado em vista daquele horizonte, como decisão de uma abertura, a partir e dentro do qual tudo se examina, na perspectiva dessa mesma decisão, deixando de lado como não sendo, tudo que não está no interesse desse mesmo horizonte.

– Examinando esse excluir em várias ciências, vemos que:

– Método científico não é outra coisa do que uma rigorosa atinência de um pesquisador ao horizonte a partir e dentro do qual mira a realidade, numa decisão ascética de deixar tudo de lado, o que não é relevante à busca dentro desse mesmo horizonte. Daí, abstração é seleção.

– O rigor da ciência consiste em manter essa mira a priori e se submeter  à sua lógica.

– Ciência e método são o mesmo.

– Assim, a ciência jamais capta o todo, mas sim se determina de antemão à mira do horizonte que condiciona todo o resto. P. ex. as ciências naturais: tudo que aparece na mira do número, medida, peso: numerus, pondus et mensura (Sto. Agostinho) Þ sistema.

  1. Mas qual o “ponto de vista” da filosofia? É o horizonte, sob o qual se obriga ao ente que apareça dentro da interpelação produtiva desse horizonte? Pergunta a partir de um positum? E o que é um positum? Pergunta a partir do último horizonte, o mais comum?, antes e acima de todo e qualquer horizonte?
  2. As ciências perguntam dentro de seus horizontes. A filosofia questiona os horizontes; é pesquisa dos a prioris.
  3. Mas, em sua última instância, a FA pergunta e se abre ao Nada: i. é, ao vigor de todo o ente.Þ SER = NADA: deixar ser o ente no seu ser Þ transcendência Þ liberdade.
  4. Liberdade:

– Nas ciências positivas: posição, Setzung: deixar ser o a priori do positum: ôntico.

– Na filosofia: Ser = Nada: ontológico.

  1. Filosofia Þ comum Þ nada: O universal, não isto ou aquilo: na realidade = totalidade todo próprio, o ser do ente, o ente na sua totalidade: FACTICIDADE.
  2. O que caracteriza o ser do homem é a facticidade ou existencialidade. Portanto a analítica da existência.

– Existência:

– existência como ocorrência

– ek-sistência como transcendência (facticidade).

– ek-sistência, transcendência, facticidade = Liberdade.

– Liberdade de;

– Liberdade para;

– Liberdade como transcendência.

  1. Existência e história:

– História como histoire;

– História como Geschichte: transcendência;

– Ambigüidade da história da antropologia filosófica: “História oculta do homem” = “história da filosofia”.

– Toda a fala sobre o homem é a partir de uma experiência fundamental.

  1. O homem se projeta a partir de uma experiência cada vez própria e única da sua transcendência: o que aparece como projeto é a imagem do homem, o typus humano epocal.

– O homem não vive sem o seu protótipo: não vive vegetando, sendo vivido,, mas sim vive de pé, olhando para frente, para dentro de um mundo de tarefas, assumindo as suas possibilidades:

– Assim: existência é:

– Projeto de vida;

– Ideal de vida;

– Objetivo de vida;

– Exigência que vem desse projeto;

– Normas e medidas;

– Comunidade.

  1. Um esquema:

Þ  SER  ® Transcendência   ————————->   =   Ser

 época ou era

– Na realidade existem somente dois grandes projetos ontológicos do typus humanus: o da SUBSTÂNCIA  e o da ESTRUTURA (a passagem prévia = Existência).

– Só que o da estrutura, por ser um modo de ser superior e mais diferenciado, cria uma subestrutura, a qual incorpora como a casca exterior de seu núcleo dinâmico, é o SISTEMA. O sistema é a forma provisória, é a forma inicial da estrutura. É dele e em confronto com ele que entramos na era da estrutura.

– A forma, a mais rigorosa do pensar do sistema é a ciência.

– A forma, a mais rigorosa de agir do sistema é técnica.

– Ciência e técnica são eventos principais da era do sistema: modernidade.

  1. Temos assim a Antropologia filosófica substancialista; a Antropologia filosófica sistemática; e a Antropologia filosófica estrutural.

Hfmed1-1997-IIS

Þ Antropologia substancialista: a imagem-protótipo do homem nos gregos.

Þ A imagem-protótipo do homem nos gregos cunhou a imagem do homem no Ocidente, principalmente na sua formulação substancialista. Essa imagem-protótipo do homem está expressa na definição clássica do homem como: animal racional. Essa definição é interpretada de maneira muito usual e superficial como sendo o homem um bruto (animal) que possui inteligência. Na realidade a definição diz infinitamente muito mais do que essa representação do homem como se ele fosse um bicho dotado de razão (no sentido racionalista). Animal rationale, animal racional é tradução da definição aristotélica do homem como sendo um: zwon logon econ, zoõn lógon échon. Significa literalmente vivente atinente ao lógos. E segundo a explicitação das últimas aulas: o homem é o ser vigente sob o domínio do espírito, um ser que “tem” participação, pertença e atinência a um tal espírito.

Þ Essa antropologia não somente reconhece o espírito como princípio universal e supremo, mas o atribui a cada homem individual, embora numa forma não totalmente plena, como tarefa responsável, como trabalho, afirmação, autorealização e busca: tirar da escuridão do não-ser o ser, trazer à luz, criar. O acaso, o sensível, o relativo, tudo isso são apenas momentos de busca do uno, do essencial, portanto polemoV ® ordo. A realidade não pode ser deixada em paz, mas sim captada como ordo = ciência episthemh (epistamai = ter postura adequada para uma ação) jusikh, logikh, hqikh e a realidade homem como ordo (= história).

Þ Este pensamento da ordem constitui o Ocidente.

– Mas, não unidade de dissolução no nada cósmico.

– Sim, unidade na pluralidade, na diversidade : en:panta.

E não ordem e unidade qualquer, mas ordem e unidade única, válida e permanente que impregna todas as realidades e relacionamentos humanos como modo de aparecer do espírito = cultura, obras.

Þ Assim: a filosofia não é sabedoria como no Oriente, mas ciência = penetração de toda e qualquer finitude na busca de uma ordenação, que não somente corresponde ao interesse pragmático e individual, mas que fundamentalmente, universalmente seja livre, justa, consistente e incondicional: essencial, substancial.

Þ Daí o característico do homem no Ocidente: polemoV = controvérsia e conflito: dominação das dinastias, luta pela validade dos princípios de ordenações, guerra de idéias e de religiões, em nome do absoluto com absoluta incondicionalidade. Isto vale até nos nossos tempos, do secularismo e historicismo = guerra de mundividências,>>>> socialismo – capitalismo >>> sempre se luta pelo todo, por tudo; monismo, monoteísmo; mas também a idéia da liberdade; cada indivíduo é portador do espírito absoluto como valor supremo: ideal da humanidade >>>> idéia da absoluta democracia >>>> respeito absoluto do indivíduo >>>> combate a toda dominação repressiva do poder >>>> autodomínio e auto-responsabilização: autonomia, consciência, autenticidade: daí na Agorá de Atenas, o homem recebe a coroa da vitória da deusa Liberdade, na medida em que se doa à filosofia e ética como representante da absoluta ordem universal.

Þ Esse núcleo de identidade se chama substância; daí a antropologia substancial; os acidentes individuais, os sumbebekotao o que vai junto, anda junto, os concomitantes.

Þ O modelo antropológico substancialista diz: a essência do Homem é universal, habita em todos os homens do mesmo modo e constitui o seu fundamento; e corpo em suas reações se anuncia de modo inseguro e indistinto como princípio unificador das diversidades e mutações dos fenômenos sensíveis. O Homem só se torna homem quando sacrifica o mundo das aparências e vive na plenitude do espírito. Cf. a morte de Sócrates; a busca da psicologia do Self; a busca do fundamento último na filosofia.

Þ No agir e no conhecer o homem é enraizado na sua essência e ao mesmo tempo é liberado na sua potencialidade pela essência. É finito, limitado, concentrado através dos condicionamentos sensoriais ao seu eu egoísta, individual, mas nessa concentração é convocado sempre de novo como tarefa a buscar a sua própria essência como ação que sai da razão como da substância do homem, no sentido de universalidade: na totalidade, no ser, no todo. Assim sendo cada vez uma parte aqui e agora, participa do todo, da universalidade do agir absoluto. É a ética: a lógica do agir: agir de tal modo como se em meu lugar o absoluto fosse agir: imperativo categórico de Kant: Aja assim, como se as máximas de tua ação através do teu querer devesse tornar-se lei universal da natureza (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 2. Abschnitt).

Þ Cada qual que é livre age assim e se todos agirem assim: ordem da paz universal = Ordem da razão, da liberdade e da paz = a meta da natureza. Identificação da existência racional individual com o espírito universal, Deus = Reino de Deus sobre a Terra.

Þ Na antropologia substancialista a palavra chave é conhecimento: o conhecimento conduzido pela razão é ciência = >>>> não mais realidade subjetiva, mas a totalidade da realidade como ela é em si: a ordenação essencial do espírito. Livra-se assim de experiência do sujeito para abrir-se à realidade da lumen naturale do ser.

Þ Conhecer = Lógica: e Agir = Ética >>>>> experienciar  – conhecer; comportar-se – agir. No conhecer e agir se deixa o reino do individual e casual para o comum universal absoluto.

Afil3 – 1997

Antropologia substancialista na sua formulação medieval-cristã.

Þ O cristianismo não muda a concepção antropológica grega, mas subsume a concepção no que há de fundamental, a torna mais aguda, leva  à radicalidade e assim a transforma totalmente.

Þ A questão fundamental do cristianismo é: Imortalidade.

– Não só da razão como parte do ser do homem;

– mas sim do homem todo como individualidade:

– Não só espírito;

– mas também existência psíquica e corpórea.

– Este indivíduo, esta individualidade se chama “persona”.

– Recebe através do cristianismo uma significação nova: individualidade no sentido potencializado ao máximo, de absoluta valorização, de realidade infinita.

– Pertence à imagem cristã do homem:

– A ressurreição da carne:

– Não só o espírito ou razão, mas o homem todo recebe a vida eterna.

– A Boa-Nova: é o anúncio da vida eterna do indivíduo.

– Assegurada através do sacrifício da Cruz.

– Às pessoas que incondicionalmente se doam a esse acontecimento da salvação.

Þ Através da imortalidade do indivíduo concreto, também a materialidade do mundo recebe o valor da eternidade.

– Conceito de criação: creatio/ens creatum.

– Conceito de Deus: Deus não um ente entre outros entes, mas sobre o Mundo: Ab-soluto; negação do pluralismo: absoluto monoteísmo.

