Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Acerca da questão do sentido do ser, anotações

05/02/2021

 

Introdução à recordação amadora

Introdução

O título indica o que a seguinte coleção de reflexões, artigos e observações gostaria de ser, a saber, uma espécie de cadernos de anotações. Daqueles que como estudantes trocamos, para ajuda mútua, recordando o que se ouve nas preleções, seminários e leituras, de autores, professores e especialistas abalizados e que bem ou mal conseguimos assimilar e anotar, dentro das nossas limitações de estudantes amadores. As anotações aqui recebem ocasionalmente forma externa de ensaio, artigo, discurso, apostilha e reflexões avulsas e ocasionais, feitas durante seminários e colóquios. E algumas foram publicadas já há muito tempo ou recentemente, em forma de artigos. Sejam quais forem a forma externa que as anotações assumem, todas elas gostariam de ser lidas como anotações de estudante amador e amante na coisa, i. é, na causa da filosofia, na modalidade aqui denominada de modo bastante vago de fenomenologia. Anotações de um tal caderno só as entende quem as rabiscou, e quem, ao lê-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixão. Complexo e paixão de busca da coisa ela mesma da filosofia e do seu fascínio, sofridos pelo iniciante ou amador. De que complexo e de que paixão se trata, diz o sub-título: Introdução à recordação amadora.

Recordação aqui não tem a ver com memórias do passado longínquo saudoso e/ou traumático de antanho, nem com depósito de lembranças, reminiscências, portanto com arquivo de dados. Antes, tem a ver com latim cor, -dis, com a re-cordação, portanto com retomada e volta ao cerne, coração, ao fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma, o que sempre de novo aparece, dentro, diante e ao redor de nós. Mas então o que é, pois, cerne, coração, o fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma o estudo de um amador na fenomenologia? Por ser o fundo do amador há ali psicologicamente algo como medo de pouco saber, uma espécie de complexo do aprendiz que não é especialista, de ser apenas iniciante e diletante. Mas, ao mesmo tempo, há também ali algo como ímpeto da inocência ingênua de um grande desejo, vontade de adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo que a alma do amador ama, a saber, naquilo que a fenomenologia tem de mais próprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigência de exatidão objetiva e informativa que exigem o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber. E a tudo isso, acrescente-se o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com o saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria com paixão e sentimento. Trata-se de um humor angustiante que toma conta de todo e qualquer estudante de filosofia que ama a filosofia, que se lança a cata de informações, cada vez mais numerosas, asseguradas, que lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante e ao mesmo tempo se sente inquieto, como que tocado por outro hálito de fascínio. Fascínio e prazer de concentração no pouco essencial, de afundamento para a interioridade de uma intuição da verdade originária. Intuição que por um instante aparece como vislumbre de algo como vivência aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimensão inominável. As exposições que se seguem sofrem da ambigüidade desse humor angustiante do amador, que sempre permanece iniciante, jamais iniciado. De estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua ignorância. Por isso, no subtítulo a palavra recordação indica essa perplexidade psicológica, mas ao mesmo tempo esperança de que, mesmo também nessa perplexidade, possa estar atuando, talvez, por menor que seja, um hálito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemáticas tratadas nas reflexões, no desengonço e na imprecisão, característicos de trabalhos de amador.

O interesse[1] dos termos fenomenológico e fenomenologia aqui na nossa exposição se refere à corrente filosófica que historicamente teve início com Edmund Husserl sob a denominação de fenomenologia e se manifestou em diversas escolas e inúmeros movimentos de fenomenologia. Na infindável série de nomes de filósofos e pensadores, de tendências filosófico-fenomenológicas, o nosso inter-esse se limita mais a três, a saber, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Heinrich Rombach, que usualmente são classificados como pertencentes à escola fenomenológica de Freiburg i. Br. No entanto, não se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as reflexões que seguem tratam diversos assuntos de cunho filosófico ou semifilosófico como que a partir do médium em que se acha essa corrente fenomenológica friburguense, na medida em que, bem ou mal, foi assimilada e compreendia pelas reflexões. Com outras palavras, os pensamentos válidos que ocorrem nas nossas reflexões foram tirados desses autores, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por causa da ignorância ou pouco volume do pensar. Por isso, também o termo introdução não se refere a uma exposição historiográfica acerca dessa escola de filosofia e de apresentação sucinta, na medida do possível sistemática de suas teses, doutrinas e ensinamentos filosóficos, para estudiosos de filosofia, ainda não iniciados nessa corrente filosófica contemporânea. A palavra introdução do subtítulo praticamente não tem nada a ver com esse tipo de introdução. Pois nossas reflexões não conseguem realizar tão difícil tarefa. Para isso, falta-lhes tanto o volume de conhecimentos como o domínio de complexos dados historiográficos e filosóficos, implicados por qualquer introdução desse tipo.

Aqui no subtítulo, a palavra introdução indica tão somente o inter-esse, não propriamente de conduzir os outros para dentro da fenomenologia, mas sim de a própria reflexão, de alguma forma, ser uma tentativa. Tentativa de intuir, i. é, de ir para dentro, mesmo que seja somente num vislumbre passageiro, do fundo incandescente da coisa ela mesma da fenomenologia e ser atingido pela sua faísca, na cintilação do seu aparecer.

Por isso, os pensamentos, informações, referências que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotações, se forem usadas, devem ser controladas em sua exatidão e validade, pois são na sua maioria “chutações” e simplificações de um amador. Se, porém, houver nessas “chutações” do amador e amante da causa da fenomenologia, alguns pensamentos válidos, podem ser quem sabe úteis para os que sofrem das mesmas dificuldades e no entanto querem intuir, portanto ir para dentro daquilo que é do fascínio da fenomenologia. Nessa perspectiva, as reflexões, nos seus dados informativos, limitam ao mínimo a exposição dos conhecimentos e do saber usual acadêmico sobre a fenomenologia, supondo-os como conhecidos de alguma forma.

I NIETZSCHE E A CRÍTICA DA RAZÃO OCIDENTAL

O título do tema a ser desenvolvido como tarefa diz: Nietzsche e a crítica da razão ocidental. Os temas que compõem o título são: Nietzsche, crítica e razão ocidental. Eles são determinações prévias dentro das quais devemos conduzir as nossas reflexões. Por isso é necessário determinar o que significam esses termos aqui na nossa exposição.

Nietzsche significa aqui a metafísica de Nietzsche. Metafísica é o nome que a tradição do Ocidente deu à filosofia, enquanto ela é a busca do sentido do ser dos entes em seu todo.

A busca do sentido do ser dos entes quer dizer: a busca do princípio metafísico, isto é, a busca da origem que está para além (metá em grego) de toda e qualquer determinação particular deste ou daquele ente, a saber de todos os entes (tá physyká, em grego). A busca do princípio metafísico é a busca do que há de mais entranhado em tudo que pode ser invocado como sendo, o que há de mais fundamental, no sentido de vastidão, profundidade e originariedade.

Dito de outro modo: a busca do sentido do ser dos entes no seu todo é a busca da intuição originária, a partir e dentro da qual se constitui o sentido de todos os entes no seu ser.

A determinação do sentido do ser dos entes na sua totalidade muda de época em época, estruturando-se e vindo à fala em conceito básico, ao redor da qual se constituem outros conceitos afins, formulando os assim chamados conceitos ou as categorias fundamentais de uma determinada filosofia.

As categorias fundamentais da metafísica de Nietzsche são:

– o nihilismo europeu,

– a eversão de todos os valores,

– a vontade do poder,

-o eterno retorno do igual.

Essa constelação é dita numa única expressão: Deus está morto ou a morte de Deus. A expressão “Deus está morto” oculta pois um determinado sentido fundamental do ser que lança e abre uma possibilidade epocal da compreensão dos entes no seu todo.

Crítica significa uma ação. Ação de criticar. Não no sentido de censurar, de fazer críticas. Mas, sim, no sentido do verbo grego krínein, do qual a palavra crítica deriva. Krínein quer dizer separar, cortar, dividindo, diferenciar, distinguir.

A ação de distinguir isto e aquilo, ou isto daquilo é da vida cotidiana, no uso e na vivência das necessidades imediatas. Ali, não há ainda uma exigência, mais engajada e temática, do querer ver realmente a verdade da coisa ela mesma por ela mesma. Ver realmente a coisa ela mesma, por ela mesma, em grego se diz Theorein. Assim, quando a exigência de distinguir e diferenciar cresce na necessidade de ver, cada vez mais, a verdade, a crítica se torna teorética. Crítica nesse sentido é pois o exercício da auto-responsabilização da existência humana pela verdade, por ela mesma.

A crítica teorética pode se referir à responsabilidade de buscar a verdade de duas maneiras.

Em primeiro lugar, em distinguir entre ente e ente. Mas a distinção entre ente e ente é feita a partir e à base de uma determinada medida comum, que se chama diferença. A crítica que distingue, diferencia, põe à limpo, isto é, disseca e analisa o que há no ente e entre o ente e ente já pressupõe uma colocação, uma posição de diferença. Essa posição, o positum, é o critério da crítica científica, isto é, das ciências positivas. A críticas das ciências é análise que se refere ao ente na sua distinção como diferença entre ente e ente.

Em segundo lugar, a crítica teorética pode também se referir à responsabilidade de buscar a verdade da coisa, ela mesma, por ela mesma, em distinguindo não mais entre ente e ente, mas sim entre ente e o ser. Trata-se pois de no e através do ente penetrar até o âmago do sentido do ser que o constitui, como condição de possibilidade dos entes, isto é, como princípio. Esse modo de ser da crítica é o próprio da crítica filosófica, portanto a crítica de Nietzsche.

Razão ocidental é o terceiro termo que compõe o título da nossa reflexão. É o objeto da crítica filosófica da metafísica de Nietzsche. Como tal, a razão ocidental é o que está sob a mira que divisa o sentido último e originário do ser dos entes. Mas a razão seria a faculdade do pensar, o intelecto, ao lado da vontade e do sentimento. O destino do Ocidente está marcado desde os gregos até hoje pela dominação totalitária da razão, no cultivo unilateral e desenfreado do intelecto, deixando-se de lado toda a dimensão do sentimento e da vontade. Nietzsche, o filósofo de “vontade do poder, do élan dionisíaco, da afirmação da vida seria então o contestador que opõe ao império do racional o poder nascivo da Vida, o vigor dionisíaco do irracional!?…

Aqui, porém, na nossa exposição, os termos razão e racional não indicam tanto o intelecto como faculdade da alma, mas sim como aquele qualificativo essencial, com o qual a tradição do pensamento no Ocidente definiu o próprio do homem: Homo est animal rationale. Animal rationale é a tradução latina da formulação grega zóon lógon échon, usualmente traduzida como “vivente que possui a fala”. No entanto, a formulação e as palavras gregas dizem antes zóon, isto é, o vivente, o vivendo, o sendo como vida. Mas a vida aqui não é a biológica, nem zoológica. É sim lógon échon, isto é, em tendo logos, isto é, em sendo na atinência e na pertença a lógos. O que determina a vitalidade essencial do ser do homem é a sua atinência, a sua pertença a lógos. Em sendo na atinência a lógos, na pertença a lógos é o vigor, é o ânimo chamado homem: o animal racional.

O termo “razão ocidental” propriamente indica esse vigor essencial, constitutivo do ser do homem, que em diferentes variações de determinações e interpretações atravessa a história do Ocidente e determina de antemão a concepção ocidental de nós mesmos enquanto humanos: a razão. E é a razão, essa vigência própria e essencial do homem, que caracteriza o Ocidente e o ocidental. Daí a razão ocidental.

A razão ocidental vem à fala como a busca da verdade dos entes no seu todo, como a inexorável exigência da absoluta certeza e asseguramento dos entes no seu todo como verdade. Vem à fala como a busca do conhecimento verdadeiro, certo e inconcusso de primeiros e últimos princípios e fundamentos, e primeiras e últimas causas e reflexões dos entes no seu todo. Assim, a verdade como segurança do conhecimento certo é o valor supremo que move, fascina e impulsiona a vitalidade do homem ocidental, do animal racional. O que acontece com esse valor supremo da nossa vitalidade, do nosso ânimo essencial, se com a “morte de Deus” se anuncia um sentido do ser epocal, a partir e dentro do qual todos os valores supremos, cujo sustento é a verdade, perdem o seu vigor, seu valor? No ocaso do Ocidente, caracterizado como “morte de Deus”, o que há como a essência, isto é, com a jovialidade do nosso conhecimento verdadeiro dos entes no seu todo? O que acontece com toda a nossa “crença” na verdade, sob a mira, sob a crítica da “morte de Deus”? O que divisamos numa tal mira como o sentido epocal do ser do nosso conhecimento verdadeiro?

Assim, sob o título Nietzsche e a crítica da razão ocidental, examinemos de modo muito imperfeito o relacionamento entre a morte de Deus e o conhecimento. Pois, se aqui estamos, reunidos numa busca chamada estudo da filosofia, é porque o conhecimento é nossa Vida.

Perguntamos pois:

  1. O que é a “morte de Deus” em Nietzsche?
  2. O que é a verdade, o conhecimento para Nietzsche?
  3. Na “morte de Deus” o que vale a verdade como valor ou o que diz a “morte de Deus” como valor da verdade?

1 O que é “a morte de Deus” em Nietzsche?

A expressão “a morte de Deus” ou “Deus está morto” indica o âmago da Filosofia de Nietzsche. Contem 4 momentos principais que receberam o nome de: O nihilismo europeu; a eversão de todos os valores; a vontade do poder e o eterno retorno do igual (cf. A vontade do poder, <der Wille zur Macht>). Examinemos rápida e resumidamente esses momentos principais da metafísica de Nietzsche para intuir o que quer dizer “A morte de Deus”.

Na obra póstuma A vontade do poder (Der Wille zur Macht) aforismo 2 (1887) Nietzsche pergunta: “O que significa nihilismo?” E  responde: “Que os valores supremos se desvalorizam”. E acrescenta: “Falta a meta; falta a resposta para “por quê?”

E no quarto livro da obra A gaia ciência (Die froehliche Wissenschaft), intitulado “Nós, os intrépidos” (Wir Furchtlosen), Nietzsche assinala o aforismo 343 com as palavras: “O que há com a nossa jovialidade”. E o texto inicia: “O novo evento máximo – que “Deus está morto”, que a crença no Deus cristão perdeu a sua credibilidade – começa já a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.

O nihilismo, usualmente, o entendemos como uma atitude e concepção particular e subjetiva, na qual se vê tudo a partir e na direção do negativo, do nada (nihil). É algo como rejeição pessimista e depressiva da vida. O nihilismo do qual fala Nietzsche se chama, no entanto nihilismo europeu. Não se trata, pois, de atitudes ou concepções subjetivo-particulares. Mas, também, não se refere propriamente à mundivisão, muito espalhada na Europa do século XIX, ao Positivismo, que afirma: somente o que é acessível pela apreensão sensível é real e verdadeiro. O adjetivo “europeu” do nihilismo de Nietzsche não se refere à Europa geográfica. Refere-se sim à História, ao Destino do Ocidente. O nihilismo europeu é portanto o termo usado por Nietzsche para indicar o movimento que caracteriza e domina a história do Ocidente, ou melhor, o movimento que é a própria História do Ocidente, e isto, desde os seus primórdios com os gregos até os nossos dias do Ocidente-europeu. Trata-se portanto de um processo, cujo evento máximo, cuja consumação se expressa e se resume nas palavras “Deus está morto”.

O nihilismo de Nietzsche não é portanto opinião ou multividência, doutrina de um sujeito chamado Sr. Friedrich Nietzsche ou de um grupo de pessoas. Não é apenas uma fato histórico entre outros, uma corrente “espiritual” entre ou ao lado das outras, como p. ex. iluminismo, ateísmo, humanismo. É o próprio ser, o próprio destinar-se do Ocidente. É o movimento de fundo da história do Ocidente, um movimento subterrâneo que vem de longe, e que somente agora começa a lançar as suas primeiras sombras sobre a Europa.

Mas o que caracteriza esse evento? Diz Nietzsche: A morte de Deus, isto é, a perda da credibilidade no Deus cristão. Aqui, a falta de credibilidade no Deus cristão, assim interpretada, seria um episódio inocente, particular e caseiro diante do evento mencionado por Nietzsche. Pois todos esses fenômenos negativos acima mencionados não são ainda o nihlismo europeu como evento-causa, mas apenas alguns de seus efeitos.

Deus cristão em Nietzsche indica o sobre-natural (o metá-físico), o mundo supra-sensível, o mundo de valores de ideais e idéias que constituem a meta, o fim para o qual tende a vida.

Não é portanto apenas o fato e a situação de não crer mais na revelação da Bíblia, no Deus e na Igreja do cristianismo. O fato de o Cristianismo com tudo que ele implica não ter mais vez, de não mais atuar nem possuir a força de colocar uma possível meta para a Humanidade, não altera essencialmente em nada o fato de a humanidade ocidental, desta ou daquela forma, viver a estrutura da opção preferencial pelo mundo sobre-natural, viver a estrutura de predominância do mundo de ideais, idéias, metas, de princípios e fins, razão da existência do mundo natural, sensível e terrestre, fins, razão da existência do mundo natural, sensível e terrestre. Mesmo que o habitante nº 1 do mundo sobre-natural, o Deus Cristão tenha sido ou seja destronado ou morra inane, o próprio trono vazio permanece. Assim se tenta sempre de novo reintronizar os substitutos do Deus cristão como p. ex. o Estado, a Consciência, a Sociedade, a razão, a Humanidade, o progresso, o Mundo Melhor e toda a sorte de diferentes-ismos.

Essa tentativa de preencher, sempre de novo, o vazio deixado pelos diferentes valores supremos desvalorizáveis, por meio de valores substitutos do Deus cristão, é denominada por Nietzsche de nihilismo incompleto. Assim diz Nietzsche em A vontade do poder, aforismo 28 (1887):

O nihilismo incompleto, suas formas: nós vivemos bem no meio dele. As tentativas de esquivar-se do nihilismo, sem reverter os valores que eram válidos até agora: trazem o efeito contrário, tornam mais agudo o problema.

O descrédito do Deus Cristão quer dizer portanto: a determinação do sentido do ser que tem como sua a mais consumada e absoluta manifestação o Ente Supremo (Deus), em todas as suas variantes e modalidades de interpretação, perdeu o poder sobre o ente e suas determinações. Assim, com o “Deus Cristão”, caem do trono, juntos, todos os ideais, normas, princípios, regras, fins, metas, valores que foram e ainda são por algum tempo estabelecidos sobre o ente para lhe dar no seu todo um fim, uma ordem, um sentido. Por isso diz Nietzsche: “… os valores supremos se desvalorizam” … “falta a meta, falta a resposta para “por quê”.

Mas o que é necessário para que o nihilismo não fique a meio caminho, mas sim chegue à sua consumação? O nihilismo completo, consumado e pleno deve não somente constatar e considerar a desvalorização de todos os valores supremos, mas também vigiar atentamente que não se volte aos valores antigos em substituindo-os por valores novos similares. E deve antes de tudo efetuar a eversão de todos os valores.

Eversão de todos os valores aqui não significa inverter, revirar ao contrário os valores que ocuparam ou ocupam os lugares de hierarquia de valores estabelecida como o escalonamento dos entes no seu todo. Não se trata pois de pôr a cabeça para baixo a ordem do “sistema” de dois mundos, do mundo sensível – passageiro, relativo, provisório e ilusório – e do mundo supra-sensível: eterno, absoluto, definitivo e verdadeiro. Eversão significa estabelecer uma mudança total, não somente nos valores, mas sobretudo no ser da estrutura que aparece como o escalonamento do “sistema” de dois mundos. Isto significa revolver, revolucionar a totalidade da valência para colocar tudo novo, desde a raiz, buscar um novo princípio da própria valoração, fundar um “novo céu e uma nova terra”, onde o “céu e a terra” não são mais dois reinos hierarquizados como meta-físicos, mas como uma inteiramente nova pátria da Terra dos Homens, a qual Nietzsche dá o nome de Terra, Vida, Corpo. Somente quando se der essa eversão e a fundação da nova ordem da afirmação da Terra, da Vida, o nihilismo chega à sua consumação e se torna completo. Temos então o que Nietzsche chama de nihilismo clássico, o nihilismo europeu.

Na exigência da eversão de todos os valores do nihilismo clássico, o que de início era a exinanição do ser de todos os valores supremos, se consuma no nihilismo completo na necessidade e exigência da nova busca do novo sentido do ser, que faça jus à absoluta afirmação da Vida. A essa nova afirmação do ser de uma nova Vida absoluta Nietzsche chama de “Princípio de uma nova valorização” (der Wille zur Marcht, III parte).

O que significa valor, valorização para Nietzsche?

Acerca do valor diz Nietzsche em A vontade do poder, aforismo 715 (1887/1888):

O ponto de vista do “valor” é o ponto de vista de condições de conservação-escalação, em vista de complexas formações de duração relativa da vida dentro do devir.

No Ocidente chamamos de metafísica ou filosofia a busca do sentido do ser dos entes no seu todo. Dissemos bem no início dessa reflexão que a busca do sentido do ser é a busca do princípio, isto é, da fonte da vida, que está na raiz, na origem de tudo que pode ser invocado como sendo. Para Nietzsche, o sentido do ser dos entes, isto é, aquilo que faz com que cada ente seja ente enquanto ente, se chama valor. E a dinâmica do surgir do valor como estruturação do todo como mundo se chama valorização. Assim, em vez de se dizer ser, aqui se diz valorizar, valorização. Em vez de ente, (coisa, algo, objeto) se diz valor. Portanto, tudo, cada ente e o todo dos entes, é considerado sob a perspectiva do valor e da valorização.

Mas o que é valor, valorização? Responde Nietzsche: é ponto de vista de condições de conservação-escalação… da vida do devir.

O ponto de vista é a medida estabelecida previamente, de antemão, a qual projetamos diante de nós como perspectiva e prospectiva de referência. De lá, a partir e em vista desse ponto, estruturamos tudo que somos e não somos, tudo que fazemos e não fazemos, segundo o escalonamento possibilitado e exigido pela medida previamente estabelecida. Essa medida prévia não é uma coisa fora de nós, uma norma, uma exigência ou necessidade impostas de fora, mas é a afirmação de nós mesmos, a im-posição que somos nós mesmos. É o quantum da possibilidade de nós mesmos, é a medida que damos a nós mesmos e a tudo que se refere a nós, enquanto capazes de ser, enquanto possíveis, isto é, potentes de viver. O ponto de vista é portanto condição ou condições da vida. Condição em alemão diz: Bedingung (Be = movimento incoativo; Ding = coisa; ung = sufixo de ação). Na palavra Bedingung está a palavra Ding (thing em inglês) que usualmente traduzimos por coisa, objeto, mas que evoca um todo ajustamento. Uma concentração ao redor do mesmo interesse e da mesma causa, como p. ex. a assembléia popular, portanto a corporificação da intensidade da energia vital de um povo livre. Condição ou condições de vida nessa evocação significaria o quantum ou os quanta da Vida.

Mas que Vida? Biológica? Zoológica? Psicossomática? Anímica, espiritual? Nietzsche diz: de conservação-escalação. Diz conservação-escalação e não conservação e escalação, para significar que conservação e escalação dizem dois momentos do mesmo.

Conservação: aqui a ação de se conservar. Conservar-se é manter-se, é ater-se de corpo e alma ao próprio de si, é guardar intata, originalmente, a vitalidade e o frescor da dinâmica de si mesmo. É a Erhaltung.

Escalação: escalar é subir passo a passo de degrau em degrau. É ação, a dinâmica que cria o escalonamento, mas aqui não um escalonamento de degraus fixos, um após o outro num movimento unidimensional linear, mas sim na ordenação da dinâmica da potencialização, do crescimento, do aumento do poder, como a escalação de força, como a dinâmica da autoindução no crescimento. É a Übersteingung, a transcendência.

Conservação-escalação da Vida é o modo de ser da autossuperação (Überwindung), a transcendência, o ir para além (metá), mas não saindo de si, não abandonando a si, ou negando a si em favor de uma coisa, de um reino, de uma região acima, para além, para fora de nós, mas sem ir para além de nós mesmos como potencialização, como escalada, não de violência, mas sim da afirmação da Vida. Esse modo de auto-superação, isto é, da simultânea dinâmica de se manter e se aumentar, portanto da conservação-escalação, esse poder, essa força, essa vitalidade de transcender, esse modo de ser é a estrutura da vontade que deve sempre de novo querer o querer do seu querer, numa contínua manutenção-escalação de si como liberdade. Essa liberdade não é liberdade de, mas sim liberdade para.

Essa dinâmica do querer como aumento da cordialidade de ser a partir de si na doação livre de si a si mesmo é o contínuo e crescente vir a si como crescimento. É tornar-se cada vez mais presente a si mesmo. Esse aumento de si mesmo como a vitalidade da autocordialização é o que caracteriza o poder. Assim, o novo sentido do ser que satisfaz à exigência e à necessidade da absoluta afirmação da vida, isto é, o princípio de uma nova valorização, se chama a vontade do poder.

A vontade do poder em Nietzsche, portanto, não é o desejo, a ambição da conquista do poder dominador. É o princípio de nova valorização, é o ser dos entes na sua totalidade, cujo modo de ser é caracterizado como vontade do poder, por causa do modo de ser da vontade e do poder, descrito por Nietzsche como valor, como valência da coragem do ser, como valentia de ser que perfaz a condição da conservação-escalação da Vida.

Valor e valores são por conseguinte quantum e quanta da concreção da vontade do poder em diferentes densificações, formando assim as complexas configurações, isto é, os diversos entes, cada qual por si e na mútua implicância de interação como todo. Essas complexas formações, isto é, os entes na implicância mútua como textura energética da totalidade, assim criada, são durações do devir. São durações porque são contenções, momentos contidos, cristalizações passageiras do fluxo dinâmico e generoso da Vida, do devir. São relativas, porque são relacionadas entre si uma na outra, uma com a outra. O ser do ente no seu todo para Nietzsche é pois a vontade do poder, a Cordialidade-Vida no seu conservar-se e crescer, formando-se, em mil e mil diferentes quanta, isto é, porções homogêneas da dinâmica do “querer ser” e “poder ser”. Essas porções, a que Nietzsche chama de valor, são valências da vontade do poder. Esse movimento e fluxo contínuo, cada vez mais intenso do vir a si da vontade do poder é um movimento espiral de auto-escalação e auto-conservação, que no renovado transcender-se para a essência de si mesmo é a expansão de si como aumento de auto-escalação da vontade do poder, o seu crescimento. É portanto contínua repetição circular do mesmo, não na indiferença e chatice da monotonia linear de um rodar sem crescimento a modo de realejo, mas, sim, circulações da escalada do aumento, a modo dos anéis-espirais do vôo da águia que em diferentes e repetidos círculos concêntricos sobe cada vez mais, não flutuando, indiferente e carregado pelo vento como um balão de ar, mas superando sempre de novo o peso da sua sustentação da conservação e aumento da vontade do poder. Por isso a vontade do poder na sua dinâmica “interna” do crescimento é o eterno retorno do igual ou do mesmo, como a permanência no mesmo da retomada cada vez nova do todo da vontade do poder.

Nesse relacionamento mútuo dos 4 momentos principais do que chamamos da “morte de Deus”, a saber, do nihilismo europeu, da eversão de todos os valores, da vontade do poder e do eterno retorno do igual, temos resumidamente a metafísica de Nietzsche.

Assim, na metafísica de Nietzsche tudo é visto, avaliado, em vista e a partir da vontade do poder, tudo como função ou funções de valia, como valor, valência, como a contínua conservação, escalação e retomada da coragem de ser. É nessa perspectiva que a vigência da razão ocidental, isto é, o conhecimento, a verdade é transformada em valor da Vida, em valor da vontade do poder.

O que é pois o conhecimento, a verdade, nessa crítica da metafísica de Nietzsche da razão ocidental?

 

2 O que é a verdade, o conhecimento para Nietzsche?

 

Na tradição da história do Ocidente, cujo destino recebe o nome de filosofia ou metafísica, a definição do que seja a verdade está intimamente ligada à definição do homem.

A filosofia define o homem como animal racional. Animal racional é o homem, cuja ação essencial é a razão ocidental. O que é a verdade, enquanto intimamente ligada à razão ocidental, à ação do homem ocidental, do animal racional?

Dissemos no início da reflexão que o animal racional significa vida enquanto atinência e pertença a lógos. Essa vitalidade lógica, isto é, referida a lógos grego, é a dinâmica, a força que impregna e impulsiona o Ocidente como razão. Razão é, pois, um ímpeto, uma tendência, digamos um “instinto” fundamental que aciona e agiliza o Ocidente numa estranha mobilização total da busca dos últimos fundamentos dos entes no seu todo. Essa mobilização está sob a inexorável exigência e necessidade da absoluta certeza e do asseguramento do desvelamento do que é. É no sentido dessa mobilização total da busca dos últimos fundamentos do ente no seu todo que a tradição do Ocidente definiu e define a verdade como adaequatio rei et intellectus. Aqui deixemos de lado detalhes da explicitação dessa definição que através da história do Ocidente recebeu diversas conotações. P. ex. a Idade Média desdobrava essa definição em seus dois momentos constitutivos, expressos na formulação adaequatio rei ad Intellectum divinum e adaequatio intllectus humanus ad rem. Concentremo-nos aqui unicamente na observação de que no Ocidente a verdade é definida, seja qual for a sua formulação, como adequação, correspondência, concordância com o que é. Aqui não vem ao caso, se o que é se chama coisa, ente, objeto; ou vontade e intelecto divino; sujeito, eu, estrutura, ideal, idéia, bem, meta, fim, valor etc. O pivô da questão é que é sempre em diferentes modalidades uma direção, um ir de cá para lá, um sair de si para o outro, um ir para além (metá), ultrapassando o que não é para o que realmente é. Assim a verdade se define essencialmente em função, a serviço do que é. Esse direcionamento, esse pôr-se na reta, na correção do que é, esse ser direto, reto no direito do o que é, é o conhecimento. O conhecimento no Ocidente é sempre conhecimento do verdadeiro, do reto, do correto. E o verdadeiro é o direcionar-se para o que é. Aqui as palavras verdade, verdadeiro significam ambiguamente essa busca. Significam esse direcionamento para o que é, e ao mesmo tempo a meta, o fim que plenifica totalmente é essa busca, o ser, a saber, o que dá o último e o absoluto sentido à busca do que é: o ser dos entes no seu todo. Mas, nessa busca dos últimos fundamentos de tudo, o que é está sempre para além do que ainda não é, do que ainda não é plenamente, Por isso, caracterizamos o que é, em vista do último e do pleno, do ser supremo, do valor supremo. Se essa é a estrutura do conhecimento, se esse direcionamento para o ser supremo é o característico do conhecimento, então podemos dizer que em todas as atividades humanas está implícito o conhecimento, na representação, na dúvida, no anelo, na saudade do além, na espera, na avaliação, na doação à vontade do outro, no obedecer, na cobiça, no progresso etc. Esse direcionar-se para, em tudo que fazemos e não fazemos, em tudo que somos e não somos é o que se chama a razão ocidental. Mas a razão ocidental como direcionamento, se estabeleceu como meta-física, isto é, como o movimento de sair de si, de cá para lá, ultrapassando e abandonando o que somos nós mesmos, e o que está ao nosso redor como a nossa proximidade, indo para o longínquo, para um outro reino, onde está a nossa pátria definitiva, onde habita o último, o definitivo, o eterno, o absoluto, a verdade em si. Assim a razão ocidental, segundo Nietzsche se estabeleceu desde Platão até os nossos dias como a doutrina metafísica de dois mundos; do mundo natural-sensível e do mundo sobrenatural suprassensível. E para Nietzsche essa colocação de Platão veio até nós através do cristianismo que, segundo ele, não é outra coisa do que um platonismo popularizado.

Resumindo o que dissemos: nessa colocação a verdade significa o fim último do conhecimento. Conhecimento aqui como razão ocidental inclui todos os nossos impulsos de busca, suas exigências, suas necessidades e a sua satisfação, todas as nossas intencionalidades, sejam elas de que nível e modalidades forem. A verdade portanto na sua última acepção é o ente supremo, a realidade última e primeira, o primeiro e o último princípio, a razão última, o fundamento inconcusso, o fim absoluto de todos os entes.

Dessa verdade diz Nietzsche em A vontade do poder, nº 494 (1885): “verdade é a espécie de erro, sem a qual uma determinada espécie do ser vivente não poderia viver”.

A verdade é uma espécie de erro! A verdade não é, apenas parece ser. É ilusão! Se é ilusão, a verdade não tem sentido, não tem serventia. Diz porém Nietzsche: Tem uma grande utilidade. Utilidade de sustentar uma espécie de ser vivente, o homem, o qual não poderia viver se não fosse sustentado por essa ilusão, por essa aparência tida como “verdadeira”. Mas isto tudo não é uma trapaça? Uma “racionalização”? Um enganar-se a si mesmo? Responde Nietzsche: Não, não é trapaça, é avaliação do valor! E continua em A vontade do poder, n. 507 (1887):

A avaliação do valor, isto é, “eu creio, que isto e isto é assim” como essência da “verdade”. Nas avaliações de valor expressam-se as condições de conservação e crescimento. Todos os nossos órgãos de conhecimento e sentidos são desenvolvidos somente em vista de condições de conservação e crescimento. A confiança na razão e nas suas categorias, na dialética, portanto a avaliação de valor da lógica, somente prova a já por experiência comprovada utilidade da verdade para a Vida: não a sua “verdade”. Que deve haver ali uma grande porção de crença, para que se possa julgar; para que falte a dúvida em vista de todos os valores essenciais; – isto é pressuposição de todo o vivente e da sua vida. Portanto, que algo deve ser tido por verdadeiro, é necessário, – não, que algo é verdadeiro.

“O mundo verdadeiro e o mundo aparente” – esta oposição é reconduzida por mim a relacionamentos de valor. Nós projetamos as nossas condições de conservação como predicados do ser como tais. O fato de que nós devemos ser estáveis na nossa crença, para crescer, disso fizemos com que o mundo “verdadeiro” não seja nenhum mundo de mudanças e do devir, mas sim que seja um mundo que é.

A verdade é ilusão, é apenas função para a sobrevivência de uma espécie do ser vivente, a saber, do homem; a verdade é uma crença, rejeição de dúvidas e incertezas em vista da avaliação, isto é, do cálculo da valia, da valência dos nossos posicionamentos, para criar condições de estabilidade em favor da conservação e crescimento da Vida; o mundo verdadeiro, absoluto e eterno do suprassensível, o mundo metafísico, é apenas um projeto do cálculo de valor do asseguramento do nosso crescer. A verdade não é outra coisa do que projeto do homem-sujeito e do seu agenciamento da própria sobrevivência e conservação.

