Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Alguém me tocou!

20/04/2021

 

Arcângelo Buzzi

“Antes das sementeiras há a lavra. Trata-se de desbravar um campo que deveria permanecer desconhecido, em conseqüência da predominância inevitável da terra metaphysica. Antes disso, trata-se de o pressentir, depois, de encontrá-lo e, por fim, de o cultivar. Trata-se de ir lá uma primeira vez. Muitos são ainda os caminhos desconhecidos que aí conduzem. Mas um só reservado a cada pensador: o seu, nos sulcos do qual lhe será necessário errar num incessante vai e vem até que, por fim, o tome como seu – sem todavia nunca lhe pertencer – e diga o que aprende por esse caminho” (HEIDEGGER, M., Chemins qui ne mènent nulle part. Paris, l962, p. 174).

Naquele tempo, no episódio narrado por Lucas (Lc 8,43-48), Jesus foi recebido por uma multidão que estava à sua espera. Em meio àquela multidão esperançosa, uma só pessoa pressentiu e encontrou nele o saudável vigor de que ela necessitava. Mais claramente: ela não só pressentiu e encontrou nele o vigor de que necessitava, mas apropriou-se do próprio saudável vigor, pois Jesus disse: “Alguém me tocou! Senti que saiu de mim uma força!” E sem resistência, concedendo, Ele se deixou apropriar da plenitude de sua força e disse à mulher palavras de recompensa e de supremo consolo: “Filha, tua fé te curou. Vai em paz!”

O lendário episódio narrado no evangelho de Lucas nos introduz na tarefa da fé! E na sequência, o texto do filósofo Heidegger, acima transcrito, nos introduz na tarefa do pensamento! Achamos que esse preâmbulo de introdução à tarefa da fé e à tarefa do pensamento é meio para compreender as reflexões intempestivas, em forma de comentários, publicadas em vários livros e diferentes revistas, de nosso confrade e amigo Hermógenes Harada, homem sensível à fé e ao pensamento.

Vamos primeiro à tentativa de clarear o que é dito da fé no episódio narrado no evangelho de Lucas. Nesse lendário episódio, a figura de Jesus é apresentada no “extraordinário” de uma excitante realidade. Dizemos que a figura de Jesus era assim apresentada porque movimentava ao redor de si grandes multidões. Movimentava multidões não apenas porque, no “extraordinário” de si, se mostrava ele próximo, acessível e disponível, mas sobretudo porque causava nas pessoas entusiasmos por uma porção de coisas a todos realmente necessárias, úteis e proveitosas. Jesus, porém, a excitante realidade mobilizadora de multidões, nem sempre era merecido na verdade dele próprio e muito menos na verdade dos entusiasmos que ele despertava.

Há, portanto, nesse lendário episódio narrado no evangelho de Lucas a presença de uma verdadeira e eficaz realidade chamada Jesus, mobilizadora do ser humano e correspondente às suas reais necessidades. A mulher que se aproximou e se apropriou de Jesus, da verdadeira e eficaz realidade, correspondente à sua real necessidade, ouviu dele as palavras de doce recompensa e supremo consolo: “Filha, tua fé te curou. Vai em paz”! E há também, nesse lendário episódio, o relato pormenorizado da lucidez e do fervor entusiasta que levou a mulher a aproximar-se e a apropriar-se da força dele, “pois ela pensava: se eu ao menos tocar o manto dele, ficarei curada” (Mt 9,21).

