Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Cristianismo e budismo no pensamento originário

22/04/2021

 

Leonardo Boff*

Este pequeno texto quer homenagear o modo de pensar de Frei Hermógenes Harada. O que tem marcado sua trajetória intelectual foi tentar sempre de novo ver todas as realidades e todos os eventos a partir daquilo que chamamos de “pensamento originário”.

Pelo pensamento originário se procura alcançar aquele nível de profundidade para além do qual não se pode mais ir. Por isso termina no nobre silêncio. Mas para chegar lá, precisa-se percorrer um tormentoso caminho, feito de muitas palavras. Esse silêncio não significa que não se tem mais nada a dizer. Pode-se dizer muitas coisas. Mas elas terminam por não dizer o que se quer dizer. Por isso é um silêncio nobre e reverente.

O pensamento originário não é propriamente um pensamento, mas a origem do pensamento. Vale dizer, aquele transfundo a partir do qual tudo é englobado, do qual tudo se faz emergência e transparência. Costuma-se chamar a isso de “Última Realidade”. Sobre a “Última Realidade”, não podemos, a rigor, dizer nada, nem o ser nem o não-ser. Ela está para além das determinações de existência e não-existência, pois é em si mesma inefável (apofatismo ôntico) não só para nós, humanos, no tempo, mas para si mesma por toda a eternidade.

Se lhe afirmamos o ser, significa que ela é pensável e comunicável e então pertence à ordem das manifestações. Logo, não é a “Última Realidade”. Apenas revelações dela. Se lhe negamos o ser, pareceria que então se liquidaria o problema. Mas podemos simplesmente negar-lhe o ser? Na verdade, ela está para além de nossas determinações de ser e de não-ser. Podemos, entretanto, dizer: é mas para além de nossas determinações de ser-e-de-não-ser, como afirmação e negação de um e de outro. Ela é mas de forma totalmente inapreensível por quem quer que seja. Se fosse apreensível, cairia sob o domínio de nossa compreensão e não seria a “Última Realidade”.

Místicos e pensadores radicais como o Mestre Eckhart, Buda e Wittgenstein colocaram esta questão. Todos terminam no nobre silêncio. Não é por nenhum motivo pessoal ou ligado à natureza humana. Os três recusam a falar por uma exigência da “Última Realidade”. Porque tudo o que dizem não diz a “Última Realidade”. Lembremos o testemunho de Wittgenstein do Tractatus logico-philosophicus: “para o inexprimível não há linguagem; mas ele se mostra; é o místico” (6,52). Mas sobre o místico não se pode falar. Por isso completa: “sobre o que não se pode falar, devemos calar” (Tractatus 7). Por esta razão, todos eles não falam da “Última Realidade”. Apenas apontam o caminho que leva a ela. E esse caminho desemboca no silêncio reverente.

Queremos exemplificar esta questão radical à luz do Budismo e do Cristianismo, porque ambos alimentaram e iluminaram a vida e o pensamento de Harada.

Há duas formas básicas de se estudar a relação entre o Budismo e o Cristianismo. A primeira os toma como dados já constituídos, corpos histórico-sociais. O estudo de ambos visa mostrar as diferenças, as discrepâncias e as semelhanças.

* Leonardo Boff, teólogo, olim frater e sempre franciscano.

Um segundo modo, procura entender o Budismo e o Cristianismo a partir do pensamento radical, como resultado de um processo mais profundo. O dado então é um feito. Sua realidade é uma realiz-ação. Budismo e Cristianismo são revelações da “Última Realidade”, força anterior que continuamente está atuando na história e mesmo no universo e que encontrou neles uma das formas possíveis de emergência. Budismo e Cristianismo não encontram em si as razões de ser. Ambos remetem a esta Realidade mais profunda. Eles não explicam. Antes, precisam ser explicados. Este caminho é o do pensamento originário, presente nos pensadores radicais do Oriente e do Ocidente.

Um sutra da antiga sabedoria da Índia nos ilustra o que queremos dizer: “O que faz o pensamento pensar não pode ser pensado”. Quer dizer, o pensamento vive de uma energia que permite ao pensamento irromper; ela é sempre subjacente ao pensamento; por isso não pode ser pensada, pois é condição do pensar. É semelhante ao olho que tudo vê mas que não pode ver a si mesmo.

Algo semelhante ocorre com o Cristianismo e o Budismo. Eles vivem de algo que vem antes deles. Nascem de uma Energia, feita experiência existencial, que possui a natureza do inominável e do indecifrável. Pois estas são as características do Mistério e da “Última Realidade” que está para além de qualquer realidade. Budismo e Cristianismo são diferentes maneiras de re-agir e dar expressão concreta ao Mistério e à “Última Realidade”

Talvez a nova cosmologia nos sirva de metáfora do que significa esta Realidade que ousamos chamar de Última. Diz-se que todos procedemos do big bang, aquele pontozinho, infinitamente pequeno mas grávido de energia, de matéria e de informação que há 13,7 bilhões de anos explodiu e se expandiu, gerando todo o universo e a cada um de nós. Mas antes dele, consoante cosmólogos contemporâneos, havia o “vácuo quântico”, aquele transfundo repleto de energia de onde tudo vem e para onde tudo retorna. Ele é chamado também de “abismo alimentador de todo ser”. Enquanto tal, ele é ainda discernível pela ciência. Ele é o antes de tudo o que existe.