Mas tudo isso, essa colocação de Nietzsche não é no fundo, mutatis mutandis, exatamente o que Kant na Crítica da razão pura propõe, na sua viragem copernicana, segundo a qual, o conhecimento não mais se deve orientar segundo o objeto, mas sim, pelo contrário, o objeto deve-se orientar segundo o intelecto? Certamente tanto Kant como Nietzsche na sua crítica da razão ocidental, permanecem, no fundo, na pista da colocação metafísica do Ocidente. Assim, seja como for, a estrutura da verdade para ambos é sempre adequação, concordância, direcionamento como a transcendência da superação. Ambos colocam, como o centro e o substrato do ponto de referência do constituir-se do mundo, a Subjetividade, o homem como Sujeito e agente da estruturação do ser do ente no seu todo. O que, porém, em Nietzsche é próprio e para nós de grande importância é que essa correspondência, esse direcionar-se, se dá como avaliação de valor (Wertschaetzung). Diz Nietzsche: “A avaliação do valor… é a essência da verdade”. Nessa afirmação está o pivô, o ponto nevrálgico da Filosofia de Nietzsche, a sua crítica da razão ocidental. A palavra alemã para a avaliação de valor é Wertschaetzung (Wert = valor; Schaetzung = avaliação; Schatz = tesouro; ung = sufixo de ação). Portanto, no termo Werschaetz-ung está a palavra Schatz que significa tesouro. Avaliação de valor sugere pois que o valor diz respeito ao tesouro. O valor é a valência do tesouro. É a unidade de verificação de todas as coisas, portanto, dos entes na sua totalidade, enquanto contêm ou não contêm, enquanto contêm mais ou menos do ouro de fundo, isto é, do tesouro. Quanto mais fundo de ouro, quanto mais tesouro ali houver, tanto mais forte, tanto mais de valia é a unidade, tanto mais quantum de ser possui o ente. Mas lá onde está o teu tesouro, lá está também o teu coração. E o coração do tesouro da metafísica de Nietzsche é, como já foi dito acima, a vontade do poder.

Isto significa que a essência da verdade, o que ela é de fato, realmente, só pode ser compreendido, se tivermos a vontade do poder como o tesouro do coração de todas as coisas, como o fundo de ouro da “bolsa de valores” que é o mundo, o universo, o ente no seu todo.

Mas como fica então a verdade, se a verdade não é outra coisa do que a valência, o valor da vontade do poder? Como fica a verdade que constitui o fundamento, a estrutura essencial da razão ocidental, a meta, as pistas e a garantia do seu buscar, se a vontade do poder é o ser dos entes no seu todo, a suprema e a última verdade da razão ocidental?

Em Nietzsche, a crítica, isto é, o vigor do olhar que distingue e divisa o fundo, o mais profundo de uma realidade, responde: todas as respostas da razão ocidental que sempre de novo, desde Platão, por sobre o Cristianismo, até os nossos dias, buscou e busca as primeiras e as últimas causas de todas as coisas, portanto o ser do ente no seu todo, direcionou essa busca, colocando diante de si como ponto de referência suprema o ser como a plenitude da substância. Substância aqui entendida como a presença absoluta, subsistente em si e por si, imutável e eterna na sua consistência, início e fim, princípio e meta, a medida suprema e única, definitiva de todas as realidades, isto é, a verdade de todas as buscas. Essa colocação inicial da razão ocidental recebe mais tarde o nome de platonismo. E uma vez popularizado, recebe o nome de cristianismo, em cuja fixação dogmatizada fez aparecer o Deus Cristão, nome representativo para todas as posições, para todas as verdades que a partir desse Ser Supremo se estruturam como o arcabouço sustentador do Mundo supera-sensível, o mundo dos valores supremos do Ocidente. Na medida em que esse supremo Ser e tudo que a ele se refere como o sustento da totalidade do ente como o mundo, começam a perder a sua força de sustentação, e começam a cair no descrédito, surgem diferentes tentativas de reanimá-lo, substituindo-o com outras presenças com diferentes denominações. Essas tentativas de substituição longe de deter o processo do esgotamento do sentido do ser supremo, exacerbam cada vez mais o avanço da sua senilidade, esgotamento esse que aparece hoje como a desertificação do sentido do ser na humanidade ocidente-europeia. Mas também na mesma medida em que o supremo ser metafísico e tudo que a ele se refere perdem a sua força de coesão e mobilização, de convocação e atuação, começa a aparecer nua e cruamente o arcabouço do esquema de segurança adotado pela razão ocidental. Esse arcabouço aparece então por sua vez como esquematismo de categorias e estruturações lógicas, que constituem pistas de direcionamento da busca da verdade, que encaminham o ímpeto de busca para dentro de obediência corretora à última instância da busca da verdade, ao princípio da não-contradição. O princípio da não-contradição então não é outra coisa do que o vir à fala do ser da razão ocidental que sempre de antemão compreende o ser como a afirmação da auto-identidade absoluta da plenitude da presença, na constância imutável e subsistência inamovível do ser como substância. O nihilismo europeu clássico, a morte de Deus liquida e coloca em fluência todo esse esquema de fixação da lógica e dialética da razão ocidental, desmascarando-o como o auto-engano ou melhor como um recurso de animação que a razão ocidental se impõe a si mesma como comando da afirmação de si, para poder-se manter na confiança e na crença de si, como uma possibilidade de conservação e crescimento de si mesma.

O nihilismo europeu na sua plena consumação como a morte de Deus, em trazendo à tona o estado do esvaziamento do sentido do ser de todos os valores supremos que foram e são ainda por um pouco de tempo o sustento da conservação e crescimento da razão ocidental, reconduz-nos ao nada, ao despojamento total desse esquema de autoasseguramento da razão ocidental. Ao desvalorizar tudo que não é autenticamente o próprio, o âmago, o fundo da razão ocidental, isto é, o que não é a própria vontade do poder, expõe-nos, a nós, a razão ocidental, à pura e límpida responsabilidade de ser sujeito e agente do nosso próprio ser, e do ser de tudo quanto diz referência a nós mesmos como seres humanos, na riqueza e pobreza, na infinitude e finitude, na grandeza e pequenez do nosso destino mortal. Grandeza e pequenez do nosso destino mortal, assumido, reconduzido na autocompreensão da sua verdadeira autonomia, de volta ao espírito de finura e jovialidade da Gaya Ciência (Die froehliche Wissenschaft), não mais no espírito de ressentimento e de vindicância, isto é, da vingança, não mais como carência do infinito, não mais como injustiçado pela privação da imortalidade, mas sim como simples, imediata afirmação da vida, isto é, afirmação dos entes no seu total como cordialidade de ser, isto é, com outras palavras como vontade do poder. Estar assim responsabilizado em tudo por e para ser não é mais ser o subiectum de um projeto grandioso de asseguramento da verdade substancial fixa transcendentalmente como a meta do nosso próprio ser e tornar-se como substância. Não é mais viver a partir e em vista da subsistência suprema e absoluta, mas sim viver como pura, cada vez finita automanutenção e crescimento da cordialidade de ser, denominada por Nietzsche de vontade de poder e seu eterno retorno. Este novo modo de ser é a verdade do conhecimento como avaliação do valor, como valência, como valentia de ser, cada vez, sempre de novo, sempre novo, sendo o ser do seu querer, sendo o ser do seu poder como a vontade do poder.

A humanidade ocidental, que há séculos foi definida como animal racional, acorda, no nihilismo europeu, desse seu grande sonho meta-físico. E livre dessa megalomania da razão ocidental, passa por sobre o limite de si mesma para onde? Não para fora de si, para além de si, para o infinito, para o absoluto como sempre veio fazendo até agora na acribia meta-física da razão ocidental, mas sim transcende para dentro de si mesma, para o âmago mais íntimo da identidade da sua liberdade mortal. Uma tal humanidade de passagem se chama em Nietzsche Ueber-mensch. Quando o Ueber-mensch é traduzido como Super-homem nos evoca erroneamente a Humanidade da razão ocidental levada à sua mais exacerbada aberração, cuja personificação aparece na ridícula figura do Superman americano. Na realidade, ueber diz mais trans, diz a passagem, o movimento de ir por sobre. Mas por sobre o que, de onde para onde? Por sobre o homem de até agora, que é superado, não no sentido de superiorizado, não no sentido de levado à escalada no que era, ao grau supremo de consumação, mas sim no sentido de “consumido”, acabado, como terminado, como no término de uma busca.

  1. Na “morte de Deus”, o que vale a crítica da razão ocidental como verdade?

Resumindo o que até aqui dissemos: a morte de Deus, após a primeira etapa do nihilismo incompleto, alcança a sua consumação na Eversão de todos os valores. Ali Nietzsche descobre como o fundo da razão ocidental, o princípio da nova valorização é a vontade do poder. Os valores, todos os valores, desde os mais insignificantes até os mais altos e absolutos, que desde Platão até hoje sustentam a humanidade na busca do sentido do ser dos entes no seu todo, não são outra coisa do que as condições de conservação e crescimento da própria vontade do poder, colocados como tais por ela mesma. Os valores supremos do mundo supra-sensível, as verdades do reino do “Deus cristão” e de seus substitutos, isto é, a verdade absoluta da razão ocidental se desmascaram como valência, como funções de valia da vontade do poder, que se torna agora, em Nietzsche, a verdade de todas as verdade, o valor de todos os valores, portanto o ser dos entes na sua totalidade.

Mas o que é isto a verdade da vontade do poder? A vontade do poder não é ela agora a verdade suprema? Com essa pergunta nos coloquemos no ponto crítico da crítica de Nietzsche da razão ocidental. A desvalorização do sustentáculo fundamental da razão ocidental e a descoberta do Princípio da nova valorização é a descoberta de que a essência da razão ocidental está nela mesma enquanto vontade do poder. E a vontade do poder é o ser dos entes no seu todo. Mas o que de crítico, o que de diferente há nessa tão badalada vontade do poder? Não é ela senão a exacerbação cada vez mais desenfreada do envolvimento da razão ocidental consigo mesma enquanto metafísica? Esse transcender da vontade do poder não mais para fora, mas para dentro de si, esse assumir sempre de novo a responsabilidade de ter que ser cada vez si mesma, é realmente uma passagem para o radicalmente novo? Ou não é antes apenas um autoengano da razão ocidental que se tem por vontade do poder, mas por não possuir mais uma referência fora de si, volta-se sobre si, com o mesmo jeito da transcendência para o infinito do além, apenas agora aprisionada dentro do próprio movimento, apenas como um movimento circular de realejo? Um girar vazio, portanto, mas com a pretensão de ser o movimento centripetal do olho do furacão da tempestade, sem contudo conseguir afundar e sucumbir para dentro de si, por não ter mais, nesse tempo de indigência do nihilismo europeu, o suficiente caos para poder gerar estrelas a partir de si? O que há de diferente pois no movimento do eterno retorno da vontade do poder, diferente do movimento circular da ação projetiva do sujeito-homem? A vontade do poder, não é ela a exacerbação desse processamento da objetivação do homem sujeito?

Nesse processamento da objetivação do homem-sujeito como um movimento de contínua superação de si para dentro de si, nada se encontra ali que lhe pudesse servir de fonte e fim da conservação e escalação do próprio vigor do retorno. Tudo começa a se desgastar num esvaziamento total do sentido do ser, restando cada vez mais apenas a exigência e necessidade de girar, girar sem cessar no vazio. No vazio nadificante, onde todos os entes são apenas funções, isto é, objetos liquefeitos, rarefeitos como momentos fugidios de cálculo, na indiferença da pura ocorrência, sem vida, sem alma. A vontade do poder, o olho do suposto furacão da Eversão de todos os valores e do surgimento do princípio de nova valorização, parece ser exatamente o vir à fala da nihilidade nadificante que aniquila o próprio nada, reduzindo tudo a fluxos indiferentes de funções, numa entropia do ser, onde jamais poderá nascer, brotar e crescer, sequer uma ilusão do erro, sequer uma dor, um desespero ou sofrimento.

No entanto, por outro lado, nas próprias palavras insistentes de Nietzsche, a vontade do poder, o novo ser dos entes no seu todo, é um anúncio inaudito da nova jovialidade de ser. É a Boa-Nova da Vida plena, da renovação contínua da coragem de ser, livre de toda e qualquer vindicância alheia a si, a não ser a exigência única, radical de ter que ser o vigor nascivo dela mesma. E nas palavras de Nietzsche no Assim falou Zarathustra (Also sprach Zarathustra) é a terceira e a última transformação do ser-homem, descrita como “inocência, criança, um esquecer, um novo início, um jogo, uma roda que gira a partir de si, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim!” Entrementes, na terra, livre da amarra do céu da metafísica, aumentam os sofrimentos e as dores dos filhos dos homens: as intermináveis guerras fratricidas, os absurdos da crueldade humana, os massacres dos inocentes, as brutalidades das limpezas étnicas, a desertificação do nihilismo europeu, as derrocadas e o esvaziamento do sentido de todos os ideais da Terra, a planificação do universo numa mobilização planetária destruidora de toda diferença que não seja correspondente à interpelação produtiva do autoasseguramento da subjetividade do sujeito-homem! vontade do poder!? A alegria de viver, a partir de si, para e por si, na valência da valentia de ser em assumindo a mortalidade e finitude da terra dos homens?! Não soa tudo isso, estranhamente alienado e alienante? Heróico? Trágico ou cínico-eufórico, estático-tresloucado?

Na obra Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Boese), aforismo 150 (1886), escrita no tempo em que se ocupava com o pensamento, em planejando a sua obra principal A vontade do poder, escreve Nietzsche: “Ao redor dos heróis, tudo se torna tragédia; ao redor do semi-deus tudo se torna jogo de Sátiro; e ao redor de Deus tudo se torna – como? Talvez “mundo”?

Ao redor de Deus, tudo se torna… mundo?! O mundo, o Tudo, ao redor de Deus da “morte de Deus”, do Deus Vindouro do nihilismo europeu?! O que é pois e como é este Novo Mundo?

No fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (38[12]) responde Nietzsche:

E também vós, sabeis vós o que é “o mundo” para mim? Devo mostrá-lo a vós no meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, sem fim, uma imensidão, imensidão de forças, firme e brônzea, grandeza que não se torna maior nem menor; grandeza que não se desgasta, apenas se transforma. Como todo, imutável: uma economia sem gasto nem perda, mas também igualmente, sem acréscimo nem entrada; imensidão cercada pelo “nada”, como por sua totalidade; no entanto nada de vazio, nada de esbanjado, nada de infinito-estendido; mas sim, como força determinada, inserida num determinado espaço, e não num espaço que fosse de algum modo “vazio”; antes cheio como força em toda a parte, como jogo de forças e como forças-ondas, simultaneamente um e “muito”; aqui crescendo, e ao mesmo tempo lá diminuindo; um mar de forças, se lançando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente se refluindo, com anos incríveis de retorno, a maré alta e baixa dos perfis dos entes na dinâmica da expansão, a partir do mais simples para os mais complexo, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais gélido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontradição, e então de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradições, de volta para o prazer da sintonia, afirmando-se a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e seus anos, abençoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que não conhece nenhuma saturação, nenhuma superfluidade, nenhum cansaço –: este meu mundo dionisíaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, este mistério-mundo de dupla volúpia, este meu além do bem e do mal, sem meta, se não jaz uma meta na fortuna do círculo; sem vontade, se um anel não tem para si mesmo boa vontade, – quereis vós um nome, um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais ocultos, vós os mais fortes, os mais intrépidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo é a vontade do poder – e nada mais! E também vós sois esta vontade do poder – e nada mais!

Mas o que é este mundo dionisíaco da vontade do poder, essa absoluta e incondicional afirmação da Vida na sua imensidão, profundidade e criatividade? O que significa “e também vós mesmos sois esta vontade do poder – e nada mais”?

Nós mesmos, a razão ocidental na morte de Deus, nós mesmos como a crítica da própria razão ocidental, esse “nós mesmos” somos a vontade do poder, e nada mais.

Esse “nós mesmos” como a concreção, como o vir à fala da vontade do poder, recebe em Nietzsche um estranho titulo, a saber, Humano, demasiadamente Humano. Assim num fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (36[37]) nos ensina Nietzsche:

Humano demasiadamente Humano: com esse título está insinuada a vontade para uma grande libertação, a tentativa de um singular livrar-se de todo e qualquer preconceito que fala em favor do homem; e ir todos os caminhos, os quais conduzem suficientemente para o alto, para, por um instante que seja ao menos, olhar sobre o homem de cima para baixo. Não para desprezar o desprezível, mas sim para questionar até o fim para dentro dos últimos fundos, se ali não ficou ainda algo para desprezar, mesmo ainda no mais alto e no melhor e no todo, acerca do qual o homem de até agora estava orgulhoso; se ainda ficou algo para desprezar, mesmo neste orgulho e na inocente e superficial confiança na sua avaliação de valor: esta tarefa não menos questionável era um meio entre todos os meios, para os quais me obrigou uma tarefa maior, uma tarefa de maior envergadura. Quer alguém ir comigo estes caminhos? Eu a ninguém aconselho a isso. Mas vós o quereis? Então eia, vamos pois!

Essa tarefa maior, essa tarefa de maior envergadura, a tarefa de sucumbir, de ir ao fundo, até aos abismos os mais profundos dos entes na sua totalidade, no zelo, na diligência da fidelidade, de não deixar de pé nada que não seja o límpido, o puro, o expedito salto da boa vontade da vontade do poder é o grande enigma de Nietzsche, de “Nietzsche e da crítica da razão ocidental”. A essência da Metafísica de Nietzsche, essência como do “Nietzsche e a crítica da razão ocidental”, portanto a essência da vontade do poder sucumbe no profundo silêncio da escuridão da Não-razão. Crepúsculo dos ídolos (Goetzen-Daemmerung, Sprueche und Pfeile 11), obra escrita por Nietzsche em 1888, terminada segundo o prefácio do livro “no dia em que o primeiro livro da eversão de todos os valores chegou ao fim”, diz: “Pode um jumento ser trágico? Que sucumba sob uma carga a qual não pode nem carregar, nem jogar fora?… O caso do filósofo”.

O que vale a verdade da vontade do poder como a verdade suprema no tempo de indigência da morte de Deus jamais poderemos saber de Nietzsche. No entanto, a própria Metafísica de Nietzsche, em percorrendo todos os momentos principais da sua constituição como o nihilismo europeu, a eversão de todos os valores, a vontade do poder e o eterno retorno do igual, na tentativa de divisar o fundo abissal do Destinar-se do Ocidente, portanto mesmo a própria metafísica de Nietzsche como crítica da razão ocidental, não é ela a própria busca apaixonada do Ocidente, do animal racional? Uma busca, através de todos os níveis dos abismos dos sofrimentos e das dores da terra dos Homens, através da aridez e secura da crescente desertificação da terra. Da terra, onde aos poucos nada mais resta a não ser a pura estruturação formal lógica, neutra e indiferente da objetivação calculada do autoasseguramento cibernético de não-se-sabe-o-quê. A busca apaixonada do radical-outro de nós mesmos que talvez não resida no além mundo da metafísica, mas sim, silencioso no fundo, bem no fundo, no pro-fundo da nossa razão vespertina do Ocidente, como escuridão e demência, como sofrimento e dor… como pura loucura? Ou… como a pura espera do inesperado… a espera de um “Deus-vindouro”, o puro início, o Ueber-Mensch: um não-homem, um aquém-homem, um homem-Deus, cuja “divindade” é aqui tão diferente, cuja alteridade tão outra que recebe o nome de “non-aliud” (Cusano), o mais próximo de nós mesmos, o mais íntimo de nós mesmos do que nós a nós mesmos?

No dia 3 de janeiro de 1889, em Turin, na Piazza Carlo Alberto, um cocheiro surrava brutalmente o seu cavalo. Em lágrimas e lamentos Nietzsche se lança ao pescoço do animal, abraça-o e desmaia. Iniciava a total escuridão da loucura. Num bilhete com o carimbo do correio de Turin, assinalando a data de 04.01.89, enviado ao seu amigo dinamarquês Georg Brandes que no ano de 1888 anunciou as primeiras preleções públicas sobre Nietzsche e seus pensamentos, escreveu Nietzsche:

Turin, 04.01.89.

Ao amigo Georg!

Depois que Tu me descobristes, não era nenhuma maestria me encontrar: a dificuldade é, agora, a de me perder…

O Crucificado.

Referências

BOUDOT, Pierre, L’ontologie de Nietzsche. Paris: Press Universitaires de France, 1971.

Teologia fundamental, Nietzsche e o cristianismo. Concilium 165-1981/5: Vozes, 1981.

FINK, Eugen, Nietzsches Philosophie. Stuttgart: W. Kohlhammer-Verlag,

FRENZEL, Ivo, Nietzsche. Rowohlt, 1966.

HEIDEGGER, Martin, Nietzsche (Vol. I e II). Neske 1961; in: Holzwege, Nietzsches Wort “Gott ist tot”, 193-247, Frankfurt, a.M.: Vittorio Klostermann, 1950; in: Vortraege und Aufsaetze, Wer ist Nietzsches Zarathustra, 101-126, Pfullingen, 1954.

JAPERS, Karl. Nietzsche. Tradução do original alemão “Einfuehrung in das Verstaendnis seines Philosophierens”. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1963.

 

II CAMELO, LEÃO E CRIANÇA

Na primeira parte do livro Assim falou Zaratustra, ao iniciar Os discursos de Zaratustra, Nietzsche fala de Três Transformações.

A seguir, sem a pretensão de atingir essencialmente o pensamento de Nietzsche, vamos tentar uma rápida interpretação do texto.

O texto

Eis, o que eu vos anuncio: três transformações do Espírito, como o Espírito se transformou em Camelo, o Camelo em Leão e o Leão, por fim, em Criança.

Há muitas coisas pesadas para o Espírito, para o Espírito forte, carregador, no qual habita a reverência: a sua força anela o que é de peso, sempre mais, o que é de máximo peso.

O que é pesado? assim perguntou o Espírito-Carregador, e se ajoelhou, qual um Camelo: ele quer que o carreguem bem.

O que é o mais pesado? ó vós heróis? assim pergunta o Espírito-Carregador: que eu o possa assumir e me regozijar do meu vigor!

O mais pesado?! não é isto? a saber: rebaixar-se para fazer padecer o seu orgulho? Deixar brilhar a sua insensatez para zombar da sua própria sabedoria? Ou será isto? a saber: separar-nos da nossa causa, justamente quando ela celebra a sua vitória? Escalar altas montanhas, para tentar o tentador? Ou é isto?: sustentar-se com bolotas e capim do conhecimento e no anelo à verdade sofrer a fome na alma? Ou é isto?: ser enfermo e despedir os consoladores, e travar amizade com os surdos, que jamais ouvem o que tu queres? Ou é isto?: imergir na água suja – se ela for a água da verdade – e não rejeitar de si as rãs frias e os quentes sapos? Ou é isto?: amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma, quando nos quer assustar?

Tudo isto, o mais pesado, toma sobre si o Espírito-Carregador, qual o Camelo que corre para o deserto. Assim se apressa para o seu deserto o Espírito forte, carregador.

Mas no mais solitário dos desertos acontece a segunda transformação: aqui, o Espírito se torna Leão. Liberdade quer ele para si arrebatar e no seu próprio deserto quer ser ele o Senhor. Aqui busca ele o seu último Senhor: inimigo deseja ser ao seu último Senhor e a seu último Deus; pela vitória quer ele lutar, disputar com o grande Dragão.

Qual é o grande Dragão, o qual o Espírito não mais suporta chamar de Senhor e Deus?

“Tu deves”, assim se chama o grande Dragão. Mas o Espírito do Leão diz: “Eu quero!”

“Tu deves” lhe atravessa o caminho, fulgurante em áureo esplendor, um animal escamoso! E em cada uma das suas escamas fulgura em ouro: “Tu deves”. Valores milenares brilham nessas escamas e assim fala o mais vigoroso de todos os dragões: “Todo o valor dos entes! – ei-lo, que brilha em mim. Todo o valor era já criado; e todo o valor criado – ei-lo, sou eu. Verdadeiramente, não mais deverá haver um “eu quero”. Assim fala o Dragão.

Meus irmãos! para que se faz mister o Leão no Espírito? Não basta o Animal de Carga que abdica e sabe reverenciar?

Criar novos valores – isto ainda não pode o Leão. Mas, criar para si a Liberdade para o novo criar – isto pode o poder do Leão.

Criar para si a Liberdade e um não Sagrado também ante o dever. Para isso, meus irmãos, se necessita de Leão.

Assumir-se o direito para novos valores – isto é a mais terrível das apropriações para um Espírito-Carregador e respeitoso. Verdadeiramente, isto lhe é uma rapina, o próprio de um animal rapace. Como o mais santo amou outrora o “Tu deves”. Agora deve encontrar ilusão e arbitrariedade até ainda no valor mais santo, para que arrebate do seu amor a Liberdade. Para essa rapina é necessário o Leão.

Mas dizei-me meus irmãos, o que pode ainda mais a Criança que esteja acima do poder do Leão? Por que deve o Leão rapace tornar-se ainda Criança?

A Criança é a inocência, é o esquecer, um novo início, um brincar, uma roda que rola a partir de si, um primeiro movimento originário, uma Santa Afirmação.

Sim, para o jogo da Criança, meus irmãos, é necessário um sagrado “Dizer-Sim”: a sua vontade quer, pois, o Espírito, o seu mundo conquista para si aquele que perdeu o mundo.

Três transformações do Espírito vos mencionei: como Espírito se tornou Camelo, o Camelo, Leão e o Leão por fim Criança (Nietzsche, 1960, p. 293-4; tradução do autor).

Interpretação

O que se segue são apenas sugestões como esboço de uma interpretação.

Logo à primeira leitura, nos saltam aos olhos alguns termos, como p. ex. Espírito, Camelo, Leão, Criança, transformação, forte, carregador, reverência, peso, vigor, assumir, liberdade, luta contra o Senhor e Deus, Dragão, Tu-deves, Eu-quero, criar, o Não Sagrado, rapina, arbitrariedade, valor, inocência, o novo início, brincar, jogo, roda, originário, afirmação.

Esses termos se agrupam em três constelações, tendo cada qual como o seu conceito-núcleo: Camelo, Leão, Criança. Temos assim os agrupamentos:

– Camelo: forte, vigor, carregador, assumir, peso, reverência;

– Leão: liberdade, luta contra o Senhor e Deus, inimigo, Eu-quero, criar, o Não Sagrado (Negação), rapina, arbitrariedade, Senhor, Deus, Tu-deves, valor;

– Criança: inocência, novo início, criação, brincar, jogo, roda, originário, afirmação.

Antes de examinar a significação unitária desses termos-núcleos, vamos fazer rapidamente a ausculta fenomenológica desses grupos conceituais.

A ausculta fenomenológica da intenção dos grupos conceptuais:

Camelo: animal resistente, capacitado ao deserto, animal terra-a-terra, tem o poder de agüentar-no-duro, animal de carga, suporta a falta de água no deserto. Deserto e falta de água significam a ausência da vida, do ser, do frescor, da vivacidade: a negatividade. Tem a fibra para carregar as realidades maciças, secas, vazias, pesadas. Enfrenta suportando, vence, deixando-se ocupar, assumindo a negatividade. O seu Não, a sua resistência é dizer conscientemente, calculadamente Sim, para “ver até onde se agüenta”.

A sua libertação é a encarnação, a determinação, o assumir, ser feito: fiat. Carregar como o Camelo não é sucumbir. O poder carregador tem a elasticidade, o vigor; não cai sob o peso, mas se torna “prenhe de peso”, substancioso. É a plenitude que é o regozijar-se de si mesmo como o peso: o homem de peso, o homem de caráter.

Uma força tranqüila, assentada em si. Passividade dinâmica, vigor interno: sua vitória é assimilar, aniquilar, assumindo, transformando.

Portanto: peso, negatividade, carga como “substância”, como o conteúdo da consistência interna da força. Camelo é o quilate da resistência. É nesse sentido que o Camelo suporta e enfrenta a tempestade do deserto, agachando-se, deixando-a vir sobre si.

Leão: é o rei dos animais. A sua realeza consiste em não tolerar ninguém que seja dominador acima ou ao lado dele. Uma intransigência absoluta pela supremacia, contestação radical contra tudo quanto limite a gratuidade autêntica do Eu-quero. O Leão luta para abrir caminhos, rasgar espaços para tornar-se o Senhor ab-soluto e único do deserto, luta para criar seu campo. É rapina em relação ao poder já existente. Pois, rouba do Senhor e Deus o poder, assume a autodeterminação absoluta de tudo o que é, de tudo o que faz. Não aceita, portanto, nenhuma imposição, nenhuma sobreveniência de fora. Todo o valor, toda a norma que não venham da autodeterminação criativa, do eu-quero são inimigos.

Leão é a autodeterminação pela negação da heterodeterminação. Como tal, não pode criar novos valores. Mas na sua contestação contra o Tu-deves, abre a possibilidade para novos valores, cria Liberdade para o novo criar.

Criança: o vigor da Criança é a pura autodeterminação positiva. É vigor pela pura e absoluta afirmação. Não há mais inimigos. Tudo é dela. Tudo parte dela, com facilidade. Não é portanto luta de libertação, mas jogo. A luta se tornou tão potente e intensiva que se transformou em jogo. É brincar. É um início absolutamente novo, sem predeterminação e pré-ocupação. É o transbordamento livre da força fontal. A dinâmica e o processo da fonte transbordante.

O jogo, o brincar não é, no entanto, uma brincadeira, nem uma veleidade idílica, mas sim, o dar-se todo no arriscar, no jogar tudo, colocar tudo numa cartada, no salto absoluto da generosidade, da “fé”.

Retomando o que acima insinuamos, vamos aprofundar a intencionalidade desses três agrupamentos, Camelo, Leão e Criança, à busca da unidade ontológica da experiência originária do texto. De que se trata afinal de contas? De transformações do Espírito.

Mas o que têm a ver as figuras Camelo, Leão e Criança com o Espírito? Trata-se de figuras? alegorias? símbolos? sinais? comparações?

Podem ser assim interpretadas. Nós, porém, as tomamos como estruturas. Estrutura é o que também chamamos de dimensão. A estrutura ou a dimensão é o campo significativo vital da unidade operativo-vivencial que se processa, que concresce em nós no interrelacionamento funcional de vários aspectos do fenômeno.

Camelo, Leão e Criança são três diferentes momentos de uma única realidade, chamada Espírito. Aqui Nietzsche nos diz concretamente como se estrutura o Espírito: o Espírito é essencialmente Camelo, Leão e Criança.

O Espírito é Camelo: a saber, a dinâmica passiva de aceitação, na qual se manifesta a viscosidade, a resistência, a flexibilidade, a fibra, o quilate do material que constitui o Espírito, denominado “carregador”. Camelo é a matéria do Espírito! Essa fibra é que faz o Espírito pesado, de peso, substancioso, pois, ele assume tudo como seu corpo, sua carne, seu osso. O Espírito é somente espírito, se encarnado. O Espírito é espírito, somente, se tem a capacidade de carregar. Esse pelo substancioso é como que o aumento receptivo de energia, a consistência da finitude. Aqui não é a crítica nem a libertação nem a luta, a forma adequada da dinâmica. A dinâmica aqui se manifesta na capacidade de assimilação, de adaptação, de afirmação da negatividade. Somente, quando o Espírito se torna prenhe nessa recepção carregadora, é que se processa a libertação da dinâmica no sentido da luta, que pode alguma coisa. Quando o Espírito, por assim dizer, assumiu tudo, então é que desencadeia, a partir dessa absorção, a transformação de todos os valores. O esvaziamento da força interna das normas e dos valores que vem de fora como imposição, é algo como o empalidecer do valor diante de um outro valor mais poderoso e profundo.

O Espírito assim carregado é capaz de reverência e respeito. Reverência no texto insinua aquela capacidade do homem que se sujeita, aceita, recebe ordens, sem se escravizar, sem se submeter, pois aceita, a partir de um poder e vigor interior que assimila em cheio o outro como igual, como o “outro que é o íntimo do meu íntimo”.

Exemplos do Espírito carregador temos p. ex. no método tradicional do Zen para a aceitação incondicional do mestre com reverência, a imitação perfeita, formalista, sem a iniciativa das novidades, um crescimento a partir da prenhez-reverência. Ou num escultor como Rodin, ou no artesanato medieval.

O Espírito carregador, o Camelo não conhece o conflito de dualismo: é monolítico. Poderíamos até dizer: o Camelo como Espírito de reverência não tem a liberdade de escolha entre duas ou mais possibilidades. Seu poder é um. Tudo é sua necessidade. A sua libertação está no vigor que vem da não-liberdade, da finitude.

O Espírito é Leão: a dinâmica de absorção que assume tudo é a afirmação radical do Tu-deves. É a aceitação livre do outro no carregar. A intensificação máxima do assumir reverente só pode superar-se, aperfeiçoar-se, opondo-se àquilo que constitui a essência do Camelo que é Tu-deves. A reverência só pode se libertar para uma reverência maior, tornando-se irreverente contra a supremacia da reverência Tu-deves. É pois a luta pelo maior, pela supremacia radical da autodeterminação.

A cristalização milenar da reverência Tu-deves são os valores, que assumiram e formaram o Ocidente. É o Dragão que se manifesta no Platonismo, na Metafísica, no Cristianismo, no Humanismo, Deus, Moral etc. A irreverência contra Tu-deves será pois a supremacia, a afirmação do homem. Mas é afirmação que quer mais reverência, maior afirmação. Essa afirmação que é a libertação é o ódio que jorra da intensidade suprema do amor de reverência. Suportando a dor da mais terrível das apropriações, impondo-se a si mesmo o dever de negar o que como o maior santo amou outrora, o Espírito deve soerguer todo o peso do passado, para arrebatar do seu amor a Liberdade, deve golpear o granito, forjado pelo valor milenar do Tu-deves, para lhe arrancar a faísca incendiária que purifique o criar para a novidade do Amor-Libertação.

O Espírito é Criança: somente quando o Espírito consegue afirmar-se na irreverência radical contra o que ele possui de supremo, contra o mais íntimo e sagrado, pode ele libertar-se para a pura energia da autodeterminação: a Nova Liberdade. E nessa Liberdade surge uma nova criatura: a Criança, que não tem mais o peso do Tu-deves, nem a re-ação do Eu-quero; a Criança que é a pura essência do Tu-deves e Eu-quero: o jogo, a espontaneidade, a Vida, o Amor redimido do espírito da vingança.

Aqui, na Criança, temos de novo a Unidade, desta vez, não como o monolítico do “caráter”, da reverência, mas sim como o frescor, como o vigor, como o alegre jogo de modulação da Vida em todas as coisas.

Camelo, Leão e Criança são modalidades ou variações do Espírito, modalidades um do outro, como concretizações. E nessa modificação, nessa transformação, está a essência do Espírito. Cada momento dessa transformação tem o seu peso, o seu núcleo, a sua profundidade: Camelo, Leão e Criança são, portanto, categoria fundamentais que simbolizam experiências originárias da Profundidade da Vida.