Nenhuma outra pessoa da multidão foi igual à lucidez e ao fervor entusiasta da mulher que pensava: “se eu ao menos tocar o manto dele, ficarei curada!” Só a ela Jesus, a excitante realidade mobilizadora das multidões, se voltou e consentindo disse: “Alguém me tocou!” Nenhum outro da multidão que o esperava mereceu igual cura: o messias da graça! Isso porque todos os outros da multidão esperavam e procuravam o messias da lei. A predominância do messias da lei, cultivada no coração das multidões por seus líderes, impedia que suas consciências se abrissem à pura espera do messias da graça, esperado pelos patriarcas Abraão, Isaque, Jacó, contido nos mandamentos de Moisés (Ex 20,1-26) e anunciado pelos profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oséias e muitos outros. E agora, no instante daquele tempo narrado no evangelho de Lucas, foi visto na fé da mulher que pensava: “se eu ao menos tocar o manto dele, ficarei curada”! Na mediação do manto, isto é, na aparência simples e humilde em que se mostrava, bem distante do espetáculo triunfante do messias da lei, a fé transportou a mulher para o íntimo de Jesus e o levou a proclamar a sua missão de messias da graça! Na mediação do manto, como mais tarde na mediação da cruz, deu-se de fato o consentimento da fé: a dádiva da misericórdia. Em outros termos, na mulher curada deu-se a fé: deu-se o salvador, o messias da graça.

Nas modulações de sua vida, todas elas no modo do crucificado, Jesus desfez o escândalo da cruz (Gl 5,11) e fez dela testemunho da fé (Jo 12,32): a invisível e sobrenatural presença da misericórdia divina na crucifixão de sua encarnação no todo da criação. “A doutrina da cruz é loucura para os que se perdem, mas poder de Deus para os que se salvam. Consoante está escrito: “destruirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes”. Onde está o sábio? Onde, o erudito? Onde, o pesquisador das coisas do mundo? Porquanto na loucura da cruz e na sabedoria de sua pregação aprouve Deus salvar os que crêem” (1Cor 1,18-22).

O texto do apóstolo evoca na árvore da cruz (Jo 14,6) a memória da árvore da vida plantada no meio do jardim da criação (Gn 2,9). “Feliz de quem a ela se apega” (Pr 2,18), “a ele será dado de comer da árvore da vida que está no paraíso de Deus”(Ap 2,7)! A dificuldade de o ser humano abrir-se à fé, à pura espera do messias da graça, é algo de inevitável desde que ele se hominizou, isto é, desde quando se apossou da árvore do conhecimento (Gn 3,1-24), isto é, desde quando decidiu gerenciar sua existência na perspicácia da razão, qual astuta serpente, sempre julgando o que é bom e o que é mau para seu modo de viver. E isso tudo foi bem sinalizado no mito narrado no livro do Gênese, onde se diz que a humanidade, ao apossar-se da árvore do conhecimento, se afastou da verdadeira e eficaz árvore da vida, isto é, foi infiel à fé, não creu no abrigo do Deus invisível, preferindo viver na predominância do seu conhecimento. O espinho que incomoda a fé, porém, não é o conhecimento, mas a infidelidade ao seu testemunho. O dever do crente é vigiar a fé mediante a oração, a exemplo de Cristo no Getsêmani, e não mediante o conhecimento.

No episódio narrado no evangelho de Lucas, a multidão estava no impedimento de achegar-se à fé do messias da graça, devido ao seu tradicional culto do messianismo da lei: do claro conhecimento de como ele devia apresentar-se! A humanidade hoje, na predominância e no cultivo da ciência, bem antes de abrir-se à sabedoria da fé, está na dificuldade menor de abrir-se à sabedoria do pensamento que pensa o ser se realizando em todo e qualquer sendo. E não podemos presumir que ela possa abrir-se à sabedoria da fé sem antes abrir-se à sabedoria do pensamento. Para mostrar o quanto a humanidade hoje está nesta dificuldade, nos valemos do texto de Heidegger acima transcrito. E isso tudo o fazemos com aquela pretensão de compreender as intempestivas reflexões de Hermóngenes Harada que buscam não homogeneizar mas compactar pensamento e fé em todo conhecimento.