– A partir desse absoluto monoteísmo transforma-se também o caráter ontológico do mundo – como criatura – criatura absoluta = caráter de absoluto num sentido derivado: participatiocommunicatio, analogia entis. O finito como a obra de um Deus absoluto tem o caráter de salvação: Saúde originária; mas essa salvação deve ser realizada pela responsabilização dos entes livres: homens e anjos.

Þ Portanto, não se trata de mudar, melhorar, transformar-se, não se trata de universalizar, tornar-se medida ideal geral (humanidade, humanismo), mas exatamente o contrário:

Û ir de volta (converter-se) para a sua propriedade histórico-corporal, tornar-se “ser pensado por Deus infinito desde toda a eternidade” = ser uno com a essência (idéias eternas) do Espírito de Deus: ter ou ser o mesmo espírito de Deus.

– O cristianismo não é realização ética (Fariseu).

– Mas sim, humildade diante da graça.

– Não tanto confissão da fraqueza e pecado.

– Mas sim conversão para: absoluta finitude da existência: conversão, salvação, encontro, simbolizado pelo batismo: renascer no Espírito Santo, morrendo no Cristo Crucificado.

Þ A necessidade de compreender o que é Pessoa para entender bem a antropologia cristã.

– A definição clássica do conceito de pessoa em Boécio (6 sec. p. Ch.): Persona est rationalis naturae individua substantia. Pessoa é a substância individuada do ser espiritual: = Individuação do Espírito = No Espírito de Deus e na sua absoluta essencialidade existe para cada homem um lugar e significação, cada indivíduo é pensado e nomeado por Deus, i. é, é amado na sua própria propriedade, naquilo que é o próprio dele cada vez. Daí:

Û Com judeus: o povo escolhido; símbolo do matrimônio (Cântico dos Cânticos); esse pensamento em cristianismo se transforma >>>> pessoa = cada qual singularmente escolhido.

Û Cada um é homem escolhido: esta é a Boa-Nova de Jesus Cristo, Boa-Nova do Amor do Pai. E esta Boa-Nova não é anunciada somente a um povo, mas a cada um:

– independente da pertença a um povo, a uma raça, a uma classe.

Û Portanto, cada homem é chamado e vocacionado por Deus e com isso é feito um tipo-espírito singular.

Û Ser agora é História dessa responsabilização: salvação, História da Salvação.

Û Tendência de todo o universo no Homem para um estado final de consumação: soteria, salvação, redenção, libertação: criação, soteriologia, escatologia.

Þ Deus é uno, em três Pessoas. Um, na essência. Três segundo Pessoa. Nessa acentuação da Pessoa = amor, encontro.

– Um modo todo especial de pensar a infinitude do finito. Em que sentido?

– O indivíduo humano recebe imortalidade e infinitude e eternidade não somente porque o corpo está unido ao espírito.

– Isto é: não significa que da situação finita, da ocasional, da material se deixa congelar para uma conservação indefinida, mas sim:

Û (significa) que o tipo finito se compreende como essência, i. é, idéia na mente de Deus, i. é, pensamento divino infinito e com isso é elevado a uma vitalidade nova.

Û Imortalidade, a vida eterna! Ser filho de Deus! e não dissolução num ser universal, imutável.

Þ Assim o personalismo cristão = conservação da individualidade faz escalar e potencializar, radicalizar a individualidade, a Pessoa como o próprio, na sua inviolabilidade: absoluta!

– Na Salvação não se trata de aproximação do Homem ao ideal, à configuração ideal do modo de ser corporal-espiritual = classicismo da antropologia grega (Humanismo), mas sim: a Boa-Nova de que o ser do Homem na sua propriedade e perfilação, e exatamente como é, (e não somente como poderia ou deveria ser), é transportado, é con-vertido no modo de ser ontológico da salvação, i. é, da saúde originária. A pessoa, o ser do Homem como Pessoa deve ser entendido como ser exatamente como é, como é pensado, planejado, salvo por Deus: antes que a tua mãe te concebesse etc.

Þ Por isso, cristãmente não se trata de:

– através da paidéia, do processo de formação universal desenvolver-se para a universalidade da sua razão, mas sim, na “guinada” da conversão ser revocado, conduzido para dentro da finitude da sua individuação e vocação, para que assim siga e obedeça ao pensamento-criação e à doação pessoal do Filho.

Û Nessa individuação a corporeidade (finitude) não é impedimento, mas sim pelo contrário ilustração, iluminação de uma perfilação do espírito todo própria como Deus a quer.

– Pedro, a rocha >>>> uma tipicidade bem determinada, toda própria do cristianismo ( = individuação=).

– Pedro: a rocha, uma tipicidade bem determinada, toda própria do cristianismo (= individuação =).

– Firmeza, rigor e dureza, imutabilidade, fidelidade, determinação da lei e institucionalização.

– Paulo: o “mínimo” , expressa todo um outro momento do Espírito que é chamado à realização do pensamento cristão: sempre menos possuir, tanto mais se despojar da própria vontade, para a cada momento de novo e novo servir.

– João, Tiago, Tomé, Tadeu etc./ Apóstolos, Santos mártires, confessores, virgens, viúvas/ testemunhos; ordens, congregações etc. refletem e espelham, especulam em cada pessoa individual o todo da espiritualidade cristã.

Afil4 – 1997

Þ Pessoa como espírito individuado é ao mesmo tempo dom e tarefa.

– Dom: Desde o início se é criado e se é amado, confirmado na sua própria singularidade; e

– Tarefa: sempre de novo deve voltar ao que já era, e na tentativa de não aceitá-lo, de fugir dele para o comum, para o geral, deve recordar sempre de novo da:

– Confissão (cf. Confissões de Sto. Agostinho);

– Não é confessar os pecados;

– É proclamação, confirmação, conversão, jurar por.

– Decisiva captação da finitude e recondução da finitude ® A divina intenção do amor e criação.

Þ Nesse sentido: limites, impedimentos, falhas, erros são chances da Fé (felix culpa!: evangelho dos coxos e estropiados: nessa filosofia ocorre um termo que caracteriza essa singularidade humilde na aceitação divina: idiota; cf. Nicolau de Cusa 1401-1464), Idiota de sapientia ® idioV = o que está à margem; particular, especial, próprio (contrário de poliV): mestre da humanidade que está acima dos gregos e Aristóteles; que vai direta e imediatamente ao próprio: finitude encarnado divinizado = pessoa: é pessoa como amado por Deus =  Tu absoluto.

Þ E o nouV? Não resta mais nada dela? nouV como espírito universal se transforma em Espírito Santo: pneuma + amor = potencialização absoluta da forma do espírito: vitalidade, concreção, propriedade, potência: sopro, vento, tempestade! que desce, vem sobre o Homem, o enche = plenitude. É o vigor do Deus que reina sobre tudo mas pessoalmente. hisitorial-concretamente, jamais é comum, geral (Cf. Kierkegaard).

Þ A pessoa, a singularidade não é um composto-atinência como o “animal rationale”= finitude e infinitude como essência, ideal. Mas sim: individualidade de configuração do espírito, recebido através de retorno (conversio) e confessio a Deus,  como fulguração de Deus, como vigor vivo, hálito e sopro cada vez disposto, habilitado para ação e ser do plano de Deus (= amor do encontro).

Þ Essa personalização é ao mesmo tempo encarnação do espírito em finitude e carnalização do homem, imaginação (configuração) da corporeidade concreta e da facticidade ® presentação do absoluto.

Þ Nascimento de Deus em nós (concreção) = homem personalizado = homem espiritual = homem interior. Não é mais um caso, um exemplar, mas sim pessoa = um Tu.

Þ Espiritualidade cristã não é espiritualismo, este = espiritualização no sentido grego. A espiritualização cristão é encarnação: projeto sobre finitude e corporeidade do homem: exige a existência encarnativa de cada um = “Senhor” Jesus!  Maria! Rabouni! Nesse sentido não é humanismo, mas sim” deixar ser: Fiat. Talvez humilde humanismo?

Þ Como essa volta ao seu originário e simples ser-idiota = libertação.

A antropologia filosófica cristã sempre se entendeu como emancipação, mas todo próprio: há liberdade do homem cristão que é atuada por próprio Deus e está à disposição de cada um.

– Excurso sobre o erro de perspectiva da teologia da libertação (Boff): ter substituído a liberdade cristã com humanismo e emancipação da ontologia grega.

Þ O empenho humano para essa libertação é humilitas = modo de ser, postura e estado de ser. Pecado = negação, afastamento dessa conversão. Com o pecado não se torna outra pessoa, se despersonaliza (cf. ex!…encontro dos ex em Campinas, a revista).

Û Os movimentos estruturantes do ser-humano cristão:

VOCAÇÃO / CONVERSÃO / CONFISSÃO / INCARNAÇÃO / IMAGINAÇÃO / PERSONALIZAÇÃO.

– Comparada com os gregos essa antropologia medieval é:

– mais complexo;

– mais exigente;

– o ser humano não me é dado, mas me é responsabilizado;

– é um trabalho de empenho por e para toda a vida;

– o homem não é simplesmente homem por essência, mas sim tarefa através de toda a História da humanidade: História!: a salvação de todos como escatologia: o último juízo = a segunda criação. O homem novo: novo céu e nova terra. Assim: tudo, em nada muda, mas é transformado: transfiguração: ressurreição.

Û Nesse novo céu e nova terra, a antropologia substancialista atinge o seu núcleo e aqui se abre para a ontologia da identidade e nesse ápice se liberta para a ontologia estrutural. Nomes de pensadores desse modo de ser: Paulo, Agostinho, S. Francisco, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa, Pascal, Jakob Böhme, Franz von Baader, Tolstoi, Hölderlin etc.

Afil5 – 1997

Resumindo:

Û A filosofia grega coloca o homem no centro do empenho humano, dando-lhe um sentido e uma tarefa todo próprios de ser a correspondência responsável ao Ser e lhe aparece como physis e lógos. A filosofia é o próprio tornar-se do homem como disposição de abertura e correspondência ao ser.

Û O pensamento medieval cristão assume essa colocação do homem como espírito. Contudo esse destinar-se do homem como disposição, crescimento e consumação no ideal humanista de libertar-se para a autocorrespondência universal ao ser, recebe um lugar de menos destaque, torna-se como que uma significação não muito essencial, como o foi no pensamento grego. Dissemos, sem dúvida, que o medieval assumiu a compreensão filosófico-antropológica dos gregas, e a radicalizou no conceito de pessoa. Mas essa radicalização trouxe uma tal transformação na figura do ser-humano, fazendo renascer o homem grega, humanista, espiritual e ideal como pessoa-filho de Deus. Essa radicalização do animal rationale (vivente atinente ao lógos) para pessoa, filho de Deus, fez com que a filosofia, i. é, o processo de individuação e consumação do homem como correspondência responsável para com o lógos, se tornasse algo derivado ou secundário, dentro do todo do pensamento medieval. Há para o pensamento medieval algo muito mais importante do que a filosofia e o seu processo pedagógico de humanização.