Esquematizando ao redor das categorias fundamentais à guisa de leques, outras categorias que dizem a mesma coisa, temos:

Camelo: = Peso: reverência, interioridade, caráter, firmeza, consistência, substância, compacto, tendência para o endurecimento, introversão.

Leão: = Expansão: irreverência-luta, desafio-ousadia, exterioridade, publicidade, grandiosidade, dinâmica-expansiva, espacial, supremacia, poder, tendência para a inflação-vazio, extroversão.

Criança: = Plenitude, meiguice-suavidade, naturalidade-espontaneidade, graça-charme, beleza, força como vida, fonte: superabundância da libertação da vida.

Vamos cristalizar o esquema acima traçado em algumas categorias “filosóficas” características:

Camelo: Peso, Caráter, Dever, Substância, Ser, Verdade.

Leão: Expansão, Liberdade, Vontade, Sujeito, Espírito, Idéia.

Criança: Plenitude, Graça, Amor, Vida, Sentido (Significação).

Um exame rápido das categorias nos mostra que na perspectiva histórica:

O Camelo é a estrutura da Idade-Média: Substância, Ser, Verdade.

O Leão é a estrutura da Idade-Moderna: Sujeito, Espírito, Idéia.

A Criança é a estrutura da Nossa-Época, o início da Era vindoura: Gratuidade, Vida, Sentido, Significação.

Nas três transformações do Espírito, se esboça um movimento de superação. Superação, porém, não como uma evolução linear que faz obsoleto o que passou, mas sim como o salto transformador da totalidade, através da radicalização e intensificação energética da totalidade.

No entanto, podemos dizer que a Vida – que tem na Criança a modalidade da Plenitude-Amor – está também presente no Leão, como a expansão da Libertação, e na dimensão do Camelo, como o vigor do Caráter-Reverência.

Camelo, Leão, Criança; Peso, Expansão, Plenitude; Caráter, Liberdade, Amor; Dever, Vontade, Graça; Ser, Espírito, Vida; Verdade, Idéia, Sentido… esses três, na unidade da implicação mútua como a Profundidade da Vida, esta seja talvez a unidade ontológica do texto de Nietzsche.

Referências

NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. In: Werke in drei Bände. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1960.

III ANIMAL E SUPER-HOMEM

Introdução

No Prólogo do Assim falou Zarathustra, n. 4, Zarathustra anuncia:

O Homem é uma corda, amarrada entre Animal e Super-Homem.

– Uma corda sobre um abismo. Um arriscante Para-Além, um arriscante A-Caminho, um arriscante Retrospectivo, um arriscante Estremecer e Parar.

O que é grande no Homem é isto, que ele é uma Ponte e não um Fim: o que pode ser amado no Homem é isto, que ele é uma Passagem e um Ocaso.

… Eu amo aquele, cuja alma é profunda também no ferimento, e que pode sucumbir numa pequena vivência: assim ele vai de bom grado sobre a ponte (Nietzsche, 1960, p. 281; tradução livre do autor).

A presente reflexão não pode nem pretende pensar o Grande Pensamento de Nietzsche. Deseja tão-somente fazer algumas considerações avulsas e diletantes acerca do citado discurso de Zarathustra.

1 Super-homem e superação

O termo “Super-Homem” conjura imediatamente um ser supra-humano. Algo como o produto selecionado da evolução, filho e representante de uma raça superior, dotado de excepcionais faculdades, poderoso e autônomo no seu agir, dominador do Universo: o Homem-Senhor.

É estranho que projetemos espontaneamente a figura do ser super-humano, diria, divino, todo-poderoso, onisciente e dominador, ao ouvirmos o nome Super-Homem.

Transformemos essa estranheza numa suspeita: Não é o Super-Homem uma das objectivações daquele vigor que impulsiona e sustenta a nossa transcendência? Super-Homem seria nesse caso a gestaltização do horizonte dentro e a partir do qual somos, agimos, pro-gredimos e pro-duzimos. Seria, pois, como que a imagem projectada do inter-esse dominante do Homem, a figura da sua “essência”.

Zarathustra, ao iniciar o seu discurso, diz: “Eu vos ensino o Super-Homem. O Homem é algo que deve ser superado” (Prólogo, n.3).

Zarathustra quer nos ensinar o Super-Homem. A expectativa é de ouvir algo sobre o Super-Homem. No anúncio de Zarathustra, no entanto, nada se fala do Super-Homem. Fala-se constantemente do Homem.

A tendência de imaginar o Super-Homem como ser supra-humano, já conhecido, desvia nossa atenção do Homem, fazendo-nos ao mesmo tempo surdos para ouvir o sentido que se oculta na preposição Super.

Admitamos a palavra “Super-Homem” literalmente.

Ela significa: para-além do Homem, isto é, aquele momento pertinente ao Homem que constitui a abertura de superação: o Homem é algo que deve ser superado.

Quem é o Homem que deve ser superado?

O Homem, cujo inter-esse dominante, cuja “essência” se ob-jectiva na figura do Super-Homem todo-poderoso!

Caracterizemos rapidamente a “essência” do Homem como o vigor pro-jectivo do – e pro-jectado no Super-Homem: Ela é o Poder de Dominação. Sujeitar todos os entes ao seu poder, manter e assegurar o seu império é o elã constitutivo do Homem. Esse élan se determina como o movimento expansionista que deve criar condições para a manutenção e o asseguramento do autodinamismo impulsionador.

O impulso se mantém  como o desencadeamento frenético de um devir que relativiza todos os entes como funções e articulações do Para-Além, numa busca centrifugal do Ab-soluto. Esse Absoluto no entanto é o Ideal do Autoasseguramento do Poder que constitui a própria imanência do Homem. Poder de Dominação e Dominação do Poder que para poder Ser ab-soluto se con-suma no Devir. E a transcendência do Para-Além como a busca do Fim é a in-sistência, o afundamento na própria imanência do Poder de Dominação: “Um arriscante Para-Além, um arriscante A-Caminho, um arriscante Retrospectivo, um arriscante Estremecer e Parar”.

Em que consiste a “essência” desse Poder? Não o sabemos. Pois, o nosso próprio saber como o saber ob-jectivo está sob a dominação do Poder, serve ao auto-asseguramento do Homem em função da verdade como da Certeza.

Certamente é a vigência dessa tendência que nos dita o significado do Super como Para-Além, fazendo nos olvidar que a superação, para ser verdadeiramente Para-Além, deve se dar no próprio seio do vigor da Dominação.

Com outras palavras, superar, ir além, não devem ser entendidos como prolongamento per-fectivo do Poder que constitui a “essência” do Homem.

Mas como é possível a superação? Ela não é possível no horizonte da Dominação, isto é, impossível, se entendermos a possibilidade como a consumação da potência ainda não atualizada. Ou melhor, ela se torna possível tão-somente, quando o horizonte do Poder esgotar a sua possibilidade e sucumbir, isto é, entrar no ocaso em sua totalidade.

A afirmação tem ares de uma crítica humanista que indigita os males do tempo e apela para o “desarmamento” do Poder a favor e um Mundo mais humano e melhor.

A reação que se insinua num tal apelo talvez desconheça a possibilidade do Ocaso. Ocaso não significa em primeiro lugar e necessariamente uma queda, um fim catastrofal ou definhamento.

Significa antes a in-sistência cada vez mais acentuada, a potencialização do Domínio, num crescente ritmo de auto-exacerbação. Essa escalação do Poder pode se manifestar como a Harmonia de uma organização tão perfeita e segura que continuamente se mantenha em equilíbrio e se assegure num maravilhoso mecanismo de auto-regluação.

Mas por que uma tal con-sumação do Poder se chama Ocaso?

2 O homem, a passagem

O ocaso é o pôr-do-sol. No nível da ingenuidade cotidiana podemos dizer: quando ô sol se põe, vem a treva. O sol traz o dia. A treva, a noite. Ou melhor: o dia traz o sol, a noite, a treva. Aqui o sol e a treva são, por assim dizer, “coisas” dentro dos seus respectivos horizontes, do dia e da noite.

A treva vem depois do pôr-do-sol. Uma coisa surge com o desaparecimento da outra. A passagem se processa daqui para lá. Uma ponte entre o aquém e o além.

Podemos dizer o mesmo em relação aos horizontes dia e noite? Onde está, como é a passagem do dia para a noite? Temos também aqui duas coisas chamadas margens, ligadas por uma ponte?

O nosso saber ob-jectivo não consegue captar a passagem a não ser fixando-a, isto é, assegurando-a como um ente entre dois entes. A passagem é uma coisa chamada ligação, entre duas coisas que constituem os extremos dessa ligação.

Na impossibilidade de compreender a passagem enquanto Passagem, tentemos apenas insinuar o modo de ser da Passagem, por meio de uma descrição tosca e imaginada do relacionamento dia-e-noite.

A noite não começa lá, onde o dia acaba. Não é possível traçar a linha divisória entre o fim do dia e o começo da noite. Em vez de linha temos uma zona de transição. Essa zona, porém, não é tanto uma faixa, à maneira de uma “linha” ampliada na sua largura. Antes, a zona indica o modo de ser que poderíamos chamar de mútua compenetração.

Essa mútua compenetração é algo como a escala de coincidência da presença e ausência da claridade numa tabela que mostra os graus de tonalidade da luz a partir do branco até o preto e vice-versa.

O cinzento e as diferentes intensidades do cinzento não são propriamente misturas do branco e preto. Não são também diferentes modalidades do branco e preto. O branco, cinzento e preto são antes diferentes “graus” da presença e ausência da claridade.

Numa linguagem pouco rigorosa podemos dizer: a claridade é o horizonte a partir do e no qual o branco, cinzento e preto recebem a tonalidade do seu vigor.

O horizonte da claridade, no entanto, não deve ser imaginado como o pano de fundo sobre o qual aparecem o branco, cinzento e preto. Ele é a intensidade ou melhor a profundidade tonal da claridade que vem à tona, conforme a permeabilidade do branco, cinzento e preto, dando-lhes a virtude da sua expressão, p. ex., numa obra de arte.

Nesse sentido, um branco pode ser vazio de profundidade da claridade, ao passo que um cinzento ou preto pode en-toar nitidamente a profundidade da claridade.

Aqui, a claridade não mais se “mede”  segundo a quantidade do branco ou preto, mas sim conforme a presença ou audiência do vigor e da ressonância da claridade, digamos, do tonus vital.

Se, em lugar de tonalidade visual, tomarmos o exemplo da tonalidade auditiva, temos o som e o silêncio. O silêncio pode ser interpretado como a estaca zero do som. Nesse caso, o silêncio é a privação do som, isto é, uma das  suas modalidades. O silêncio, no entanto, pode ser aquilo que o som con-tém, vela e revela como a presença do tonus, isto é, do vigor de ressonância. Aqui, o barulho da praça pública pode ter o mínimo de ressonância, ao passo que um insignificante estalido na noite silenciosa pode toar intensamente.

Aplicando o que acima insinuamos ao dia e à noite, podemos dizer: A passagem do dia para a noite não é um movimento que parte de um espaço chamado dia, avança, deixa-o para trás, para entrar num outro espaço chamado noite. Uma tal passagem não é nenhuma passagem, pois, entre o dia e a noite não vigora a diferença essencial: o dia é uma modalidade da noite, uma modalidade do dia. Como modalidades, dia e noite são, operam e pro-gridem, no fundo, dentro de um mesmo espaço, onde algo como oposição e comparação se tornam possíveis.

Mas, então, em que consiste a passagem? A passagem consiste em deixar-ser, libertar, em cada passo do dia e em cada passo da noite, a ambigüidade do vigor que mantém o dia e a noite, como a abertura, onde e a partir da qual o dia está presente na noite e a noite no dia como diferentes tonalidades da presença e ausência da claridade.

Mas isto não é mesma coisa que dizer: a claridade é o espaço, onde se dão o dia e a noite como duas modalidades de uma e mesma coisa? Não, se entendermos o espaço como o pano de fundo, como o fundamento ou como o horizonte comum. Sim, se conseguirmos ouvir no termo espaço a racha do abismo que faz saltar, não o dia e a noite, mas sim a totalidade do horizonte que constitui o espaço, onde o dia e a noite se tornam possíveis como modalidades desse mesmo espaço.

O abismo que faz saltar o horizonte é o tempo do salto, o in-stante da Decisão, um arriscante Estremecer e Parar, no qual se revela e se decide a medida e o modo de ser da presença e ausência da claridade em sua totalidade. Essa presença e ausência é o dom e a fatalidade do vigor e da luz, da fraqueza e da treva que fundam, determinam, alumiam e obscurecem o per-curso dos dias da Terra, isto é, da ex-sistência historial, enviando-a na aventureira errância do Poder e do Pro-gresso, à busca do além, num esquecimento sempre mais insistente da origem do seu próprio impulso.

A passagem é pois pôr-se na fenda do abismo, um ocaso, um sucumbimento que se abre como o desvelamento da totalidade já decidida, dominante da ex-sistência do Homem.

Esse desvelamento, no entanto, não se dá como o fim de uma possibilidade e o início esperançoso de um outro Mundo mais seguro e melhor, mas como a suspensão perigosa do ser-Homem em sua totalidade, na qual a totalidade em si perde o seu sentido, paira sobre o abismo da Decisão epocal, estremece e pára, numa espera silenciosa e na ausculta acolhedora do Dom de uma nova possibilidade, sobre cuja ambigüidade o Homem não tem nem Poder nem Segurança.

A Passagem, o Super, o Para-Além do Homem é esse silêncio, o nada acolhedor que, por assim dizer, se forma “atrás” do vigor de impulsão errante do Poder, como o vácuo de sucção.

Cada pro-gresso do impulso do Poder vela sob a segurança e a certeza dos seus passos um arriscante Para-Além, um arriscante A-Caminho, uma arriscante Retomada retrospectiva.

Ser na fenda do abismo como a suspensão-sensibilidade da ausculta recolhedora, como o e, como o entre, como a Passagem e o Ocaso é a essência do Super-Homem, o in-stante da Liberdade.

Esse abandono do Poder, esse acolhimento é a alma da vulnerabilidade. Vulnerabilidade, a vivência que não conhece a defesa e a segurança da mediação projectiva ou objetica, que é a disponibilidade da Liberdade como deixar-ser, um poder-ser-atingido, a ressonância da profundidade e totalidade que vibra e sucumbe até o âmago do seu ser à mais insignificante e-vocação do … Ser (?).

Somente assim, o Homem pode se tornar o elo de ligação entre Animal e Super-Homem.

3 Animal e super-homem

Por que Animal e Super-Homem?

A estranheza fala a partir do horizonte do Poder e do autoasseguramento.

Animal conota o Sentido, o Sensual, o Corpo, a Terra, em operação à Razão, ao Intelectual, ao Espírito, ao Céu.

A superação do Animal é o fim do Homem: o domínio moral dos instintos e das paixões, o controle das caóticas impressões inexatas e imprevistas à luz das idéias claras e distintas da Razão, a destilação do Homem animal para criar o Homem clarificado e espiritual – é o Ideal do Homem: o Super-Homem.

A busca do Poder do autoasseguramento julga e decide a sorte do Animal como aquilo que deve ser superado no impulso pro-gressivo da Evolução. Nesse julgamento fala o vigor da Dominação que rei-vindica o seu Poder e a sua Certeza sobre a ameaça da pujança animal, em função do seu pro-jecto. Ob-jectivo que determina a definição do homem como animal Racional, cuja culminância constitui o Super-Homem.

Assim, o Espírito do Poder como o Espírito de reivindicação vinga-se do Animal, reduzindo-o ao Bruto, Baixo, Perigoso, Sensual, à custa do Racional.

A palavra animal no original alemão do discurso de Zarathustra é Tier. Tier deriva da palavra germânica deuza. Esta provém do radical verbal indogermânico dheus, que significa: respirar, soprar. O Tier, o Anima diz portanto: o ser que respira, que tem o sopro da Vida. O sentido originário do animal é pois Vida.

O que é Vida não sabemos, pois a pergunta o que é?, ao ser formulada, já opera a partir e dentro da vigência da Dominação e do Asseguramento da “Vida” racional que constitui a interpretação da Vida como vida biológica, vida social, vida espiritual, vida do além, vida divina etc.

Tão-somente, no in-stante em que o Poder e a Dominação se libertarem do Espírito da Vingança, isto é, da Vindicação, e se abrirem para a re-ferência da Vida como o silêncio suspenso sobre o abismo – Ocaso e Passagem –, a essência do Homem como Animal se con-sumará, qual a morada recolhedora do sopro da Vida: poliforme e una, antiga e sempre nova, profunda na Dor, jubilosa no frescor da Nascividade, meiga e dura, leve a saltitante, terrível e fascinante na Surpresa, apaixonada e vulnerável na Autenticidade.

Esse Homem que no rigor da sua Sobriedade é todo Ouvido na ausculta gratuita ao Dom da Vida – ao Espírito que sopra onde quer – é a Inocência da Vida, o Habitante da Terra dos Homens na afirmação incondicional da Plenitude-Vida.

É o homem finito, Homem-Homem, o Super-Homem que segundo Heidegger será – mais pobre, mais simples, mais meigo e duro, mais sereno e dadivoso e mais lento em suas decisões e mais sóbrio na sua fala” (Heidegger, 19.., p.)

Conclusão

Assim, diz o último capítulo do livro Assim falou Zarathustra:

Mas de manhã, quando o sol nasceu, Zarathustra ouviu por cima de si o grito cortante da sua águia.

“Eia!” – gritou para cima – “assim me agrada e me convém. Meus animais estão acordados, pois eu estou acordado… Faltam-me, porém, os meus verdadeiros homens”… Mas eis que aconteceu: de repente se ouviu como o centro de uma multidão de aves que enxameavam e revoavam ao seu redor. – O farfalhar de tantas asas no entanto e o cerco ao redor da sua cabeça era tão grande que ele fechou os olhos. E em verdade, qual uma nuvem caiu sobre ele, qual uma nuvem de setas que se derrama sobre um novo inimigo. Mas, ei-la, aqui era uma nuvem do amor, e sobre um novo amigo.

“Que me sucedeu?”, pesou Zarathustra no seu coração admirado e lentamente deixou-se cair sobre a grande pedra que jazia à saída da sua caverna. Mas, enquanto ele com as mãos lutava para segurar em torno de si e por cima de si e por baixo de si e afastava as meigas aves, eis que lhe aconteceu algo ainda mais singular: a saber, ele agarrou, sem dar por isso, na farta e cálida madeixa; simultaneamente, porém, ressoou diante dele um rugido – um meigo prolongado rugido-leão.

“Vem o Sinal!”, falou Zarathustra e o seu coração se lhe transformou. E em verdade, quando se tornou lúcido diante dele, ali lhe jazia aos pés um poderoso animal fulvo e aconchegava a cabeça ao joelho de Zarathustra e não queria afastar-se dele, por amor, e se portava como um cão que reencontrou o seu antigo senhor. As pombas, porém, não eram com o seu amor menos diligentes do que o leão; e cada vez que uma pomba lhe deslizava sobre o focinho, o leão sacudia a sua juba e se maravilhava e punha-se a rir (Nietzsche, 1960, p. 559; tradução livre do autor).

Leão e Pomba, não mais Serpente e Pomba: “O César romano com a alma de Cristo” (Nietzsche, Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre), eis o Homem, o Super-Homem.

Referências

NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. In: Werke in drei Bände. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1960.

NIETZSCHE, F. Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre

HEIDEGGER, M. Die Frage nach dem Ding. Tübingen: Max Niemeyer, 1962.

KANT, I. Prefácio para fundamentos metafísicos iniciais da ciência da natureza.

HEIDEGGER, M. Was heisst Denken? Tübingen: Max Niemayer, 1961.

 

IV FENOMENOLOGIA DO CORPO

Situação como existência corporal
À guisa de uma fenomenologia da corporeidade

O presente esboço é uma pequena tentativa de reflexão. Por isso o título “à guisa de uma fenomenologia da corporeidade” é demasiadamente altissonante e comprometedor. Não se pretende apresentar uma descrição fenomenológica do corpo humano. Trata-se apenas de uma reflexão incompleta, tosca e certamente simplista, na tentativa de colocar uma questão.

1 Fenomenologia da corporeidade?

O ponto de interrogação desse subtítulo insinua um problema. Trata-se de uma fenomenologia sobre o corpo humano ou antes de uma fenomenologia a partir da corporeidade?

A compreensão usual pensa a fenomenologia como “fenomenologia sobre”: descrição de um objeto já existente, independente do sujeito conhecedor. Descrição minuciosa, objetiva, sob diferentes ângulos de vista, aproximação assintótica ao todo a partir de diversos aspectos da “coisa”.

Nessa pressuposição, o corpo é objeto da análise descritiva. Parte-se portanto da pré-compreensão de que o corpo é algo já constituído, ali presente na minha frente, do qual, isto é, sobre o qual posso ter informações objetivas.

O sujeito-agente, porém, dessa descrição somos nós em “carne e osso”. Ao descrever objetivamente o corpo, ao fazer fenomenologia sobre o corpo, operamos a partir do corpo que somos nós. O falar sobre supõe o falar a partir de.

A fenomenologia a partir da corporeidade, por conseguinte, não é a descrição de um objeto já constituído diante de mim. É antes algo como o autodesvelamento de uma experiência originária daquilo que somos como corpo. Antes de poder descrever objetivamente o corpo, somos corpo.

Certamente, posso conceber o poder descritivo e a descrição como capacidade e ato da substância homem, constituída de “alma” e “corpo”. A minha “alma” se debruça sobre o meu “corpo”, fá-lo objeto da sua análise, descreve-o por meio do ato descritivo. Mas esse meu corpo é no seu modo de aparecer tão objeto como o corpo do outro. Como objeto já está constituído. É o corpo sobre o qual se fala, não o corpo que somos, a partir do qual falamos, analisamos, descrevemos, vivemos. Portanto, os componentes “alma” e “corpo” da substância homem já são interpretações, objetivações de uma experiência originária daquilo que somos.

Com outras palavras, tanto o meu corpo como o corpo do outro considerados como objeto da minha descrição já estão dentro de uma previsão, surgem à luz de uma abertura primordial. Essa abertura primordial chama-se existência. Ex como a abertura. Sistência como constituição, objetivação, concreção a partir e dentro dessa abertura.

Deixando margem a diferenças de nuance, em vez de existência podemos também dizer: horizonte, dimensão, totalidade ou modo de ser.

Fazer aparecer as dimensões, a partir e dentro das quais se manifestam os entes como objetos nas suas respectivas tipicidades, é fazer fenomenologia. Pois fenômeno não é objeto, não é coisa, mas sim dimensão.

Também o corpo que somos como existência corporal não é objeto. Ele é fenômeno, dimensão. O mesmo se pode dizer da “alma” e do “espírito”. Portanto, alma, espírito, corpo não são conceitos indicativos de um objeto, mas sim categorias, isto é, índices de dimensões, de modos de ser totalizantes.

Nessa perspectiva, fazer a fenomenologia do corpo significa: descobrir o horizonte, o modo de ser fundamental e totalizante a partir e dentro do qual se constitui, se torna possível a experiência do corpo humano.

Para distinguir entre o corpo como a abertura primordial constituinte e o corpo como objeto constituído, vamos chamar a dimensão corpo de corporeidade.

Repetindo: a corporeidade não é objeto, não é coisa, mas sim horizonte.

Como horizonte, é uma totalidade. Totalidade que abrange tudo. Explica tudo, inclusive “alma” e “espírito” à luz do modo de ser próprio dela.

Sendo horizonte, não é possível descrever a corporeidade como uma coisa existente diante de mim, à maneira de um objeto constituído. Mas, sendo ela abertura originária que somos nós, vivemos e nos movemos nela. A corporeidade é a nossa ex-sistência. Como tal a única maneira de abordá-la é imergir na experiência e fazer com que a sua estrutura fundamental venha à tona através de uma pseudodescrição. Pseudodescrição, porque os traços descritivos são apenas insinuações que pro-vocam o leitor à auto-reflexão a partir da sua própria existência.

2 Ex-sistência como situação

A característica fundamental da corporeidade é ser-na-situação.

Na-situação é um modo de ser, um estilo todo próprio de ex-sistir. Em que consiste esse estilo todo próprio?

Vamos comparar a situação com um outro modo de ser, para caracterizar rapidamente o “próprio” da existência ser-na-situação. Para isso, um exemplo:

Digamos que sou dentista. Estou no consultório diante de uma pessoa, na qualidade de médico. A pessoa está diante de mim, na qualidade de paciente. O paciente surge diante de mim como ob-jecto do meu inter-esse clínico. Ao colocar-me dentro desse enfoque clínico eu me constituo como sujeito desse interesse e apareço diante do objeto-clínico como sujeito-clínico, isto é, como médico.

A correlação sujeito-objeto que constitui na ob-posição recíproca o mútuo desvelamento de dois momentos polares, dentro de um enfoque qualificado, portanto dentro de um objetivo bem determinado, é um modo de ser que podemos chamar de: objetividade.

A objetividade cria distância, no sentido de colocar o outro diante de mim e a mim diante do outro como funções opostas, médico-paciente, paciente-médico. Eu não me identifico com a dor de dente do outro. A dor de dente do outro na sua totalidade humana situacional é delimitada pelo enfoque clínico. Essa delimitação que é o aspecto sob o qual a dor de dente se me ad-presenta, cria a distância, o espaço entre mim e o paciente. Mas ao mesmo tempo cria o relacionamento específico próprio do enfoque, possibilitando uma aproximação dentro do âmbito do objetivo em questão.

Essa distância, esse espaço que em relação a uma pessoa se me manifesta como “eu médico diante desse paciente”, portanto como sujeito-objeto, é um caso entre tantos outros casos, é por assim dizer um exemplar que me revela a estrutura de todos os outros distanciamentos desse mesmo tipo. Ora, dissemos acima que o aspecto sob-o-qual do objetivo cria a distância. Isto significa: o aspecto sob-o-qual do objeto determina um âmbito, um espaço. um horizonte dentro do qual podem surgir e permanecer todos os entes, todos os ob-jectos enquanto se relacionam ao inter-esse do ob-jectivo.

Temos assim uma estrutura com o seguinte modelo espacial: um horizonte dentro do qual estão os entes, todos iguais, enquanto reduzidos ao aspecto imposto pelo horizonte.

Esse espaço, essa abertura é justamente o que constitui a essência de mim mesmo enquanto sujeito relacionado com os entes objetivos: é a minha ex-sistência ob-jectiva.

Como um espaço de possíveis entes, a existência objetiva é um campo de possibilidades, dentro do qual tenho à minha escolha uma infinidade de entes como casos. Cada caso é objetivação da possibilidade do âmbito aberto que sou eu mesmo. Cada caso é previsível a partir do enfoque objetivo, não havendo uma diferença qualitativa entre um caso e outro. Enquanto tal, a ex-sistência ob-jectiva tem um caráter universal, isto é, o âmbito aberto do enfoque ob-jectivo contém em potência todos os casos individuais possíveis. A existência objetiva enquanto pro-jecção do campo de possibilidade, em cujo âmbito os entes podem aparecer como objetos mas somente sob o aspecto delimitado pelo enfoque da projeção, é redutiva. Ela reduz os entes ao aspecto do seu enfoque, impõe portanto as condições do seu aparecimento. A sua experiência não tem o cunho receptivo, acolhedor, não deixa ser o ente como ente, antes dá a medida do ser ao ente, o pro-voca a entrar na perspectiva e na prospectiva do seu inter-esse. A experiência da existência objetiva é experimentação.

A estrutura da situação é outra.

Aqui não há o campo aberto e dentro dele os entes. Na situação o horizonte e o ente coincidem. Não se trata de espaço aberto, mas sim de sítio ocupado, cada vez singular.

Na situação não existe primeiro a situação como um âmbito de possibilidades, onde eu me acho, relacionando-me com os objetos que aparecem nele. Situado, eu sou a própria situação. Estou completamente dentro, por assim dizer impregnado, compenetrado pelo peso, pela dureza, pela substância da situação.

A dor de dente, p. ex., tem a estrutura da situação. No início uma leve pontada, ainda localizável como objeto “este dente que me dói”. A dor aumenta. Eu tento tomar distância da dor, objetivando-a dentro de um determinado enfoque: amanhã irei ao dentista, é uma dor curável, passageira; ou, essa dor tem um sentido positivo, pois devo me acostumar a suportar a dor etc. Num movimento de ob-jecção procuro portanto não me deixar ocupar pela dor, impondo-lhe um sentido a partir de um determinado enfoque. Mas a dor aumenta. Ocupa-me toda a cabeça. Todo o corpo. Rompe as barreiras dos campos de minhas objetivações. O corpo da dor aumenta, cresce, se infla, ocupando todo o universo. Não sou mais “eu-sujeito-que-tenho-a-dor”. A dor ela mesma se torna uma totalidade única, sou todo dor numa pregnância envolvente, escura, pungente. Temos assim a coincidência total da dor com o campo aberto da minha existência. A dor se torna a única possibilidade universal da minha existência como auto-identidade compacta.

Nesse modo de ser, a ex-sistência não é mais a abertura como o horizonte da possibilidade. É antes o corpo compacto prenhe, cada vez toda a realidade sem espaços abertos de possibilidades. A situação me atinge e me compenetra de tal maneira a existência, que não há mais o fora. Sou completamente dentro, interior a mim mesmo, um total envolvimento, sem fora: in-sistência.

A corporeidade como ser-na-situação é insistência.

A situação como a estrutura insistencial apresenta momentos que constituem a experiência básica do corpo humano. A seguir, vamos rapidamente examinar apenas um desses momentos.

3 Ser-na-situação como im-posição

Na estrutura da ex-sistência objectiva temos primeiro a pro-jecção do horizonte como pre-visão, à cuja luz se posiciona o ente como objeto. O objeto se constitui como exposição. A abertura do horizonte se experimenta como libertação do ente. Na situação, o total envolvimento sem fora, no qual o horizonte é o ente numa auto-identificação compacta, não se dá a abertura libertadora do ente num espaço.

Aqui temos uma ex-sistência que é insistência. A realidade não se posiciona à luz de uma abertura. Antes pelo contrário, ela se põe nela mesma como im-posição.

No livro Götzen-Dämmerung, Nietzsche nos dá uma figura que ilustra a estrutura da imposição insistencial: “Um burro, pode ele ser trágico? Sucumbir sob um peso, o qual não se consegue carregar nem lançá-lo fora?… O caso do filósofo”.

Imaginemos um peso, colado por assim dizer às minhas costas como peso de mim mesmo. Eu começo a sucumbir sob a carga. Ela me penetra, me faz insuportavelmente pesado. Quanto mais me debato contra ela, tanto mais aumenta a sua imposição. Quanto mais cresce a imposição, tanto mais me agito para me livrar dela, aumentando assim numa espécie de auto-indução o peso de mim mesmo. O peso por assim dizer cresce para dentro de si, se põe, se firma na introjecção, sucumbe, me faz afundar para dentro, constituindo desta forma a minha identidade num autoamarramento crescente e concêntrico.

A im-posição portanto é experimentada como peso, como carga, como anel de facticidade que cada vez mais me aperta na sua realidade. Talvez por isso sentimos o nosso corpo como uma prisão, como um encurralamento que me é imposto como dado factual, o qual devo assumir.

A “liberdade” nessa estrutura de imposição não é libertar-se do peso da facticidade, mas sim assumi-lo, carregá-lo, entrar nele e descobrir a partir de dentro um sentido que se constitui no processo de sucumbimento. Eu não dou o sentido ao fato situacional como sentido de minha projeção. Eu não delimito sob um certo enfoque a realidade a partir de mim. O sentido me é dado a partir do peso assumido, sofrido como minha história, meu destino, como esta realidade na sua total implicância situacional que me cerca de todos os lados. Nessa estrutura da in-sistência eu não “conheço” à luz do meu pro-jecto. Aqui eu experimento, ausculto o movimento de crescimento do peso situacional que me compenetra, eu obedeço ao, ando junto com o processo de concentração do auto-envolvimento, deixo ser, acolho o surgimento da realidade que não é mais o “eu-sujeito” do planejamento ob-jectivo, mas sim a concreção do meu mundo como “self”. O sentido da situação se abre como a luminosidade, como a transparência a partir do âmago do incorporamento insistencial.

É nesse sentido que usamos a expressão: tomar corpo. É nesse sentido que uma idéia, uma concepção artística, uma personalidade toma corpo. A partir dessa experiência situacional, a expressão originária do corpo é p. ex. a figura do velho pescador de Hemingway, o Moisés de Miguel Ângelo, portanto tipos, Gestalt, a cristalização do processo historial de toda uma vida, assumida como o ser-na-situação.

4 Ser-na situação como o processo de libertação insistencial

O modo de ex-sistir denominado ser-na-situação se apresenta como o processo de insistência. A estrutura totalizante impositiva que é a corporeidade, a partir da qual o corpo aparece como Gestalt da existência historial humana, não é um campo aberto horizontal de possibilidades, mas sim uma espécie de pregnância do processo de concreção insistencial. Esse movimento interno do ser-na-situação revela uma estrutura. A seguir, vamos tentar uma rápida exposição desse processo de concreção.

A situação como o anel de facticidade, que se aperta cada vez mais na concentração impositiva da sua realidade, tem uma abertura. Essa abertura no entanto não é extrovertida. Ela é antes um abrir-se para dentro como afundamento.

É esse afundamento que dá à Gestalt a transparência da profundidade. A figura do velho pescador é um corpo talhado na situação. O vento, o mar, as tempestades, a fome, a morte, triunfos e derrotas, alegrias e sofrimentos: todas essas situações formam os anéis inexoráveis da facticidade que o pressionam, o compenetram de todos os lados. A resistência e a luta que o pescador oferece ao cerco da situação o faz afundar cada vez mais na realidade situacional do seu destino. Quer se resigne, quer triunfe, quer sucumba na luta, está implacavelmente inserido, sim cravado na sua situação. Mas esse processo, que forja a estória da sua vida, vai aos poucos articulando as contradições e as vicissitudes, as durezas da sua situação numa totalidade compacta, coesa e coerente, fazendo surgir o corpo encarquilhado do velho pescador, qual cristalização do mistério do mar, transparente e luminosa na sua profundidade cósmica.

O que se processa nessa transformação, na qual a facticidade bruta da situação começa a se iluminar a partir do seu âmago insistencial?

O pescador, quer enfrente, quer suporte o mar, sempre sofre o mar como sua situação. O mar não é coisa dentro do seu enfoque ob-jectivo. O mar é a tempestade que lhe fustiga o corpo, o sal e o vento, a chuva e as ondas a que se expõe, é alimento, é fome, é morte, é saudade, é dor, amor e alegria do sol nascente, a angústia da noite, o mar é seu horizonte, sua situação. Encravado como uma ilha nessa situação, o pescador sente todo o universo na sua pele, no corpo de envolvimento total da sua vida. Nessa im-posição, o que existe é essa incorporação cósmica. Incorporada que lhe pesa como a facticidade implacável na sua opacidade. A luta de libertação travada pelo pescador contra a situação, na situação, não o liberta do mar. Antes pelo contrário o amarra cada vez mais ao mar, o introduz nele. Mas a cada passo dessa introdução, ao embater contra o mar, no confronto, o homem se torna cada vez mais pescador, isto é, concresce com o mar.