Se nos ativermos aos muitos conhecimentos da teologia, da filosofia e das ciências empíricas, propostos nas formulações da nossa civilização cristã ocidental, estaremos na ilusão se acharmos que temos em mãos as sementeiras da terra. Nessas formas de conhecimentos temos em mãos estruturas de conceitos e idéias, que ordenam em ídolos os divinos do céu, que produzem objetos explorando a terra mediante a tecnologia dos muitos saberes matemáticos da razão científica. As sementeiras da terra não surgem dos múltiplos e diferentes conhecimentos, mas da lavra do campo.

O problema é como chegar à terra que possibilita as sementeiras, porquanto trata-se de lavrar um campo que deveria permanecer desconhecido, em conseqüência da predominância inevitável da terra metafísica. É dura a asserção de não podermos chegar à lavra das sementeiras enquanto permanecermos no preponderante poder de nossos conhecimentos, que o pensador chama de terra metafísica. Ele nos diz que é preciso ir por outro caminho! Trata-se de pressentir o campo da lavra! Depois, trata-se de encontrá-lo! E por fim, trata-se de o cultivar! Trata-se de ir lá uma primeira vez!

O caminho outro, que não o da terra metafísica, é a solidão em que sensíveis estamos junto às coisas na simplicidade nativa de seu surgir, crescer, florescer e frutificar na palpitação da terra sob a proteção do céu. No originar-se e vir a nós, essas coisas nos falam da terra e do céu, antes de nossa lavra, antes da exploração dos conhecimentos de teologia, de filosofia e de ciência, antes da força das máquinas à nossa disposição. Junto às coisas pressentimos, encontramos e cultivamos a terra no cuidado das inesperadas mudanças de seu realizar-se. Na palpitação da terra: no surgir, crescer, florescer e frutificar de suas sementeiras, o pensamento percebe a irrupção do mistério do ser. Tocados por este mistério do ser que se nos dá nas dádivas da terra, compreendemos o comentário que o pensador fez do quadro de Van Gogh, Os sapatos da camponesa. Neste comentário ele considera o caminho do pensamento, a filosofia, que pensa a realidade se realizando em todo e qualquer sendo, igual ao da camponesa na sua lavra do campo. Como o da camponesa, o seu lavrar o campo é sempre tenso e angustiante! Muitos são os caminhos que ali conduzem. Mas um só reservado a cada pensador: o seu, nos sulcos do qual lhe será necessário errar num incessante vai e vem até que, por fim, o tome como seu e diga o que aprende por este caminho:

No rude e sólido peso do sapato está firmada a lenta e obstinada pegada através dos campos, a lonjura dos caminhos sempre semelhantes, sob o vento frio. A pele é marcada pela terra fértil e úmida. Sob as solas estende-se a solidão do caminho do campo que se perde no crepúsculo. Através dos sapatos perpassa o apelo silencioso da terra, o seu dom tácito do grão maturescente, a sua secreta recusa no árido pousio do campo invernal. Através deste produto perpassa a muda inquietude pela segurança do pão, a alegria silenciosa de sobreviver de novo à necessidade, a angústia do nascimento iminente, o estremecimento frente à morte que ameaça. Este produto pertence à terra e está em abrigo no mundo da camponesa (HEIDEGGER, M., Chemins… p. 25).

Este comentário do filósofo ao quadro Os sapatos da camponesa de Van Gog (1853-1890) nos diz que a tarefa primeira do pensamento de cada ser humano é aproximar-se da simplicidade das coisas que surgem, crescem, florescem e frutificam na terra sob a arcada do céu e, incorporando-se ao instante de seu surgimento, ao instante de sua floração e frutificação e ao instante de seu declínio para o nada de seu poder, iguais a elas aprender o caminho desconhecido de seu próprio realizar-se no mistério do ser:

O próprio carvalho assegurava que só um tal crescimento pode fundar o que dura e frutifica; porque crescer significa: abrir-se à imensidão do céu e também lançar raízes no abscôndito da terra; porque tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo mais alto do céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz (HEIDEGGER, M., Le Chemin de campagne, Q.III, Paris, l966, p. 11).