Û “O homem da Idade Média cristã vive na consciência de um relacionamento para Deus mais originário e mais próprio. Somente através desse relacionamento o homem se torna homem. É por isso também o fundamento e possibilitação  de todos outros relacionamentos do homem. Toda outra referência a outros entes que não é o homem pressupõe o relacionamento com Deus” (cf. Rombach, Heinrich, A presença da filosofia, p. 58).

Û “A referência fundamental do homem” não mais diz respeito ao ente, principalmente e como tal, mas a Deus”. E esse Deus não é uma divindade qualquer mas sim Pai de Jesus Cristo, i. é, Deus revelado e anunciado por Jesus Cristo com o testemunho do seu sangue.

Û Assim, a estrutura fundamental do ente no seu todo como a busca do ser do ente na sua totalidade, se radicaliza, não na direção do ser no sentido universal, total, comum, abissal etc., mas sim, todas essas características do ser como uno, totalidade, abissal, profundidade, etc. se concentra, se entifica num único ente Deus que assim não é mais um ente supremo junto, ao lado, acima de outros entes, mas Deus é único ente, o ser propriamente dito, a se, in se, absoluto, de tal sorte que tudo que não é ele é não ser.

Û Se se diz ente ou ser “fora” de Deus, então o sentido do ser é inteiramente derivado, digamos secundário, ou melhor recebido, pela Criação “ex nihilo sui et subiecti”. Criação diz total dependência, total finitude, total contingência. Ou o que é o mesmo: total doação da parte de Deus, total presença da graça de Deus. Ser significa agora receber. Receber o ser significa ser criado por Deus. Ser criado por Deus significa ser amado por Ele a ponto de Ele ser minha vida, meu ser, meu existir, minha realidade, a mais íntima de mim mesmo.

Û Nessa colocação, não se está mais no ente, nem no ser, mas sim numa “realidade” que me vem de encontro como doação de amor pessoal, onde cada ente se torna único e tudo, portanto de encontro do amor do Deus de Jesus Cristo que se doa sem medida, totalmente, de modo único e singular.

Aqui a compreensão da substância como o espírito, enquanto plenitude do ser, enquanto correspondência ao ser se transforma em pessoa, enquanto amada e amando, na união, cada vez singular, de identificação, identificação-encontro do Pai de Jesus Cristo com cada uma das criaturas em Jesus Cristo.

A substância espírito como presença de autoresponsabilidade de ser, a partir de si, na plenitude absoluta de ser em si, o ens a se, alcança a sua absoluta intensidade como Eu e Tu absoluto do encontro do amor: a pessoa. O eu aqui não é o eu da subjetividade, mas sim a absoluta substancialidade, a absoluta consistência e densidade da compactidade da doação de si.

Û Explicitar graficamente essa compactidade da doação de si: os círculos concêntricos da intensidade de ser: substância-coisa inorgânica, vida vegetal, vida animal, vida humana, razão, intelecto, espírito, mente, o divino, a deitas: o espírito como conhecimento = substância simples, separata.

Û Mostrar como dessa escalação, o degrau mais baixo do ser se torna o padrão do ser: substância coisa. Como dessa coisidade ainda substância aos poucos surge a coisa como um algo pontual vazio de conteúdo >>>>> cf. a apostila do seminário de Descartes: o nominalismo do fim da Idade Média.

Afil6 – 1997

Como o homem deve manter-se na paz, quando ele não se encontra no empenho externo, como Cristo e muitos santos o tiveram; como ele deve então seguir a Deus.

Às pessoas pode sobrevir pois medo e desalento sobre isso que a vida de nosso Senhor Jesus Cristo e dos santos era tão rigorosa e sofrida, o homem, porém, não consegue muito em tudo isso e também não se sente impulsionado para isso. Por isso os homens, quando eles se encontram ali tão divergentes, se consideram muitas vezes, longe de Deus, como a quem eles não podem seguir. Isto ninguém deve fazer! O homem de modo algum deve-se considerar longe de Deus, nem por um defeito nem por uma fraqueza, nem por alguma outra coisa. E quando quer que teu grande crime possa te enxotar tão longe de Deus, a tal ponto que tu não te possas considerar perto de Deus, deverias tu pois te tomar perto de Deus. Pois nisso está um grande mal, que o homem se empurra Deus para longe; pois, se o homem anda longe ou perto: Deus jamais vai para longe, ele permanece sempre na proximidade; e se ele não pode ficar dentro, então ele não se afasta mais do que até a porta.

Assim é também com o rigor do seguimento. Presta atenção sobre isso, em que o teu seguimento possa consistir. Tu deves reconhecer e ter observado isso, para que tu foste exortado de modo mais forte; pois de modo nenhum os homens são todos chamados a um caminho para Deus, como diz São Paulo (1 Cor 7,24). Se tu não achas pois que o teu caminho próximo corre sobre muitas obras externas e grandes penas ou privações – no que não está colocado tanto peso, a não ser que o homem seja por Deus impulsionado especialmente para isso e tenha a força de realizá-lo sem perder a sua interioridade – portanto se tu disso tudo nada encontras em ti, então sê inteiramente contente e não te deixeis que ponhas muito peso nisso tudo.

Tu poderias talvez dizer: Se nada está ali de peso, então porque o fizeram nossos antepassados, os muitos santos?

Assim pondera: Nosso Senhor lhes tem dado esse modo, deu lhes porém também a força, de assim agir, de tal sorte que eles sustentaram esse modo, e exatamente nisso encontrou Deus neles a sua complacência; nisso deviam eles alcançar o seu melhor. Pois Deus não ligou a salvação (Heil) dos homens em um certo modo especial. O que um modo tem, isto não o tem o outro; a capacidade de realização porém Deus outorgou a todos os modos bons, e a nenhum modo bom isto é negado, pois um bem não é contra o outro. E nisso as pessoas deveriam perceber junto de si, que fazem injustiça: se elas ocasionalmente vêem um bom homem ou ouvem falar dele, e então ele não segue o modo delas, de tal sorte que então ele para elas vale como tudo perdido igual. Se não lhes agrada o modo dele, então não considerem logo também o modo bom dele e seu bom espírito (Gesinnung). Isto não é reto! Dever-se-ia considerar no modo das pessoas mais isso que ela tem uma boa intenção e não desprezar modo de ninguém. Não pode um cada um ter só um modo, e não podem todos os homens ter só um modo, nem pode um homem ter todos os modos nem um ter cada modo.

Cada um mantenha o seu bom modo e refira todos (outros) modos para ali dentro e agarre bem todo o bem e todos os modos no seu modo. A troca do modo faz modo e ânimo instável. O que o um modo pode te dar, isto tu podes também alcançar nos outros, conquanto ele seja apenas bom e louvável e tenha somente Deus em vista. Além disso, não todos os homens podem seguir um  caminho. Assim também é com o seguimento da rigorosa vida daqueles santos. Tal modo deves tu amar, e ele possa te agradar, sem que tu necessites de segui-lo (Mestre Eckhardt, Conversações espirituais, n. 17).

Afil7a – 1997

O perfil do pensamento moderno que possibilitou a ontologia da substância e na sua radicalização a ontologia da estrutura

(Resumo dos pensamentos de Heinrich Rombach, tirados de Substanz, System, Struktur)

Þ A filosofia moderna não se caracteriza pelas novas respostas para perguntas antigas. Mas sim: pelo novo modo de perguntar.

Þ O pensamento moderno é desencadeado por um movimento de transformação básica do pensamento que já vinha de longe desde a Idade Média e através do declínio da Idade Média chega em Descartes o ponto de erupção: esse movimento de transformação básica se chama nominalismo.

Þ Resumamos esquematicamente a problemática e as conseqüências desse nominalismo:

> O nominalismo da Idade Média em ocaso é a mais radical revolução na história da filosofia desde Platão:

– Destroi as categorias fundamentais da metafísica que valeram por mil e mais anos.

– Obriga o surgimento de novo pensar.

– Que é ao mesmo tempo o nascimento do mundo moderno.

– Os conceitos metafísicos permanecem; mas como que corroídos por dentro.

– A filosofia nas suas questões as mais decisivas e no conceitos fundamentais foi atingida mortalmente pelo nominalismo e impossibilitada.

– A destruição da antiga ontologia não é um ato extrafilosófico, mas sim o nascimento de uma nova filosofia.

– Vai corresponder às novas exigências?

– Não é pior do que a antiga?

– Novo pensamento de conseqüências sem fronteiras ficou possível pelo nominalismo.

Þ Em que consiste o trabalho de destruição do nominalismo? Ataque contra e destruição da idéia do: Ser, Essência e Espírito (= ontologia da substância).

Þ a) Redução do Ser à ocorrência. b) Redução da essência ao algo. c) Redução do Espírito à representação.

> a) Redução do Ser à ocorrência:

– Encurta o significado do ser à simples ocorrência: existência como simplesmente dado.

– O ser por si mesmo sem valor.

– O que existe não tem ligação com o quê.

– Ser é sem conteúdo, sem determinação.

– Apenas uma posição.

– O ser sem um sentido interior.

– Em referência ao ser nada a dizer, nada a questionar.

– Se o ser não é questão, não há ontologia. Logo não há filosofia. O que há é fato, ocorrência.

> b) Redução da essência ao algo:

– Essência = quid = quidditas, na Idade Média.

– A determinação do quid segundo o nominalismo não se distingue mais em: essência e indivíduo. Para o nominalismo essência e indivíduo são iguais. Na Idade Média cristã, em vez de indivíduo = essência; pessoa : universal-singular.

– O quê-essencial não dá mais o grau, a intensidade do ser. Por que isso? Porque o ser está separado da essência,, é porque o ser é apenas ocorrência. Assim:

– O ser não recebe nada da essência; é apenas ocorrer, o vir ao fato da essência.

– Não há mais a essência como o âmago, que faz do ente um quê, i. é, faz do ente um sendo, ao redor do qual as determinações acidentais do indivíduo podem repousar.

– Não há mais critério para distinguir conteúdos necessários e casuais: tudo que ocorre à coisa contribui apenas para determinar o seu quê como simplesmente algo: assim tudo é igual.

– Essência significa aqui apenas o que se opõe ao puro  “que ocorre” : é o quê da totalidade de determinações: algo.

– Esse quê-algo não é um quid núcleo, mas sim o todo de determinação- indivíduo, o conjunto-quê indivíduo. Desaparece a diferença entre o universal e o individual.