Nessa luta corpo a corpo com a facticidade da situação, o pescador arranca do mar o sentido da sua auto-identidade. O mar é o universo do envolvimento total chamado situação, o reservatório profundo, mas obscuro da identidade do pescador. A luta, o trabalho, o sofrimento, a alegria, as conquistas e derrotas, a vida e a morte do pescador, são os pontos de erupção, de libertação do sentido cósmico do mar que nasce para a transparência do sentido da vida, cristalizando-se na figura, no corpo do velho pescador.

Esse modo de ser incorporado chamamos: corporeidade.

5 Situação como existência corporal?

A pergunta é plenamente justificada. O que tem a ver essa exposição incompleta e primitiva com o corpo humano?

Mas em vez de responder à pergunta, vamos colocar uma questão.

Quando falamos do corpo humano, seja na filosofia, seja na teologia, seja também nas ciências, a partir de que ocular falamos nós?

O corpo como substância, o corpo biológico, o corpo sob o aspecto psicológico, o corpo como fenômeno social etc. etc.: a intencionalidade não se dirige antes ao corpo “físico”, olvidando que o corpo é corpo humano? Em todos os enfoques que lançamos sobre o corpo, existe a possibilidade de o corpo humano aparecer como fenômeno humano? Ou não operamos na objetivação redutiva, onde tudo pode ser explicado a partir de um enfoque determinado, mas devido à limitação do enfoque e principalmente devido ao modo de ser da abertura objectivante passamos ao longo de toda uma dimensão, onde o humano aparece como humano na sua primordial e ingênua nascividade?

Qual o modo de ser chamado existência objetiva?

Para compreender o corpo humano enquanto humano não será necessário abrir-se a uma dimensão do envolvimento total insistencial (aquém da estrutura sujeito-objeto), onde o corpo não é mais um ente entre outros entes, mas sim o modo de ser originário do homem da Terra?

Talvez a corporeidade como ser-na-situação não é outra coisa do que a Vida humana. Vida humana da qual o conceito objetivo de “alma”, “espírito” e “corpo” surgiram como abstrações limitativas, como modos deficientes da pujança-vida.

Essas perguntas, se tiveram alguma razão, então atingem também os conceitos que dizem respeito ao humano como p. ex. morte, imortalidade, tempo, eternidade.

Conclusão

Ao terminar, uma palavra de Nietzsche:

Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso, um guia sábio e desconhecido. Chama-se “eu mesmo” no teu corpo habita ele, ele é teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E quem é que sabe, para que necessita o teu corpo justamente da tua melhor sabedoria? (Nietzsche, 1960, p. 300-1; tradução livre do autor).

Referências

NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. In: Werke in drei Bände. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1960.

 

V  Fenomenologia e psicologia

  1. O título “Fenomenologia e psicologia” é uma questão

O título dessa exposição deveria ser propriamente Espiritualidade e psicologia. Pois o propósito do nosso encontro[2], do qual esta exposição é a inicial, quer exatamente examinar, embora de modo provisório, o relacionamento entre espiritualidade e psicologia. Por que então falar no início de tal encontro, de Fenomenologia?

No início, antes de toda e qualquer discussão sobre o relacionamento de duas coisas, costumamos primeiro definir o que seja cada uma delas, para somente então examinar o seu relacionamento. No nosso caso, seria, pois, tarefa inicial definir o que seja espiritualidade e psicologia. Por que essa troca da espiritualidade por fenomenologia?

Tomemos esse estranhamento acerca do título da nossa exposição como início de uma colocação da questão acerca do relacionamento entre espiritualidade e psicologia.

Em geral, a justaposição de dois termos, um ao lado do outro, ligado pela conjunção “e” demarca o modo de como expor e abordar o tema. Assim, no nosso encontro queremos saber de um lado o que é a espiritualidade e, de outro, o que é psicologia, e então ver o seu relacionamento. A tarefa, porém, não se resolve assim sem mais desse modo, quando se trata de realidade da possibilidade humana, cujo modo característico de ser implica numa totalidade cada vez própria que na Grande Tradição do Ocidente recebe o nome de espírito e psyché e muitas vezes até de razão.

Mas, aqui, não se trata talvez de implicar com espírito e psyché. Trata-se apenas e simplesmente de examinar o relacionamento entre duas ciências positivas diferentes, já constituídas, que abordam a existência humana e seus fenômenos sob dois ângulos de enfoques diferentes. E surgem de imediato, no entanto, perguntas como: ciência, em que sentido? Espiritualidade não é conjunto de experiências religiosas? É uma ciência realmente no sentido estrito? Não pertence ela mais a mundividências, a crenças, mais do que a ciências? E a psicologia? Pertence às ciências humanas? Ou às naturais? Em que consiste a cientificidade da psicologia, a logia, i. é, a lógica da psyché?; e de modo geral, em que consiste a cientificidade das ciências humanas? E as diferentes tendências e escolas da psicologia? Como elas se posicionam cada vez acerca dessas questões? Ou nem sequer consideram essas questões como problemas? E o que é afinal de contas a realidade chamada ciências e ciências modernas? De que se trata, quando nos constatamos vivendo, fomentando, sendo vividos e estimulados até a exacerbação por um empreendimento global, por uma instituição dominante e dominadora, chamada tecnologia-científica que banca a medida do ser de todas as coisas?

Todas essas interrogações que colocamos acerca do tema “Espiritualidade e psicologia” podemos também lançar sobre o tema “Fenomenologia e psicologia”.

Só que, apesar de os títulos na sua formulação parecerem semelhantes, gostaríamos de ouvir o título “Fenomenologia e psicologia” de modo bem diferente, como que nos dizendo bem outra coisa e de maneira diferente do que a modo de “Espiritualidade e psicologia”. Por isso, sob esse nosso título falemos apenas da fenomenologia, e isto não de modo usual, como que informando a modo de tomada de conhecimento geral sobre a fenomenologia[3], mas a partir de uma bem determinada questão, expressa no título “Fenomenologia e psicologia”. Com outras palavras: o estudioso da fenomenologia, quando escuta esse título, de imediato, se recorda de uma questão todo especial, surgida bem nos inícios da fenomenologia, questão essa que longe de estar resolvida, hoje até caiu no esquecimento como questão e aparece nas diversas disputas acadêmicas e, não raras vezes em intrigas acadêmico-políticas de escolas como as existentes entre as correntes filosóficas de orientação fenomenológica tradicional e assim chamada filosofia analítica da linguagem.

Tomemos, pois, essa questão bem determinada e especial como o fio condutor para dizer brevemente o que devemos ou podemos entender no nosso encontro por fenomenologia. E na medida em que nos acercamos da essência da fenomenologia, se tornará mais claro, ou melhor, menos estranho, por que em vez de falar da espiritualidade no encontro que quer examinar o relacionamento entre espiritualidade e psicologia, falamos da fenomenologia. Portanto, de que se trata? Em que consiste a questão sugerida e recordada no título “Fenomenologia e psicologia”?

Trata-se da fundamentação das ciências modernas e do papel exercido pela psicologia nos inícios da fenomenologia nesse problema da fundamentação, e ao mesmo tempo, trata-se da questão implícita nessa fundamentação das ciências, a saber, a questão da essência ou ser das ciências.

As ciências modernas, na sua acribia crítica, sempre de novo examinam e reexaminam sua própria fundamentação. O interesse e a preocupação para a necessidade de fundamentar e revisar as ciências, a partir dos seus posicionamentos básicos, começaram a se avivar intensamente no início do século XX, mobilizados pelo progresso da psicologia experimental. E na perspectiva desse interesse da refundação das ciências, o nome Psicologia não somente indicava essa inquietação pela busca da limpidez da cientificidade do ser científico, mas também uma autointerpretação da psicologia como a ciência primeira e última, i. é, como ciência básica, a meta-ciência que fundamenta todas as outras ciências, quer naturais quer humanas, no seu ser científico. Essa autointerpretação da psicologia como ciência fundamental de todas as ciências formou uma filosofia que recebeu na época o nome de psicologismo, que em breve começou a se des-almar, des-animando a alma para ser o bios da biologia, e des-vitalizar o bios para ser energia da ciência físico-matemática, recebendo sucessivamente o nome de biologismo e naturalismo ou fisicismo. Portanto, repetindo, o psicologismo é uma corrente filosófica que coloca a psicologia moderna experimental como ciência básica que fundamenta todas as outras ciências.

Fenomenologia surge, de início, como confronto com o psicologismo. De que se trata, em todos esses –ismos enumerados? Em que consiste o problema do psicologismo?

  1. O problema do psicologismo

De uma forma bastante simplificada e talvez até ingênua, podemos caracterizar o problema do psicologismo, mais ou menos da seguinte maneira: as ciências, sejam elas naturais ou humanas, são conjuntos sistemáticos de conhecimentos. Enquanto conhecimentos são atos de intelecção, juntamente ao lado dos atos de volição e de sentimento. Os atos na época também chamados de vivências são fenômenos psíquicos, i. é, fenômenos inerentes e provenientes da psique humana. Toda ciência tem o seu objeto próprio e o ato da intelecção que constitui o(s) conhecimento(s) desse mesmo objeto. Embora as ciências sejam diferentes entre si no seu objeto, todas elas têm de comum que são sistematização de conhecimentos, de produtos dos atos de intelecção. Sem referência à intelecção, ao ato do intelecto, que num sentido mais vago e geral também pode se chamar de atos psíquicos do sujeito-homem ou de atos da consciência, não haveria nenhuma ciência. P.ex., um objeto enquanto coisa ali simplesmente dada, que existe em si sem nenhuma referência ao sujeito humano ou à consciência humana, não teria nenhum sentido, pois algo em si, sem nenhuma referência ao homem já é uma referência. Ora, entre as ciências, existe uma que tem por objeto os atos psíquicos em geral e em particular: é a psicologia. Portanto, a psicologia tem por objeto os atos psíquicos, i. é, o elemento constitutivo do conhecimento, do saber humano, portanto das ciências. Assim, a psicologia, como ciência dos “fenômenos psíquicos” é a ciência primeira e básica que fundamenta todas as ciências.

No ano 1900 saiu publicado o I volume das Investigações lógicas de Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. O livrou causou um grande impacto no mundo acadêmico da época. Pois, ali, Husserl se confronta de um modo contundente com a tese do psicologismo. Mostra que p. ex. objetos-idéias como as estruturas matemáticas, lógicas etc. não podem ser reduzidos na sua objetividade a atos psíquicos da intelecção, os quais tem propriedade de serem atos passageiros, mutáveis, sujeitos à evolução psicossomática do ser humano. Se for assim que estruturas lógico-matemáticas como p. ex. 2+2=4 puderem ser reduzidas em última análise ao ato psíquico da sua intelecção, poderia no futuro acontecer que elas, pela mudança p. ex. do cérebro humano pela evolução, não mais fossem verdadeiras. A tese de que as estruturas lógico-matemáticas que regem os atos do pensar são na realidade momentos do próprio ato, e que por isso mesmo estão sujeitas às mutações biológicas constitui a posição fundamental da filosofia que agora não mais se chama psicologismo, mas sim biologismo. E dando mais um passo adiante, a tese de que as mesmas estruturas ideais estão sujeitas às leis das transmutações físicas puramente corporais materiais recebeu a qualificação de ser naturalistas, daí o naturalismo ou fisicista, daí o fisicismo. Assim, psicologismo, biologismo, naturalismo e fisicismo indicam uma mesma e única tendência, na qual se processa a redução de diferentes dimensões da realidade às estruturas psíquicas, destas às psicossomáticas, depois destas às biológicas, e por fim às físico-energéticas da física nuclear.

A reação de Husserl ao psicologismo no I volume das Investigações lógicas foi saudada com simpatia e entusiasmo pelos que na questão da verdade pertenciam ao realismo na teoria do conhecimento[4]. O I volume das Investigações lógicas parecia ter retomado a posição do realismo através da doutrina da intencionalidade. Em distinguindo claramente o conhecimento, entendido enquanto o conteúdo objetivo e o conhecimento enquanto o ato do conhecer e resgatando o aspecto objetivo da referência do conhecimento à realidade, existente em si, independente do ato de conhecer; a fenomenologia das Investigações lógicas, ao mesmo tempo que combatia o relativismo do psicologismo, mostrando-lhe a impossibilidade de identificar o conteúdo objetivo simplesmente com o ato fugaz e passageiro do ato de conhecer, parecia ter reintroduzido o conceito da intencionalidade da escolástica medieval no mundo acadêmico-filosófico, dominado pela teoria do conhecimento de cunho subjetivo-idealista. Essa recepção da fenomenologia, feita ao modo do realismo, fomentou a busca cada vez mais diferenciada na descoberta de diferentes tipos ou classes de objetos. Começou-se assim a distinguir objetos-coisas, objetos-valores, objetos-ideais, objetos-etiológicos, estéticos etc. e tudo isso em acentuando a “ocorrência” de todos esses tipos de objetos como “realidades” em si, cada qual a seu modo, entendendo-se a palavra realidade num sentido bem lato, não restrito ao modo de ser em si das coisas físico-corporais. Abre-se assim a possibilidade de uma fenomenologia “realista”, na qual se aprimora na descrição detalhada do objeto dado, sob diferentes ângulos. A fenomenologia que permaneceu nesse nível de colocação realista recebe muitas vezes o nome de fenomenologia descritiva[5].

Entrementes, na autocompreensão da fenomenologia de si mesma começou-se a perceber que essa maneira de entender a intencionalidade, não correspondia à grande descoberta de Husserl, a qual chamou de intencionalidade. Com a descoberta da intencionalidade, no sentido todo próprio de Husserl, a fenomenologia rompe com a camisa de força em que ela foi colocada na autointerpretação inicial, como sendo uma nova teoria de conhecimento. Com a descoberta da intencionalidade Husserl inaugura uma abordagem do conhecimento, não mais a partir da teoria do conhecimento, inteiramente dentro da bitola da definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus, mas a partir e dentro da questão do sentido do ser, a partir da “ontologia” toda própria e nova na indagação mais vasta e mais radical do ser do próprio ato, não mais entendido usualmente como referido ao sujeito, à consciência, ao intelecto, mas como o modo de ser sui generis: como intencionalidade.

  1. A intencionalidade

É sempre difícil entender e dizer adequadamente o que a fenomenologia convencionou chamar de intencionalidade, livre inteiramente da tendência realista da teoria do conhecimento[6]. Na tentativa de compreender a intencionalidade fenomenológica da melhor forma possível, mais condizente com ela, voltemos à obra de Franz Brentano, intitulada Psicologia sob o ponto de vista empírico[7], de onde Husserl intuiu a idéia da intencionalidade.

Na p. 115 da acima mencionada obra diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Uma afirmação banal em que, se não a captarmos com precisão, nada encontramos de novo, nada que denotasse uma descoberta importante, a não ser o óbvio de uma constatação, conhecido por todos, na teoria de conhecimento. Conforme essa compreensão óbvia, há de um lado a coisa em si, e de outro lado o sujeito humano com seus atos psíquicos, i. é, fenômenos psíquicos, de diversos tipos, como representação, juízo, volição, apreensão etc. Esses atos psíquicos se caracterizam como intenções, i. é, o ato de tender em direção a (in-tendere). Cada uma dessas in-tensões se dirige a, e tem na ponta da sua tendência um objeto, cada vez seu, para o qual está apontando. Assim compreendida, a intencionalidade não nos revela realmente de imediato, o que, digamos, corpo a corpo, em carne e osso, i. é, como a coisa ela mesma, experienciamos no nosso vivenciar. É que no modo usual de “descrever” a intencionalidade, não percebemos que todos os elementos que constituem o esquema sujeito-ato-objeto já estão prefixados como: duas substâncias-coisas ocorrentes e enfileiradas uma ao lado da outra, ligadas por uma relação, que por sua vez, não passa de uma representação vaga e sem conteúdo de ligação, i. é, de relação, como uma linha geométrica, reta entre dois pontos. Talvez é por isso que Brentano não diz: cada sujeito com o seu ato, mas sim, cada fenômeno psíquico.

Como entender, pois, a afirmação de Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”? O que Husserl intuiu nessas frases, não o podemos perceber, se continuarmos a interpretar a colocação de Brentano dentro do esquema usual da intencionalidade como “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele através do ato de conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.” Mas, por quê? Porque o indicado, o apontado pela frase “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele através do ato” não é vivência, mas sim produtos, i. é, resultados constituídos num processo de objetivação. Se somos assim que não percebemos tratar-se aqui de produtos de objetivação, e nos representarmos esses produtos simplesmente como entes reais em si, acontece então conosco o seguinte processo: primeiro isolamos os produtos da objetivação, separando-os do processo de objetivação, hipostatizando-os ora como coisas em si (substâncias), ora como ‘coisas’(acidentes) aderentes a outra coisa. A seguir tentamos ligar entre si essas coisas assim hipostatizadas, dizendo-nos mais ou menos “com os nossos botões”: aqui estou, eu, uma substância existente em e por si mesma, diante da qual está uma coisa chamada objeto, que é também uma substância em e por si mesma (ou se não o for realmente existente como coisa física, ao menos tida como algo em si a modo de coisa ideal, coisa psíquica, coisa estética, coisa-valor, coisa supra-sensível etc.), sobre a qual a substância-eu se dirige numa ação, i. é, numa ‘coisa’ chamada intencionar (conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.), que não é propriamente uma substância, mas algo que adere como seu acidente a uma substância. E se alguém nos chama atenção de que todas essas coisas (substâncias: res in se) e semi-coisas (acidentes: res in alio) são como que produtos da ação chamada objetivação, representamos a própria objetivação como acidente inerente a uma substância, chamada sujeito-homem, que por sua vez, através do acidente-ação, se dirige aos objetos, no nosso caso como p. ex. sujeito eu, o ato da intencionalidade, a saber, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc. E esse processo, cujo esquema é o do sujeito-ato-objeto pode se repetir indefinidamente[8].

Mas então, como entender a frase de Brentano, onde Husserl intuiu a essência da intencionalidade? Devemos entendê-la como acenando para vivência. Antes de percebermos a colocação de Brentano como indicativo da vivência, uma rápida observação sobre o título do livro de Brentano, onde Husserl leu a ‘definição’ do que seja propriamente intencionalidade. O título do livro de Brentano soa Psicologia do ponto de vista empírico. O título nos pode enganar se entendermos a palavra empírico na acepção usual hodierna do modo de ser experimental das ciências positivas do estilo das ciências naturais, físico-matemáticas. O empírico assim compreendido é o oposto do especulativo, do não-real, do fantasiado, apenas “fenomenal[9]. O empírico, aqui, deve ser tomado no sentido, o mais abrangente possível de captação imediata, simples, pele a pele – a tentação é de dizer –, anterior a toda e qualquer elaboração. Só que esse acréscimo desvia a compreensão do caráter empírico que Husserl reivindicava para a sua fenomenologia. Pois dizer anterior a toda e qualquer elaboração dá a entender que no início há o material informe, vago, indeterminado que depois toma forma e concreção; e que o empírico significa captar a realidade elementar ainda intacta[10], no seu estado material. Ao passo que o empírico na fenomenologia significa só e simplesmente o captar, ou melhor, o colher simples e imediato, sem mais nem menos que está expresso no slogan: à coisa ela mesma[11]. Isto significa que, se acaso houver, aqui apenas dado como suposto, esse processo de elaboração do material indeterminado, vago e informe para a gradual coisificação até o processo se consumar numa hipostatização, a modo de coisa ali presente em si, o captar simples e imediato acolhe cada etapa, cada ligação das etapas, cada crescimento das etapas, cada vez de novo, cada vez simples e imediatamente, sem mais sem menos, assim como tudo isso aparece sempre novo e de novo na sua totalidade. Trata-se da claridade e distinção do tornar-se da e-videnciação, algo como o contínuo e renovado abrir-se da claridade, i. é, da clarificação[12], um  surgir incessante, o vir à fala, o vir à luz. Essa claridade dinâmica da e-videnciação, da presenciação é o ponto de vista empírico. Aqui o ponto de vista não é um ponto fixo, a partir do qual se encaixem todas as coisas na perspectiva desse visual pressuposto, mas sim como que ponto nevrálgico, ponto de toque, o fundo do salto, dentro e a partir do qual continuamente brota o vigor elementar do e-videri, a clareira, o olho da luz que, enquanto condição da possibilidade, e enquanto espaço de jogo impregna todos os entes, i. é, cada ente, cada em sendo, cada vez na sua totalidade dinâmica[13]. Todo o segredo da compreensão adequada do que seja a intencionalidade fenomenológica está em compreender com precisão essa evidenciação, i. é, como é o puro ato chamado captar simples e imediato. Como já foi mencionado, para isso devemos fazer o processo de entender o modo de ser do conhecimento como vivência.

Como pois nos reconduzir à vivência, a partir da representação que fazemos da intencionalidade como relacionamento do sujeito sobre o objeto, através do ato chamado intencionalidade?

Repetindo, diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Brentano não diz: eu, o sujeito-homem, me dirijo ao objeto através do fenômeno psíquico, do ato. Diz simplesmente: Todo fenômeno psíquico. Em vez de fenômeno psíquico digamos vivência. Sem “definir” logo o que seja vivência, deixando vago de que se trata, ouçamos: “vivência” contém em si algo como objeto. Se a vivência se chama representação algo é representado; se juízo, ajuizado ou julgado (reconhecido ou rejeitado); se amor, amado etc. Usualmente no esquema sujeito-ato-objeto temos primeiro o objeto como coisa em si fora, diante, independente de nós, existente em si, ali presente na sua ocorrência, pronto para ser representado, julgado, amado, odiado, cobiçado. O objeto, a coisa em si é por assim dizer, enfocada várias vezes, de modos diferentes pelos atos subjetivos, i. é, do sujeito, denominados representar, julgar, amar, odiar, cobiçar. Na colocação de Brentano, o estado da coisa não é mais assim. Cada “fenômeno psíquico” é cada vez, por assim dizer um todo chamado representação, juízo, amor, ódio, cobiça que cada vez contém o seu objeto que tem cada vez o modo de ser que ele, o fenômeno psíquico, tem. É como o fundo, o horizonte, o âmbito aberto, que se estrutura como uma paisagem, no qual, contidas estão as coisas, ordenadas como mundo. As coisas da paisagem assim abertas em leques como mundo são impregnadas, são coloridas, segundo a matiz, segundo o modo de ser de cada uma dessas aberturas. Chamemos esse âmbito aberto como mundo a modo de uma paisagem, de intencionalidade. E ouçamos dentro dessa compreensão o que Brentano diz: “cada fenômeno psíquico contém algo como objeto em si”, visualizando o modo de ser da abertura da paisagem acima mencionada. Talvez assim, possamos adivinhar de alguma forma o que Husserl poderia ter intuído, ao ler esse trecho do texto de Brentano. Se assim é a intencionalidade, então não se trata do ato de um sujeito-homem dirigindo-se ao objeto, existente em si, fora dele. Mas para que a nossa compreensão tenha maior precisão, devemos agora completar a nossa descrição dizendo: o que denominamos acima como âmbito aberto a modo de uma paisagem que se abre em leques de ordenações de detalhes concretos da mesma paisagem como mundo não é algo que está diante de mim como uma paisagem da realidade fora de mim. Antes esse âmbito aberto com todos os seus “ingredientes” em mínimos detalhes de implicações e explicitações sou eu mesmo, eu mesmo não como esta substância-homem, mas sim como o âmbito aberto vivido na sua concretude, intensidade, no seu desvelamento e velamento, em todas as suas camadas dinâmicas de estruturações como totalidade do mundo, diante de “mim”, ao redor de “mim”, fora de “mim”, dentro de “mim”, enfim, essa totalidade, esse mundo que “me” envolve e envolve todas as coisas. Portanto, essa abertura, essa presença é a minha essência, eu sou todo inteiro, tout court, de imediato, esse ser-no-mundo, dito de outro modo: eu sou essa vivência. O que aqui denominamos de vivência coincide com o que acima, ao tentarmos dizer em que consiste o significado do ponto de vista empírico caracterizamos como captar simples e imediato.

A tentativa de dizer o que seja propriamente fenomenologia na nossa exposição se concentra apenas em compreender com precisão esse captar simples e imediato. Para isso, a seguir falaremos brevemente do que se convencionou chamar na fenomenologia de redução, ideação e constituição. Elas são três momentos da intencionalidade, ou melhor, são processos pelos quais e nos quais se dá a intencionalidade.

Antes, porém, de modo provisório e sempre interrogativo, repitamos o que seria Psicologia sob o ponto de vista empírico, se entendermos a empiria como foi insinuado há pouco. A alma (psyché) agora não seria mais aquela da acepção usual, na qual é um dos componentes do ser humano como substância: corpo, alma e espírito. Mas, então, seria a vida como vitalidade biológica no sentido ‘somático-vegeto-animal’? Ou Vida simplesmente na sua compreensão, a mais vasta, a mais profunda e dinâmica possível? Seria Ser, no seu sentido ainda originário como presença do abismo de possibilidade, como plenitude inefável e inesgotável do poder ser, sempre novo e renovado, sempre e cada vez mais origem, arché, ou melhor, hyparché, o nada, tinindo na potência da generosidade de ser?

Sem podermos nem querermos dizer o que é, deixemos abertas todas essas e outras perguntas, não como interrogações que tentam ter respostas que fecham, facilitam, satisfazem a busca, mas que a abrem e a mantem como questão, portanto como busca que se adentra cada vez mais cordial, generosa e crítica[14] na jovialidade atônita do não saber que se adensa como o tinir do silêncio de ausculta como a espera do inesperado… De repente, talvez, possamos vislumbrar num in-stante o que significa: captar simples, e-videri, ver simples da coisa ela mesma, a imediatez do sem mais nem menos. A concentração, a densidade da ausculta que integra essa abertura da espera do inesperado é um dos elementos que constitui o significado da palavra – logia (logoV) que expressa o caráter científico da Psicologia. Lógos (-logia) vem do verbo legein que significa usualmente falar, discursar, mas também no seu significado ‘radical’ arcaico, ajuntar, colher, recolher. Recolhermo-nos na atônita ausculta de um jovial não-saber, na total disposição da ausculta do inesperado, seja talvez  o significado, o mais interessante do “saber”, que recebe o nome de Psicologia. Se tivermos como pano de fundo tal compreensão da psicologia sob o ponto de vista empírico, podemos talvez melhor compreender o que Husserl dizia, em criticando a empiria dos filósofos ingleses (Locke, Hume), a saber, que o empírico e o experimental dos antigos positivistas ingleses ainda sofria de fixação e da bitola do dogmatismo filosófico, não superado; e que somente com a fenomenologia se alcançou a compreensão legítima e autêntica do que seria realmente o empírico e o experimental.

  1. Redução

Repetindo, o nosso objetivo é entender de que se trata, quando falamos de fenomenologia. Lembremo-nos do estranhamento que causou a troca do título do tema do nosso encontro nessa reflexão. O tema do nosso encontro é Espiritualidade e psicologia. O tema dessa nossa reflexão parece ser Fenomenologia e psicologia. No entanto, nessa exposição inicial falamos apenas da fenomenologia.  E porque falar da fenomenologia e não logo da espiritualidade, isso deveria começar a aparecer, na medida em que examinamos a intencionalidade como essência da fenomenologia. E em ‘definindo’ em que consiste, por sua vez, a essência da intencionalidade, dissemos que aqui se trata de um captar simples a coisa ela mesma de modo imediato na evidência. E advertimos que não é nada simples ver de que se trata, quando falamos de captar simples e imediato, i. é, na evidência. Para  vermos cada vez melhor e com maior precisão em que consiste esse captar simples e imediato na evidência, examinemos a intencionalidade enquanto redução, ideação e constituição.

Redução é ação de reduzir. Reduzir pode significar restringir, diminuir, mas também reconduzir. É o que mostra o latim reducere. Na fenomenologia redução significa reconduzir, propriamente, reconduzir à coisa ela mesma. Isso significa que nós estamos afastados, longe da coisa ela mesma?! O que é isso, do qual estamos longe, para o qual devemos ou queremos ser reconduzidos? A coisa ela mesma!? O que é na fenomenologia coisa ela mesma? Em vez de redução, usamos também expressões como pôr entre parênteses, suspender a crença na existência, voltar e permanecer na atitude do espectador sem pressuposições.

Alguns autores explicam o que é a redução fenomenológica, referindo-se às expressões acima mencionadas, como sendo “ação de neutralizar o posicionamento da realidade como existindo em e por si, fora do sujeito conhecedor, i. é, pôr entre parênteses; não ter nenhuma pressuposição prévia, apenas ver a coisa ela mesma. Hoje, teríamos a tentação de dizer: transformar a realidade real em realidade virtual. Percebe-se imediatamente que essa explicação expõe o que seja fenomenologia já partindo da posição de que na fenomenologia trata-se da teoria de conhecimento e de suas problemáticas, principalmente do problema do realismo e do idealismo. Assim, já representamos p. ex. o ato de ver uma floresta de quaresmeiras floridas, pondo incontáveis pressuposições, tais como “ver é um ato psicofísico”, “dentro de mim”, é “captar através dos nervos óticos os estímulos físico-ondulatórios provenientes de um organismo vegetal da espécie herbifólios etc. E a mais abrangente, tenaz e persistente pressuposição é a de que a coisa chamada quaresmeira florida está ali diante de mim, ocorrente em si, dada de antemão como realidade objetiva incontestável, independente da referência a mim. Segundo esses autores, redução fenomenológica seria descoisificar, sim, dessubstancializar as coisas assim dadas como se fossem coisa ela mesma, denunciando esses dados como não dados imediatamente, como não aparecendo, não vindo à luz eles neles mesmos[15] Esse processo de “desmaterialização” da “coisa hipostatizada” como esse bloco-cosa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da “realidade” em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regiões, sub-regiões, setores, áreas de conjunto de “coisas”, constituindo o aparecimento do mundo “objetivo” diante e ao redor de mim: temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez “dessubstancializado” se abre como todo um mundo de “realidades” sui generis próprias com seus variegados atos, noemas e egoidades: temos assim a paisagem denominada: noesis. Mas tanto a paisagem noema como a paisagem noesis são ainda de alguma forma colocadas como “realidades” “diante” ou “ao redor” de “quem” as percebe. Assim, de alguma forma, agora de modo menos “coisificado” e mais sutil se reitera o esquema do sujeito « objeto, postulando-se um sujeito, não mais empírico (sujeito do subjetivismo ingênuo), mas inteiramente descoisificado, como que pairando sobre todos os sujeitos, a modo de uma imensa área de possibilidade de surgimento de infindas paisagens noemáticas (mundo de noema) e noéticas (mundo de nóesis) que então recebe a denominação de subjetividade transcendental. Surge assim uma interpretação da fenomenologia que de alguma forma identifica a fenomenologia com o modo de ser do idealismo alemão, dando-lhe um cunho metafísico-transcendental. Nessa perspectiva redução significa descongelar todas as complexidades de “realidades” de diferentes tipos, de diferentes níveis de  composições que tendem a se endurecer como diferentes hipostatizações-coisa, em as reconduzindo às suas origens que as constituem a partir e dentro da dinâmica da subjetividade transcendental. A redução fenomenológica assim entendida, coloca, a modo metafísico, a subjetividade transcendental como grande pressuposição de toda a sua explicação, sem mostrar, sem nos fazer ver “de que se trata”, quando dizemos subjetividade transcendental. É que a subjetividade transcendental da fenomenologia não é propriamente nem subjetividade nem objetividade, nem transcendentalidade como nós as entendíamos na Filosofia, mas sim apenas, simplesmente, exclusivamente captar simples, imediato do e-videri. Trata-se de uma coisa” tão simples e imediata que se torna dificílimo dizer de que se trata, se não o captamos simplesmente. Tentemos, no entanto, dizer da melhor forma possível[16] esse captar simples, imediato do evideri.

E-videri é um ato humano. O ato de captar simples e imediato é o que somos. Por isso, o simples fato de sermos ato de captar simples e imediato e saber de que se trata no captar simples e imediato. Só que tudo isso, por ser absolutamente simples, deixa de ser simples para nós agora, pois representamos o “simples fato de ser ato e o ser do ato” como ocorrência de coisa, chamada fato, que implica numa coisa, chamada homem, que por sua vez faz uma coisa, chamada ver, e nesse ver capta uma coisa que se chama captar simples e imediato, o e-videri. Como, porém, esse simples fato de ser ato, representado como todo um entrelaçamento de diferentes coisas, está sendo captado por outro ver anterior, que por sua vez o capta simples e imediatamente, pensamos que podemos somente ver esse último captar, porque o representamos como uma coisa “diante” de mim. Assim pensamos que o ato de ver com todas as suas implicâncias, tanto do lado do sujeito do ato (noesis) como do lado do objeto do ato (noema), somente é percebido porque é colocado como objeto. Portanto, o ato como tal, no seu ser simplesmente ato de captar simples e imediato, se retrai, num processo de reduplicação dentro do esquema “sujeito – objeto” numa série infinita de reduplicações cada vez que o tentamos captar. Surge, pois, uma questão. Não é possível captar o próprio captar diretamente? A e-vidência, não é possível vê-la diretamente, simples e imediatamente? Repitamos a pergunta: A e-videncia, não é possível vê-la diretamente, simples e imediatamente? Percebamos o que dissemos! Dissemos: vê-la! Vê-la não é possível, pois, é poder da e-vidência  não precisar colocar-se diante de si como objeto, mas ela é evidência a partir de si e em si e por e para si. Portanto aqui na e-vidência, no captar direto, simples e imediato. Trata-se de da autopresença do espírito a si mesmo, da tautologia da coisa ela mesma, da Selbstgegebenheit[17], Como diz Husserl. O ser do ato, ou melhor, quando o Homem está no modo de ser do verbo[18], é ele mesmo. Com outras palavras, o Homem no seu ser, originária e propriamente, é ato; quando está impropriamente, é substância na acepção de coisa-bloco-em si. É o que a fenomenologia quer dizer, quando define o Homem como Da-sein, i. é, ser-aberto, Offen-sein. Esse ser-aberto, porém, não deve ser entendido como ser o Homem uma substância que tem a abertura, mas sim como: em sendo estância da abertura, i. é, existência, ou com maior precisão sistência do ex[19]. Portanto em sendo no ex o homem é. Dito com outras palavras, a essência do Homem está no seu ser-abertura ou ser-na abertura[20]. Assim apenas em sendo captar simples e imediato, se é captar simples e imediato; e-vidência. Essa abertura primordial, esse apriori da fenomenologia se chama das Offene, o Aberto, a Clareira. Perceber que em toda parte, a cada momento, a cada passo somos cada vez  ambiência, médium-abertura, liberdade da incandescência da evidência, se chama redução fenomenológica. Toda questão é ver tudo isso. Assim, parafraseando o título do livro de Brentano “Psychologie vom empirischen Standpunkt”, poderíamos dizer: redução fenomenológica é intencionalidade a partir de e fundada na estância, no médium da claridade ou clareira.