É fácil ver que o carvalho se enraíza na terra para abrir-se à imensidão do céu. É fácil também adivinhar que nessa tarefa de realizar-se, o carvalho, sem saber próprio, é intérprete da terra e do céu: deles recolhe a seiva, o vigor e o entusiasmo de seu projetar-se. Quem se aproxima da atividade intelectual de Hermógenes Harada, de suas intempestivas reflexões, que procuram clarear a realização do ser humano, ouve e escuta a voz da fala do carvalho. Ele chama essa escuta intelectual e conseqüente decisão de seguimento de hermenêutica da facticidade do ser humano em oposição à factualidade.

Facticidade é o modo de ser próprio da existência humana de achar-se sempre já situada, isto é, aberta e constituída dentro e a partir de um “lance” da possibilidade de uma pré compreensão do ser, que se estrutura como um todo, denominado mundo. Mundo é oposto a imundo. O terreno baldio, selvagem e caótico, é não-mundo, a saber, imundo. Quando o homem habita a selva, ele abre ali clareira e cria ambiente viável para a moradia e cultivo da terra. Ele transformou o terreno baldio, imundo em mundo, em terreno cultivado (HARADA, H., Coisas, velhas e novas. Bragança Paulista: Edusf, 2006, p. 122).

Se “indiferentes” olharmos o carvalho, não vemos nem terra nem céu! Ao aproximar-nos do espetáculo de sua altiva presença, porém, sentimos a seiva da terra e o vigor do céu no íntimo de sua estruturação. Se nos aproximarmos da maneira de o ser humano estruturar sua existência no mundo, sentimos a seiva da terra e o vigor do céu na fala de sua linguagem. Isto quer dizer, que é na lavra da fala da linguagem que disputamos a seiva da terra e o vigor do céu, a hermenêutica da facticidade do ser humano. A linguagem é o tesouro, a fala é a lavra desse tesouro! É, pois, nas experiências de falar a linguagem da terra e do céu que nos ligamos ao mundo da vida. A partir dessas considerações é fácil compreender que Hermógenes Harada tenha evocado a parábola de Jesus sobre o reino dos céus para ilustrar o procedimento da hermenêutica da facticidade do ser humano: “Por isso todo escriba que se torna discípulo do reino dos céus é como o pai de família que de seu tesouro retira coisas novas e velhas” (Mt 13,52).

Igual à árvore que da terra sobe para o céu, o ser humano se enraíza na terra para se erguer e florir no céu. O intérprete que de fato quer tornar-se discípulo do reino do céu deve ser como pai de família, discípulo muito experimentado do mundo da vida na terra. Na fala da linguagem da terra, do mundo dos mortais, e na fala da linguagem do céu, do mundo dos imortais, ele compreende interpretações velhas, elaboradas pelos antepassados e interpretações novas elaboradas por ele mesmo. Tais interpretações não são a sabedoria nem da terra nem do céu. A sabedoria do céu (a fé cristã recomendada por Cristo) e a sabedoria da terra (a prudência recomendada por Aristóteles, o bom senso recomendado por Descartes, a retidão da razão prática recomendada por Kant) não precisam de interpretações. Para lembrar que as interpretações “falham” na indicação da sabedoria da fé e do pensamento, Hermógenes Harada as chama de reflexões intempestivas e marginais. E nessa sua maneira de falar nos diz o quanto elas ajudam a nos ater, deter e conter na sabedoria da vida, no próprio da jovialidade da fé e no próprio da coragem do pensamento.