– Existe apenas diferença nominal de conceitos e termos. Não mais universalidade (uni-verso) interior do sendo, do ente.

– Na Idade Média o mais importante, o real, o intenso e volumoso de um ente é a essência. O “corpo” da coisa, no qual está ligado tudo quanto perfaz a coisa. P. ex. um sapato, primeiro ele mesmo, e só então, pequeno, grande, azul ou vermelho etc. Atributos e substância! Atributos, acidentes (ad-cadere, symbebekota) e a coisa ela mesmo! Com o nominalismo tudo isso desaparece. O corpo murcha, o que fica são feixes de acidentes; o acidente é realidade, a substância é apenas um ponto de referência que segura, o que?

> c) Redução do espírito à representação:

– Segundo Idade Média Espírito era ser, e ser era espírito. A coisa material é modo deficiente do espírito. Espírito = medida do ser, intensidade, concentração do ser.

– Com o nominalismo vem a separação do espírito e ser:

– Espírito não é ser.

– Espírito re-presenta o ser.

– Coloca o ser diante de si.

– Quando se diz: o Espírito assimila o ser, não significa: condução do ser na e para a sua forma e intensidade a mais densa; mas significa: a alienação, o afastamento do ser, transposição em um outro medium.

– Não é pregnância da coisa ela mesma interiorizada = intellectio; intuitus; intus-ire, intuitio.

– Conhecer é apenas apreensão, visão externa do aspecto = experimentação, a captação de e por fora.

– Supremacia e ditadura do empirismo.

– Empirismo não é tanto uma parte, a parte sensível do conhecimento, em oposição ao racionalismo, à razão, ao entendimento, mas sim uma total determinação do conhecer.

– É ontológico. Um modo de ser do conhecer, e não uma parte do conhecer.

– Também o conhecimento espiritual e racional está diante, contra a coisa,, e é só compreensível como transporte de um médium a outro =  perceptio.

Perceptio: não é libertação, liberação de um núcleo essencial para a sua plenitude (conascimento); mas sim: dissimulação, encobrimento, alienação da coisa ela mesma.

– Surge o esquema S e O ou S é P.

– Surge o problema da certeza do adaequatio rei et intellectus.

– Não se questiona o sentido do ser, mas sobre um determinado sentido já estabelecido; se desvia o interesse apenas em averiguar e tentar resolver o problema da teoria de conhecimento.

– S e O é o dogmatismo da nova era.

Þ Significação de Descartes nesse impasse do nominalismo:

= Descartes assume as transformações do nominalismo, as supera na linha de radicalização e aprofundamento, possibilitando uma nova filosofia.

= Ele o faz, ligando-se  ao pensamento já existente na tradição do funcionalismo ocidental: Agostinho, Cusano, Paracelso, João Reuchlin, Valentin Weigel, Jacob Böhme, Giordano Bruno, Kepler, Galileu etc.

= Não vai o caminho do nominalismo só assim como funcionário do nominalismo, ele vai co-pensando, na tentativa de resolver problemas insolúveis.

= A genialidade de Descartes = uma solução simples que faz jus à nova tendência, sem se desligar da tradição. Daí, lá por 1650 os seus companheiros o chamavam de : “O maior de todos os filósofos”; “Estrela da manhã da filosofia nascente”; “O único fomentador da verdade que se levanta da escuridão e escravidão”.

= É tido por muitos nominalistas como renegado e traidor.

= Descartes >>> universalidade = uni-verso = mundo.

= Não mais >>> substância-ser-essência-espírito > < Tese da Unidade do todo = mundo = realidade.

Þ De como Descartes no pensamento da universalidade i. é, da unicidade dos entes na sua totalidade chamado mundo, universo, possibilitou uma nova época da filosofia, uma nova ciência, a mathesis universalis:

  1. Participa plenamente da destruição da idéia do ser. Ser = ocorrência do existir, factum brutum, factualidade.

No entanto, a factualidade possui articulação, e vida própria, modo de ser e constituição do ser como ser do ente na totalidade.

O saber acerca do ser não é apenas a constatação do fato bruto, mas sim descrição, rastreamento do modo de ser e da constituição do ente na sua totalidade = ontologia, filosofia: ciência do ser. Assim satisfaz o nominalismo e recupera a profundidade da filosofia.

  1. Participa da redução da essência ao algo formal. O quid, a essência do ente, no nominalismo não é outra coisa do que o conjunto de suas propriedades. Como tal um ente não se diferencia do outro. Cada ente é um todo que é um quê, um 1, 2, 3, um algo. Não há senão algos, indivíduos, não há mais possibilidade do comum. A haecceitas do ente é a generalidade do ser.

Mas, o que significa isto: a individualidade de cada conjunto, considerado cada vez como este, é a generalidade do ser? Usualmente entendemos o ser = geral abstrato, sem diferenciação, comum, vazio de conteúdo, Cf. Ser e tempo, os três preconceitos do conceito do ser.

Na realidade, segundo Descartes: Ser não é o comum, o geral, mas sim: cada vez totalidade do conjunto que é uma rede de constituição como propriedades: >>> mônadas, monadologia. Assim abre todo um mundo de totalidades de diferença radical.

  1. Adere à redução do espírito à representação. Assim afirma a tese do conhecer é aperceber. É o captar da coisa pelos sentidos, a posteriori: a pura empiria. Experiência. Mas esse saber a posteriori significa que a existência humana como saber a posteriori é a facticidade desse saber, a possibilidade do saber e a atualização desse poder é aposteriori, i. é, me é dada. Esse saber é um se saber, i. é, um saber que não busca fora desse se saber outra informação sobre si, mas como que, em sendo, desdobra com coerência e unidade a própria estruturação do ser como a auto-explicitação da própria essência: no seu se saber, todo esse processo é a priori, i. é, contem todos os saberes que estão implicados nesse se saber.

Descartes é empírico e racional. Empirismo e racionalismo no fundo são o mesmo.

Esse saber não é a captação de uma idéia no espírito, mas sim o próprio nascimento do espírito: essa nascimento já decidiu tudo de antemão: a priori.

Mas esse a priori, esse dado não é uma factualidade, mas sim facticidade, i. é, a responsabilidade de, em sendo, ter-que-ser cada vez a sua origem.

Descartes não dá um novo impulso à filosofia tradicional.  Ele coloca antes o pensar numa nova região do perguntar e responder, ele funda uma nova filosofia.

Þ As características da nova filosofia segundo Descartes

  1. Filosofia é autoperfazer-se:

A filosofia:

– Agora não é mais colocada no todo das essências e o espírito não é a forma de realização do ser que tudo atua.

– O espírito não tem a sua fundamentação e localização de fora, mas a partir e através de si mesmo. Ele se deve dar a si mesmos o seu lugar, deve se colocar, deve-se dar.

– Não é o acontecer do ser como o é a ontologia medieval, o espírito acontece agora somente como ele mesmo.

– O filosofante só se torna espírito, quando se encontra nele mesmo, quando ele toma como fundamento de si a si mesmo.

– A filosofia está de pé nela mesma. Não tem outro lugar, não tem outro móvel para o seu próprio trabalho a não se a si mesma.

– A nova definição da filosofia: é um pensar que se coloca a si mesmo, e empreende buscar e tomar todas as suas soluções e motivos de si mesmo.

– Rejeita todas outras fontes: – Experiência; – Autoridade; – Revelação:

* Não porque perderam a sua credibilidade.

* Não só a condução de fora, mas também todo e qualquer conteúdo.

* Não por movimento de emancipação contra autoridade, Igreja, sociedade etc.

* Mas sim: a tentativa de captar uma nova essência do espírito, e abertura a um médium nela mesma, na limpidez (idéias claras e distintas) dela mesma, sem se apoiar em algo que não seja ela mesma.

  1. Alienação social da filosofia.

– Como a filosofia se coloca nela mesma, e se independiza da ordenação do universo, acontece também o mesmo na sociedade: não ocupa nenhuma posição na sociedade.

– Não tem utilidade imediata, nem credibilidade aos contemporâneos e atuais.

– Não se comunica para fora, mas só para si mesma: dos iniciados para os iniciados.

– Não pretende ser educador.

– Não pretende ser testemunho do valor supremo.

– Retrai-se, torna-se invisível, se torna um João Ninguém, não é exemplo nem ideal de sabedoria, age como todo mundo, não tem doutrina nem ensinamento.

Não é oficial: clergeman.

– Não é nem político nem educador vocacionado como teólogo, juiz, médico. Bene qui latuit, bene vixit.

– É monge, idiota, leigo.

  1. Ausência da escolaridade:

– Para séculos vindouros, a filosofia vai emigrar das escolas e universidades. P. ex. Descartes, Hobbes, Arnauld, Pascal, Espinoza, Locke, Leibniz, Hume.

– Não são funcionários, professores nem tem ligação com universidades.

– Homens privados, relacionam-se com colegas privativamente.

– As universidades e studium general não são tocados por esses pensadores.

– Não se trata de uma das conseqüências da defesa da filosofia tradicionalista contra o novo pensar. Está na coisa ela mesma do novo pensar:

– Sempre novo e de novo afundar-se, iniciar-se a partir de si mesma.

– Somente com Christian Wolff (1679-1754) e Immanuel Kant (1724-1804) a filosofia volta às universidade, mas se torna desnatural à filosofia da escola. Kant distingue: “Filosofia segundo o conceito de escola” e “Filosofia segundo o conceito mundo”.

  1. A filosofia como autofundamentação e sondagem da origem.

– Não está mais ordenada a um mundo, mas é ela mesma todo um mundo, que somente se refere ao que, a partir e através dela surge e é pensado.

– É pensar sem pressuposição.

– Não aceita nem axiomas, princípios, verdades primeiras, dados, formas dos outros, deve tirar tudo de si, a partir e através de si.

– Daí, ela é sempre mais acossada, empurrada para o fundo, profundo, fundamento, fundamentação, origem de si.

– Todos os empenhos, toda a concentração vai na busca da sua própria origem. Não resta mais tempo nem motivo para propagação do pensamento, filosofia não é mais enciclopédica.

– Não mais summa; speculum universale.

– Não é mais expansão, propagação do saber essencial do mundo, mas problemas fundamentais da própria facticidade.

– Daí forma literária: tratados, essays, discursos, cartas, fragmentos.

– Não tanto o quantum, não tanto resultado do pensar, mas sim a origem, o retorno ao fundo.

– Técnica de discussão não é mais disputatio >>>> pressuposição. Mas sim: sempre de novo a capoeira do pensar os fundamentos: a origem do pensar. P. ex. Locke > Descartes> Leibniz > Locke > Kant > Leibniz.