Mas o que havia antes do antes? A rigor não pode ser o nada, porque do nada não vem nada. Deveria haver uma “Última Realidade” que deu início a tudo a partir da qual o universo se constituiu. Esse antes do antes possui as características do indecifrável e do inominável, quer dizer do Mistério e da “Última Realidade”.

Ora, as religiões e os caminhos espirituais chamam a esta Energia ou “Última Realidade” de Tao, de Buda, de Alá, de Olorum, de Shiva, de Javé, de Cristo, de Deus.

Budismo e cristianismo surgiram a partir da experiência desta “Última Realidade”. Ela é experimentada como uma Presença ou um Vazio que irradia, que fascina, que arrebata até o êxtase. É uma vantagem evolutiva do ser humano o fato de poder captar esta Presença ou esse Vazio que se anuncia no inteiro universo e em cada ser.

No Budismo se fala do princípio Buddha ou de budidade (buddhata). Ela se encontra em cada ser. O Cristianismo fala da cristidade, do “princípio Cristo” (Col 1,18) e do Cristo que “é tudo em todas as coisas” (Col 3,11). É o crístico presente em cada ente criado.

Quando um zen-budista pergunta pela natureza de Buda, não está perguntando por dados históricos de sua vida ou por doutrinas, mas pela “Última Realidade” intemporal e eterna, presente em cada ser e que encontrou uma expressão culminante na figura histórica de Sidarta Gautama. Quando um cristão pergunta, num sentido radical, pelo Cristo, quer saber da “Última Realidade” ou do Mistério que está presente em todos os seres e que encontrou uma expressão histórica em Jesus de Nazaré.

Mergulhar nessa realidade é chegar à suprema bem-aventurança (nirvana) pelo caminho da iluminação (satori) ou ao reino de Deus pelo caminho da identificação com Cristo (“não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”: Gl 2,20). O objetivo de cada coisa e de cada pessoa é comungar e fundir-se com essa “Última Realidade” (“a amada no amado transformada”, de São João da Cruz).

Ela sempre está aí na sua gratuidade. O que nos cabe é invocá-la, preparar-nos e abrir-nos para que ela chegue até nós. Daí a necessidade da disciplina e dos vários caminhos espirituais. Eles não produzem a iluminação e a experiência de não-dualidade com Cristo. Apenas criam espaço para que ela emirja e irradie.

Tanto o Budismo quanto o Cristianismo sabem da decadência da condição humana, na forma de sofrimento (Budismo) ou na forma de pecado (Cristianismo). Ela demanda libertação, seja pelo completo despojamento (Budismo) seja pela real conversão (Cristianismo). Esvaziando totalmente a mente, permitimos que a “Última Realidade” emirja em nós como experiência no silêncio. Então percebemos que ela é a essência de cada ser. O cristão se propõe unir-se radicalmente a Cristo e verá sua irradiação em todos os seres, criados nele e por ele (Col 1,16), perceberá Deus, tudo em todas as coisas (1Cor 15,28).

Para o Budismo é fundamental a com-paixão (karuna) para que ninguém tenha que sofrer sozinho. O bodhisattwa, aquele que chegou à iluminação, renuncia entrar no nirvana para renascer e ser solidário com cada ser que sofre, seja um ser humano, um animal ferido ou um galho quebrado. Para o Cristianismo é fundamental o amor incondicional até com o inimigo e a com-paixão irrestrita para com o caído na estrada.

A energia da budidade fez Gautama se transformar em Buda (iluminado), assim a energia da cristidade ou do crístico fez que Jesus de Nazaré se tornasse o Cristo (Ungido). Essas energias, na verdade, são uma única energia: a “Última Realidade” ou no dialeto judeu-cristão o Deus-Energia ou o Spiritus Creator agindo e se revelando nas coisas e nas pessoas dentro da história, resgatando-a e elevando-a até a si para uma suprema realização no mergulho do Mistério e da “Última Realidade”.

Ter persistido nesta linha de pensamento radical, ao longo de toda uma vida, ter animado a confrades e percorrerem esse caminho árduo mas bem-aventurado, é o mérito de Frei Hermógenes Harada. De certa forma ele uniu Oriente com Ocidente e fez do zen-Budismo um caminho para o Cristianimo e do Cristianismo uma senda para o zen-Budismo. Ambos, Budismo e Cristianismo, testemunham para a humanidade a mesma coisa, a “Última Realidade” ou o Mistério a quem Harada, na santidade do pensamento, procurou servir com grande humildade e comovente jovialidade.

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