Quem de fato se afunda na sabedoria do mundo da vida (Lebenswelt), quem de fato persiste no próprio da jovialidade da fé e no próprio da coragem do pensamento, lhe faz bem ouvir na complexa e marginal fala das intempestivas reflexões de Hermógenes Harada o quanto a condição humana, antes de toda interpretação, está “cordial e gratuitamente na plenitude abissal e insondável do mistério da anterioridade, superioridade e profundidade do encontro de e com quem se nos doou primeiro” (HARADA, H. Coisas, velhas e novas… op. cit. p. 10).

Para que a nossa condição humana esteja fortemente enraizada na sabedoria do mundo da vida, e se sinta sempre “cordial e gratuitamente” animada pela jovialidade da fé e coragem do pensamento, precisamos nós mesmos, mediante reflexões intempestivas a exemplo das que sugere Hermógenes Harada, senão nos libertar, ao menos nos aliviar da predominância dos muitos conhecimentos de teologia, de espiritualidade, de filosofia, psicologia, sociologia, política e demais ciências que instruem e escravizam nossa consciência:

O espírito ou o sopro vital que anima as almas ardentes e suas obras, hoje podemos somente pressentir de alguma forma, de longe. Recordação de um antanho feliz ao mesmo tempo anseio oculto de uma renovação vindoura, prestes a se anunciar do fundo, do mais profundo de nós mesmos. Neste sentido, estamos hoje com grande saudade à margem do espírito de um texto como de I Fioretti (HARADA, H. Em Comentando I Fioretti. Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 15).

E podemos acrescentar de muitos outros textos de nossa tradição cristã ocidental!

Portanto, as reflexões intempestivas de Hermógenes Harada nos aproximam, nos põem insistentemente não só à margem dos textos da tradição, isto é, de coisas velhas, mas também à margem de nossa situação atual, isto é, de coisas novas. À margem tem aqui o sentido de nos abeirar da sabedoria do mundo da vida a que eles acenam e assim de nos repatriar à verdadeira morada da condição humana. À margem é o modo de cortejar e de abordar a coisa em questão, é o de andar ao longo, junto de, na cercania; é o modo da aproximação de fora para dentro como uma abordagem paulatina de participação. À margem tem portanto o sentido de nos aproximar do rio da vida, deixando-nos fascinar de sua corrente e no murmúrio de suas águas ouvir o convite de saltar para dentro de sua torrente.

Para nos convencer que as reflexões intempestivas à margem dos textos da tradição e de nossa atual situação no mundo, propostas por Hermógenes Harada, aparentemente alienadas, nos são de fato extremamente úteis, porquanto nos estimulam a praticar livres e alegremente, por maestria própria, a hermenêutica da facticidade de nossa condição humana, vamos recorrer a um poema do pensador chinês Chuang-Tzu (IV a. C). Neste poema há a exemplificação do que sejam reflexões intempestivas à margem. Nele apreciamos a acribia das reflexões intempestivas de Chunag-Tzu e de seu discípulo Hui Tzu a respeito da alegria. Com a palavra acribia queremos dizer que no final do poema há o reconhecimento que todo diálogo entre os dois parte de uma anterioridade que o possibilita. A anterioridade é a sabedoria do pensamento, o lumen naturale, em que a condição humana sempre está antes de acordar para a acribia das possíveis e diferentes interpretações de si própria, aparentemente sem possível acordo.

Chuang-Tzu e Hui Tzu atravessavam o rio Hao pelo açude.

Disse Chuang: Veja como os peixes pulam e correm tão livremente. Isso é a sua felicidade.

Respondeu Hui: Desde que você não é um peixe como sabe o que torna os peixes felizes?

Chuang respondeu: Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?

Hui argumentou: Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem.

Disse Chuang: Um momento: Vamos retornar à pergunta primitiva. O que você me perguntou foi: Como você sabe o que torna os peixes felizes? Dos termos da pergunta você sabe evidentemente que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço as alegrias dos peixes no rio através de minha própria alegria, à medida que vou caminhando à beira do mesmo rio (MERTON, T. A via de Chung-Tzu. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 126-127).