  1. A filosofia cria para si terminologia.

– Como a filosofia não é mais mantida por um mundo extra filosófico, ela deve então não somente pensar por si, mas cuidar de todos os detalhes do seu mundo.

– Daí começa com auto-reflexão, dizendo antes de tudo o que é filosofia.

– Cada filosofar deve determinar e fundar a própria possibilidade de filosofar.

– O objeto de cada filosofar é a própria possibilidade de filosofar.

– Deve pois pensar tudo novo.

– Na modernidade cada qual começa radicalmente consigo mesmo.

– Leibniz, Kant, Hegel, Husserl, Nietzsche, Heidegger, todos os post Descartes se compreendem como novo, início, princípio da nova época. Entra cada vez na história, de tal sorte que inicia novo tempo, é epocal- historial, é kairótico e não cronológico.

– Deve reinterpretar os outros à nova luz e se colocar nessa nova história.

– examina e conduz a sua própria pressuposição: destruição.

– História não é exposição de diferentes opiniões, culturas etc. mas sim história dos problemas do ser: questão, cada vez diferentes possibilidades de interpretação do mundo, homem e Deus.

– Não há base comum imediata de discussão.

– Cada qual possui a sua terminologia que deve ser compreendida cada vez no todo diferente.

– Explica cada filosofia, mas não se deixa referir a outra filosofia.

– Isolamento absoluto a cada mundo conceptual e terminológico.

– Categorias como essência, substância, ser, verdade, pensar, fundamento, razão, causa, matéria, forma, espírito tem cada vez significação diferente.

– Não há introdução geral de filosofia.

  1. Filosofia como uma atitude do espírito toda própria.

– Filosofia se atem si mesma para si mesma. Possui por isso uma impostação toda própria para com a sua própria tarefa, irredutível.

– No ser e no processo e destaca da atitude do pensar e do processo de pensar do cotidiano.

– Se torna realmente “difícil”.

– Inacessível a quem está de fora.

– Desnatural “Andar de cabeça para baixo” (Hegel).

– Afirmações fora do senso comum.

– Tudo é no fundo diferente.

– Mundo é sombra, ilusão: o mesmo vale para o além, a transcendência.

– é chocante, especulativo-abstrata, subterrânea.

– O seu trabalho não é mais compreender e fundamentar o que a razão natural já sabe das coisas: desmascarar, ironiza, interpreta totalmente diferente.

  1. Filosofia como mundividência >>>> Ideologia.

– Toda especial: eversio generalis (Descartes); reversão de todos os valores (Nietzsche).

– Adquire caráter confessional. Fanatização, torna-se revolucionária.

– Quer pois tudo transformar, não somente o social, o político etc., mas na totalidade.

– Idealismização. Não necessariamente, mas há nela a tendência.

– Filosofia se transforma em crítica da sua própria crítica: apatridade, inquietação, nenhuma utilidade para humanidade. Daí tendência de desaparecer, restando somente a sua caricatura: as ideologias.

– Assim se dá o retraimento da filosofia.

Þ A ontologia do sistema, como vimos no início da apostila, surge pelo esvaziamento da ontologia da substância. Sistema indica uma forma ainda incompleta e não acabada da estrutura. Assim na ontologia do sistema temos já o modo de ser da estrutura, mas não na sua total liberação, de tal sorte que no sistema, a estrutura ainda vem com as características da substância, não na sua plenitude dinâmica, mas na sua forma de fixidez esvaziada de conteúdo.

Afil7b – 1997

(NB: Afil7a é a apostila que tem o título: “O perfil do pensamento moderno que possibilita…” etc.)

O esvaziamento que o nominalismo operou no todo do pensamento medieval em todas as suas categorias ontológicas fundamentais fez surgir uma nova filosofia, cuja antropologia é a antropologia moderna que tem por palavra central: Sistema. É a antropologia da subjetividade esvaziamento do sentido do ser do ente na sua totalidade, no qual Ser se reduz à ocorrência, a essência a algo, espírito à representação, é abordado por Friedrich Nietzsche como o esvaziamento dos valores supremos que sustentavam e ainda de alguma forma sustentam o sentido do ser vigente no Ocidente europeu. Esse esvaziamento recebeu na filosofia de Nietzsche o nome de “Morte de Deus”. Vamos pois rapidamente fazer um excurso sobre a idéia da “Morte de Deus” para usarmos essa reflexão na apostila seguinte que tenta caracterizar o modo de ser do homem, dentro da nova filosofia que eclode em Descartes.

Hoje o que chamamos de Deus, e correspondentemente de religião, não é mais óbvio, como acontecia de uma forma vigorosa p. ex. na Antropologia substancialista medieval. Por isso, embora a religião e Deus se refiram a experiência própria originária, de um vigor todo próprio, irredutível a outra modalidade de abordagem que não seja a própria experiência no seu salto originário, não estamos mais na possibilidade, nem na necessidade absoluta de Deus nem da religião. Por isso se torna necessário um confronto, não apenas vivencial e experiencial de Deus, mas sim de um confronto filosófico com religião e seu Deus. Estamos no tempo da reflexão filosófica sobre religião. O que segue é uma reflexão que fizemos nas aulas da fenomenologia da religião e diz respeito à “Morte de Deus”.

A questão expressa e temática da essência da religião e a sua elaboração sistemática não é propriamente uma necessidade, mas se mostrou como possível. A religião pode formar a sua vida sem filosofia e o faz e o fez principalmente lá onde a sua vida era intensa.

Onde, porém, a religião não mais possui a sua originária e inicial obviedade, e lá onde o pensar filosófico autônomo se desenvolveu de modo intenso e absoluto, talvez surja uma necessidade todo própria de pensar a religião de modo mais temático e responsável.

Essa necessidade de um confronto temático e responsável no pensar com o fenômeno religião se torna agudo e urgente, diante do que costumamos denominar  a “morte de Deus”. Falemos rapidamente da morte de Deus.

O que é a “morte de Deus”? A expressão vem de Nietzsche. A morte de Deus ou “Deus está morto”, indica o âmago da filosofia de Nietzsche. Contem 4 momentos principais que receberam o nome de: O nihilismo europeu; a Eversão de todos os valores; a Vontade do Poder e o Eterno retorno do igual.

Na obra póstuma “A vontade do Poder”, aforismo 2 (1887) Nietzsche pergunta: “O que significa nihilismo?” E responde: “Que os valores supremos se desvalorizaram”. E acrescenta: “Falta a meta; falta a resposta para ‘por que?”. E no quarto livro da obra “A gaia ciência” intitulado “Nós, os intrépidos”, Nietzsche assinala o aforismo 343 com as palavras:  “O que há com a nossa jovialidade”. E o texto inicia: “O novo evento máximo – que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão perdeu a sua credibilidade –começa já a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.

O nihilismo, usualmente o entendemos como uma atitude e concepção particular e subjetiva, na qual se vê tudo a partir e na direção do negativo, do nada (nihil). É algo como rejeição pessimista e depressiva da vida. O nihilismo do qual fala Nietzsche se chama,, no entanto, nihilismo europeu. Não se trata, pois, de atitudes ou concepções subjetivo-particulares. Mas também, não se refere propriamente à mundivisão, muito espalhada na Europa do século 19, ao positivismo, que afirma: somente o que é acessível pela apreensão sensível é real e verdadeiro. O adjetivo “europeu” do nihilismo de Nietzsche não se refere à Europa geográfica. Refere-se sim à História, ao destino do Ocidente. Nihilismo europeu é portanto o termo usado por Nietzsche para indicar o movimento que caracteriza e domina a História do Ocidente, ou melhor o movimento que é a própria História do Ocidente, e isto, desde os seus primórdios com os gregos até aos nossos dias do ocidente-europeu. Trata-se, portanto de um processo, cujo evento máximo, cuja consumação se expressa e se resume nas palavras “Deus está morto”.  Portanto, o nihilismo de Nietzsche não é opinião ou mundividência, doutrina de um sujeito chamado Friedrich Nietzsche ou de um grupo de pessoas. Não é apenas um fato histórico entre outros, uma corrente “espiritual” entre ou ao lado de outras, como p. ex. iluminismo, ateísmo, humanismo. É o próprio ser, o próprio destinar-se do ocidente. É o movimento de fundo da História do ocidente, um movimento subterrâneo que vem de longe, e que somente agora começa a lançar as suas primeiras sombras sobre a Europa.

Mas o que caracteriza esse evento? Diz Nietzsche: A morte de Deus, i. é, a perda da credibilidade no Deus cristão. Aqui a falta de credibilidade no Deus cristão não está apenas indicando a rejeição e a negação do Deus cristão, por parte dos ateus, anticlericais, livres-pensadores ou mesmo pelos “cristãos indiferentes”. Tal falta de credibilidade no Deus cristão, assim interpretada, seria um episódio inocente, particular e caseira diante do evento mencionado por Nietzsche. Pois, todos esses fenômenos negativos acima mencionados não são ainda o nihilismo europeu como evento-causa, mas apenas alguns dos seus efeitos.

Deus cristão em Nietzsche indica o sobrenatural (o meta-físico), o mundo supra-sensível, o mundo de valores, de ideais e idéias que constituem a meta, o fim para o qual tende a vida.  Não é, portanto, apenas o fato e a situação de não se crer mais na revelação da Bíblia, no Deus e na Igreja do Cristianismo. O fato de o cristianismo com tudo que ele implica não ter mais vez, de não mais atuar nem possuir a força de colocar uma possível meta para a humanidade, não altera essencialmente em nada o fato de a humanidade ocidental, desta ou daquela forma viver a estrutura da opção preferencial pelo mundo sobrenatural, viver a estrutura da predominância do mundo de ideais e idéias, de metas, de princípios e fins, razão da existência do mundo natural, sensível e terrestre. Mesmo que o n. 1 do mundo sobrenatural, o Deus cristão tenha sido ou seja destronado ou morra inane, o próprio trono vazio permanece. Assim se tenta sempre de novo reintronizar os substitutos do Deus cristão como p. ex. o estado, a consciência, a sociedade, a razão, a humanidade, o progresso, o mundo melhor e toda sorte de diferentes “ismos”.

Essa tentativa de preencher, sempre de novo, o vazio deixado pelos diferentes valores supremos desvalorizáveis, por meio de valores substitutos do Deus cristão é denominada por Nietzsche de nihilismo incompleto. Assim diz Nietzsche em a Vontade do poder, aforismo 28 (1887): “O nihilismo incompleto, suas formas: nós vivemos bem no meio dele. As tentativas de esquivar-se do nihilismo, sem everter os valores que eram válidos até agora: trazem o efeito contrário, tornam mais agudo o problema”.