Apesar de ser chato, vamos insistir um tanto mais em precisar esse captar simples e imediato, o e-videri, o Da-sein que para a fenomenologia é o ser do Homem, a sua essência. As palavras usadas para caracterizá-lo são todas inadequadas, porque sempre de novo nos evoca representações “substancialistas”. Assim, p. ex., medium, ambiência, ser no etc.  nos fazem representar um espaço fixo, vazio, e mesmo que “dinamizemos” o espaço como “espaço de jogo”, de surgimento e aumento do ser etc., tudo isso é ainda representação da coisa, por mais movimentada, subtil e  desmaterializada que ela seja. Só que exatamente aqui é que reside o pivô da questão. A proibição de representar, de coisificar nos lança de volta a separarmos o ato do seu objeto, como se existisse o ato puro de um lado e juntamente com ele o ato impróprio de representar ou de coisificar etc. Tudo isso acontece, sempre de novo, porque tentamos entender o ato chamado captar simples e imediato, não tematicamente no seu apresentar-se ou na sua operação, no seu ser operativo, mas como que estando de e por fora do próprio em sendo. Com outras palavras, esse em sendo aparece ali aberto como mundo (Welt) em milhares de modulações e variedades cada vez como totalidades, que por sua vez se qualificam como sendo o surgir, crescer e consumar-se de um determinado sentido do ser como possibilidade de ser, em suas variegadas estruturações.

É de importância decisiva para a adequada  compreensão da intencionalidade e do seu momento-redução compreender com precisão em que consiste o que a fenomenologia chama de sentido do ser. Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Aqui na fenomenologia, sentido propriamente nada tem a ver com signo ou significação, tampouco com conceito, embora tenha muito a ver com o aceno. Sentido na acepção usual indica os cinco sentidos, que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, também à sensibilidade artística. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um a priori, para que se receba. Mas aqui não  se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre e depois atua, de algo que existe em si e então age. E também não é assim que então quem o recebe seja factualmente um algo que quer passiva, quer ativamente, acolha esse algo e sua atuação anterior. Aqui, tanto o anterior como o posterior, tanto a doação como a recepção são momentos de uma e mesma fluência, qual atinências, pertença ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente, i. é, nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo. A finura e disponibilidade cordial dessa recepção, a precisão da limpidez dessa recepção e o que vem à luz como mundo nessa sintonia do encontro, é o sentido do ser;  o captar simples e imediato é a finura e pureza dessa recepção que deixa ser o sentido do ser[21].

  1. Ideação

A sintonia do sentido do ser, cada vez no seu todo, em mil e mil estruturações, na implicação e explicação de entrelaçamento de paisagens, regiões, sub-regiões, áreas e campos e setores dos entes, é o que experimentamos como Vida, Ser, Realidade. E o Homem no seu ser próprio, é a limpidez da de-cisão da recepção e ausculta cada vez mais fiel e precisa das possibilidades do nascimento, crescimento e consumação das estruturações do(s) mundo(s). Assim estar nessaé o ser do Homem.  Por isso, a essência do Homem que antes foi definida como ato, intencionalidade, como captar simples e imediato ou como Da-sein, i. é, existência, é também denominada ser-no-mundo pela fenomenologia.

Se agora, ‘sentirmos’ atentamente essa recepção do sentido do ser, percebemos que há ali dois momentos que vem à luz como duas tendências de um e mesmo movimento. Uma tendência é a que acima chamamos de redução e sua limpidez. Essa tendência se adentra cada vez mais na ausculta da profundidade e da criatividade do abismo inesgotável e insondável das possibilidades do vier à fala do sentido do ser como mundo(s). E o faz na contínua vigilância crítica, na liquidificação de todo e qualquer preconceito, pré-julgamento e dogmatismo que possa instalar e estagnar o movimento da estruturação do(s) mundo(s). Mantém-se assim sempre de novo na limpidez, na claridade do aberto (das Offene) do abismo-nada da plenitude do sentido do ser, que se oculta como profundidade insondável[22] de ser. A outra tendência é o crescente desvelamento, o vir à luz das possibilidades do sentido do ser, cada vez como nascimento, crescimento e consumação do(s) mundos). Aqui começa a se dar, na dinâmica da Selbstgegebeneit, a abertura de diferentes paisagens, regiões, áreas, campos e setores do sentido do ser, que cada vez se estrutura como totalidade da possibilidade dos entes, ou na linguagem fenomenológica como ser do ente na totalidade. Isto significa que, no desvelamento que vem das profundezas do abismo da possibilidade do sentido do ser, emergem cada vez de novo e novos, toques do fundo do abismo-nada, lançando, rasgando horizontes de um determinado sentido possível do ser, como que vislumbres genéticos de um mundo em surgimento. Esse toque e lance de iluminação, esse vislumbre se diz em grego eidoV ou idea. É a partir e dentro desse vislumbre que se constelam mundos, cada qual na sua identidade e diferença, na sua estruturação ordenada, concreta e viva como que na fluência da potência do sentido abissal do ser. Manter-se na nitidez, clareza do vislumbre do iluminar-se do horizonte da constituição do mundo se chama então na fenomenologia de ideação[23].

  1. Constituição

Constituição é um momento da intencionlidade ou do captar simples e imediato. Nela tematizamos o momento de consumação, acabamento ou remate de todo o processo do vir à luz dos entes enquanto concreções do sentido do ser como mundos. Nessa estruturação concreta, i. é, concrescida do mundo como cada vez ente na sua totalidade, o ente vem à fala, toma corpo como isto e aquilo, mas não mais isolado, atomizado, separado um ao lado do outro como blocos substanciais, mas sim como consumação da finitude de cada mundo como possibilidade que veio a si na sua facticidade.

Facticidade é diferente da factualidade. Nesta, cada ente ali está como fato, como isto e/ou aquilo em si, qual bloco-coisa, sem desvelar nem ocultar a propriedade da sua possibilidade como uma bem determinada decisão do surgimento, crescimento e consumação de um determinado “possível”, i. é, do poder do sentido do ser. Assim, o ente na factualidade ocorre neutra e simplesmente na monótona igualdade de ser sob uma visão geral e panorâmica, sem deixar ser a intimidade oculta do seu destinar-se, como aventura e ventura do espanto na gênesis do mundo. Tal visual sofre da amnésia do sentido do ser, como quem se esqueceu da sua origem, da sua história, do seu destino, sim do seu ser. A redução desperta o ente dessa perdição no esquecimento do sentido do ser, liquidificando toda e qualquer fixação preestabelecida e o reconduz à sua gênesis, tornando-o em sendo concreção. E a ideação o faz se reencontrar e retornar à sua identidade, a partir e dentro do vislumbre, do nascimento de um determinado horizonte do sentido do ser. No movimento da redução e da ideação do processo de vir à fala do sentido do ser, o ente è desvelado como articulação viva e concreta de todo um mundo de percussão e repercussão do sentido do ser, que em cada ente, em cada em sendo, se torna presente como o abismo inesgotável do vigor sempre novo da sua possibilidade. O ente assim captado simples e imediatamente é  o próprio e-videri, cintilação, incandescência, percussão e repercussão do sentido do ser, que em sendo como tal na finitude da diferença da sua identidade, inclui sempre de novo na finitude de ser isto e/ou aquilo, na singularidade da decisão e liberdade de ser cada vez como seu destinar-se e historiar-se na fluência do envio da imensidão, profundidade e originariedade da possibilidade do abismo do ser. Tal historiar-se do lance do surgimento, crescimento e consumação do ente na sua totalidade como mundo é o que a fenomenologia chama de facticidade. A concreção consumada da facticidade como ente na sua totalidade se chama constituição. Essa facticidade é o in-stante da existência, a sua in-sistência, o em sendo prévio, o ser-homem: a intencionalidade, i. é, o captar simples e imediato.

  1. Fenomenologia e psicologia

A intencionalidade com os seus três momentos fundamentais redução-ideação-constituição como a tentamos esboçar de modo muito imperfeito sou eu, cada vez, enquanto existência. Esse “sou eu, cada vez” não significa a egoidade do sujeito-eu-indivíduo na sua autoafirmação aqui, agora, mas sim o modo de ser próprio do Homem, que a fenomenologia caracteriza como Da-sein. Trata-se, pois, do ser, da essência do Homem, que é a existencialidade. No entanto, a expressão “modo de ser próprio do Homem” na fenomenologia é sempre ambígüa. Pode indicar o modo de ser diferencial do Homem em comparação com o modo de ser dos entes não-humanos, como p. ex. de animal, de planta, de coisas inanimadas. Pode também significar “condição da possibilidade” para que o sentido do ser venha à luz enquanto identidade diferenciada e diferencial no modo de ser do Homem e dos entes não-humanos. O Homem enquanto existência seria então clareira do sentido do ser, na qual e através da qual, emerge o abismo do sentido do ser e se estrutura cada vez, todo um mundo de possibilidades, no tempo e no espaço, mundo da constituição histórico-epocal da Humanidade e das suas vicissitudes. Isto significa que tudo que sabemos, podemos, queremos, sentimos e fazemos, tudo que não sabemos, não podemos, não queremos, não sentimos e não fazemos; tudo que construímos e destruímos, tudo que não construímos e pretendemos construir como projeto e prolongamento de nós mesmos, está como que por um tênue fio referido a e sob a responsabilidade da limpidez e atinência do nosso captar simples e imediato, do nosso e-videri ao toque do sentido do ser, como ser-no-mundo.

Esse modo de ser do Homem como clareira do sentido do ser, como “condição da possibilidade” do(s) mundo(s), portanto a intencionalidade ou o captar simples e imediato, com tudo que ele implica como acima mencionamos, é o “saber” fundamental para todos os outros saberes, quer pertençam eles à dimensão pré-científica, pré-predicativa ou mesmo também à pré-fenomenológica. Tal saber recebeu na fenomenologia o nome de ontologia[24] fundamental por ser ele a investigação do ente no seu ser, que se adentra mais e mais na recepção e sondagem dos toques do sentido do ser que vem do abismo da possibilidade da Vida. Como tal é esse saber fundamental, i. é, do fundo que oferece às ciências a adequação do seu positum, dando-lhes as possibilidades da formação dos seus conceitos fundamentais e da sua revisão.

Hoje, a psicologia se refere a todo um imenso e complexo sistema do saber denominado ciências modernas, que se dividem em ciências naturais e ciências humanas.  A psicologia pertence ora às ciências naturais, ora às ciências humanas. Onde busca ela a razão da sua cientificidade, a razão da lógica do seu saber, a sua fundamentação?

No início da fenomenologia, a palavra Psicologia evocava a questão do Psicologismo. A Psicologia experimental e o Naturalismo, dali decorrente, na sua autointerpretação buscava tornar-se a ciência fundamental, a ciência primeira, a meta-ciência de todas as outras ciências. E hoje, como a Psicologia se interpreta a si mesma na sua cientificidade? O que outrora, a Psicologia na sua forma do Psicologismo pretendia, parece que a fenomenologia tenta buscar como ontologia fundamental. Há hoje, alguma afinidade, algum relacionamento entre Psicologia e Fenomenologia como ontologia fundamental? Se a Psicologia, p. ex., em relação à Espiritualidade cristã, segundo religiosos cristãos, tem algo ou até mesmo muito a dizer, em que sentido isso acontece e como se ligam a verdade da psicologia e da espiritualidade cristã? A fenomenologia, como de modo muito imperfeito aqui expusemos, tem algo a contribuir nessa questão do relacionamento da Psicologia e da Espiritualidade? Esses assuntos e outros mais são o que nos interessam, ainda de modo bem indeterminado nos nossos três dias de encontro.

Conclusão

Todas essas questões que nos confundem na nossa vida de busca talvez pertençam a um grande processo epocal de radicalização a que somos submetidos, para que o que chamamos com muita facilidade de espiritualidade cristã retorne à seriedade, à existencialidade de sua identidade, de tal modo que da diferença que incandesce nessa identidade haja um real confronto mais finito, concreto e exigente com Ciências e Filosofia, as quais usamos com frequência como se fossem apenas um instrumento a serviço da religião.

O que acontece com a nossa existência cristã, a que chamamos de vida de Fé, se Filosofia (Fenomenologia) e Ciências (Psicologia) não são apenas meios ou instrumentos neutros, mas sim existências todo próprias, também radicais na seriedade das suas questões? Mas, hoje, o são realmente?

 

VI O ver simples e imediato e a intencionalidade

Enquanto condições da possibilidade e enquanto espaço de jogo…

VII Generalização e mostração formal

VIII A lógica e a alma seca

IX Ciências, Filosofia e Teologia?

O interesse dessa reflexão está delimitado pela situação em que se acha um certo grupo de pessoas que por vocação e profissão estudam como encargo de sua formação: Ciências, Filosofia e Teologia cristã. Trata-se de um problema que surge dentro do ensino e dos estudos teológicos e seus prolegômenas para a formação dos sacerdotes católicos. O ensino e os estudos aqui possuem a estruturação da formação intelectual em três níveis de Ciências: de Ciências positivas, Filosofia e Teologia. Como se relacionam essas três ciências. Como o autor dessa reflexão é franciscano, quando aqui se fala desse assunto, é usada muitas vezes a expressão formação intelectual franciscana e se refere ao ensino e os estudos dos religiosos franciscanos, candidatos ao sacerdócio, acima mencionados.

A palavra Ciência aqui não está sendo usada no sentido unívoco. Tanto a Teologia como a Filosofia e as Ciências Positivas devem ter a sua maneira própria de entender a sua cientificidade. Por isso mesmo, se trata de três níveis de Ciências, diferentes, que entram em jogo na nossa formação intelectual. É de importância muito grande, de alguma forma, tentar ver o modo de ser de cada nível de Ciências e sua relação mútua.

Só que esse assunto é, em primeiro lugar, muito controvertido. Pois, são tantas as posições diferentes na definição do que seja a essência da Teologia, da Filosofia e das Ciências Positivas, que dificilmente se chega a um consenso. Em segundo lugar, a busca pela essência da Ciência é uma questão aberta, dificílima de se abordar e se orientar na direção de clareza e unanimidade de colocação. E, no entanto, apesar dessas dificuldades, é necessário, ao menos de forma provisória e muito imperfeita, refletir acerca desse assunto. Em todo caso, não podemos simplesmente permanecer na ingenuidade irresponsável de acreditar que, ajuntando os três níveis de ciências, uma ao lado da outra, damos uma formação sistemática aos estudantes.

  1. Ciência e ciências

Os documentos eclesiásticos, ao referir-se à formação intelectual do clero, tanto no seu modo de falar, como no uso explícito da palavra Ciência, mostram claramente que entendem tanto a Teologia como a Filosofia como Ciência. Deixando por ora de lado o questionamento sobre o que se deve entender aqui por Ciência, é importante atender bem esse modo de falar, pois ele nos indica a direção para a qual devemos orientar a nossa reflexão. E nos convida a pormos de lado uma compreensão usual ingênua do relacionamento entre a Teologia e Filosofia (e Ciências Positivas).

Usualmente, consideramos a Teologia como uma mundividência que vem da . E a Filosofia também como mundividência que vem da razão. Como “sabemos” que tanto a ordem sobre-natural como a natural vem de Deus, portanto, tanto a Fé como a Razão vem de um e mesmo Criador, não temos nenhum problema, em dizer que a Teologia e a Filosofia (e Ciências Positivas) se completam mutuamente.

Essa maneira de empostar o relacionamento Teologia e Filosofia, hoje, encontra uma resistência muito grande da parte da consciência crítica científica moderna, que vê numa tal explicação um círculo vicioso. É que, essa maneira de raciocinar o relacionamento entre a Fé e Razão já é um produto da maneira de pensar da crença em um Deus Criador, portanto de uma crença teológica. E se se objetar que não se trata de crença, mas sim de um conhecimento demonstrável pela razão, através dos argumentos da disciplina filosófica chamada na filosofia de Teodicéia, a consciência moderna científica de hoje logo responderá que essa Filosofia é na realidade uma “Filosofia” (leia-se Mundividência) Cristã, portanto uma parte da Teologia. E se insistirmos que se trata de um conhecimento real, objetivo, racional, a Consciência moderna nos vai perguntar, que conhecimento real, objetivo e racional é esse que só é tido como conhecimento certo pelos que de alguma forma crêem numa religião, e que fé é essa que no fundo necessita da Razão para confirmar a sua crença? E se insistirmos ainda, dizendo que a Razão e a Fé não se contradizem, mas uma supre a outra, ou se complementam mutuamente, a consciência científica hoje vai nos dizer que a nossa fala é muito ambígua, uma vez entende-se a Razão de um jeito, outra vez de outro jeito, e a própria compreensão da Fé não está clara, e principalmente, que a nossa compreensão da Ciência está inteiramente alienada da compreensão hodierna da ciência.

E, realmente, aqui reina uma confusão entre nós. Independentemente de quem tem razão, se a nossa concepção usual ou a consciência moderna, no nosso modo usual e para nós tão óbvio de explicar o relacionamento Teologia e Filosofia (e Ciências Positivas), entram em jogo vários níveis de colocações, dos quais não nos damos conta. Tentemos enumerar algumas dessas colocações:

  1. a) Filosofia como Filosofia perene, i.é, um conjunto de doutrinas, que são objetivas, perenemente verdadeiras, sobre Deus, Homem e Universo, que podem ser alcançadas pela razão natural, e que estão depositadas como doutrinas filosóficas na assim chamada Filosofia Cristã e que constituem o Prolegomena à Teologia Cristã Católica: Filosofia Cristã como Ciência Racional.
  2. b) Filosofias que não pertencem à Filosofia Cristã, p. ex., as Filosofias modernas, contemporâneas, antigas-pagãs, como doutrinas não ou menos verdadeiras, como opiniões não objetivas, i.é, subjetivas, não perenes, i.é, relativas, históricas, com outras palavras: Filosofias não-cristãs como mundividências.
  3. c) Ciências Positivas como conjunto de conhecimentos certos do tipo da Filosofia Perene, objetivos, verdadeiros, não subjetivo-relativos, embora num estado imperfeito e em referência a objetos de níveis diferentes aos da Filosofia Perene, portanto: Ciências Positivas como Ciência Racional.
  4. d) Teologia como um conjunto de doutrinas, que são objetivas, perenemente verdadeiras, sobre Deus, e a partir Dele, sobre o Homem e o Mundo, mas num nível de realidade sobre-natural, não mais alcançáveis pela razão natural, mas somente pela Fé-Revelação. A Fé como a possibilidade de compreensão, que ultrapassa toda a possibilidade da Razão, portanto a Fé como uma Razão elevada ao nível sobre-natural: portanto Teologia como Ciência Sobre-racional.
  5. e) A Fé como experiência pessoal, vivencial, convicção, atitude de Vida: portanto a Fé como mundividência.

Essas colocações, aqui expostas de forma simplificada e semi-caricatural, parecem não ser mais a nossa posição. Pois tudo isso parece ter sido tirado de um manual de Teologia tradicionalista, antes do Vaticano II. No entanto, seria interessante examinar se nas colocações fundamentais, fora os detalhes e as nuances, pensamos hoje diferentemente, quando p. ex. montamos um programa de formação intelectual para o clero.

Nessas colocações, é interessante observar que tanto a Teologia como a Filosofia Perene Cristã e Ciências Positivas são entendidas como doutrinas objetivas, perenes e verdadeiras do tipo Ciência racional, embora de níveis e dimensões diferentes, ao passo que as demais filosofias, e também as outras religiões, são tidas como mundividências. E a Fé, enquanto convicção, vivência e atitude de Vida, também de alguma forma é tida como mundividência.

Aqui parece haver um entrecruzamento de duas concepções completamente diferentes:

  1. a) De um lado, uma concepção do Saber e da Razão como possibilidade essencial dada ao Homem por Deus, em cujo exercício adequado, o Homem pode e deve adquirir conhecimentos certos, objetivos e verdadeiros acerca da realidade, até alcançar o limite da sua possibilidade, e então através da Fé é levado a adquirir conhecimentos certos, verdadeiros acerca da realidade, cujo conhecimento ultrapassa toda e qualquer possibilidade humana. Esses diferentes níveis de conhecimento certo, objetivo, verdadeiro e essencial aparecem gradualmente como Ciências, Filosofia e Teologia, formando um edifício hierarquizado do saber racional, i.é, verdadeiro, essencial, substancial, que obriga sempre, a todos, em todos os tempos. Nesse modo de conceber a Teologia, a Filosofia e as Ciências como um grande sistema hierárquico de saber racional e sobre-racional, onde o sobre-racional é o ponto de referência, o móvel, o princípio coordenador de todo o sistema do saber, podemos talvez vislumbrar, ainda que de uma forma um tanto defasada, uma idéia grandiosa de Mathesis Universalis teológica, síntese tentada pelos melhores espíritos da clássica Teologia Escolástica Medieval. Trata-se pois de uma concepção teológica do Universo, Homem e Divindade, i.é da totalidade do ser.

Hoje, esta concepção é tida como tradicionalista, como o resto da Teologia Medieval. Certamente, na sua formulação e em diversas precompreensões operantes nessa síntese, ela é medieval e tradicionalista. No entanto, o que chamamos de tradicionalista, hoje, não coincide com o medieval nem com a Escolástica Medieval. A teologia tradicionalista é uma defasagem e equívoco moderno da interpretação mal feita da Escolástica Medieval. Nessa teologia tradicionalista, usando-se os mesmos termos usados na Escolástica Medieval, estão contrabandeadas inúmeras pressuposições da Filosofia Moderna, sem no entanto manter o grau de rigor do questionamento que ela possui, e sem conseguir captar a riqueza e a vitalidade do ser da Idade Média, transformando o ingente e profundo empenho medieval de busca especulativa da Verdade, numa espécie de doutrinas ideologizadas, que nem são antigas nem modernas.

Por isso, na nossa formação intelectual franciscana, na qual estudamos intensamente os nossos autores clássicos franciscanos medievais, quer na Filosofia quer na Teologia, seria muito importante nos desvencilharmos do envolvimento com a interpretação travestida tradicionalista acerca desses grandes autores clássicos, para que possamos vislumbrar uma idéia de Mathesis Universalis teológica de uma envergadura e profundidade, talvez, ainda muito mal conhecida. E se fizermos adequadamente e com competência esse trabalho, talvez surja em nós uma pergunta: será que nessa síntese teológica, tentada pelos grandes pensadores místicos medievais, como um saber universal perene, cuja consecução permaneceu imperfeita, defasada, e fragmentária e da qual hoje temos apenas um eco longínquo, cheio de interferências de nossas interpretações equivocadas, não estaria oculta uma idéia de como deve ser a Ciência da Fé, na sua Encarnação, que penetra todas as camadas do ser, desde a Divindade até o minúsculo pó do excremento da terra, envolvendo cada ente na Bondade difusiva do Amor Divino? E talvez uma tal concepção e um tal programa do Saber Universal não sejam mais nem medievais, nem modernos, nem antigos, não sejam nem europeus, africanos, asiáticos, nem sul-americanos, nem progressistas, nem tradicionalistas, nem “teológicos” nem “filosóficos”, nem científicos, nem simples, mas simples e concretamente Saber Intelectual Universal do Espírito Cristão?

  1. b) De outro lado, porém, juntamente com essa concepção teológica, acima mencionada, mas que é interpretada no nível de uma teologia manualística tradicionalista, temos, dentro dessa mesma teologia tradicionalista, a concepção de que as Filosofias que não pertencem a essa síntese teológica, ou que não se entendem como um momento desse sistema, não são ciências, mas sim apenas mundividências. E juntamente com tudo isso, se considera, dentro dessa mesma concepção tradicionalista, a Fé também como atitude pessoal, convicção religiosa etc. etc., i.é, também como mundividência.

Com outras palavras, examinando o a) e o b) podemos concluir, que aqui, na maneira como operamos a nossa formação intelectual nos nossos programas de ensino Teologia-Filosofia-Ciências Positivas, está atuando uma pressuposição de que, tanto as Filosofias (i.é, Filosofia) como Teologia (como síntese teológico do estilo Escolástico Medieval) são mundividências, e somente as Ciências Positivas são Ciência. E ao lado dessa pressuposição, outra, que é mencionada no a) de que somente a grande síntese teológica é a Ciência como tal.

A nossa confusão usual consiste em não percebermos que estamos operando em duas concepções do saber, do racional, i.é, da Ciência, inteiramente distintas. Por não as percebermos, não pensamos muito, ao falarmos da Ciência. Assim, estando dentro de duas concepções, em operando nelas, não assumimos tematicamente nem o a), pois dizemos que é uma ideologia tradicionalista do passado, nem b), pois o consideramos como decadência do relativismo historicista moderno, ao passo que, ao mesmo tempo, achamos que o b) é o moderno atualizado, e o a) o que todos devem aceitar como o fundamento da identidade cristã.

Por isso, quando examinamos os documentos eclesiásticos, que falam na e a partir da concepção a), os achamos um tanto ou bastante tradicionalistas. E, no entanto, como já foi rapidamente mencionado acima, atrás dessa impressão, que aliás pode não ser somente impressão, pode estar escondida e pulsando uma autocompreensão interessantíssima e grandiosa de como deve ser uma formação intelectual para quem a Fé de/em Jesus Cristo e seu Evangelho é tudo, o princípio, o meio e o fim da sua existência.

Deixando para mais tarde os detalhes desse assunto, aqui somente assinalemos que a compreensão de Ciência que está nesses documentos, tanto em referência à Filosofia como em referência às Ciências Positivas, já está subsumida, unificada e coordenada a partir da Teologia e da autocompreensão da Teologia. Mas nessa autocompreensão, a pressuposição que se tem da Ciência, seja como for o conteúdo, não coincide com a compreensão que nós hoje temos da Ciência, a partir das Ciências Positivas. Mas isto não significa que essa autocompreensão da teologia acima mencionada como a) se compreenda como mundividência, portanto que pertença ao outro extremo do binômio ciência-mundividência.

De tudo isso, podemos tirar a seguinte conclusão:

Na nossa formação intelectual, como ela é exigida nos documentos eclesiásticos, o estudo da Teologia (subsumindo Filosofia e algumas Ciências Positivas) não é um estudo, dentro e a partir da mundividência. É antes um estudo da Ciência sui generis. Mas não de uma Ciência no sentido simplesmente moderno da Ciência.

Assim, surge um grande problema e uma dificuldade incômoda para o planejamento da ratio studiorum. Pois se se exige um estudo dentro e a partir de um sistema grandioso da Teologia, como acima foi mencionado no a), cuja pressuposição na compreensão da Ciência é toda própria, e no entanto, se ao mesmo tempo, os mesmos documentos eclesiásticos que isto exigem, querem que o estudo da Filosofia e das Ciências, dentro desse sistema teológico, seja feito sem camuflar nem apagar as diferenças do ser e do método dessas Ciências, como se colocar com honestidade intelectual e científica diante das exigências da cientificidade, tanto da Teologia como da Filosofia e das Ciências Positivas? Mas para de alguma forma encaminhar uma resposta a essa dificuldade, devemos examinar melhor como se deve entender as Ciências e a Filosofia, a partir delas mesmas, hoje, e não já a partir da Teologia.

  1. Estudo e doutrinação

Nessa compreensão do que seja Ciência, devemos distinguir nitidamente entre o estudo e a doutrinação. Dessa distinção é que depende, se a nossa formação intelectual é realmente intelectual ou é apenas doutrinal. E uma pessoa pode ter absolvido um curso acadêmico universitário especializado brilhantemente, e, no entanto, permanecer no nível doutrinário, e nunca atingir o nível do estudo intelectual. Aqui, usamos a palavra doutrina, doutrinal no sentido usual, e não no sentido originário da doctrina como é de uso na Teologia e na Espiritualidade, quando p. ex. a Teologia é chamada de sacra doctrina.

Como é a diferença entre o estudo e a doutrinação?

Na doutrinação, trata-se de aprender uma ciência no seu estado atual da constituição, em todas as suas informações e práxis, a modo de dominar todo o seu funcionamento; mas não se tem a preocupação temática de investigar, como no caso do estudo, as suas pressuposições metódicas, as proveniências dos seus conceitos fundamentais, a fundamentação de suas estruturas, o sentido do ser do horizonte de suas constituições. Por isso, na doutrinação, a pessoa aprende a Ciência como doutrina numa mundividência ou ideologia, não se preocupa pela verdade racional do sistema em que funciona, é uma formação para funcionário da Ciência e não para seu investigador. É por isso que a palavra doutrinação hoje é sinônimo de ideologização.

Na colocação usual em que estamos na formação intelectual nossa, quando compreendemos a nossa formação como formação pastoral no nível da formação dos agentes pastorais, os nossos estudos teológicos, filosóficos e científicos, por mais completos que sejam no sentido acadêmico, estão no nível de doutrinação. E quando os documentos eclesiásticos falam da formação intelectual do clero e nós a queremos, a ponto de podermos dialogar com o mundo de hoje e compreender suas necessidades, crises, aspirações e perigos, esse nível de doutrinação é inteiramente insuficiente, por que não forma pessoas que sabem ler, entre as linhas da funcionalidade, outra realidade oculta mais fundamental. E principalmente isto hoje, na nossa era, que se caracteriza como científica, porque, o que hoje decide que uma ciência seja realmente ciência, não é a quantidade de suas informações, mas sim a investigação crítica de sua própria fundamentação. Torna-se naturalmente um desafio muito grande, o como realizar esse estudo ao mesmo tempo em que se dá a doutrinação numa Ciência.

Em todo caso, no nosso currículo de formação intelectual, onde além da Teologia, temos Filosofia, se quisermos introduzir certas ciências, devemos ter bem claro, que doutrinar alguém numa ou em várias ciências e isto em 6 anos já é quase impossível e muito mais impossível introduzi-lo no estudo investigador, se não se limitar bem com uma determinação bem competente de que, o que e como se faz todo esse estudo. Por isso é uma brincadeira irresponsável e alienação total do que seja uma ciência hoje, querer dar cursos de diferentes ciências, conforme as necessidades-modas da publicidade na nossa formação intelectual, num estilo de um enciclopedismo um pouco melhor do que o do Reader’s Digest. Por isso o estudo p. ex. da Psicologia, Sociologia, Economia etc., deve ser bem examinado, para que o estudante seja realmente iniciado no espírito científico, conforme a seriedade da consciência crítica investigadora das Ciências hoje.

E para a ratio studiorum da nossa formação franciscana, essa diferença entre a ratio studiorum e a ratio doctrinationis deve ser um constante desafio, que nos incite sempre de novo a buscarmos, tanto formadores como formandos, a levantarmos e mantermos o nível da nossa intelectualidade, nos dedicando conscientemente ao modo de ser do estudo, que é investigação crítica da fundamentação. E toda essa exigência de distinguir na própria dinâmica da Ciência dois movimentos, o studiorum e o doctrinarionis, não é uma exigência de brio e nível, no sentido de poder e de elite, mas sim, a grande vontade de, humildemente, de todo o coração, estar na disponibilidade da Verdade.

  1. As teorias das ciências

Hoje, se quisermos saber o que é Ciência, devemos recorrer a assim chamada teoria das Ciências (Wissenschaftstheorie, em alemão). Parece que um outro termo para indicar essa disciplina é meta-ciência.

O problema, aqui, porém, aliás como em toda parte hoje, é que existem várias teorias das Ciências, de diferentes níveis e procedências. No entanto, aos poucos, a consciência crítica acerca da própria Ciência, surgida dentro das próprias Ciências, começa a nos dizer o que é obsoleto dentro da teoria das Ciências. Vamos enumerar uma dessas compreensões obsoletas que pode muito bem povoar também as nossas mentes clericais, quando falamos das Ciências hoje, ou da necessidade de estarmos aggiornados para a nossa era científica. O que segue está baseado no artigo de Heinrich Rombach, Wissenschaft und Philosophie, Studienfuehrer, zur Einfuehrung in das kritische Studium der Erziehungs-und Sozialwissenschaft, Wissenschaftstheorie 1 1.1.2. Wissenschaftstheorie und Philosophie, Heinrich Rombach, p. 12-19, Schriften des Willmann-Instituts, Muenchen-Wien). Aqui daremos um pequeno resumo de uma pequena parte desse artigo.

Trata-se de uma concepção das Ciências, que poderíamos chamar de teoria ingênua das Ciências. Essa teoria ingênua das Ciências, embora obsoleta, está em toda a parte, ainda hoje, ou na nossa compreensão usual e popularizada, da Ciência ou também nas publicações, mesmo especializadas sobre o assunto e na mente de muitos cientistas eles mesmos.

O que caracteriza a teoria ingênua das Ciências é a ingenuidade ou a boa fé despreocupada com que generaliza e absolutiza, sim, dogmatiza e fixa um conceito unilateral da Ciência. Em geral, esse um conceito unilateral, o teorético ingênuo das Ciências tira-o da Ciência, na qual ele é especialista. Essa generalização ele a faz, porque acredita ingenuamente que existe uma única espécie de cientificidade. Conforme essa crença, também historicamente existe somente uma única forma de cientificidade. Podem se multiplicar conhecimentos científicos. Surgirem novas ciências. Evoluir. Mas todas elas tem o mesmo conceito da Ciência. A cientificidade em todas elas é sempre a mesma. É o típico do modo de pensar de A. Comte, que fala da “regime définitif de la raison humaine, i.é, a era da ciência positiva. É o conceito de Ciência do Positivismo em todas as suas nuances e variantes. Segundo essa concepção da Ciência, o que está fora dela ou anterior a ela é um “conhecimento” relativo e subjetivo, privativo-histórico. Ao passo que o saber científico é objetivo, definitivo, real, absoluto e supra-histórico.

Assim, a teoria ingênua das Ciências se caracteriza pelos seguintes preconceitos:

  1. a) Ciência é uma forma de saber, determinada, estável, constatável, sobre a qual se pode dar informações bem determinadas, estáveis e constatáveis. Estas informações nos dizem o que é objetivamente Ciência e nos dão a medida geral da cientificidade de toda e qualquer ciência.
  2. b) Assim, existe propriamente somente uma Ciência (e cientificidade). A multiplicidade das Ciências surge apenas devido à multiplicação dos objetos da Ciência. As Ciências na sua multiplicidade são como que diferentes objetos, sobre os quais se empostam as miradas científicas, cuja estrutura e cujo modo de ser é único. Por isso, quem conhece uma Ciência conhece a Ciência.
  3. c) Há certamente evolução, desenvolvimento nos conhecimentos científicos. Há correturas e revisões dos conhecimentos científicos. No entanto, tudo isso ocorre dentro do horizonte de uma única, bem determinada, estável e definitiva definição da cientificidade da Ciência. Por isso, através das Histórias de desenvolvimento dos conhecimentos científicos, corre uma linha contínua e bem definida, do que seja e o que deve ser Ciências. O conceito da Ciência não tem História. História só têm os conhecimentos, que dentro desse conceito, evoluem, crescem segundo a cientificidade. A História dos conhecimentos científicos se dá dentro de um horizonte de cientificidade único, supra-histórico e imutável.
  4. d) O desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos, por diferentes que sejam as ciências, se dão dentro de um horizonte de cientificidade, de tal sorte que, se pode constituir um progresso sistemático e lógico sem lacuna. E tudo que não segue esta lógica ou está fora dela, só tem valor de verdade, enquanto de alguma forma é redutível a ela.