Ao atravessar o rio Hao com Hui-Tzu, em vendo os peixes que alegres pulavam e corriam, Chuang-Tzu disse: isto é a sua felicidade! Ao ouvir esta interpretação de Chuang-Tzu é provável que a exemplo de Hui-zu, digamos que é pessoal, privativa e subjetiva. No decorrer do diálogo de Chuang-Tzu com Hui-Tzu, porém, entendemos que no olhar os peixes, Chuang-Tzu se percebe morando na mesma paisagem dos peixes. Andando à margem do rio Hão, seus passos são tangidos pela fluência das mesmas águas. Na participação do vigor das águas do rio Hão, que faziam os peixes pular e correr, instante fugaz que possa ter sido, Chuang-Tzu se sentiu em igual felicidade.

Quando uma pessoa se perde em representações e se hipnotiza na sucessão de representações e cria todo um mundo fechado em si, pode vir a si e acordar com um estalo de dedos. Assim faz Chuang-Tzu em relação a Hui-Tzu. Estala os dedos da realidade anterior às perguntas que disparam para longe da questão, isto é, da busca primitiva e elementar, dizendo: Acordemos, olhemos o que realmente é: na travessia, a caminho, ao longo do rio Hao, somos, estamos dentro da grande paisagem do ser, como os peixes estão também imersos na vastidão, profundidade e no abismo desse mesmo ser, dessa mesma vida que nos cerca, nos impregna, nos sustenta e nos oferece mil e mil possibilidades de sentido e abertura de mundos. Antes de nos comunicarmos, já estamos “comungando” na mesma vida, no mesmo ser. E se podemos perguntar o como disso ou daquilo, é porque já estamos comungando, relacionados, participando da mesma vida. Longe de sermos uns aos outros estranhos, alienígenas, todos nós, todas as coisas, todo o universo, desde as “coisas” mais sublimes até as mais insignificantes, ínfimas, constituímos um mesmo sangue, um mesmo hálito, uma família, uma fraternidade universal (HARADA, H. Em Comentando I Fioretti, p. 26-27).

A hermenêutica da facticidade do ser humano, na terminologia de Hermógenes Harada: a interpretação ou reflexão intempestiva, embora estando à margem, tem sempre alguma relação com a real situação que se nos dá numa anterioridade, profundidade e enigma indecifrável fora de nosso alcance. Podemos então dizer que a interpretação é sempre válida desde que nos ajude a estruturar a existência humana na respectiva situação. Validade não significa aqui imediatamente verdade, diz apenas funcionalidade no sentido de nos relacionar à situação de modo coerente e coeso. Portanto, desde que tenha referência à situação, nenhuma interpretação é arbitrária! Por outro lado, nenhuma interpretação é definitiva no sentido de possuir a chave da verdade: de descobrimento pleno e total da situação. O reconhecimento que a hermenêutica da facticidade do ser humano é sempre uma interpretação já é início de um processo de intercâmbio com outras possíveis hermenêuticas, numa interação de mútua crítica, provocação, confirmação, acolhida ou rejeição, de aprofundamento e alargamento, em cuja co-agitação cada hermenêutica é levada a tomar conhecimento cada vez mais responsável e acurado dos seus limites, do seu nível e da sua dimensão.

A hermenêutica da facticidade do ser humano deve estar sempre no empenho de transportar-se ao vigor da situação. Esse empenho de transportar-se ao vigor da situação pode ter como meta liberar o ser humano ao poder de explorá-la: de organizá-la para dela tirar proveito, lucro, prazer e maior bem-estar. E pode também ter o sentido de liberar o ser humano a associar-se à verdade da situação: ao encontro com o Outro, anterior aos interesses de sua exploração. Lá, o empenho de transportar-se ao vigor da situação se reduz à conquista de um bem exterior. Aqui, o empenho está no interesse de liberar-se à verdade de si próprio, de merecer o encontro pessoal com o Outro. Embora provenham do ser humano, as diferentes decisões de viver a situação nem sempre se integram e se abraçam. No mais das vezes uma procura prevalecer sobre a outra.