O descrédito do Deus cristão quer dizer portanto: a determinação do sentido do ser que tem como sua a mais consumada e absoluta manifestação o ente supremo (Deus), em todas as suas variantes e modalidades de interpretação, perdeu poder sobre o ente e suas determinações. Assim “com o “Deus cristão” caem do trono, juntos, todos os ideais, e normas, princípios, regras, fins, metas, valores que foram e ainda são por algum tempo estabelecidos sobre o ente para lhe dar no seu todo um fim, uma ordem, um sentido. Por isso diz Nietzsche: “…os valores supremos se desvalorizam”… “falta a meta, falta a resposta para ‘por quê’”.

Mas, o que é necessário para que o nihilismo não fique a meio caminho, mas sim que chegue à sua consumação? O nihilismo completo, consumado e pleno deve não somente constatar e considerar a desvalorização de todos os valores supremos, mas também vigiar atentamente que não se volte aos valores antigos em substituindo-os por valores novos similares. E deve antes de tudo efetuar a Eversão de todos os valores.

Eversão de todos os valores aqui não significa inverter, revirar ao contrário os valores que ocuparam ou ocupam os lugares da hierarquia de valores estabelecida como o escalonamento dos entes no seu todo. Não se trata pois de por de cabeça para baixo a ordem do “sistema” de dois mundos, do mundo sensível: passageiro, relativo, provisório e ilusório, e do mundo supra-sensível: eterno, absoluto, definitivo e verdadeiro. Eversão significa estabelecer uma mudança total, não somente nos valores, mas sobretudo no ser da estrutura que aparece como o escalonamento do “sistema” de dois mundos. Isto significa revolver, revolucionar a totalidade da valência para colocar tudo novo, desde a raiz, buscar um novo princípio da própria valorização, fundar um “novo céu e uma nova terra”, onde o “céu e a terra” não são mais dois reinos hierarquizados como meta-físicos, mas como uma inteiramente nova pátria da Terra dos homens, à qual Nietzsche dá o nome de terra, vida, corpo. Somente, quando se der essa eversão e a fundação da nova ordem da afirmação da Terra, da Vida, o nihilismo chega à sua consumação e se torna completo. Temos então o que Nietzsche chama de nihilismo clássico, o nihilismo europeu.

Afil8 – 1997

Essa apostila não é resumo dos pensamentos de Rombach. É uma conclusão que tiramos do modo novo de ser da filosofia nessa ontologia moderna que eclode em Descartes para a antropologia filosófica.

  1. O ser do homem não lhe é mais pro-posto, i. é, colocado diante dele, digamos como idéia a priori ou ideal. Não há mais, portanto, um ponto final, uma meta fixa, plena de significação, importância e fascínio, que mobilize o homem a doar-se na busca do ideal, deixando de lado todo o particular, o “pessoal”, o “subjetivo”. Para onde vai então todo o élan vital do homem, se não há o “para onde”, o “por que” que lhe dê uma meta, um ideal à humanidade? Para o nada, o nihil, portanto nihilismo?
  2. O nada, o nihilismo é um tema que acompanha esse esvaziamento do sentido de ser, essência e espírito, portanto da ontologia e antropologia substancialistas. Assim, a pergunta pelo nihilismo que é desencadeada pelo nominalismo, é pergunta decisiva na busca do novo sentido do ser do homem na nossa epocalidade. Nesse sentido da pergunta essencial pelo ser do homem na filosofia moderna, pergunta Nietzsche: “O que significa nihilismo?” e responde: “Que valores supremos se desvalorizaram”; e acrescenta: falta a meta; falta a resposta ao “por que?” (A vontade do poder, aforismo 2, 1887).
  3. Repetindo: Na antropologia substancialista, tanto grega como medieval cristã o “por que”, a meta, o ideal aparecia diante do homem como valores, i. é, como todo um conjunto de forças mobilizadoras da humanidade no seu viver, fazer, sentir e pensar. Essas forças estavam como que ordenadas numa hierarquia de potências, unificadas e sustentadas na sua dinâmica por valor supremo (ou valores supremos). O valor supremo era pois o ideal do homem, a idéia, i. é, a prefiguração, o arquétipo que é colocado de antemão para ser buscado e seguido: o ideal. No Ocidente o valor supremo recebeu diversos nomes: Espírito, Deus. Essa força mobilizadora, ainda plena, vigorosa, assentada em si, dominadora no sentido de possuir em si ainda o fascínio, o encanto, sim a potência de se impor por si mesma, a partir de si, atraindo tudo a si; formava e estruturava a busca do homem da sua realização. O homem se submetia de boa mente a uma tal dominação, a procurava, nela crescia, se tornava cada vez mais perfeito, na identificação total com o ideal que estava sempre para além dele (meta-física). Assim o ser do homem, a essência do homem, o espírito do homem era substancioso e substancial, possuía dentro de si um élan que o lançava para fora de si, na busca desse valor supremo: o homem era ser; era essência; era espírito: era substancial. Aqui tudo era firme, determinado, decidido, sólido, o que não significa fixo, imóvel, estático, bitolado, fanático; mas sim substancial, intenso na dinâmica da autoidentidade. Esse modo de ser na Idade Média se chamava: in se, i. é: substância.
  4. O nominalismo esvaziou esse modo de ser da ontologia substancialista, i. é, o modo de ser-substância (ser, essência, espírito) em desvalorizando, i. é, fazendo desaparecer a valia, a força, o valor que sustentava a atuação, a dinâmica dominante, o fascínio do valor supremo. Com isso todos os sub-valores, todas as sub-valências que hauriam o seu vigor e eram sustentados por ele, também se esvaziaram.
  5. Voltemos à pergunta acima colocada: para onde vai o élan vital do homem, quando o valor supremo e seus valores dele dependentes se esvaziam? Torna-se aqui tudo um nada vazio? Nessa nihilização podemos observar dois momentos de desenvolvimento: Um é o fenômeno da aparente entropia, i. é, da aniquilação gradual do élan vital, de tal sorte que ali nada mais resta do que a pura carcaça do que foi antes. Sobra assim o conjunto do arcabouço da construção, mas sem nenhuma vida, dinamismo ou élan dentro dele. Portanto, apenas um conjunto de esquemas mortos. Mas, como próprios esquemas ainda possuem certa vitalidade enquanto unidade ou clarividência lógica, se os valores se esvaziam completamente, então nem sequer temos carcaça que seja como conjunto logicamente ordenado de formalidades, mas sim um caos, uma total indeterminação amorfa, de tal modo que aqui nem mesmo o próprio caos possui força de conter a promessa de uma ordenação. Esse estado de inanidade radical, a morte por dissolução total no nada nadificado é o “ultimo homem” em Nietzsche.
  6. Essa total entropia da vigência interna no homem como espírito, essência e ser, no entanto, não é necessária e simplesmente um dado, uma ocorrência como ausência de vigor. É ou pode ser, se pode, ao mesmo tempo uma liberação de força que não encontra em nenhuma parte apoio, centro ou meta do seu dinamismo. Assim o élan vital se extravasa num rodopiar frenético ao redor da sua própria vitalidade, girando sempre mais intensamente no vazio de si. Deixemos por enquanto esse processo assim, para numa outra apostila retomá-la, pois esse rodopiar aparente num círculo de uma eterna roda morta do realejo que gira no igual, pode ocultar espiral de um modo de ser inteiramente novo (cf. apostila Afil9-1997).
  7. Antes, porém, de esse esvaziamento se tornar um extravasamento do élan vital num rodopiar ao redor de si, ele passa por o que Nietzsche chama de nihilismo incompleto, a saber, luta e trabalha na tentativa de recuperar a vigência do valor supremo que perdeu a sua dinâmica interna. E isto o homem faz de várias maneiras. P. ex. tenta voltar de novo ao valor antigo, buscando reativá-lo como o foi antes. Mas como esse valor supremo não possui em si o seu vigor originário, essa volta ao antigo cai no vazio, só nos dando a ilusão por algum tempo de se ter recuperado o vigor originário.
  8. A tentativa mais freqüente é de substituir o valor supremo antigo por valores novos, atuais e presentes, p. ex. nazismo, socialismo, capitalismo, catolicismo (= tradicionalismo ou progressismo), progresso, razão, ciência, “religiões”, humanidade global unificada e interligada pelo Internet etc. Mas, aqui também, todas essas substituições são apenas “soluções” paliativas, de tal sorte que, de substituição em substituição, cresce a averiguação frustrante da inocuidade de tais tentativas de recuperação. Assim apesar de toda e qualquer tentativa de retomada da dinâmica originária dos valores supremos do Ocidente europeu, inexoravelmente se processa lenta desertificação do sentido do ser enquanto valores, estabelecendo-se sempre mais a entropia da energia do ser substancial.
  9. É dessa devastação interna essencial do vigor ocidental que fala Nietzsche: “O deserto cresce… ai daquele que oculta os desertos”. Comentando essa frase de Nietzsche diz Martin Heidegger no seu livro “O que evoca pensar”: “Isto quer dizer: a desertificação se espraia. Desertificação é mais do que destruição. Desertificação é mais sinistra do que aniquilação. A destruição elimina apenas o que até agora cresceu e foi construído. A desertificação, porém, impossibilita o crescimento futuro e impede todo o construir. A desertificação é mais sinistra do que a pura aniquilação. Também esta elimina e quiçá até também ainda o nada, enquanto que a desertificação exatamente estabelece a impossibilitação e espraia o impedimento. O Saara na África é apenas uma maneira do deserto. A desertificação da Terra pode ir junto com a consecução do mais alto standart da vida, tanto como com a organização de um estado de felicidade uniforme de todos os homens. A desertificação pode ser o mesmo com os dois e conviver com os dois de modo o mais sinistro, a saber, pelo fato de se esconder. A desertificação não é apenas um escorrer em areias. A desertificação é expulsão da Mnemosyne, que gira em aceleração de mais alta rotação” (Was heissst Denken, Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1961, p. 11).
  10. Essa desertificação levada às últimas conseqüências, quando começa não somente a atingir os valores superemos e todos os seus substitutos, mas também a própria estrutura do modo de ser da transcendência, i. é, meta-física da humanidade de até hoje, se chama em Nietzsche: A eversão de todos os valores. E quando essa eversão é sustentada, se dá a transformação do élan vital que em se extravasando na busca do para além, em direção à transcendência, não consegue se livrar do modo de ser da estrutura meta-física do seu extravasar. O élan vital que assim se transforma se chama a vontade do poder. E com isso se estabelece o retorno do igual que constitui na filosofia de Nietzsche o ponto de consumação do seu pensar, e prepara o ser do homem da Antropologia filosófica estrutural.
  11. A compreensão do homem na antropologia moderna do sistema, cuja palavra principal que caracteriza o homem é a subjetividade, só é compreensível plenamente se a compreendermos através da transformação operada pela desertificação descrita por Nietzsche. É que usualmente, quando falamos do homem como subjetividade, nós o entendemos como sujeito no sentido do subjetivo, do individual-”pessoal”, do eu-egoísta, digamos no sentido da nossa prática “devocional-espiritual” ou “caseiro-particular”. Assim confundimos a categoria-chave da filosofia moderna que se chama subjetividade com o subjetivismo. Esse subjetivismo não tem nada a ver com a subjetividade da filosofia moderna. O subjetivismo caseiro e usual não passa do resto bem “decaído” da antropologia da substância, cujo esvaziamento do sentido talvez nem começou, ou se começou ficou bem no início, se congelou numa medida pequena, sem nenhuma grandeza nem dinamismo de destruição.