É interessante observar que essa teoria ingênua das Ciências, que está no fundo de nossa compreensão usual da Ciência, cai num dogmatismo muito semelhante ao que encontramos na Teologia, onde a Ciência é conjunto de conhecimentos perenes, verdadeiros, atemporais e imutáveis. Só que, aqui na Teologia, esse modo de ser do conhecimento pode não ser um dogmatismo, sendo que o modo de ser dos dogmas, que aparentemente parece ser dogmatismo, pode provir do modo de ser próprio e adequado da Ciência sui generis, chamada Teologia; ao passo que nas Ciências, que pretendem radicalmente questionar e serem críticas, o maior pecado, que se pode cometer é o dogmatismo.

Nós começamos a despertar para a consciência crítica da nova teorias das Ciências, quando abandonamos esse dogmatismo camuflado da teoria ingênua das Ciências e compreendemos que, em diferentes ciências reais, devem se formar e ativar cada vez diferentes tipos de ciências. E que não existe a ciência, mas ciências. E se podemos falar, de alguma forma, de ciência como uma totalidade, essa totalidade não é uma estruturação geral e única, segundo a qual as ciências devem ser logicizadas, mas sim um organismo dinâmico, complexo e riquíssimo de diferenciações, níveis e dimensões, constituído pelas ciências particulares, que através das diferenças de cada tipo de ciência, num movimento dinâmico de confrontos, correturas, entrechoques, subsumpções mútuos, vai crescendo numa transmutação contínua.

Assim, o reinado do  absolutismo do conceito unilateral da Ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o progresso das ciências, que progridem, não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico da Ciência nos moldes da Matemática e da Lógica, do conceito empirístico-positivista no modelo da Física e da Biologia, do conceito materialista no modelo da Química, do conceito relativista no modelo da Historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo, que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização auticientíficas dos conceitos unilaterais da Ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciências, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.

Essa nova atitude científica da Nova Consciência, que começa a despertar por toda parte nas ciências, pode ser caracterizada mais ou menos da seguinte forma:

  1. aa) Não há um conceito da Ciência, fixo, parado, portanto, não há uma forma fundamental da “cientificidade como tal”. A ciência vive em transformações, tanto no todo da sua forma como nas formas das suas particularidades. Entre aquele e estas, se dá iteração mútua de influência.
  2. bb) No progresso científico não há um crescimento unívoco e unitário do conhecimento, unilinear, sucessivo e evolutivo. Por isso, os critérios que decidem o que é conhecimento científico e o que não é, devem ser examinados cada vez, na medida em que avançam as ciências, segundo o estilo de transformação assinalado em aa) acima.
  3. cc) Não há conceito de Ciência, que seja aplicável sem mudança a todas as ciências particulares. Conceitos fundamentais, como experiência, fundamento, fundamentação, causa, prova, demonstração, método etc. etc., significam diferentemente, em diferentes ciências particulares ou em diferentes grupos de ciências.
  4. dd) Como existe pluralidade de métodos das ciências particulares, assim também, dentro de uma e mesma ciência particular, pode existir pluralidade de métodos, que coexistem numa ambigüidade complementar. Os métodos recebem o seu aviamento, a partir do toque de abordagem principal, e assim, dentro de uma mesma ciência particular, podem ocorrer duas ou mais abordagens, que efetuam dois ou mais métodos. Estes, por sua vez, num confronto mútuo, mantendo cada qual a sua diferença, criam uma complementaridade, que não é nem ajuntamento, nem síntese, nem substituição ou mistura, mas uma tensão, que contêm a espera de uma descoberta. P. ex. a abordagem ondulatória e a abordagem corpuscular da luz na Física. Assim, a manutenção da pluridimensionalidade é um característico da cientificidade das ciências e não a sua negação.
  5. ee) Cada ciência permanece até à raiz de seus fundamentos, dos mais principais e básicos, em questão. Mesmo as bases confirmadamente válidas e “definitivas”, comprovadas por várias ciências, podem ser subversadas como um caso parcial de um todo maior ou como uma ausência de uma diferenciação e aprofundamento mais rigorosos e radicais.
  6. ff) A Nova Consciência científica no questionamento dos fundamentos imanentes das ciências, sonda, ao mesmo tempo, sua decisão imanente. Mas sabe que as regras de jogo imanente à própria ciência, provenientes dos fundamentos autoconstitutivos da decisão imanente das ciências, contêm também decisões e fundamentações sócio-históricas. Assim, ao acionar-se como ciência, se sabe partícipe das convicções operativas fundamentais do seu tempo e da sua sociedade. Por isso, não paira ou domina altaneira sobre o seu tempo nem sobre a sua sociedade. Não abstrai, mas assume plenamente a prenhez e pregnância situacional sócio-históricas. Mas, ao mesmo tempo, evita de cair no dogmatismo do Historicismo e do Sociologismo. Por isso, não considera a ciência simplesmente como produto ou imitação de uma sociedade. Deixa assim de se determinar dentro da ingênua e irrefletida colocação “sujeito-objeto”, deixa tanto o objetivismo como o subjetivismo de lado, como um dogmatismo não científico.
  7. gg) A contraposição sujeito-objeto, em todas as suas manifestações como p. ex. Saber-Objeto, Homem-Realidade, Teoria-Práxis etc. etc., não é mais colocada ingenuamente e externa e materialmente, mas sim como circulação de mútua iteração. A Ciência não está diante, contra, em frente à Vida, à Realidade, mas está inserida nela. E a vida humana pré-científica não é autarquia, mas já implica comportamentos e modos do pensar científico.

Esta nova compreensão dinâmica das Ciências, à primeira vista, parece dissolver toda a nitidez e clareza da cientificidade a um fluxo, certamente dinâmico, mais diferenciado e rico, mas confuso, sem contorno e sem determinação, portanto a um relativismo, historicismo, a um vitalismo caótico, onde tudo, qualquer opinião, práxis ou tentativa de busca já é uma ciência.

Na realidade, no entanto, não se trata de dissolução à confusão e ao caos relativista. Pelo contrário, trata-se de libertar as ciências da infiltração de velhos e obsoletos ídolos dos dogmatismos e torná-las claras e distintas (Descartes), não conforme o totalitarismo de uma medida unilateral absolutizada, mas conforme a exigência da pluriformidade e pluridimensionalidade de uma Mathesis Universalis.

Essa clarificação pluridimensional das ciências começa a nos mostrar a estrutura interna das ciências e o seu relacionamento com a Filosofia.

  1. Ciências e filosofia

A nova concepção da Ciência, acima mencionada, nos proporciona uma nova compreensão do relacionamento entre ciências e filosofia.

Mas, para podermos compreender esse relacionamento, é necessário deixar de lado o esquema usual, em que costumamos explicar esse relacionamento.

Costumamos representar o relacionamento entre as ciências entre si, entre as ciências e a Filosofia e a Teologia num esquema, onde temos diante de nós o objeto (realidade, a coisa, o campo, a região, a área etc.) sobre o qual as ciências, a Filosofia, a Teologia empostam a mirada do seu ponto de vista e cada qual, as ciências, a Filosofia, a Teologia, capta um aspecto parcial desse objeto. E ajuntando-se os resultados dessas captações temos conhecimento cada vez mais global. Por isso, quanto mais captações de diferentes pontos de vista, tanto melhor, porque se somam as informações de diferentes aspectos. Aqui, as ciências, a Filosofia e a Teologia são três miradas diferentes, uma ao lado da outra, sobre um mesmo objeto, cada qual com seus conhecimentos parciais do objeto, conhecimentos que podem ser somados entre si, dando assim informações cada vez mais abundantes sobre o mesmo objeto (cf. esquema I).

Esse esquema é ingênuo demais para poder ser levado a sério. Trata-se simplesmente de um esquema estereotipado, que não faz nenhum jus à realidade complexa do relacionamento das Ciências. É uma representação ingênua de um realismo epistemológico caricatural, que na realidade não diz nada. E, no entanto, no uso comum, mesmo entre nós, é freqüente encontrarmos uma tal representação, orientando a composição de um programa de estudo da Filosofia e da Teologia. Essa ingenuidade dogmatizada devemos pois abandonar, se quisermos compreender as ciências, a Filosofia e a Teologia, hoje.

Essa representação ingênua do objeto diante de mim e eu aqui, com o meu ponto de vista das Ciências, da Filosofia e da Teologia a mirar o objeto e adquirindo informações sobre o objeto, é na realidade uma abstração. Pois a realidade não está diante de nós. Nós com tudo que nos cerca, tanto por dentro como por fora, na sua totalidade, já é realidade, já somos realidade e sua compreensão. E isto que na representação ingênua da realidade como objeto achamos que está diante de nós, aparece como estando diante de nós, porque nós nos pontualizamos como esta coisa-objeto aqui relacionada a aquela coisa-objeto pontualizada lá, e cortamos por assim dizer a ligação viva e concreta com a experiência anterior a toda essa operação de pontualização objetivante, experiência essa, que nos possibilita essa pontualização dual, eu aqui e a coisa lá como sujeito e objeto. Essa experiência anterior é a percepção direta-imediata simbiótica da realidade que somos nós mesmos como a totalidade do mundo.

Na nova Teoria das Ciências essa realidade da percepção direta e imediata, em sendo como totalidade mundo, se chama realidade pré-científica, que a Teoria ingênua das Ciências dogmatizada, já mencionada acima, confunde com mundo primitivo, imerso na obscuridade da vitalidade irracional, ainda infante e sem consciência. Na realidade, ela é a presença e plenitude da totalidade dinâmica da possibilidade da Vida, no nosso viver, em sendo, na pregnância da evidência imediata da coisa ela mesma. Essa realidade na concreção Vida, Edmund Husserl chamou de “Lebenswelt”. Esse termo alemão é usado sem tradução na nova Teoria das Ciências, e que poderíamos traduzir como “mundo vital circundante”. Essa Lebenswelt é o espaço da plenitude da possibilidade aberto, que poderíamos chamar de Insondável Abismo desvelante das possibilidades do ser.

Ora, toda ciência se funda e está assentada nesse Abismo Desvelante, na Lebenswelt, que não é um espaço escancarado e homogêneo, mas implicações de diferentes níveis e dimensões de Lebenswelte numa contenção, pregnância e dinâmica de possibilidades genéticas infinitamente ricas e pluriformes de ser. É desse Abismo Desvelante que provêm  as diferentes decisões de possibilidades epocais da História.

As ciências, cada vez, em diferentes epocalidades, em se fundando e se assentando nesse e desse Abismo Desvelante, como que se fixa num dessas Lebenswelt, e começa a trazer cada vez mais à tona as implicações dessa possibilidade. Mas, em fazendo essa explicitação, estabelece um corte, um entalhe na totalidade dessa imensidão do Abismo Desvelante, e começa, por assim dizer, a construir em cima dessa Lebenswelt-entalhe, todo um mundo de explicitações, ordenações, coerentes, desenvolvidos a partir do modo de ser próprio ali dado nessa Lebenswelt-entalhe.

As ciências, portanto, se movimentam ao mesmo tempo em duas direções:

  1. a) Para cima, no sentido de construção positiva de estruturações, que são explicitações das possibilidades da Lebenswelt, sobre a qual e a partir da qual erguem essas estruturações. E é da Lebenswelt que elas colhem os seus conceitos fundamentais, o modo de ser do método, etc., que então se transformam em pressuposições fundamentais de cada ciência. É esse movimento construtivo, que dá às ciências o seu característico de ciências positivas, i.é, cada ciência tem o seu positum, i.é, o embasamento, o posicionamento, o assentamento na terra fértil da(s) Lebenswelt(en) do Abismo Desvelante Vida.

Esse movimento construtivo das ciências positivas, em tematizando, em explicitando, em ordenando, ganha em clareza e precisão no mapeamento e na presentificação das possibilidades, dadas pela Lebenswelt, sobre a qual repousa, mas, ao mesmo tempo, perde na radicalidade, na imensidão e orginariedade da sua pertença ao Abismo Desvelante, se nas ciências, continuamente e conscientemente não é trabalho o movimento de penetração, sondagem e ausculta atenta do sentido do ser, que incessantemente emerge do Abismo Desvelante Vida.

  1. b) Esse movimento de penetração, sondagem e ausculta do sentido do ser da Lebenswelt a emergir do Abismo Desvelante é o segundo movimento das ciências que vai na direção oposta ao do movimento construtivo, portanto para baixo, para as profundezas da Lebenswelt.

Esse movimento de penetração na raiz da própria ciência não é construtivo, mas sim destrutivo. Mas não destrutiva no sentido de agressão a uma posição para aniquilá-la, impondo-lhe uma outra posição. Destrutiva no sentido de, sempre de novo, reconduzir, i.é, reduzir toda e qualquer construção positiva das ciências à radicalidade da sua pertença ao Abismo Desvelante, desfazendo toda e qualquer infiltração ou sedimentação de dogmatismos e unilateralidades, hipostatizações e absolutizações, mantendo sempre de novo e nova a abertura à possibilidade abissal de renovação e ao toque do inesperado. Do jogo desse movimento construtivo e destrutivo, do jogo desse movimento estruturante-constitutivo e do movimento desestruturante-reductivo se dá a fundamentação da Ciência, e a cientificidade e o quilate de uma ciência se medem pela limpidez e pelo equilíbrio desse jogo.

Esse movimento, que se dirige à profundidade radical do Abismo Desvelante, que caracteriza a nova Ciência e a distingue de ideologia e mundividência, agora levado a últimas conseqüências e tematicamente buscado, constitui o movimento da Filosofia. Isto significa que as Ciências e a Filosofia copertencem intimamente. A Filosofia é no fundo o movimento de redução, que corre no próprio seio das ciências, juntamente com o movimento da constituição. Essa maneira nova de compreender as Ciências nos seus dois movimentos constitutivo-reductivos pode ser talvez esquematizada da seguinte maneira (cf. esquema II). Talvez seja útil observar que os dois movimentos não são propriamente lineares opostos, mas sim movimentos espirais em implicação centrifugal-centripetal.

  1. O ensino da filosofia

No passado, quando o ensino da Teologia e da Filosofia ao clero estava estabelecido, numa bem ordenada e fixa estrutura do ensino manualístico da Escolástica, a Filosofia ministrada era escolástica, ou melhor, néo-escolástica e possuía o seu conteúdo, seu método bem determinados e tinha a função de ser a “ancilla theologiae”, servindo de Prolegomena da Teologia. Como tanto a Teologia como a Filosofia tinham o mesmo estilo escolástico, havia uma coordenação e sintonia perfeitas entre ambas as disciplinas, de tal sorte, que a Filosofia, no fundo, era uma iniciação à Teologia sistemática. Nesse sentido, a Filosofia do antigo ensino clerical, fora do meio eclesiástico, não era considerada propriamente Filosofia, mas sim já Teologia. Essa totalidade bem coesa e coerente do ensino teológico-filosófico era ainda, mesmo numa escala já institucionalizada e padronizada e com apoucado vigor especulativo, uma herança da grandiosa síntese conquistada pelo Pensamento Medieval, repristinada pelos esforços do assim chamado movimento da Néo-Escolástica. E como tudo que é verdadeiramente grande no Pensamento, se bem ministrado, forma o pensamento, as pessoas que se dedicavam com empenho ao estudo da Teologia e Filosofia Escolástica, principalmente em contacto direto com os textos dos grandes Mestres Clássicos da Escolástica, recebiam uma formação coesa, coerente, bem assimilada e assentada, embora também corressem o grande risco de deixarem se doutrinar, e em vez de aprender a pensar grande, cair no dogmatismo intransigente e estreito de funcionários clericais, adestrados ideologicamente, sem a capacidade de pensar.

O revigoramento nas pesquisas históricas sobre a Idade Média, novas descobertas e edições críticas dos grandes Mestres do Pensamento da Idade Média, desencadearam dentro da Igreja um estudo cada vez mais vasto e profundo do Pensamento Medieval, e a grande síntese teológico-filosófica da Escolástica começou a vir à tona como um dos “sistemas” de Pensamento, os mais bem trabalhados e consumados do Ocidente, revelando um vigor especulativo inaudito.

Essa redescoberta da Escolástica Medieval deu início, no estudo da Filosofia no seio da Igreja, uma tentativa chamada Néo-Escolástica, na qual, se tentou retomar e continuar o trabalho, que na Idade Média realizaram os grandes Mestres da Teologia, de fazer, a partir do “Fides quaerens intellectum”, uma síntese teológico-filosófica, onde agora as novas filosofias, modernas e contemporâneas fossem assimiladas, como contribuições valiosas no crescimento do Pensamento Católico, como as antigas filosofias não-cristãs o foram para os mestres medievais.

Assim, no ensino da Filosofia na formação intelectual do clero, hoje, em muitos países, principalmente lá onde a Igreja tem ainda muita influência e guarda a Tradição, o ensino de Filosofia é da Filosofia Néo-Escolástica: o núcleo do pensamento é constituído de teses fundamentais da Escolástica, mas com muita abertura às filosofias novas, modernas e contemporâneas, às ciências e às questões diversas dos nossos tempos. E a Néo-Escolástica tem formado dentro da Igreja gerações de grandes intelectuais, autores e professores.

A Néo-Escolástica na Filosofia, no entanto, fora a época do seu florescimento no seio da Igreja, nas décadas passadas, onde aderiram ao movimento grandes intelectuais, muitos deles convertidos, jamais encontrou no meio filosófico extraeclesiástico, muita credibilidade. E embora se reconhecesse particularmente o mérito e a competência acadêmica de seus grandes representantes, filosoficamente a Néo-Escolástica ela mesma parecia um ser híbrido, mais um conjunto de doutrinas teológicas da Mundividência Católica do que propriamente Filosofia. A nova consciência científica de hoje, quer na Filosofia como nas ciências, via na maneira, como a Néo-Escolástica, a priori, abordava a Filosofia e as Ciências modernas, uma espécie de instrumentalização da Filosofia e das ciências, em função da manutenção da Mundividência Teológica Católica. Além disso, o conceito de Filosofia pressuposto nesse sistema teológico-“filosófico” parecia jamais poder aceitar e compreender, sim admitir a autonomia, como a reivindicava a nova consciência científica da Filosofia Moderna como sendo a essência da Filosofia, pois a Néo-Escolástica já a partir do seu sistema não admitia o direito e o dever da absoluta e total autonomia do pensar à Filosofia, e a considerava no fundo como uma mundividência.

E, na prática, na formação intelectual, esse sistema de ensino da Filosofia, a Néo-Escolástica, sob a camuflagem do ensino sistemático e temático, acabava no fundo reduzindo a Filosofia à História da Filosofia, onde a Filosofia era dada como uma sucessão interminável de mundividências de diferentes épocas, sobre as quais se falava resumidamente, numa interpretação já padronizada, com as quais a “Filosofia” (Leia Teologia) Cristã se confrontava para examinar o que é verdadeiro e o que é falso.

Um tal ensino, já que o ensino de Filosofia usualmente durava 2 anos, jamais conseguia realmente formar intelectualmente alguém na Filosofia. Assim começou a produzir pseudo-intelectuais, que falavam de todas as filosofias e da Filosofia como o faz um ideólogo crente, que sabe julgar tudo com toda a segurança de quem crê que tudo sabe, sem saber que nada sabe, determinando o que é certo e o que é errado.

Entrementes, o próprio ensino da Teologia, depois da grande abertura do Vaticano II começou a entrar na tentativa de um novo caminho do ensino teológico. E as influências das Teologias e das Filosofias Modernas e das Ciências, desenvolvidas fora da ambiência clerical-católica, começaram desencadear dentro do ensino tradicional da Teologia mudanças significativas. Com isso, no ensino da formação intelectual clerical começou a desmoronar aquela coesão e unidade orgânica da Escolástica na sua síntese teológico-“filosófica” medieval. O nome Escolástica se transformou aos poucos numa denominação pejorativa para indicar um ensino tradicionalista, fechado e obsoleto, anacrônico de Teologia e Filosofia. As disciplinas teológicas e filosóficas, que formavam uma unidade bem estruturada, começaram a se dispersar, cada qual para si, no estilo, no modo de ser e na filiação a diferentes “escolas” de pensamento, correspondentemente antigo ou moderno.

Na escolástica, aquilo que segurava num pulso dinâmico e firme as disciplinas e as unia numa ordenação mútua de confrontos, debates, embates, diálogos e correturas mútuas de aprofundamento em direção a uma síntese cada vez mais profunda, vasta e originária, subsumida pela Fé, desaparecia completamente, restando apenas a organização institucional externa de um Instituto, de uma Universidade ou Centro de Estudos com seus programas. Por dentro, porém, esse ensino não possuía mais nem unidade, nem coerência, a não ser dentro de uma ou outra disciplina particular. Começou a dar-se a infiltração de diferentes mundividências, justaposições de métodos, nivelamento de dimensões de diferentes ciências. Essa confusão e a perda do centro começaram a abaixar muito o nível de formação intelectual. O apelo unilateral, pragmaticista e pouco refletido à ação e à pastoral engajada diante da avalanche de urgências e necessidades da Humanidade hoje, ao caluniar a formação intelectual como luxo burguês sem efetividade, abaixou ainda mais o nível da formação intelectual.

E hoje, diante dessa situação incômoda e bastante confusa da nossa formação intelectual, estamos querendo reagir a tudo isso, para retomarmos com seriedade e muito empenho a formação intelectual para valer.

No entanto, quando lemos dentro dessa situação os documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero hoje, a Igreja parece ter diante de si o método, a concepção de Filosofia e Ciências do sistema de pensar que acima caracterizamos como Escolástica, ou melhor, Neoescolástica.

E surge uma suspeita: a Igreja não está querendo colocar ordem nessa confusão e levantar o nível da nossa formação intelectual, retomando o ideal da neoescolástica? Não é isto um anacronismo, uma tendência tradicionalista, que teme realmente um diálogo e confronto mais sério com a nova consciência científica de hoje, quer na Filosofia quer nas Ciências? Não é agarrar-se a um sistema, que não deu certo, por implicar no seu sistema, pressuposições não tematizadas suficientemente para nos fazer maior evidência?

Como compor uma ratio studiorum que realmente tenha validade real numa situação como essa, com todas essas dúvidas?

  1. A Filosofia como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante

No entanto, o que está sendo dito pelos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual nossa pode significar uma coisa bem diferente de uma volta tradicionalista a um estilo de formação neoescolástico, mesmo que toda a linguagem e as concepções ali pressupostas acerca da Filosofia e das Ciências apresentem colorido acentuadamente neoescolástico. É que a própria neoescolástica é uma maneira de realizar uma concepção que, por ser neo, já capta a própria Escolástica num nível já bastante pouco pensado e minguando na sua profundidade e vigor. Não somente isso, a própria Escolástica, mesmo na consumação clássica da sua plenitude, é uma realização concreta de outro vigor essencial e transcendente, cuja realidade não coincide nem com a Escolástica Clássica Medieval nem com a neoescolástica Moderna. Pois esse vigor outro e transcendente é o Abismo Desvelante da Vida, que possibilita essas concreções como a Escolástica e neoescolástica, ele mesmo se nos ocultando e ao mesmo tempo nos acenando nessas próprias concreções Escolástica ou neoescolástica, para que nos aviemos a uma busca intrépida de uma Sabedoria que vem das alturas e profundezas desse abismo insondável, inundando com o seu sopro vital todas as nossas possibilidades, como a Sabedoria do Deus de Jesus Cristo: a Teo-logia.

Com outras palavras, não são os documentos eclesiásticos que falam a partir e dentro da neoescolástica ou da Escolástica. Pelo contrário, são a neoescolástica e a Escolástica que falam e pensam, de alguma forma, de modo bastante insuficiente, a partir e dentro da Grande Tradição da Igreja. E se a Escolástica e de alguma forma a neoescolástica foram apoiadas, fomentadas pela Igreja na formação intelectual do seu clero, é porque elas de alguma forma ecoam no Grande Pensamento, que flui e palpita na Tradição da Igreja.

Isto significa que as recomendações da Igreja na formação intelectual do clero, quando fala “escolástica e neo-escolasticamente”, propondo um “sistema” semelhante ao defendido e apresentado pela Escolástica e neoescolástica, não nos estão dizendo, que hoje, no século XX, devemos de novo montar um ensino com Escolástica e neoescolástica. Mas sim, estão nos dizendo que, se quisermos nos formar intelectualmente como pessoas que pertencem a essa grande Realidade do Corpo Místico de Cristo, devemos colocar como idéia (leia-se eídos) reguladora do nosso intelecto e da nossa formação intelectual um saber na plena pregnância da presença do Deus de Jesus Cristo, onde Deus (compreendido a partir desse mesmo saber e não a partir de um outro horizonte), em tudo e em todas as coisas, como sabedoria insondável, que inunda e penetra todas as coisas, é luz, lógica, conhecimento que nos guia e orienta em nossa caminhada através de todos os tempos, portanto um saber e ideal de um saber que, no passado, brilhou por um instante e de modo fragmentário, mas concreto, na forma do Pensamento dos grandes Mestres da Escolástica Medieval e que se tentou retomar na neoescolástica, sem no entanto consegui-lo.

Mas, tudo isso, vire você o argumento como virar, na prática, não acaba numa implícita recomendação de tentar um empreendimento como o tentando no tempo relativamente recente do florescimento da neoescolástica? E como na prática não existe nenhum sistema extra-cristã de Filosofia, que tenha esse característico, recomendado pela Igreja, em última instância, não acabamos adotando a neoescolástica como o ensino de Filosofia, apoiado e recomendado pelos documentos eclesiásticos?

Tudo isso não teria nenhuma inconveniência, se a precompreensão de Filosofia, que está na própria neoescolástica tivesse um nível filosófico adequado às exigências da Filosofia. O que não acontece, porque compreende a Filosofia como Filosofia Cristã, i.é, Teologia.

Surge assim uma pergunta: por que ensinar a Filosofia na formação intelectual clerical? Por que não ensinar só a Teologia, plenamente, profundamente, exclusivamente, como um grande e completo saber, sem acrescentar Filosofia e Ciências num nível tão provisório, instrumentalizado, a modo de mundividências? Por que Filosofia e Ciências, se o que ali é ministrado não é mais nem Filosofia nem Ciências, mas sim “preparados” com aparência de Filosofia e Ciências, para servir de não sei o que, para a formação teológica do clero? Por que a própria Teologia não assume interpretações e informações “ajeitadas” da Filosofia e das Ciências a seu modo para a Teologia, para ministrar a seus alunos como Teologia? Por que recorrer à Filosofia e às Ciências, se já de antemão, no modo de ser da “sacra doctrina”, a partir da sua colocação, a Teologia não pode aceitar as exigências da plena e absoluta autonomia das pesquisas filosóficas e científicas?

Assim, as mais recentes recomendações dos últimos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, de que se tome a sério cientificamente o estudo da Filosofia e que se ministre a Teologia e a Filosofia, distinguindo nitidamente, no ensino, a diferença destas duas matérias, soam como meras retóricas curiais ou como sintomas da falta de rigor e precisão na compreensão do que a nova consciência científica compreende por essência da Filosofia e das Ciências. Ou será que, apesar de toda essa aparência, esse modo de ver e falar pensa outra coisa e tem plena razão?

Marquemos o ponto nevrálgico da questão. Segundo a nova consciência científica na autocompreensão da Filosofia e das Ciências, hoje, a Filosofia, segundo a compreensão que o ensino da Teologia tem da Filosofia, não é Filosofia, mas sim mundividência. Por isso, se a Filosofia quiser dar o melhor de si à formação intelectual do clero, não pode ser ensinada num sistema assim, porque não pode, sem perder inteiramente a sua identidade, corresponder à expectativa do ensino clerical. Mas, se, apesar de tudo, for ensinada, não como mundividência, mas na precisão e no rigor da sua “cientificidade”, ou permanece paralela à Teologia ou será considerada por ela como sua destruição. Com outras palavras, quanto mais a Teologia e a Filosofia quiserem permanecer fiéis à sua identidade, tanto mais parecem ser irredutíveis uma a outra, de tal sorte que pensar numa síntese, complementação ou coisas similares, se torna um sinal do desconhecimento da questão.

E, no entanto, exatamente nesse impasse, onde começa a aparecer uma fenda irredutível entre a Teologia e a Filosofia, naquele sistema coeso e unitário do ensino teológico-“filosófico” eclesiástico tradicionalista escolástico, parece começar a se insinuar uma solução! Uma solução que não apaga os contornos das diferenças, não facilita o diálogo aparente superficial, mas exige o máximo na precisão e no rigor em manter-se limpidamente atinente, cada qual à sua identidade profunda e originária. E a partir dessa insinuação de uma possível solução, talvez possamos entender as recomendações de colorido “néo-escolástico e escolástico” dos documentos eclesiásticos, num sentido mais profundo, em referência à nossa formação intelectual. Mas como? E em que sentido?

Explicitando melhor, repitamos aqui numa forma esquemática a compreensão da Filosofia, que a nova consciência científica nos dá da Filosofia, compreensão esta já mencionada acima no nº 4.

  1. a) As ciências são conjunto ordenado de conhecimentos, na mútua implicação e fundação, construído como um todo cada vez mais crescente, sobre e a partir de uma experiência imediata, no uso e da vida do existir humano, chamada Lebenswelt. A inesgotável e insondável imensidão do Abismo da possibilidade pulsante do ser aparece, cada vez em concreto, como Lebenswelt. Como Lebenswelt, i.é, como mundo-circundante, que somos nós mesmos, cada vez em sendo no uso e na vida, tematizamos um setor, uma incisão, um átimo, uma área, uma região ou um campo dessa imensidão, para fazermos deste campo destacado o horizonte dentro e a partir do qual vamos explicitando, segundo a lógica desse horizonte, as implicações ali prejacentes como possibilidades – o positum de uma ciência –, construindo um conjunto coeso de conhecimentos, a partir dos princípios, conceitos fundamentais e do modo de proceder, oferecidos por esse campo.
  2. b) Esse movimento construtivo, com toda a sua estruturação materializada como conhecimentos, métodos, instituições, ensino, pesquisas etc. etc., perfaz a constituição, a concreção externa, digamos, exotérica (i.é, virada para fora) das Ciências. Os conteúdos de uma ciência, como conjunto de conhecimentos transmissíveis, pertencem a essa parte exotérica das ciências.

É no processo dessa construção positiva, nos trâmites de seus passos de explicitações, que podem surgir desvios, defasagens, extrapolações, insuficiências na diferenciação, esquecimentos da lógica do horizonte, mistura indevida de horizontes etc. etc. Essas defasagens, às quais o processo de construção de uma ciência está continuamente exposta, transformam a Ciência em ideologias, mundividências, com os seus inúmeros dogmatismos, conhecidos sob diferentes títulos que trazem em geral a terminação “ismo” como p. ex. naturalismo, positivismo, racionalismo, historicismo etc.

  1. c) O modo como se processa esse movimento exotérico (i.é, virado para fora) da construção das Ciências, na sua pluriformidade e pluridimensionalidade e seus mútuos relacionamentos, está resumido nos pontos já mencionados no nº 3.
  2. d) Pertence essencialmente à Ciência a consciência crítica da sua cientificidade. Essa consciência crítica não é mais a fixação referencial à idéia unidimensional da Ciência da Teoria ingênua das Ciências como foi descrita no nº 3, mas sim a limpidez, a precisão, o pulso certeiro de sondagem da lógica implícita no positum de cada campo, dentro e a partir do qual as Ciências recebem a possibilidade de sua construção. Esse movimento de sondagem e ausculta para a raiz-horizonte de uma ciência, portanto, esse movimento de recondução ou re-dução da construção a seus princípios, a sua fundamentação, as suas pressuposições fundamentais, é um movimento contrário ao movimento da construção, é um movimento virado para dentro, i.é esotérico, movimento para a profundidade, para a interioridade de uma Ciência. É desse movimento que depende se a construção de uma ciência se processa como ciência verdadeira ou não. É esse movimento que mantém o vigor, a precisão e a vitalidade de uma ciência, é dele que depende a cientificidade de uma ciência.
  3. e) Os grandes progressos revolucionários de uma ciência não se dão na parte exotérico-construtiva, embora na publicidade, as novidades e as descobertas espetaculares nessa parte das Ciências sejam celebradas como progressos revolucionários de uma ciência. O autêntico progresso revolucionário de uma ciência se dá quando, devido a uma sondagem de penetração e ausculta do positum do horizonte, dentro e a partir do qual a ciência levanta a sua construção, acontece uma recolocação do campo para dentro de Lebenswelt mais profunda, mais rica e mais abrangente, operando uma mudança dos conceitos fundamentais de uma ciência, possibilitando e provocando a revisão de toda a construção, a partir e dentro de um horizonte mais profundo, vasto e originário.
  4. f) Esse movimento de redução na ausculta da possibilidade prejacente no horizonte de uma ciência não tem conteúdo. Não constitui, portanto, conhecimento do tipo conteúdos e saber como o tem a parte exotérica das Ciências. É movimento, dinâmica de penetração, sondagem, ausculta, é a dinâmica de precisão e sensibilidade no ler entre linhas, i.é, do intelecto.
  5. g) Por não ser conteúdo, não está delimitado a um determinado saber ou conhecimento. Ele nada tem, nada sabe de antemão, a tudo examina, a tudo aborda, sondando o sentido das pressuposições, inclusive e principalmente das suas próprias investigações que podem se depositar como conteúdos.
  6. h) Esse duplo movimento caracteriza a cientificidade de uma ciência. Esse duplo movimento apresenta nas suas respectivas polaridades o seu modo próprio de se processar, algo como movimento centrifugal e centripetal de um redemoinho espiral. Quanto mais o movimento positivo da construção alarga o seu âmbito e cresce, tanto mais o movimento de recondução à profundidade da Lebenswelt deve se centrar na sondagem do sentido, que se desvela a partir da imensidão abissal do ser.
  7. i) Como dissemos acima no nº 3, esse movimento que se dirige à profundidade radical do Abismo Desvelante das Lebenswelte e que caracteriza a Nova Ciência e a faz distinguir-se de ideologia e mundividência, agora levado a últimas conseqüências e à radicalização e buscada tematicamente, constitui o movimento, a dinâmica da Filosofia. Tentemos, por assim dizer, aplicar tudo isso que dissemos acima à Filosofia, para, com maior clareza, vermos o que pensa hoje a Filosofia para si mesma como a sua identidade.
  8. A finitude ou a pobreza da filosofia
  9. a) Na filosofia, propriamente não se tem conteúdos. Tudo que ali aparece como conteúdos, p. ex., explicações, argumentos, descrições da realidade, termos, conceitos, são materiais do exercício da colocação das questões, que no fundo, são um único empenho e intrépido movimento de, em sondando e auscultando, buscar o sentido do ser, que emerge nas Lebenswelte, da imensidão abissal do ser. E o sentido do ser não é nenhum conteúdo determinado, mas sim um desvelar-se do Abismo da serenidade do Nada, que afeiçoa cada vez mais a nossa busca para sabermos cada vez menos, a fim de nos dispormos cada vez mais a melhor ouvir, a melhor auscultar e a melhor receber as novas possibilidades de ser, emergentes dessa plenitude abissal do Nada. Essa busca, quanto mais busca, tanto mais se torna pura disponibilidade da espera auscultante do inesperado, na total pobreza do saber, na plenitude do vazio de uma recepção atenta, na vulnerabilidade da finitude alegre e grata.
  10. b) É esse não-saber como a disposição de ausculta do fundo que dissolve e faz permeável o fundo de uma ciência, i.é, o seu horizonte fundante, dentro e a partir do qual uma ciência levanta o seu edifício, possibilitando-lhe uma fundamentação mais profunda e mais vasta, uma radicalização nos níveis e nas dimensões mais originárias do ser, abrindo assim à Ciência novos horizontes.
  11. c) A filosofia, propriamente, não apresenta nenhum conteúdo, mas se avia cada vez à ausculta e ao aprofundamento nos abismos do sentido do ser no permeio dos conteúdos das ciências, hoje. Não somente no permeio dos conteúdos das Ciências, mas também junto de todo e qualquer conteúdo da existência, hoje, ontem, amanhã, aqui, lá, cada vez, onde o empenho da busca se concretiza, a partir e dentro de um determinado horizonte da Lebenswelt. Por isso, ela toma diferentes formas de aparecimento, constituindo variegadas e infindas modalidades de “filosofias”, que povoam os manuais da História da Filosofia.
  12. d) Quando a Filosofia é tomada na sua forma de aparecimento exotérico, e usada como conteúdos de saber, opiniões, doutrinas, sabedoria, experiências, ciências, ideologias, expressões culturais etc., ela como Filosofia se retrai, e o que temos à mão são mundividências de um ou mais sujeitos ou de certa época da História.
  13. e) Se no ensino da Filosofia quisermos ter encontro com a Filosofia ela mesma, é necessário intuir e captar o movimento de descida à interioridade radical do abismo do sentido do ser, que a Filosofia, enquanto ela mesma, efetua cada vez no permeio das “filosofias”.
  14. f) Essa intuição e captação do movimento radical da Filosofia enquanto Filosofia, no permeio das “filosofias” e das vicissitudes da existência humana, se chama Ontologia, i.é, Ciência do sentido do ser, ou Questão do sentido do ser.