As interpretações intempestivas de Hermógenes Harada, acessíveis em livros publicados e artigos de revistas, nos ajudam a discernir esses dois modos de efetuar a existência humana no concreto de uma situação: um modo funcional que ele chama de diferença ôntica ou empírica proveniente da impostação das ciências e outro de modo pessoal que ele chama de diferença ontológica ou transcendental pré-científica. Exemplo desse modo de o ser humano personalizar-se no concreto de sua situação, na liberdade de sua verdade e na verdade de sua liberdade, é lembrado pelo poeta Angelus Silesius (1624-1677) quando diz: “A rosa é sem porquê. Floresce por florescer. Dela mesma nada sabe, nem pergunta se a gente a vê.” Esses versos da rosa evocam a liberdade do ser humano de personalizar-se, de entregar-se à gratuidade da situação, de harmonizar-se aos diferentes degraus de sua manifestação, desde a pedra ao Divino. Para ilustrar que é a gratuidade da situação que alenta e anima o ser humano a efetuar sua existência na simbiose da diferença ôntica e da diferença ontológica, lembremos uma antiga parábola asiática, que diz:

Era uma vez, na província de Saga, no interior do Japão, um velho casal que vivia com um filho, ainda menino. Teciam à mão sandálias de palha para vender. O que ganhavam era pouco, dava apenas para viver. O menino era obediente. A tudo dizia sim, sim, sim, sem murmurar.

Todos os dias a mãe dizia ao marido: “Ah, se ao menos nosso filho pudesse levar uma vida melhor. Mas, ele é um idiota. A tudo obedece, sem objeção. Não tem nenhuma iniciativa”. O pai nada dizia. Continuava trabalhando.

Um dia a mãe disse ao marido: “Vamos tentar nosso filho, para que sinta a necessidade da iniciativa. Vamos dar-lhe uma tarefa impossível para ver se reage e diz não à nossa ordem”. O pai nada respondeu. A mãe chamou o filho e lhe entregou três palhas e ordenou: “Vai trocar essas palhas com três peças da seda preciosa de Kioto”. O filho disse sim e saiu de casa.

A caminho, à beira de um riacho, uma mulher lavava cebolas. Disse a mulher: “Que tens na mão?” “Três palhas”, respondeu o menino. “Queres me dar as palhas para amarrar as cebolas em feixe”? “É que as palhas são preciosas”, disse o menino. “Elas valem três peças de seda”. Depois de muito negociar, o menino trocou as palhas com três cebolas e saiu cantarolando pela estrada afora.

A caminho, à entrada de um albergue uma mulher lhe perguntou: “Não queres me dar essas cebolas? Preciso delas para dar gosto à salada de peixe”. O menino respondeu: “É que as cebolas são preciosas. Valem três peças de seda”. Depois de muito negociar, o menino recebeu três garrafas de molho de soja em troca das cebolas.

Um pouco adiante , ao passar diante de uma rica moradia, correu-lhe ao encontro o senhor da casa e pediu ao menino lhe vendesse o molho. Dizia: “Preciso com urgência do molho. Recebi visita inesperada e não tenho mais molho em casa”. Disse o menino: “É que o molho é precioso. Vendê-lo não posso. Só se me deres algo equivalente”. O homem era fabricante de espadas. Em troca do molho deu-lhe uma espada. O menino pendurou a espada ao cinto e continuou a viagem.

Na cercania de Kioto, porém, a estrada se encheu de cavaleiros. Era o séqüito do príncipe de Kioto que por ali passava numa suntuosa carruagem. Os pedestres se postavam à beira da estrada, dando passagem ao cortejo. De repente, o olhar do príncipe caiu sobre o menino camponês, o único que trazia espada ao cinto. Mandou chamá-lo e perguntou: “Como carregas uma espada, tu que és apenas camponês”?