Para sentir de que se trata, quando falamos da passagem do homem da antropologia substancialista para o homem da subjetividade, i. é, do sistema, vamos estudar rapidamente a Nietzsche, sob o enfoque do tema que recebeu o nome de “morte de Deus”. A morte de Deus é na realidade o esvaziamento da razão ocidental aqui está indicando o arcabouço, o sistema da metafísica ocidental, i. é, o élan vital do Ocidente europeu que se solidificou como sistema das escalas de valores, debaixo da dominância do valor supremo. Nietzsche é o pensador que pensa até o fim esse sistema, cujos valores supremos se desertificam. O que segue, na apostila Afil9-1997 é repetição e continuação da apostila Afil 7a. Vamos estudar essa desertificação na sua radicalidade, da qual nasce a imagem do Homem como sujeito e agente da autonomia, e que nesse ingente empenho de se manter na autonomia, inicia um rodopio de rotação acelerada no vazio, a partir do qual pode-se estar anunciando uma compreensão vindoura do homem novo.

Afil9-1997

(Afil8-1997 é a apostila intitulada: Eu-sujeito como substância e o sujeito-eu como o matemático: a essência do moderno como subjetividade – no arquivo Artigo o que é ser moderno)

Mas então, como fica a “realidade” depois ou na morte de Deus?

Em Nietzsche, a crítica, i. é, o vigor do olhar que distingue e divisa o fundo, o mais profundo de uma realidade responde: todas as respostas da razão ocidental que sempre de novo, desde Platão, por sobre o cristianismo, até os nossos dias, buscou e busca as primeiras e as últimas causas de todas as coisas,  portanto o ser do ente seu todo, direcionou essa busca, colocando diante de si como ponto de referência suprema o ser como a plenitude da substância, como a presença absoluta, subsistente em si e por si, imutável e eterno na sua consistência, início e fim, princípio e meta, a medida suprema e única, definitiva de todas as realidades e a Verdade de todas as buscas. Essa colocação inicial da razão ocidental que então recebe o nome de platonismo, e uma vez popularizado o nome de Cristianismo, fez aparecer na sua fixação dogmatizada o “Deus Cristão”, como representante de todas as posições, de todas as verdades que a partir desse ser supremo se estruturam como o arcabouço sustentador do mundo supra-sensível, o mundo dos valores supremos do Ocidente. Na medida em que esse supremo Ser e tudo que a ele se refere como o sustento da totalidade do ente como o mundo, começa a perder a sua força de sustentação, e começa a cair no descrédito, há diferentes tentativas de reanimá-lo, substituindo-o com outras presenças com diferentes denominações. Essas tentativas de substituição, longe de deter o processo de esgotamento do sentido do ser supremo, exacerba cada vez mais o avanço da sua senilidade, esgotamento esse que aparece hoje como a desertificação do sentido do ser na humanidade ocidente-europeia. Mas também na mesma medida em que o supremo ser metafísico e tudo que a ele se refere perde a sua força de coesão e mobilização, de convocação e atuação, começa a aparecer nua e cruamente o arcabouço do esquema de segurança adotado pela razão ocidental. Esse arcabouço aparece então por sua vez como esquematismo de categorias e estruturações lógicas, que constituem pistas de direcionamento da busca da verdade, que encaminham o ímpeto de buscas para dentro da obediência corretora à última instância da busca da verdade, ao princípio da não-contradição. O princípio da não-contradição então não é outra coisa o que o vir à fala do ser da razão ocidental que sempre de antemão compreende o ser como a afirmação da auto-identidade absoluta da plenitude da presença, na constância imutável e subsistência inamovível do ser como Substância. O nihlismo europeu clássico, a morte de Deus liquida e coloca em fluência todo esse esquema de fixação da lógica e dialética da razão ocidental, desmascarando-o como o auto-engano, ou melhor, um recurso de animação que a razão ocidental se impõe a si mesma como comando da afirmação de si, para poder-se manter na confiança e na crença de si, como uma possibilidade de conservação e crescimento de si mesmo.

O nihilismo europeu na sua plena consumação como a morte de Deus, em trazendo à tona o estado do esvaziamento do sentido do ser de todos os valores supremos que foram e são ainda por um pouco de tempo o sustento de conservação e crescimento da razão ocidental, nos reconduz ao nada, ao despojamento total desse esquema de autoasseguramento, nos reconduz ao que é nua e cruamente o próprio, o âmago, o fundo da razão ocidental, i. é, à própria vontade do poder, nos expondo, a nós, a razão ocidental à pura e límpida responsabilidade de ser sujeito e agente do nosso próprio ser, e do ser de tudo quanto diz referência a nós mesmos como ser-humano, na riqueza e pobreza, na infinitude e finitude, na grandeza e pequenez do nosso destino mortal. Grandeza e pequenez do nosso destino mortal, assumido, reconduzido na autocompreensão da sua verdadeira autonomia, reconduzido para o espírito de finura e jovialidade da gaya ciência (Die fröliche Wissenschaft), não mais no espírito de ressentimento e de vindicância, i. é, da vingança, como carência do infinito, não mais como injustiçado pela privação da imortalidade, mas sim como simples, imediata afirmação da vida, i. é, do ente na sua totalidade, como cordialidade de ser, i. é, com outras palavras, como Vontade do Poder. Esse estar responsabilizado em tudo por e para ser, não mais como subiectum de um projeto grandioso de asseguramento da verdade substancial, fixa transcendentalmente como a meta do nosso próprio ser e tornar-se como substância, i. é, como subsistência suprema e absoluta, mas sim como pura, cada vez finita automanutenção e crescimento da cordialidade de ser, denominada por Nietzsche de vontade de poder e seu eterno retorno é a verdade do conhecimento como avaliação do valor, como valência, como valentia de ser, cada vez, sempre de novo, sempre novo, sendo o ser do seu querer, sendo o ser do seu poder como a vontade do poder.

Sempre e por séculos sem fim, a humanidade ocidental foi definida como animal racional, mas agora acorda dessa grande ilusão metafísica, e livre dessa megalomania da razão ocidental, passa por sobre o limite de si mesma. Supera a si mesma, não para fora de si, não para além de si, para o infinito, para o absoluto como sempre veio fazendo até agora, na acribia meta-física da razão ocidental, mas sim transcende para dentro de si mesma, para o âmago mais íntimo da identidade da sua liberdade mortal. Essa humanize se chama em Nietzsche Über-mensch, que traduzido como super-homem nos evoca a humanidade da razão ocidental levada à sua mais exacerbada aberração, cuja personificação aparece na ridícula figura do Superman americano. Na realidade, über diz mais trans, diz passagem, o movimento de ir por sobre, mas por sobre o que, de onde para onde?

Por sobre o homem de até agora, que superado, não no sentido de superiorizado, não no sentido de levado à escalada no que era, ao grau supremo de consumação, mas sim no sentido de “consumido”, acabado, como terminado, como no término de uma busca, como que chegando ao ponto de salto, da espera do inesperado, do inteiramente novo, na plena disposição do salto da viragem para a aquém-margem da razão ocidental, que se nos acena, quem sabe, ainda de longe como a nossa pátria nasciva, a Terra dos homens, a Terra mais Terra, dos Homens mais homens, a humanidade livre do espírito da vingança, i. é, da vindicância, da exigência extrapolada da razão ocidental.

Afil10-1997

  1. Resumindo o que até agora refletimos da morte de Deus como a passagem do homem velho para o homem novo (da antropologia substancialista para a antropologia moderna) podemos dizer: a Morte de Deus após a primeira etapa do nihilismo incompleto, alcança a sua consumação na eversão de todos os valores. Ali Nietzsche descobre como o fundo da razão ocidental, o princípio da nova valorização: é a vontade do poder. Os valores, todos os valores, desde os mais insignificantes até os mais altos e absolutos, os valores supremos que desde Platão até hoje (platonismo, “cristianismo”, meta-física) sustentaram, sustentam e hão de sustentar ainda “por um pouco de tempo” a humanidade na busca do sentido do ser do ente no seu todo, não são outra coisa do que as condições de conservação e crescimento da própria vontade do poder, colocados como tais por ela mesma.
  2. Os valores supremos do mundo supra-sensível, as verdades do reino do “Deus cristão” e de seus substitutos, i. é, a VERDADE absoluta da RAZÃO OCIDENTAL se desmascaram como valência, como funções de valia da vontade do poder, que se torna agora em Nietzsche a verdade de todas as verdades, o valor de todos os valores, portanto o ser do ente a sua totalidade.
  3. Mas o que é isto a verdade da vontade do poder? A vontade do poder como a verdade suprema? Com essa pergunta chegamos ao ponto crítico da crítica de Nietzsche da razão ocidental.

A desvalorização do sustentáculo fundamental da razão ocidental e a descoberta do princípio da nova valorização é a descoberta de que a essência da razão ocidental está nela mesma enquanto vontade do poder. E a vontade do poder é o ser dos entes no seu todo. Mas o que de crítico, o que de diferente há nessa tão badalada vontade do poder? Não é ela nada mais do que a exacerbação cada vez mais desenfreada do envolvimento da razão ocidental consigo mesma enquanto metafísica? Esse transcender da vontade do poder não mais para fora, mas para dentro de si, esse se assumir sempre de novo a responsabilidade de ter que ser cada vez si mesma, é realmente uma passagem para o radicalmente novo? Ou não é apenas um auto-engano da razão ocidental que se tem por vontade do poder, mas por não possuir mais uma referência fora de si, volta-se sobre si, com o mesmo jeito da transcendência para o infinito além, apenas agora aprisionada dentro do próprio movimento, apenas como um movimento circular de realejo? Portanto um girar vazio, mas com a pretensão de ser movimento centrípeta do olho do furacão da tempestade, sem contudo conseguir afundar e sucumbir para dentro de si, por não ter mais, nesse tempo de indigência do nihilismo europeu, o suficiente caos para poder gerar estrelas a partir de si? O que há de diferente pois no movimento do eterno retorno da vontade do poder, diferente do movimento circular da ação projetiva do sujeito-homem? A vontade do poder, não é ela a exacerbação desse processamento da objetivação do homem sujeito?