Questão ou busca do sentido do ser, a Ontologia, é o mover-se da busca e não uma disciplina. Mas ela pode se estabelecer como disciplina. Nesse caso, participa da mesma ambigüidade, que inere às “filosofias” como mundividências.

  1. g) Como Ontologia ou Questão do sentido do ser, a Filosofia é sempre e em toda parte, i.é, cada vez, em concreto, sempre de novo e sempre nova a mesma (não igual!). Como tal não há nem Filosofia Antiga, Medieval, Moderna ou Contemporânea.
  2. h) Aqui sempre a mesma não significa absoluta, imutável, definitiva, perene. Mas sim, sempre na disponibilidade finita do frescor da vulnerabilidade pelo sentido surgente do ser. Como tal, esse movimento ontológico deve ser exercitado e apreendido cada vez no permeio de um ou mais concreções históricas das vicissitudes do empenho da existência humana.

O equívoco da Filosofia Perene é de entender o “sempre a mesma” no sentido do absoluto e eterno infinito e não no sentido do cada vez nova e de novo na disponibilidade finita. E o equívoco do Relativismo, do Historicismo é de entender esse “cada vez nova e de novo” no sentido de negação do infinito. A negação do infinito não faz nascer a dinâmica e a novidade da Finitude. Pelo contrário, estraçalha o infinito em indefinidos pedaços iguais da infinitude do agora, agora, agora, agora.

  1. i) No ensino da Filosofia, amontoar informações sobre a Filosofia, tomada como “filosofias” não possibilita a captação da essência da Filosofia como Ontologia, no sentido acima insinuado. O mesmo se deve dizer de uma especialização numa única “filosofia” com todos os detalhes históricos e temáticos sobre ela. O decisivo aqui é, em conhecendo bem a estruturação ambígua da Filosofia em dois movimentos centrifugal e centripetal, através de um concreto permeio ou de um ou mais filósofos e suas obras, ou de uma ou mais obras de quaisquer áreas da existência humana como, p. ex., religião, arte, ciências, experiências da vida etc., adaptando-se à disposição do tempo de estudo (2, 3, 4, 5 anos, etc.), conduzir o formando a amar e assumir o movimento da Questão do sentido do ser. Aqui se abre uma pista concreta de como ensinar Filosofia na nossa formação intelectual franciscana.
  2. j) Todos os grandes Pensadores na Filosofia entenderam a essência da Filosofia como Questão do sentido do ser.
  3. k) A Questão do sentido do ser, a disponibilidade atenta da ausculta, na plenitude da espera do inesperado, que constitui a essência da Filosofia, não deve ser confundida com vivência “mística” de “passividade” pietista. Antes, é o movimento intenso de trabalho intelectual, i.é, o empenho máximo de, no permeio da materialidade desta ou daquela vicissitude da existência humana (esta obra, este autor, esta arte, esta questão, etc.), exercitar-se na disponibilidade, que realmente penetre no Abismo de profundidade do sentido do ser. Nesse equívoco de identificar a espera do inesperado com a passividade pietista cai o vitalismo, o espontaneísmo, o espiritualismo, eivados de esteticismo. Essa espera do inesperado, na plena atenção no permeio do trabalho árduo e intenso, é antes um labor operário, corpo a corpo com o sentido da Vida. Exige engajamento de toda a nossa liberdade, de todo o nosso ser humano.
  4. l) Na linguagem de Kierkegaard a disponibilidade da espera do inesperado é o estágio ético, levado a sua máxima consumação.
  5. Filosofia e teologia

A essência da Teologia está condenada na expressão da Escolástica Medieval “fides quaerens intellectum”.

Se entendermos a palavra fides como a nossa crença cristã e o intellectus como a razão humana, essa expressão parece significar a nossa crença sobrenatural se expressando, buscando uma concretização através da razão humana. E imediatamente surge a questão, como se dá esta síntese, qual é esse ponto de ligação entre o saber da Fé e o saber da Razão, entre o Sobre-Natural e o Natural. É uma justaposição, uma mixagem, uma subsumpção, uma fundamentação, uma dialética? Fides necessita de Intellectus para se expressar, para se fundamentar? Não há a melhor possibilidade de ela mesma, a partir de si se expressar, se fundamentar? Para que a Filosofia? Para que a Teo-logia? Por que não simplesmente a Fé? O que significa formar-se intelectualmente na Fé? E essas questões entram e se traduzem no cotidiano da nossa vida cristã em posicionamentos, que encontram a sua expressão numa linguagem como essa: Estudam, estudam a Teologia, mas não acreditam mais; eu que sou simples, ao menos tenho a Fé; essa gente que não estuda Teologia permanece no estado de ignorância da fé do carvoeiro; é necessário esclarecer e formar melhor a fé desse povo etc.

E se desencadeia um rolo de discussões, onde se contrabandeiam compreensões de Fé e Intelecto, provenientes de outros contextos como p. ex. a fé como vivência do ato de sentimento, portanto um ato da área dos atos humanos irracionais, que necessita de uma orientação proveniente da razão etc.

Aqui, em vez de entrar nessas discussões, exatamente para entender melhor o relacionamento Teologia e Filosofia, tentemos entender essa expressão medieval Fides quaerens intellectun não como um indicativo da síntese fé e razão, mas como vir à fala da estruturação interna da suprema experiência chamada Fé Cristã.

  1. a) Por Fé, aqui, não entendemos em primeiro lugar, nem nosso ato de fé como vivência, nem a nossa crença, nem a confiança nossa, nem a atitude de disposição, nem o conjunto de dogmas e artigos da nossa doutrina cristã. Tudo isso, de alguma forma, pode ser chamado de Fé ou ser referido à Fé, porque tudo isso já é fruto da Fé.

Por Fé entendemos a própria Presença do Deus de Jesus Cristo, que se nos doou e nos amou primeiro (a aprioridade da Fé), vindo ao nosso encontro em Jesus Cristo seu Filho, no-Lo dando pela nossa salvação. Com essa descrição imperfeitíssima, se tenta acenar a inefável e insondável ternura e vigor do Amor Misericordioso do Pai como Ele se manifestou em Jesus Cristo e continua se manifestando através da História da Salvação: a Fé é a Fidelidade da doação do Amor do Deus de Jesus Cristo, a Fidelidade que é o próprio Deus.

  1. b) Tudo que de alguma forma pertence à nossa Vida Cristã, desde Jesus Cristo até um pequeno gesto de bênção, toda a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, com tudo que ele implica, a vida cristã como Seguimento de Jesus, as doutrinas cristãs, os dogmas, as experiências místicas cristãs, as nossas atitudes de confiança, disponibilidade, amor e fidelidade, a nossa vocação, sim tudo, que é de alguma forma cristão, existe e ali está, porque tudo isso é sustentado, doado pelo Pai de Jesus Cristo, porque tudo isso é a própria Presença viva do Pai em Jesus Cristo como Fé, i.é, como Fidelidade da Doação do Pai. É nesse sentido que dizemos: não é assim que nós tenhamos a Fé, é a Fé que tem a nós. E até a possibilidade, a disposição de nos abrirmos à Fé, é doação da Fé.
  2. c) A nossa tentação aqui é de levantar uma falsa questão e perguntarmos: mas, se é assim, onde fica a nossa liberdade e responsabilidade? E embarcarmos na célebre polêmica do relacionamento entre a graça e o livre arbítrio. Essa questão, em referência à Fé, porém, é uma questão extrapolada. Levantar uma questão extrapolada é como levantar falso testemunho. Um falso testemunho parece verdadeiro e razoável, somente porque ele sorrateiramente infiltra, na raiz de uma verdade, uma pressuposição, que não é dessa verdade, mas tirada de outro lugar, desviando assim o percurso de busca e investigação para outra coisa inteiramente diversa.

Quando se fala da Fidelidade do Deus de Jesus Cristo, que nos amou primeiro, portanto, absolutamente independente da nossa iniciativa, a tal ponto absolutamente primeiro, que a própria iniciativa de receber já é a iniciativa do Amor que é Deus, estamos falando já dentro da experiência possibilitada pela Fé e como Fé. E como se trata da experiência, é anterior a toda e qualquer explicação, anterior também à dúvida se essa experiência não é um ato subjetivo psicológico etc. etc. A melhor explicação, o melhor critério da verdade é a evidência da experiência. Aliás, a evidência é a própria experiência e não há testemunho mais verdadeiro do que o testemunho da experiência, i.é o toque direto e corpo a corpo do amor Primeiro que é o próprio Deus.

As objeções surgem quando, em vez de permanecer na experiência e buscar a inteligibilidade, a partir dos fios condutores que surgem na própria experiência, nos dispersamos e disparamos a perguntar, a partir de certas pressuposições usuais, em que estamos atrelados, sem, no entanto, ter evidência de que e a partir de onde estamos perguntando. Assim, ao objetarmos sobre as iniciativas livres de Deus e do Homem, estamos representando as iniciativas como impulsos, que partem de e pertencem a dois pontos separados como ocorrência e coisa, ponto Deus e ponto Homem. Como um ponto não é o outro, dizer que aqui somente há uma iniciativa do ponto Deus, parece eliminar o ponto Homem. E como 2 não pode ser 1, entramos na perplexidade e perguntamos: como? Em vez de permanecermos na fluência viva da Fé, estamos sendo conduzidos e atrapalhados pelo princípio de contradição, hipostatizado como princípio, que diz respeito a 1 e 1 e 1, à identidade concebida como igualdade quantitativa de coisas. Com isso, caímos completamente fora da experiência primeira, nos extrapolamos completamente…

Ao passo que o testemunho da experiência diz bem outra coisa, aliás inteiramente diferente. A tal ponto diferente que uma questão colocada como concorrência e contradição entre duas iniciativas, referindo-se a Deus que nos amou primeiro, e a nós que com gratidão recebemos tal doação, é semelhante à pergunta de alguém que, ao ouvir falar da grandeza de uma mãe gestante, que, atacada de câncer, apesar de terríveis dores, não toma nenhum remédio para aliviar a sua dor, por amor, para não prejudicar o bebê, que está no seu seio, pergunta quantos metros cúbicos tem a grandeza dessa mulher e quanto pesa…

  1. d) A lógica da Fé, no sentido acima mencionado, é muito simples, i.é, una, inteiriça, coerente. Trata-se da experiência da Gratuidade do Encontro e Encontro da Gratuidade. A absoluta doação da Fidelidade do Amor do Pai é toda ela, inteira e radicalmente gratuita. Essa Gratuidade, quanto mais claramente captada na sua Gratuidade, suscita em nós também a doação da mesma “natureza”, portanto inteira e radicalmente gratuita. A uma doação primeira de Encontro de tamanha boa vontade, só se pode corresponder da mesma maneira, ser do mesmo modo, ser uno, ser o mesmo. Esse ser o mesmo não é ajuntamento de duas coisas, mas simplesmente, concretamente, a própria dinâmica e ser do Encontro, o próprio Encontro ele mesmo. Quem assim é dá o melhor de si, em tudo, e em assim se dando, se percebe não como dono, como proprietário da doação, mas sim agraciado pela doação do outro. Aqui não se trata de acionar ou não o livre arbítrio da minha vontade. Trata-se de um novo modo de ser, que atinge e impregna a nossa liberdade, despertando-a para a essência a mais entranhada dela mesma.
  2. e) Esse modo de ser, talvez, possamos denominar de afeição obediente. Trata-se de um movimento de crescente “passividade” (leia afecção), não no sentido da passividade vazia, neutra e indiferente, mas sim no sentido do aumento cada vez mais diferenciado e profundo da possibilidade de ser atingido, e em sendo atingido, deixar ser em máximo grau o ser de quem nos atinge. É o que se expressa na formulação usual: fazer a Vontade de Deus. Essa habilidade e esse hábito de co-responder pode crescer a tal ponto que todo o vigor do nosso empenho não é outra coisa do que fluir grato e gratuito na Gratuidade do outro: “Não eu, mas Cristo vive em mim” (S. Paulo), “Meu alimento é fazer a Vontade do Pai” (Evangelho).
  3. f) Esse modo de ser é a essencialização sofrida pelo nosso ser, quando somos agraciados pela Fé, i.é, somos afetados, atingidos pela Fidelidade do Deus de Jesus Cristo: a Vida pela Fé e na Fé Cristã.
  4. g) A Teologia é um saber que constrói todo um mundo de conhecimento (leia-se conascimentos) dentro e a partir do “horizonte” dessa afeição obediente. Por isso, tudo que vem à fala, a partir da afeição obediente da Fé, é Palavra de Deus, o Logos, o Verbum, a Colheita e Obra de Deus. A sondagem e a ausculta do sentido do ser, que emerge da profundidade aberta pela afeição obediente da Fé, é o Positum da Teologia, a Imensidão abissal e o Mistério absoluto e último da Ternura do Amor do Deus de Jesus Cristo, que é Tudo em todas as coisas.

Mas quem faz essa sondagem e ausculta não somos nós mesmos a partir de nós, mas sim o Espírito de Deus, i.é, o sopro vital da própria Ternura do Amor do Deus de Jesus Cristo, que continuamente mantém límpida, na precisão da Gratuidade, a Dinâmica desse Ab-ismo.

Se agora, observarmos bem esse vigor da doação da Gratuidade, que nos vem ao encontro, nos atingindo, impregnando todo o nosso empenho na afeição obediente a essa Gratuidade, percebemos que esse modo de ser, embora muito mais qualificado e elevado como a plenitude da Liberdade, na docilidade à Graça-Deus, possui muita semelhança com o modo de ser, que na Filosofia, aparece como INTELECTO, i.é, como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante. Também no intelecto há o movimento de ausculta e de disponibilidade, em direção à profundidade do sentido do ser, para além das pressuposições que nos dão base de construção aos nossos empenhos. Também no intelecto, a busca da disponibilidade recorda algo como doação gratuita na radical responsabilização da Liberdade. Também no intelecto há a acribia de manter sempre de novo a limpidez da espera do inesperado.

Mas o que no intelecto é a vontade do trabalho, na afeição obediente da Fé é deixar-se levar na fluência da doação.

O que no intelecto é plena atenção da especulação, na afeição obediente da Fé é a pregnância da translucidez.

O que no intelecto é precisão e rigor de penetração, na afeição obediente da Fe é a docilidade na ternura do Encontro.

O que no intelecto é o puro movimento da busca, sem conteúdo, na afeição obediente da Fé é a Plenitude da Verdade absoluta, que contém todas as coisas.

E, no entanto, nessa diferença do modo de ser do intelecto e da afeição obediente da Fé, se auscultarmos bem o modo de ser do intelecto como movimento de redução à profundidade do Abismo Desvelante, percebemos que ele pulsa como que no mesmo ritmo da repercussão da Gratuidade da afeição obediente da Fé.

E de repente, a expressão Fides quaerens Intellectum nos faz suspeitar:

Será que a afeição obediente da Fé, na sua Gratuidade, não busca com simpatia os que se dispõem de corpo e alma à busca e ao empenho no modo de ser do intelecto? Não porque a Fé necessitasse do Intelecto. Não para se expressar, não para se complementar. Mas sim, porque no Intelecto há a repercussão do toque da afeição obediente…?! Pois não diz o Salmista que o abismo chama o abismo? E o que se move no Encontro não é a syn-tonia da syn-patia?

Tentemos esquematizar esse relacionamento entre a afeição obediente e o intelecto, i.é, entre a Teologia e a Filosofia num gráfico imperfeito, mas que nos pode ajudar a segurar na representação os movimentos que constituem esse relacionamento. Para isso cf. o gráfico III.

  1. A teologia, a filosofia, as ciências

Isto tudo significa que, no cerne da Filosofia e no cerne da Teologia, há movimentos gêmeos, do INTELECTO, i.é, da redução à profundidade do abismo desvelante e da afeição obediente, na Fluência da Doação da Graça Misericordiosa. Esses dois movimentos, por sua vez, se movem em espiral, à semelhança do movimento espiral centrifugal e centripetal das Ciências, mas agora de uma forma toda própria, estranha. O movimento do Intelecto, que se esvazia cada vez mais na limpidez da espera do inesperado, quanto mais se radicaliza, tanto mais se reduz à clareza, precisão e rigor do Nada, e nada de conteúdo ou de positivo à Teologia. Pois ele é algo como o tinir cada vez mais intenso da espera. Esse Nada é mantido com árduo e intenso labor no permeio da construção positiva das Ciências e dos outros empenhos e desempenhos humanos, que em se estruturando em mundos e mundos de realização, são convocados, ao mesmo tempo, a se trabalhar criticamente como busca sempre mais intensa do sentido do ser, na nadificação de fixações, dogmatizações e hipostatizações do sentido do ser. A Filosofia é pois o trabalho operário da existência humana, em todas as manifestações do seu empenho, de perfazer-se como a radical responsabilidade de ser a verdade do seu ser: é o Intelecto. Esse trabalho conduz tudo e qualquer empenho humano à raiz de si mesmo, que é a disponibilidade absolutamente autônoma da Liberdade de ter que ser cada vez o seu próprio ser. Essa disponibilidade é a essência do Homem: Finitude do Nada, disposta na espera do inesperado.

A Graça do Amor do Deus de Jesus Cristo, quando gratuitamente se afeiçoa na sua simpatia a esse nada e desce sobre ele como orvalho, faz florir no deserto límpido desse nada da espera, todos os empenhos, que permeiam o todo da existência humana, impregnando-os com o modo de ser radicalmente outro, e, no entanto, sem nada mudar nos seus conteúdos, como que concebendo tudo na ternura e no calor de um outro hábito: é a Encarnação.

Essa subsumpção de tudo em todas as coisas do empenho humano pela Graça é Fides quaerens Intellectum e é o movimento chamado Teologia.

Como a Filosofia é um movimento de redução ao Abismo Desvelante do sentido do ser, assim a Teologia é um movimento de constituição toda nova da totalidade das possibilidades de existência humana em todos os tempos, a partir da afeição obediente da Ternura e do Vigor da Fidelidade dor Deus de Jesus Cristo.

E como a Filosofia, na sua manifestação exotérica aparece em diferentes estilos e escolas de filosofias como mundividências, assim também a Teologia aparece na sua manifestação exotérica, em diferentes escolas e estilos de teologias.

Mas, como na Filosofia, também na Teologia, estando em uma ou em mais dessas manifestações, o essencial da formação intelectual é fazer o movimento esotérico, i.é, o movimento-cerne, que atravessa como Intelecto a Filosofia, e como afeição obediente a Teologia.

Como dissemos, a Filosofia não pode contribuir em nada à Teologia com conteúdos positivos. Ela, porém, pode servir de ancilla theologiae, no sentido da faxineira, que varre e limpa os habitantes espúrios, alojados na Teologia, camuflados de filosofias ou filosofemas. Com outras palavras, a acribia do Intelecto, no seu movimento de redução de toda a positividade das Ciências ao exame das suas pressuposições, abre cada vez mais profundamente a limpidez do seu horizonte e do sentido do ser, que ali se desvela. Assim, a Filosofia detecta na Teologia a presença de elementos, cuja crítica pertence à Filosofia, por tratar-se, não de Teologia, i.é, da afeição obediente da Fé, mas sim do Intelecto, i.é, das Ciências e de outros empenhos da existência humana.

Mas, para que a Teologia mantenha o seu horizonte na limpidez da afeição obediente, não basta somente esse serviço da Filosofia. Pois esta não lhe pode dar nada, a não ser retomar para si, o que a Teologia foi buscar fora de si, para usá-lo como muletas.

Para que positivamente a Teologia seja Teologia, ela continuamente necessita se enraizar na afeição obediente do Encontro com o Pai. O vigor crítico, i.é, purificativo da Cientificidade da Teologia reside no Encontro com o Pai.

10 “Santidade e sabedoria” e a formação intelectual

Soa estranho afirmar que o vigor crítico que mantém a limpidez da Cientificidade da Teologia está no Encontro com o Pai. Não é isto reduzir a Teologia a uma intimidade pessoal subjetiva? Não é confundir a Teologia com a Piedade, a Espiritualidade, a Mística? Certamente, o Encontro com o Pai, a Vida Interior é importantíssima para a formação espiritual do religioso e sacerdote. Mas essa formação espiritual, sem negar a sua necessidade e importância, não é propriamente a formação intelectual, muito menos a quinta essência da formação intelectual, a Teologia…

O que significa, pois a afirmação: a Teologia para ser ela mesma na sua Cientificidade, necessita estar continuamente enraizada na afeição obediente do Encontro com o Pai?

Se examinarmos bem o processo de aprendizagem num estudo, seja de que matéria científica, arte ou técnica for, percebemos que, além da disponibilidade e disposição positiva e do talento do discípulo, o segredo do progresso na aprendizagem e saber está na competência do mestre. Por isso, um velho provérbio chinês recomenda a quem quer aprender uma das inúmeras e dificílimas artes marciais chinesas, que se não tiver muito tempo à disposição, gaste ao menos 3 anos para procurar um ótimo mestre! Com outras palavras, em vez de, com pressa pegar qualquer mestre e logo iniciar o treino de 3 anos, é mais eficiente gastar esses 3 anos procurando um ótimo mestre, porque este o pode fazer progredir em pouco tempo, mais do que um mestre incompetente em muitos anos.

Já imaginou cair nas mãos de um mestre como p. ex. S. Basílio, S. Justino, S. Boaventura, Mestre Eckhart, Aristóteles, Platão, para não dizer um Anjo, um Serafim, um Querubim, um Gabriel que nos pegasse pelas mãos e nos ensinasse?

Mas, se abrirmos as Sagradas Escrituras, elas nos dizem constantemente que o próprio Deus, Ele mesmo em pessoa, o Espírito Santo nos ensina todas as coisas! Deveríamos uma vez fazer um levantamento, tanto no NT como no AT, para sentirmos num volume muito grande a Boa Vontade imensa de Deus, de nos ensinar! E se fizermos um levantamento acerca dessa Boa Vontade de Deus de nos ensinar, nas experiências de iluminação que tiveram os grandes místicos e santos de todos os tempos, ficaremos impressionados quão pouco acreditamos em tudo isso, a ponto de, no fundo, sermos indiferentes diante desse Mestre de todos os Mestres, ao passo que passamos anos a fio, gastando milhões, para fazer cursos com certos professores, que são especialistas p. ex. em Psicologia, cuja origem não se sabe lá muito bem donde vem… e que não são lá grandes coisas.

Se pois considerarmos a aprendizagem da Teologia, compreendida como acima insinuamos, quando falamos do relacionamento Ciências-Filosofia e Teologia, logo compreenderemos, que o melhor e o único Mestre absoluto dessa Ciência maravilhosa, que Deus tem, a Teo-logia, é o próprio Pai de Jesus Cristo. Assim sendo, não é nada estranho, antes completamente coerente que a Teologia tenha como fonte da sua Cientificidade no contato profundo, pessoal e íntimo com o Pai.

No entanto, numa aprendizagem, uma vez que temos um bom mestre, o decisivo é o volume de trabalho. Mas por que é importante o volume de trabalho? Para nos familiarizarmos com o mestre e sua matéria. Como a palavra familiarizar-se nos diz, é necessário entrar a ser familiar com o mestre e sua matéria. Na família estamos todos os dias juntos, um próximo do outro, estamos em contato, corpo a corpo na busca, na intimidade do trabalho, num diálogo, confronto e desafios constantes com o mestre.

Digamos que para obter um doutorado, para adquirir a habilidade esportiva, para aprender a profissão de alta tecnologia, para tornar-se competente nas pesquisas, gastamos anos a fio, sim toda a vida, dia por dia, hora por hora, nos engajando nesse ou naquele trabalho de uma aprendizagem. Experimentemos então fazer uma estatística para ver quantas horas gastamos nesse trabalho em 20 anos. Imaginemos agora alguém que faz todo esse trabalho, gastando 30, 40, 60 anos, só para entrar corpo a corpo, em contato imediato com Deus, tornar-se familiar com Ele, ter intimidade com Ele, de tal sorte que Ele nos revele os segredos, os mais abscônditos do seu coração, ensinando-nos tudo acerca de todas as coisas.

Mas, como se faz isso, o contato imediato, corpo a corpo com Deus? Se Ele é o Pai que habita uma luz inacessível? Não estamos, aqui, fazendo uma confusão, dando exemplos de aprendizagem do estudo humano, onde o mestre é visível, material, e físico, e aplicando à aprendizagem do estudo, onde o mestre é o próprio Deus, que transcende todas as nossas medidas, todos os  nossos sentidos, físicos e sensíveis? Não é assim que, aqui, não há contato pessoal, corpo a corpo, mas sempre através da mediação de mestres visíveis?

O interessante dessa objeção é que ela nos aponta para uma equivocação, que raras vezes percebemos. Equivocação de identificar o visível, o físico com o imediato, com o contato direto, com o corpo a corpo. Por causa dessa identificação, o não-visível, o não físico não é imediato, não é contato direto, não é corpo a corpo! Logo, mediato!

Juntamente com essa equivocação, corre paralelo outra equivocação. A de identificar o visível físico e sensível, já identificado com o imediato, contato direto e corpo a corpo, com o pessoal. E identificar o não-visível também aqui com o mediato, o mediatizado, e muitas vezes com o não-pessoal, no sentido de mediatizado pelo grupo, pela sociedade, instituição, etc. Por isso, quando p. ex. dizemos, para ser ensinado diretamente por Jesus Cristo, ele deveria estar ali fisicamente presente, para eu poder ter um contato imediato, direto com ele, pessoalmente, estamos agenciando todas essas equivocações. E continuamos a operar nas mesmas equivocações, quando dizemos, como Ele viveu há 2.000 anos, só nos pode ensinar indireta, mediatamente, através das pessoas, mestres atuais, Igreja etc. que nos cercam como comunidade e instituição.

E, no entanto, quando nos examinamos bem, percebemos que o problema é bem outro. A questão de imediato ou mediato, do contato corpo a corpo direto ou mediatizado e indireto, é um problema da familiarização. Não está relacionada nem com o visível ou invisível, nem com o físico ou espiritual, nem com pessoal ou institucional. Mas em que sentido?

Todas as coisas, com que nos familiarizamos, depois de um longo convívio de empenho, estudo, confronto, se tornam próximas de nós, nós as tocamos, se nos tornam imediatas. E todas as coisas que nos são estranhas, são longínquas, não nos tocam, não tem relacionamento direto conosco, devem ser mediatizadas pelas coisas que nos são mais familiares. Mas todas as coisas que se nos tornaram familiares, para que possam ser familiares, pressupõem de nós uma decisão de assumi-las, e na medida em que se nos tornam cada vez mais familiares, exigem cada vez mais que as assumamos corpo a corpo.

Com outras palavras, o que experimentamos como pessoal, direto, imediato, corpo a corpo, contato pele a pele não tem propriamente nada a ver com o físico, sensível, individual, corporal. Mas tem tudo a ver com índice de transformação no meu modo de ser, que eleva o meu ser a uma qualificação, antes não existente.

Esse modo de ser qualificado recebe vários nomes, por ser difícil de ser dito, mas que na experiência se pode perceber com simplicidade e relativa facilidade. É o modo de ser que se chama encontro, relacionamento pessoal, intimidade, familiaridade etc. Só que, infelizmente, essas denominações dificilmente nos conseguem mostrar, que aqui não se trata de sentimento ou sensação, mas sim de um quilate novo de ser.

Esse modo de ser qualificado, esse quilate novo de ser, acima também designado como corpo a corpo, imediato, contato direto, só se dá no e através do empenho. E o empenho, dizemos nós, quanto mais decisivo, intenso e engajado, quanto mais se aproxima de uma busca de vida ou morte, onde a pessoa põe em jogo todo o seu ser, tanto mais se torna pessoal.

Como foi dito, é difícil não entender esse pessoal como subjetivo e individual. Mas, perguntemos, o que é o oposto de pessoa. O impessoal? O grupal, comunitário? Para que seja pessoal deve haver só uma pessoa (leia-se indivíduo)? Quando é mais de uma pessoa, se torna impessoal? Ou se torna comunitário? Logo percebemos que aqui entra uma confusão. Ou melhor, a nossa compreensão do pessoal e do comunitário está confusa. Sem entrar em discussões e exames mais detalhados da questão, observemos apenas que essa confusão se dá, porque temos na nossa mente o esquema: um sujeito = o pessoal; mais sujeitos = grupo, comunidade. Deixemos de lado por completo esse esquema e olhemos com simplicidade e diretamente o fenômeno. O que percebemos? Percebemos que, quanto mais a intensidade da experiência se torna forte, profunda, familiarizada, assumida num trabalho de engajamento para valer, tanto mais a experiência se torna única, cada vez minha, singular. Então em assim sendo singular, percebemos o que quer dizer pessoal. Pessoal é quando a minha existência alcança a densidade de um corpo a corpo, na radical seriedade de ter que ser, sem poder transferir essa tarefa de ser a um outro. Mas essa singularidade e unicidade não tem muito a ver com 1 no sentido numérico quantitativo, mas sim com a inexorabilidade, inalienabilidade, a identificação do Encontro. Que essa intensificação absoluta da singularidade do Encontro nada tem a ver com individual, privativo e subjetivo, pois estes não possuem o quilate todo próprio do ser, que caracteriza o pessoal, i.é, a absoluta doação de si e a abertura transcendente universal.

Mas o que tem a ver essa singularidade do Encontro com a formação intelectual e principalmente com a manutenção da Cientificidade da Teologia?

Tem tudo a ver com o estudo da Teologia, entendida como foi colocada nos capítulos anteriores. Pois, se olharmos os nossos estudos da formação intelectual franciscana, não no seu aspecto virado para fora, i.é, esotérico, mas na sua estruturação virada para dentro, i.é, para a sua essência, esotérica, percebemos sem dificuldade que, aqui, se trata do engajamento e do radical empenho de toda uma existência humana na busca apaixonada pelo último e absoluto sentido de Tudo. Mas esse Tudo não é mais a totalidade dos entes, a modo de uma paisagem panorâmica da explicação da verdade do universo, mas sim União, Comunhão, Identificação, Encontro Pessoal de Amor que faz gritar a um São Francisco de Assis: Meu Deus e Meu Tudo!

Mas… tudo muito bonito, porém, … e a Teologia, e a formação intelectual? Não é apenas, por mais profundo e belo que tudo isso seja, uma experiência pessoal de São Francisco, subjetiva, particular?

Se compreendermos bem o que viemos refletindo nos capítulos anteriores acerca do estudo da nossa formação intelectual, todas essas objeções não passam de escrúpulos estéticos de uma existência humana, que tem a cabeça feita num academismo estéril e não fez ainda experiência da Teo-logia, i.é, “do contato imediato de primeiro grau” com o único Mestre de todas as Ciências e Sabedorias, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aqui, como já foi dito antes, não se trata de um saber nosso acerca de Deus e Homem e Universo, a teologia no sentido de “theologia quoad nos”, mas sim “Theologia quoad Deum”, participação discipular, filial, esponsal, íntima, pessoal, total com a Sabedoria que Deus tem!?

Não é essa a única formação pela qual vale a pena dar toda uma vida, toda a vida de nossa Ordem, sim da nossa Humanidade?

I Mito e Arte

O título da nossa reflexão é Mito e Arte. Na realidade, porém, em tentando falar do Mito e da Arte, a reflexão fala mais da fenomenologia. Por isso, a fala acerca do Mito e Arte, se torna por assim dizer um pretexto para falar da fenomenologia. Mas mesmo assim, indiretamente, de tabela, a reflexão quer falar do Mito e da Arte. O tema é, porém, muito vasto. Por ser vasto, dificulta encaminhar a reflexão num determinado rumo. O tema Mito e Arte, na sua vastidão, pertence ao modo de ser da imensidão, profundidade e simplicidade da criatividade humana. Modo de ser esse que perfaz a dimensão da experiência de fundo da existência, a que pertencem Mito e Arte. É, pois, um tema ao qual se receia abordar. Assim a nossa primeira reflexão é acerca do receio e da dificuldade de nos acercarmos do Mito e da Arte como tema de uma reflexão.