O menino respondeu: “É que a espada vale três palhas que são garantia de três peças de seda de Kioto”. Disse o príncipe: “O que significa isso”? E o menino contou-lhe toda a história de sua viagem. O príncipe admirado disse ao menino camponês:

“Não é bom que uses a espada. Mas é bom receber a espada que vale três palhas do camponês”. E pediu-lhe a espada. Em troca deu-lhe três peças de seda preciosa de sua tecelagem.

O menino retornou à casa paterna. Em casa, o pai nada disse. Apenas continuou a tecer as sandálias de palhas.

A parábola do menino das três palhas conquistando a dignidade do menino das três peças de seda preciosa, mostra que a hermenêutica da facticidade do ser humano se desdobra em três momentos simultâneos: na tenacidade e na sanha da mãe, na obediência pronta e cordial do filho, no silêncio e na serenidade do pai. Os três momentos são de luta e de fúria, porquanto cada qual a seu modo busca atirar-se e recolher-se no prenhe vigor vindo da respectiva situação.

O momento mãe é de luta que tem como meta libertar o ser humano das imposições que o cercam, o comprimem e o prendem aos inexoráveis anéis da organização funcional e operativa da situação. Ela aciona seu saber, querer e poder para ir além dos limites da situação. Sua luta visa ultrapassar a situação, sair de seus limites, porque vê nela a inércia e a paralisação de seu impulso e anseio de transcendência.

O momento filho é diretamente de luta por merecer a dignidade da vida humana na transcendência da verdade e da liberdade que lhe é própria. Essa luta por merecer a transcendência da liberdade e da verdade não se faz contra a situação nem fora dela. Sua obediência pronta e cordial é lucidez que agarra com ambas as mãos o pouco da possibilidade de cada situação, para neste pouco trabalhar tenaz e pacientemente na afirmação da própria liberdade.

O afã da mãe sem a obediência cordial do filho decai facilmente num assanhamento estéril, vazio de concreção, onde a carência, a privação do finito se exacerba sempre mais na existência abstrata de satisfação imediata dos anseios, sem o trabalho paciente e recolhido da mediação.

A positividade cordial da obediência do filho sem o afã da mãe jamais vem a si, jamais nasce, cresce e se firma como identidade, permanece amorfa na inércia de um deixar ser sem perfil e caráter.

O que, porém, fecunda o momento mãe e o momento filho para a simbiose da concreção, de onde e para onde a sanha da mãe nasce e cresce como a cordialidade do filho e a cordialidade do filho vem a si como a transcendência criativa da mãe, é o silêncio do pai, o retraimento sereno do nada do mistério. A sanha da mãe e a obediência do filho e o silêncio do pai são momentos “abstratos” da estruturação da existência, do destinar-se da sua história como nascer, crescer e consumar-se da identidade humana: da seda de Kioto (HARADA, H. Coisas velhas e novas… op. cit. p. 177-178).

A parábola do menino das três palhas nos reenvia a uma maior compreensão do poema de Angelus Silesius que ilustra a hermenêutica da facticidade da existência humana na rosa sem porquê que floresce por florescer! No poema da rosa sem porquê: a mãe é a terra, o pai é o céu, o filho, a rosa.

Esta consumação da identidade humana como fruto sazonado de todo um processo de crescimento, cujas vicissitudes constituem a essência de todos os perigos e sofrimentos, de todas as dores e lutas, de vitórias e frustrações, de esperanças e utopias, de buscas e fugas da terra dos homens… Esta consumação de plenitude de sentido do ser em quem nos movemos e somos e existimos é sempre evocada nas reflexões intempestivas de Hermógenes Harada, feitas à margem de textos da tradição e de situações de nosso cotidiano, à margem de coisas, velhas e novas.

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