  1. Nesse processamento da objetivação do homem sujeito como um movimento de contínua superação de si para dentro de si, nada se encontra ali que lhe pudesse servir de fonte e fim da conservação e escalação do próprio vigor do retorno. Tudo começa a se desgastar num esvaziamento total do sentido do ser, restando cada vez mais apenas a exigência e necessidade de girar, girar sem cessar no vazio. Portanto como a rotatividade frenética da afirmação voluntarista e formal do herói trágico. Esse rodopiar no vazio acontece continuamente no vazio nadificante, onde todos os entes são apenas funções, i. é, objetos liquefeitos, rarefeitos como momentos frigidos de cálculo, na indiferença da pura ocorrência, sem vida, sem alma. A Vontade do Poder, o olho do suposto furacão da Eversão de todos os valores e do surgimento do Princípio de nova valorização, parece ser exatamente o vir à fala da nihilidade nadificante que aniquila o próprio nada, reduzindo tudo a fluxos indiferentes de funções, numa entropia do ser, onde jamais poderá nascer, brotar e crescer, sequer uma ilusão do erro, sequer uma dor, um desespero ou sofrimento.
  2. No entanto, por outro lado, nas próprias palavras insistentes de Nietzsche, a vontade do poder, o novo ser dos entes no seu todo, é um anúncio inaudito da nova jovialidade de ser. É a Boa Nova da Vida plena, da renovação contínua da coragem de ser, livre de todo e qualquer vindicância alheia a si, a não ser a exigência única, radical de ter que ser o vigor nascivo dela mesma. E nas palavras de Nietzsche no Assim falou Zarathustra (Also sprach Zarathustra), a vontade do poder é a terceira e última transformação do ser-homem, descrita como “inocência, criança, um esquecer, um novo início, um jogo, uma roda que gira a partir de si, um primeiro movimento, um sagrado dizer Sim!”.
  3. Entrementes, na Terra, livre da amarra do céu da metafísica, aumentam os sofrimentos e as dores dos filhos dos Homens: as intermináveis guerras fratricidas, os absurdos da crueldade humana, os massacres dos inocentes, as brutalidades das limpezas étnicas; a desertificação do nihilismo europeu, as derrocadas e o esvaziamento de sentido de todos os ideais da Terra, a planificação do universo numa mobilização planetária destruidora de toda diferença que não seja correspondente à interpelação produtiva do autoasseguramento da subjetividade do sujeito-homem! vontade do poder!? A alegria de viver, a partir de si, para e por si, na valência da valentia de ser em assumindo a mortalidade e finitude da Terra dos homens!? Não soa tudo isso, estranhamente alienado e alienante? Heróico?! Trágico? ou cínico-eufórico, exstático-tresloucado?
  4. Na obra Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse), aforismo 150 (1886), escrita no tempo em que Nietzsche, em planejando a sua obra principal A vontade do poder, se ocupava com o pensamento fundamental dessa obra, escreve: “Ao redor dos heróis, tudo se torna tragédia; ao redor do semideus tudo se torna jogo de Sátiro; e ao redor de Deus tudo se torna – como? talvez ‘mundo’?” Ao redor de Deus, tudo se torna… mundo?! O mundo, o tudo, ao redor do Deus da “Morte de Deus”, do Deus Vindouro do nihilismo europeu?! O que é pois e como é este novo mundo?
  5. Num fragmento, escrito entre junho e julho de 1885 (38[12]) Nietzsche nos interpela:

“E também vós, sabeis vós, o que é o ‘mundo’ para mim? Devo mostrá-lo a vós o meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, sem fim, uma imensidão, imensidão de forças, firme e brônzea, grandeza que não se torna maior nem menor; grandeza que não se desgasta, apenas se transforma. Como todo, imutável: uma economia sem gasto nem perda, mas também igualmente, sem acréscimo nem entrada; imensidão cercada pelo ‘nada’, como por sua totalidade; no entanto nada de vazio, nada de esbanjado, nada de infinito-extendido; mas sim, como força determinada, inserida num determinado espaço, e não num espaço que fosse de algum modo ‘vazio’; antes cheio como força em toda a parte, como jogo de forças e como forças-ondas, simultaneamente um e ‘muito’; aqui crescendo, e ao mesmo tempo, lá se diminuindo; um mar de forças, se lançando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente se refluindo, com anos incríveis de retorno, a maré alta e baixa dos perfis dos entes na dinâmica da expansão, a partir do mais simples para os mais complexos, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais gélido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontradição, e então de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradições, de volta para o prazer da sintonia, se afirmando a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e de seus anos, abençoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que não conhece nenhuma saturação, nenhuma superfluidade, nenhum cansaço -: este meu mundo dionisíaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, este mistério-mundo de dupla volúpia, este meu além do bem e do mal, sem meta, se não jaz uma meta na fortuna do círculo; sem vontade, se um anel não tem para si mesmo boa vontade, – quereis vós um nome, um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais ocultos, vós os mais fortes, os mais intrépidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo é a vontade do poder – e nada mais! E também vós sois esta vontade do poder – e nada mais!”.

  1. Mas o que é este mundo dionisíaco da vontade do poder, essa absoluta e incondicional afirmação da vida na sua imensidão, profundidade e criatividade? O que significa “E também vós mesmos sois esta vontade do poder – e nada mais”?

Nós mesmos, a razão ocidental na morte de Deus, nós mesmos como a crítica da própria razão ocidental, esse “nós mesmos” somos a vontade do poder, e nada mais.

Esse “nós mesmos” como a concreção, como o vir à fala da vontade do poder, recebe em Nietzsche um estranho título, a saber, humano, demasiadamente humano”. Assim num fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (36[37]) nos ensina Nietzsche: “Humano demasiadamente humano: com esse título está insinuada a Vontade para uma grande libertação, a tentativa de um singular livrar-se de todo e qualquer preconceito que fala em favor do Homem; e ir todos os caminhos, os quais conduzem suficientemente para o alto, para, por um instante que seja ao menos, olhar sobre o Homem de cima para baixo. Não para desprezar o desprezível, mas sim para questionar até o fim para dentro dos últimos fundos, se ali não ficou ainda algo para desprezar, mesmo ainda no mais alto e no melhor e no todo, acerca do qual o Homem de até agora estava orgulhoso; se ainda ficou algo para desprezar, mesmo neste orgulho e na inocência e superficial confiança nas suas avaliações de valor: esta tarefa não menos questionável era um meio entre todos os meios, para os quais me obrigou uma tarefa maior, uma tarefa de maior envergadura. Quer alguém ir comigo estes caminhos? Eu, a ninguém, aconselho a isso. Mas vós o quereis? Então eia, vamos pois!”

  1. Essa tarefa, essa tarefa de maior envergadura, a tarefa de sucumbir, de ir ao fundo, até aos abismos os mais profundos dos entes na sua totalidade, no zelo, na diligência da fidelidade, de não deixar em pé nada que não seja o límpido, o puro, o expedito salto da boa vontade da vontade do poder é o grande enigma de Nietzsche, de Nietzsche e da sua crítica à razão ocidental, i. é, à metafísica. A essência da filosofia de Nietzsche, portanto a essência da vontade do poder que leva a crítica da razão ocidental à radicalidade da morte de Deus, sucumbe no profundo silêncio da escuridão da não-razão. Crepúsculo dos ídolos (Götzen-Dämmerung, Sprüche und Pfeile 11), obra escrito por Nietzsche em 1888, que, segundo o prefácio do livro, termina “no dia em que o primeiro livro da Eversão de todos os valores chegou ao fim”, diz: “Pode um jumento ser trágico? Que se sucumba sob uma carga a qual não pode nem carregar, nem jogar fora?… O caso do filósofo”.
  2. O que vale a verdade da vontade do poder como a verdade suprema no tempo de indigência da morte de Deus, jamais poderemos saber de Nietzsche. No entanto, a própria filosofia de Nietzsche, em percorrendo todos os momentos principais da sua constituição como o nihilismo europeu, a Eversão de todos os valores, a vontade do poder e o eterno retorno do igual, na tentativa de divisar o fundo abissal do Destinar-se do Ocidente (história), portanto a própria Filosofia de Nietzsche como crítica da razão ocidental, não é ela a própria busca apaixonada do Ocidente, do animal racional? Uma busca, através de todos os níveis dos abismos dos sofrimentos e das dores da Terra dos homens, através da aridez e secura da crescente desertificação da Terra. Da Terra, onde aos poucos nada mais resta a não ser a pura estruturação formal lógica, neutra e indiferente da objetivação calculada do autoasseguramento cybernético de não-se-sabe-o-que. A busca apaixonada do radical-outro de nós mesmos que talvez não reside no além mundo da metafísica, mas sim, jaz silencioso no fundo, bem no fundo, no pro-fundo da nossa Razão vespertina do Ocidente, como escuridão e demência, como sofrimento e dor…como pura loucura?… ou… como a pura espera do inesperado…a espera de um “Deus vindouro”, o puro início, o Über-Mensch: um não-homem, um aquém-homem, um homem-Deus, cuja “divindade” é tão diferente, cuja alteridade é tão aquém, tão outra que recebe o nome de non-aliud (Cusano), o mais próximo de nós mesmos, o mais íntimo de nós mesmos do que nós a nós mesmos?
  3. No dia 3 de janeiro de 1889, em Turin, na Piazza Carlo Alberto, um cocheiro surrava brutalmente o seu cavalo sobrecarregado de fardos. Em lágrimas e lamentos Nietzsche se lança ao pescoço do animal como que a protegê-lo dos golpes do chicote, abraça-o e desmaia. Iniciava a total escuridão da loucura. Num bilhete com o carimbo do correio de Turin, assinalando a data de 4. 01. 1889, enviado ao seu amigo dinamarquês Georg Brandes que no ano de 1888 anunciou as primeiras preleções públicas sobre Nietzsche e seus pensamentos, escreveu Nietzsche:

Turin, 4. 01. 89

Ao amigo Georg!

Depois que tu me descobriste, não era nenhuma maestria me encontrar: a dificuldade é agora, a de me perder…

O Crucificado

(Resumo de alguns pensamentos do livro de Martin Heidegger, Nietzsche I, II volume, Neske 1961; do artigo do livro Holzwege, Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’, 193-247, Vittorio Klostermann, Frankfurt, a. M. 1950;  do artigo do livro Vorträge und Aufsätze, Wer ist Nietzsches Zarathustra, 101-126, Pfullingen 1954).

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