  1. Da dificuldade de se acercar do Mito e da Arte

A preposição de da reflexão que quer falar do Mito e da Arte pode significar sobre ou a partir de. Sobre significa acerca de. Acerca soa a cerca. Cerca se acerca, entra na cercania da coisa ela mesma, protegendo-a no seu lugar, para que ela possa surgir, crescer e se tornar ela mesma, na determinação da sua identidade. A cerca quando, porém, esquece a tarefa de ser guarda e proteção do que é, se torna prisão. Fecha e enquadra a coisa que cerca. A partir de significa ser a coisa ela mesma na sua autoidentidade. Para falar a partir da coisa ela mesma, é mister ser a coisa ela mesma na soltura da sua liberdade. Para isso, quem deixa ser a coisa ela mesma chamada Mito e Arte deve ser Mito e Arte simplesmente, “em pessoa”. Como Mito e Arte se referem às “coisas” do fundo do ser humano, e isto é uma coisa muito séria, a presente consideração gostaria de fugir da exigência desse tema, tentando de antemão se eximir do engajamento à causa, dizendo como entende a preposição de do título num sentido próprio. Para isso, usemos uma estória chinesa.

Naquele tempo um regente imperial, rico e poderoso, foi consultar aflito um velho mestre taoísta desdentado: “Mestre, o que devo fazer para sair de um impasse? Há tempo, comprei um filhotinho de dragão. Coloquei-o numa garrafa de jade. O dragão cresceu e ficou entalado na garrafa. Para tirá-lo, devo quebrar a garrafa. Mas ela é preciosa e é lembrança da minha falecida mãe. Mas se não a quebro, o dragão morre. O que faço?” O velho abriu a boca numa gargalhada sem dentes e lhe disse: “Meu filho, jamais coloques dragão em garrafa!”

A comparação manca se não considerarmos a peculiaridade da nossa situação. No nosso caso, a fala é garrafa e Mito e Arte, dragão. Na estória, quem cresce e se entala é o dragão. Na fala sobre o Mito e a Arte, o que engrossa é a garrafa, reduzindo cada vez mais o vazio, o espaço do nada, e juntamente com o vazio mingua também o dragão. Mas filhotinho de dragão, dragão é. Por isso, por menor que ele seja, é sempre dragão, todo inteiro. Mas, se a garrafa se tornar maciça, dragão morre?  Não, morre a garrafa, pois deixa de ser garrafa para ser uma coisa grossa. Um bloco. É que a garrafa é à mercê do vazio do espaço que forma e sustenta suas paredes. Mas e o dragão? Transforma-se em múltiplos átomos infinitesimais e penetra em cada pedaço da ex-garrafa para ver se ali no interior de pedaços, sub-pedaços e micro-pedaços não sobrou ainda um quê de vazio, para então ali morar. Mas, e se também ali, de todo, se carecer do vazio? O dragão que ama o vazio se volatiliza e volta a ser ele mesmo, como era antes de ter-se inserido como doador do ser da garrafa. O vazio-dragão se retrai no próprio do seu ser, a saber, na sua imensidão, profundidade e unicidade criativa, i.é, na soltura absoluta da liberdade do seu ser. E essa soltura se chama sim-ples. De modo que lá onde há simplicidade há o ser da liberdade como realidade das realizações. Como a palavra realidade e realização vêm da res, e res em latim significa coisa, podemos dizer: realidade-realização é coisa. Assim, a coisa ela mesma da fala acerca do Mito e da Arte enquanto livres na soltura absoluta da sua realidade-realização, é a liberdade de ser, a autonomia da autoidentidade. Isso significa que a garrafa a tornar-se um bloco de coisa perde a identidade e de repente se acha envolta, impregnada até ao âmago de si mesma pelo dragão que ‘saltou’ para dentro de si, tornando-se ele mesmo na soltura da liberdade de ser, acolhendo a ex-garrafa como uma possibilidade da imensidão da generosidade-dragão. Assim a nossa reflexão estaria salva no bojo, ou melhor, no médium do dragão Mito e Arte. Mas tornar-se corpo maciço de uma reflexão séria, a ponto de se transformar numa compacta impossibilidade de uma fala que nada diz, é uma tarefa impossível, para essa nossa fala. Esta é no fundo tagarelice. Nem se quer uma garrafa é, pois nem se acerca nem fecha na sua indeterminação. Mas, e se a nossa fala não fosse garrafa, mas apenas uma pele, tão tênue, flexível e diáfana, pele a pele com o dragão, a crescer com ele e como ele?  Para ser tal material precioso, tão fino, tão nada, a fala deveria sair da mão de quem é afeito a Mito e Arte como seu genitor… O que não é o nosso caso. Na impossibilidade de ser maciça a ponto de fazer o dragão ‘saltar’ para a liberdade de si, mas também na impossibilidade de ser tão tênue, pele a pele, colada ao dragão, a presente reflexão na sua perplexidade, fala de Mito e Arte num sentido geral, um tanto vago, que insinua uma espécie de descompromisso de quem num tal assunto apenas sabe enfileirar considerações ab-errantes e a-beirantes. Aberrantes, porque andam errantes, sem bom rumo, abeirantes, porque ficam à beira, à margem do assunto, sem penetrar na tematização da essência da coisa. Nesse sentido, a preposição de significa assim, mais ou menos. Trata-se, pois, da abordagem do tema na ronda, a modo de falatório disperso ao redor de tema complexo, profundo, dificílimo de ser assimilado, por ser simples. Mito e Arte, mas também qualquer outro tema filosófico, é um caso sério demasiadamente quente para quem é diletante na causa chamada ‘coisa da filosofia’. O jeito é rondar, i é, circunvagar ao redor do tema, a modo de um gato acerca do mingau quente, a lamber à beirada do assunto[25]. Se descuidado não queimar a língua e tiver sorte, saboreie talvez por pouco e tênue que seja um gosto já um tanto esfriado do tema. Em que consiste essa circulação abeirante e aberrante, no nosso caso? Consiste em considerar o tema Mito e Arte, interrogando-me a mim mesmo, de que se trata quando escuto os termos Mito e Arte. Mas para que a nossa ronda abeirante não fique inteiramente sem rumo, coloquemos no centro das nossas circunvagações um texto. Trata-se de um texto, obra do Pensamento, que faz toar uma outra obra, de Artes Plásticas, de van Gogh, que pintou um par de sapatos da camponesa. O texto se encontra em A Origem da obra de Arte, de Martin Heidegger[26].

Diz Heidegger:

Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos  e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito  na iminência da morte. À Terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência[27]. Mas tudo isso, talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade.[28] É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da Terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao Mundo simples a proteção segura e assegura à Terra a liberdade da impulsão permanente.

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria, sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai a apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser[29]  a ele próprio.

Para não haver equívoco, nessa presente reflexão não se trata de expor os pensamentos do opúsculo A origem da obra de Arte, de Heidegger, nem de comentar o seu texto acima mencionado. Trata-se apenas de ter o texto como ponto de referência das nossas circunvagações diletantes acerca do tema Mito e Arte[30].

À primeira vista, o que aparece no quadro de van Gogh é simplesmente uma coisa, chamada sapatos. O que, porém, aparece na descrição de Heidegger do par de sapatos, pintado por van Gogh, não é mais apenas uma coisa, um utensílio, mas sim todo um mundo, uma paisagem humana, que mais tarde vamos chamar de existência camponesa. Isto significa que aquela coisa pintada por van Gogh, enquanto obra de arte, nos abre uma realidade toda própria da paisagem humana, o mundo da existência camponesa? Vamos a seguir examinar como de uma coisa como sapato, uma vez tocada pela Arte, pode surgir algo como paisagem da existência humana. Para isso, falemos primeiro da coisa chamada obra de Arte.

  1. A coisa

O título desse trabalho é  Do Mito e da Arte. A seguir, falemos primeiramente da Arte.

O que hoje, de imediato e na maioria dos casos, entendemos, quando ouvimos as palavras mito e arte, está assinalado nos dicionários. Simplificando ao máximo essas informações, podemos dizer: Mito é: narração dos tempos antiqüíssimos no início da nossa civilização, onde os homens conviviam com os deuses e efetuavam atos extraordinários como heróis, em contínuo contacto com a intervenção dos deuses para dominar e cultivar a Terra. E Arte é: expressão estética de idéias, vivências e sensações.

Mito como narração e Arte como expressão estética são produtos da realização humana. O Mito e a Arte como produtos da realização humana nos remetem ao homem, que através do ato de realização de si produz coisas da sua causa como narração e expressão. Temos assim o esquema expresso no modelo: sujeito Þ ato Þ objeto, nomeadamente, artista Þ ação criadora artística Þ obra de arte. Vamos chamar todo esse conjunto simplesmente de Arte. O conjunto esquemático sujeito-ato-objeto vale para toda e qualquer produção cultural. O que distingue em concreto a produção artística de outras produções culturais, portanto, a sua diferença, i. é, a sua identidade enquanto produção artística é o que vige, impera como caráter todo próprio no conjunto Arte. Convenhamos chamar essa vigência toda própria de essência da Arte. O verbo esse é do latim e significa ser (verbo). Assim, essência diz ência, i. é a dinâmica do verbo esse, do ser. A dinâmica de ser não é nenhuma coisa. Não pode ser, pois, captada no modo como captamos coisa, isso e aquilo. Trata-se, pois daquela presença, daquela pregnância, da tonância que determina o ser da Arte ou a Arte na dinâmica de ser: o próprio da Arte, ou o evento (Ereignis) da Arte[31]. Mas se dizemos que a essência da Arte não pode ser captada como captamos coisa, referimos essência de algum modo à coisa. Que realidade é essa, a coisa, para podermos dizer que a essência da Arte não é nenhuma coisa?

Essa pergunta aqui já antecipada pressupõe que, dentro do conjunto Arte, focalizemos o próprio, a essência da Arte em primeiro lugar, coisificada naquela coisa que denominamos obra de Arte. Perguntemos, pois, que coisa, ou melhor, que tipo de coisa é essa, a obra de Arte?

Entrementes para nós hoje, há coisa e coisa. Coisa, usualmente é objeto. Coisa como Objeto, em diferentes níveis, está, de alguma forma, referida ao projeto da ação e do saber do sujeto-homem. Coisa como Coisa se refere mais a um fato da natureza virgem, ainda intacta pela indústria humana. E em vez de objeto e coisa dizemos de um modo inteiramente geral algo. A coisa objeto e a sua coisalidade, e o fato natural, e o algo e suas coisalidades, o que é? Há algo anterior à coisa objeto (produto do homem) e à coisa fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas? Em alemão existem vários termos referidos ao que denominamos coisa, a res, a realidade e suas realizações: por exemplo, etwas (algo), das Seiende (o ente), das Sein (o Ser),[32] der Gegenstand (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding (coisa) e die Sache (coisa).

O ponto nevrálgico, a observar aqui, está nisso: nós usualmente pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisalidade, a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. De que se trata, pois? Tentemos dizer de que se trata, através de uma explicação. Com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação” contém sob a extensão da sua coisalidade todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo Homem”[33]. À coisalidade da classe “Coisa” pertencem primeiramente às “coisas produzidas pela Natureza e também os objetos acima mencionados[34]. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou inteiramente vazios de conteúdo ou prenhes de possibilidades concretas de conteúdo. Isso em português. Como acima mencionamos, em alemão, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Aliás, em português popular do Brasil, temos p. ex. troço, trem. Quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “abalado”, pois nos soam tão concretos e vivos que se tem a sensação de se ter a coisa ela mesma diante da gente, e no entanto quando se pergunta de que se trata, nada dizem, a não ser um vago indeterminado “algo”, embora diferente do algo, pois é vago e indeterminado a modo todo e bem concreto. Sem muita precisão nem certeza, possamos talvez dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisalidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo Homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de uma obra artesanal, feita à “mão”[35]; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse como “a coisa ela mesma”. Sache possui a mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heróica, mito, indicando as “coisas” todo próprias, referidas à tradição antiga, primitiva e originária no início da História.

É necessário não esquecer que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que acima denominamos de coisalidade. São portanto cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não é de precisão a gente chamar esses termos de classificatórios. Pois classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo” plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa, e no entanto não se iguala a ela. Por isso aqui em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua coisalidade. Mas, então, o que é Horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado podemos talvez dizer que Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm ao nosso encontro, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinação de ser. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. É o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto, e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicâncias”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicâncias, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber, como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicâncias de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa autoidentidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa perfilação única e singular do abismo insondável de ser. É provavelmente o caso da obra de Arte. Assim, é radicalmente diferente um bloco de cimento maciço opaco na sua coisalidade do ocorrer e a presença de uma obra de Arte na mundidade da sua densidade de ser. No entanto, pode-se dar em nós uma espécie de miopia, em relação à clareira do horizonte ou do mundo na sua mundidade. Nessa miopia, vemos tudo como coisas-bloco, uma ao lado da outra. Trata-se de uma impostação do nosso “ver”. Esse “ver”, ao ver os entes, inclusive a nós mesmos, vê tudo como essa “coisa” maciça, esse bloco em si, e o faz  sem nenhuma referência às estruturas e às texturas das estruturações do ente na sua mundidade, portanto apenas como isto e aquilo isolado ou ilhado em si. E isso de tal modo que a mútua relação entre os entes se estabelece a partir de fora, como relações acidentais que não dizem respeito à interioridade da coisa. Dito de outro modo, esse ver não vê a coisa na sua essência. E quem é o agente dessa impostação e dessa mútua relação entre os entes, que cria concatenações entre os entes-bloco? O sujeito homem que está “dentro” do horizonte p. ex. acima mencionado de algo (etwas) ou objeto (Objekt), a partir e dentro do qual capta o ente como ente-bloco, inclusive a si, portanto como este sujeito[36] (ou este grupo, este conjunto nós, vós, eles e elas como bloco), no qual reside um centro, um núcleo “espiritual” eu[37]. Assim, nessa impostação o que captamos da “coisa” ela mesma depende na última instância do interesse do sujeito que “vê” esta coisa, aquela coisa, este grupo e aquele grupo de coisas, conforme a perspectiva do interesse do “eu”. O horizonte, o mundo na sua mundidade se transforma no interesse, entendido como instância do eu subjetivo. Este se separa do ente que aparece como realidade em si objetiva diante dele e os atos do sujeito se tornam fio de ligação entre o objeto e o sujeito. Nessa impostação, o que denominamos obra de arte é uma coisa, produto da atuação do Homem, enquanto expressão do seu interesse subjetivo denominado interesse artístico-estético. O que comanda e dá o caráter todo próprio denominado artístico-estético é o interesse subjetivo do sujeito-homem. Por ser expressão do sujeito-homem, para compreender a obra de arte é necessário conhecer no sujeito artista coisas como a hereditariedade físico-anímica, as suas experiências, suas ideias e vivências, as influências recebidas do meio ambiente sociocultural, socioeconômico etc., expressas e exteriorizadas no produto-obra de Arte, tendo como meios dessa exteriorização diversos materiais, conforme as modalidades da expressão artística, como p. ex. na música, literatura, nas artes plásticas, no teatro, cinema etc.

Recordemos. Acima dissemos que a essência da Arte não é nenhuma coisa. Por isso não pode ser captada como usualmente captamos as coisas. Mas observando que há coisa e coisa, diferentes ‘tipos’ de horizontes na sua coisalidade, tentamos ver que os termos como algo, objeto e coisa, em alemão etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache, não indicam direta e propriamente isso ou aquilo, mas sim horizonte, mundo, ou melhor, mundidade dos mundos. Com isso, começamos a ver em concreto que é necessário ‘olhar’ a essência de modo diferente ao do modo usual de ver isso ou aquilo. Começamos assim a perceber que a essência da Arte, a saber, do conjunto artista (sujeito)Þ ação criadora artística (ato) Þ obra de arte (objeto) é, por assim dizer, envolvido no seu todo pela dinâmica da abertura da possibilidade de ser que denominamos horizonte, ou melhor, mundo. E, no entanto, apesar de sabermos de tudo isso, ao falarmos da “essência” da Arte, nos inclinamos a colocar a presença da essência na obra da arte. Mas quando falamos da essência da Arte como presença de uma dinâmica de ser, que envolve tanto o artista, a ação criadora como a obra de arte, portanto, como o inter-esse, i.é, como o médium no qual se acha o todo do conjunto Arte, nos inclinamos a colocar o inter-esse dentro do sujeito-artista, como uma realidade subjetiva existente nele e dizemos: a obra de Arte depende do interesse, daquilo que é o interior do sujeito, i. é, do agente da produção da obra de Arte.

  1. O interesse

O que acima denominamos de interesse, se o olharmos bem, não é nem subjetivo nem objetivo. Pois os adjetivos ‘subjetivo e objetivo’ se referem ao sujeito homem (subjetivo) e a coisa-objeto (objetivo) como ente-bloco, algo, como um quê em si. Pois o interesse, considerado na Arte, i. é, no conjunto artista-ato criativo-obra de arte é o que acima denominamos de essência.

Interesse se lê inter-esse. Inter se pode interpretar ora como entre, mas também como dentro. O dentro, porém, do inter não é dentro de uma coisa-bloco, mas sim dentro do “entre-meio”, no médium. O nosso problema é que sempre ainda representamos o médium como um bloco liquidificado ou rarefeito a modo de um espaço vazio, semi-vazio, ou cheio de uma substância sublimada etérea. E não como a dinâmica de estruturação do vir-a-ser-mundo como acontece p. ex. no médium denominado, musicalidade.

Aqui, a tonância impregna toda a sinfonia a se “estruturar” em e como mil e mil diferentes composições e constelações de composições, cujos elementos constitutivos não são átomos-blocos, mas sim concreções de modalidades e modulações tonais em percussões e repercussões. Esse conjunto, essa syn-phônica ora se abre, ora se fecha, na expansão e no recolhimento sucessivos e simultâneos, cada vez todo, de todo, no movimento vivo e concreto de determinações em infindas possibilidades de repetições moduladas. Esse “estar no”, esse “ser-em” é o inter-esse. Essa maneira de “descrever” parece só se referir à obra, aqui à execução. Mas para que haja execução da sinfonia temos a partitura da música, os compositores e tudo que a eles se refere enquanto compositores e músicos, diversos instrumentos; os membros da orquestra, maestro e os instrumentistas, o coro e seus componentes, a sala de concerto, os ouvintes; todo o processo que em contínuos e repetidos ensaios e exercícios forma tanto o maestro como os componentes da orquestra, os próprios instrumentos que foram artesanalmente confeccionados; o sistema de microfones, o sistema de gravação da música, da sua transmissão no rádio e televisão etc. Tentemos ter tudo isso presente bem concretamente, quando aqui dizemos de modo esquemático e formal: o conjunto artista-ato de produção artística da obra de arte. E isso não como fila ou amontoado de entes ajuntados e enfileirados como ente-blocos, um ao lado do outro, mas na dinâmica do seu tornar-se, consumar-se em diversos e variegados modos de ser em concreção, que no seu todo e em cada momento da dinâmica da expansão e do recolhimento, está impregnado da mesma “causa”, ou melhor, do mesmo “princípio”, da mesmidade no ser, formando todo um mundo no seu ser. A esse movimento denominamos realizações ou estruturações da realidade e realidade das estruturações.

Para perceber como o inter-esse é o que possibilita, faz surgir, sustenta tanto a obra de Arte como o artista e sua ação criadora, vamos dar um outro exemplo, já usado numa outra ocasião, num outro artigo[38]. Esse exemplo, mais do que o exemplo anterior tenta conduzir a consideração do interesse, do “setor” subjetivo dentro do sujeito-eu para o inter-esse “anterior” e mais “fundamental”, a partir e dentro do qual se constituem tanto o sujeito como o objeto[39] de uma determinada ação. Um artista. Digamos um organista. Toca fuga de Bach. O livro com as notas musicais diante de si. Os dedos transmitem a leitura das notas ao órgão. Dali surge a fuga. E o organista ouve a fuga produzida. Posso considerar a produção da música como uma sucessão linear de causa e efeito: o livro de notas musicais, o olho-leitura, o movimento dos dedos, o órgão, o som, o ouvido-ausculta. Vamos suspender essa consideração que enfoca o aspecto produtivo causal da fuga. Examinemos o fenômeno de imediato, diretamente: Um homem debruçado sobre o órgão. Todo o seu ser é concentração. Para onde se concentra o seu ser? Para a produção da fuga? Para pôr em obra as nor­mas técnicas da execução musical? Digamos que o nosso organista domina a técnica de execução. Os dedos obedecem espontaneamente aos mínimos deta­lhes do seu comando. O movimento do dedilhado lhe flui do querer sem resistência, de tal sorte que o or­ganista não precisa mais se concentrar na execução.

Mas, então, para onde se recolhe o vigor da sua concentração? Para a ausculta. Ele é todo ouvido na concentração. Mas para a ausculta de quê? Para a ausculta da fuga de Bach que sai dos tubos sonoros do ins­trumento-órgão? Certamente o organista ouve a fuga de Bach como música por ele produzida através do instrumen­to. Mas esse ouvir, assim explicado, não coincide com a ausculta aberta no recolhimento da concentração. Pois ele, ao ouvir a música produzida, percebe nela, por exemplo, a ausência do vigor, do colorido, do frescor;  sente como a sua música não tem ressonância, não se sustenta, não se liberta para o júbilo da festa, não consegue dizer a profundidade da dor, não vibra, não tona, não saltita. Com outras palavras, o artista percebe que a sua fuga não “está no ponto”. Por conseguinte, o organista, ao ouvir a música produzida, mede-a simultaneamente a partir de… Mas a partir de quê? Onde está, em que consiste esta medida, o “pon­to” da plenitude? A nossa representação objetiva essa medida no interior do artista. Mas onde está? O que é essa inte­rioridade? A pergunta não tem resposta, pois a interioridade não está no espaço-onde extensional “físico”, “anímico” nem “espiritual”. Antes, é ela a fonte, a nasci­vidade do tempo e espaço da ressonância toda própria, da musicalidade das músicas, do mundo da música. Em outras palavras, a pergunta-onde e a sua resposta, por operarem a partir e dentro do espaço objetivado da re-presentação algo ou objeto, estão “fora” da dimensão da interioridade aqui em questão. Mas o que é essa interioridade? Essa interioridade está na obra da Arte? Na ação criadora da execução da obra? No artista? Ela está em toda a parte. É o inter-esse que impregna, penetra todos os poros, todos os momentos do conjunto Arte, artista, ação criadora e obra da Arte e tudo que se refere à Arte em diversas implicações como prolongamento de estruturações do mundo da música. E isto desde a ausculta, a mais pura e sublime de um artista inteiramente doado à limpidez da criatividade da Música-Arte, até mesmo às implicações já bastante desfocadas e desafinadas da venda e do lucro, provenientes do comércio dos produtos de Arte.. Essa interioridade não é nem dentro, nem fora, mas sim é um “ser em” como vigência de uma presença onipresente, em cada momento do conjunto, a fazer surgir, crescer e se consumar a percussão e a repercussão da realização e realizações da realidade: a musicalidade, o ser da musica, o inter-esse do mundo-Música.

Essa vigência se chama essência. Portanto, observemos “onde” se “localiza” o que acima denominamos essência, o inter-médio in-pregnante, onipresente em todos os momentos, em todas as articulações, em todos os movimentos estruturantes do todo, envolvendo, inundando e irrigando tanto o artista, como a ação criadora, como também e principalmente a obra de Arte. E perguntemos o que é, quem é esse inter-esse?

  1. Existência

Quem é, pois, esse inter-esse? É o próprio homem. Apenas, em assim respondendo, sempre de novo representamos o interesse como algo no ou do homem. Algo que vem dele, nele está. Mas que o homem, ele mesmo, seja o inter-esse, isso nos é um tanto estranho. O mais óbvio é, aqui, “instintivamente” localizar o inter-esse p. ex. da musicalidade, no interior do homem, na sua “interioridade”. Quando, porém, dizemos ser ou essência, nós a pensamos no interior do objeto ou da coisa. Esse dentro de “mim” como do ente homem e esse dentro do objeto como do ente extra-humano, portanto esse inter-esse, não está nem dentro nem fora do ente homem, pois não se trata de local físico-material. Sabemos disso muito bem, mas… na perplexidade, tornamos a localizá-lo na sensibilidade humana, na alma, no espírito, se é que não o colocamos simplesmente numa determinada parte do cérebro, na reação dos nossos nervos aos estímulos, provenientes do ambiente que nos circundam.

Entrementes, quando pomos o inter-esse, a essência na sensibilidade humana, na alma, no espírito, no cérebro, na reação dos nervos etc., não o estamos propriamente percebendo, não o estamos vendo a ele mesmo, pura e diretamente, mas sim o estamos reduzindo a um objeto de um outro horizonte que lhe é alheio no sentido do seu ser. Sem depender de todas as nossas colocações e anterior a elas, pode-se p. ex. na situação acima mencionada do organista que executa a fuga de Bach, ou na execução sinfônica da orquestra, perceber nitidamente uma presença, uma vigência, um ser (dinâmica do verbo) que se nos apresenta como ele mesmo, todo próprio e nada mais, impregnando o conjunto todo, e cada um dos seus componentes e sub-componentes, sustentando-o, vivificando-o, fazendo-o perfilação do seu próprio ser. A pregnância dessa presença aparece na vitalidade, na unidade, na vivacidade e simplicidade do todo. É algo como atmosfera, médium que o envolve e o perpassa como tonância, como colorido de fundo, dando ao todo e a seus componentes um caráter todo próprio de ser. E ao mesmo tempo em que assim se estende por sobre e através de toda a dimensão do conjunto, na largura, na altura, na profundidade de suas perspectivas, concentra-se de modo intenso, como que a convergir num centro, na obra que surge como fruto da ação criadora. Assim, a essência, o ser da Arte, aparece na plasticidade e concreta singularidade da obra de Arte. Mas como é que colocamos dentro, na interioridade do homem artista a causa de todo esse conjunto, sintetizado na obra de Arte? O que significa, de que se trata, portanto, quando usamos o termo interioridade, ao querer ver “dentro” do homem artista na sua ação criadora, e dentro da obra da arte, o que denominamos de inter-esse como essência que envolve o conjunto Arte, toda e inteiramente, inter-esse que é o próprio homem?

Talvez esse tipo de localização da essência como interioridade ou interesse no sujeito-artista, e dentro na obra de Arte como núcleo, oculto sob as aparências de cor, volume, forma etc., seja uma espécie de projeção coisificada da experiência viva que fazemos, “em” nós e “na” coisa chamada obra de Arte, quando a essência da Arte nos pega.

O que é e como é essa experiência que nos afeta como essência da Arte? Talvez possamos qualificar o quê e o como dessa experiência como um caráter todo especial presente no conjunto Arte, a saber, uma espécie de densidade, de intensidade na pregnância de ser. Essa densidade de ser aparece no assentamento que uma obra de Arte tem na mundidade do seu próprio ser. É, pois, tão marcante a diferença existente na ‘densidade’ da mundidade p. ex. nos sapatos da camponesa da obra de van Gogh e na mundidade do artefato-sapato, fabricado em série ou mesmo artesanalmente. Aqui numa obra de pintura do quilate de van Gogh, dizer que ela é “algo” ou “objeto” não diz nada. Nesse tipo de horizonte “algo” ou “objeto”, jamais aparece a mundidade própria da singularidade uni-versal da obra de Arte. O termo alemão Ding p. ex. parece indicar melhor e com mais precisão a coisalidade de uma tal densidade da mundidade[40]. Aqui na obra de arte não há nada de indiferente, neutro, de indeterminado vão, não há generalidade nem generalização. Ela é toda ela própria, sem ser um caso individual ou particular de uma série de ‘coisas’ de uma classe, é universal no sentido de concentração e densidade no uno, como único, contendo em si a medida optimal de tudo quanto quer participar de tal singularidade universal. E isso, de tal modo que, ela cria um estilo e pode fundar uma escola de Arte.

O marcante da diferença não está aqui propriamente nem na celebridade, nem na utilidade, nem na excelência de venda etc., mas sim naquele caráter todo próprio da Arte que, conforme as explicações dadas pelas teorias estéticas, chamamos de belo, estético, sublime, nobre, para encobrir a nossa impossibilidade de dizê-lo, embora o possamos ver nitidamente.

A acima mencionada intensidade da pregnância de ser aparece também no artista, quando observamos o seu modo de ser na profissão de artista. E é possível ele, como sujeito-homem, ser de uma moralidade duvidosa, ser egoísta, ser viciado no álcool, mas quando se trata do seu metier artístico, sua vida possui sinceridade, honradez e pureza toda própria, intensidade de engajamento e compromisso todo próprio com a “coisa” da Arte. Aqui, para além, ou melhor, aquém da sua intenção moral ou sinceridade, se dá uma “autenticidade” que não é um dado espontâneo a modo de um produto da Natureza, mas sim dom de um árduo e generoso trabalho[41], que nasce, cresce e se consuma como História. E isso aparece principalmente no seu trabalho “artesanal”[42] de compromisso corpo a corpo com a obra. Toda a sua vida está como que doada à obra, a tal ponto de não se poder saber se é o artista que perfaz a obra ou a obra que perfaz o artista. É nesse sentido que, embora dois entes fisicamente separados como algos, como objetos, enquanto artista (existência artística) e enquanto obra (essência artística), artista e obra são um na presença criadora. E isso a tal ponto de podermos afirmar que, quanto mais obra na sua grandeza e singularidade específico-universal como Arte, tanto mais anônimas[43] são as obras. É por isso que, mesmo quando o autor de uma obra prima é conhecido, o nome do artista recebe o esplendor e a notoriedade da obra e não a obra, do artista[44].

Repetindo, aqui o dentro do homem, a sua interioridade é o que acima enunciamos como sendo toda a vida, a vida inteira doada à obra. Mas de que se trata aqui quando dizemos toda a vida, a vida inteira do ente chamado homem? Seus afazeres, compromissos, atitudes, os fatos da sua passagem no espaço e tempo do globo terrestre, seus ideais e projetos? De alguma forma tudo isso também, mas mais do que tudo isso. Em que sentido mais? Não quantitativamente nem ‘qualitativamente’, …mas existencialmente. Vida aqui na vida artística significa existência. Temos assim as expressões: existência artística, existência religiosa, existência humanitária etc. Trata-se de um modo de ser humano que advém ao homem e determina de modo próprio todo o seu viver, em todas as suas implicações, a tal ponto de aqui desaparecer toda e qualquer neutralidade indiferente e geral de uma consideração panorâmica, padronizante do ser-homem. O ser-homem aqui como existência se aperta na finitude da estreiteza do historiar-se de si mesmo, toda a possibilidade de ser se torna única[45]. Nada aqui é feito, simplesmente dado, mas cada qual com todas as coisas implícitas no seu ser tem que ser, tem que se tornar, a partir de e dentro de si mesmo, como que na ausculta atenta do toque por e para ser que lhe possa advir, não dele, e também não do outro constituído como um ente dentro do âmbito da sua possibilidade, mas de um salto primeiro e único para dentro da espera do inesperado e para dentro do impossível início. Impossível, porque não está ali dado de antemão na existência como um algo já ocorrente, mas deve saltar como dom de um labutar constante, fiel e cordial, como eclosão, crescimento e consumação de todo um novo mundo. E essa abertura para a impossibilidade possível é a ex-sistência, a pre-sença, em alemão Da-sein[46]. Da-sein é a essência da Arte. Arte só é possível ser compreendida, portanto, como e na existência artística, no pensar o seu ser em sendo, em da-seiend no inter-esse, na essência da Arte.

Isto significa que o modo de ser caracterizado como densidade da pragnância de ser para indicar o modo de ser todo próprio do ser-humano, agora denominado existência ou Da-sein, é o que antes no capítulo II e III percebíamos como essência e inter-esse, e que se projetava ‘materialmente’ como que localizado na interioridade do homem ou no fundo da obra de Arte. Toda e qualquer obra de Arte, se é realmente uma obra de Arte, toda e qualquer vida humana inteiramente doada à Arte e toda e qualquer ação feita enquanto doação à Arte no trabalho de criação da obra de Arte, nos conduz para dentro do modo de ser do ser próprio do Homem, para dentro da existência ou do Dasein, para dentro do seu mundo. Não só nos conduz para o país da imensidão, profundidade e densidade do fundo do ser-humano, mas também o revela, traz à luz na perfilação singular e única desse modo de ser, na obra de Arte.

Tudo isso nos leva à constatação de que a Arte na sua essência só pode ser compreendida a partir dela mesma, dentro do médium, do inter-esse dela mesma como o modo de ser da imensidão, profundidade e criatividade da vida humana, portanto como existência ou Dasein e nada mais. É, pois, necessário que ela fale, que deixemos que ela venha a se manifestar, que a deixemos ser, ela, a coisa ela mesma. Mas basta só isso? Na Arte há tantos aspectos, tantas perspectivas, tantos pontos de vista a serem considerados!?… Não a deveríamos enfocar sob aspecto psicológico, sociológico, sob o ponto de vista da crítica da arte, examinar a historiografia da arte, as influências das diferentes épocas, estilos, escolas, biografias dos autores, as suas peculiaridades no uso do pincel, na escolha das cores etc., a sua vida particular e íntima, os seus amigos, seus parentes, vícios e virtudes, suas ideias filosóficas, religiosas, políticas etc., etc.? Tudo isso é necessário levar em consideração, pois o que acima foi dito como existência, como Da-sein artístico, não é propriamente um aspecto ao lado de todos esses aspectos, certamente importante e principal; não é jamais também um aspecto. Existência, Da-sein ou Pré-sença impregna e subsume todos esses aspectos ao destinar-se como se perfazer História na apropriação do seu viver. Esse levar em conta os aspectos acima mencionados, não como critérios de abordagem da Arte, mas sim como elementos subsumidos pela existência artística, é deixar ser Arte ela mesma e não a colocar sob a mira proveniente de um outro “horizonte” que não seja a dela. Deixar a essência da Arte ser ela mesma significa um ingente esforço de continuamente não deixar que ela se des-loque para dentro de uma dimensão, de um inter-esse que não é o dela e que não venha dela mesma. E se constatamos a enxurrada de pontos de vista, a partir e dentro dos quais é mirada a Arte, então ao estar dentro de e no prospecto desses interesses, não considerar esses pontos de vistas como explicações e esclarecimento da essência da Arte, mas antes considerar tudo isso como possíveis vicissitudes da própria Arte como existência artística, portanto como historiar-se do destino da possibilidade radical da existência humana; e tentar interpretar, não através dos pontos de vista e por meio deles a essência da Arte, mas pelo contrário, mirar todos esses esquecimentos, encurtamentos da essência da Arte, a partir do límpido toque da coisa ela mesma chamada Arte; e examinar em todas essas defasagens, em todos esses deslocamentos da essência da arte, se não há de algum modo também ali eco longínquo ou repercussão tênue e quase imperceptível da vigência da Arte. Pois se Arte é como dragão da nossa estória, ela penetra em todos os recantos da garrafa, por mais bruta e grossa que ela tenha ficado, para ver se não restou ali, em qualquer canto, ainda um vazio da caixa de ressonância, que repercuta o toque-dragão. Pois a Arte é tão dragão, que se uma vez solta na sua liberdade de ser, é capaz de fazer “artes” com todo esse esquecimento da essência da Arte; é capaz de fazer de sucatas e “pedaços” descartados de todo e qualquer sentido do ser uma obra de Arte na medida em que traz à “luz”, na inominável e inaudita desolação do sentido do ser e da sua perda, um vislumbre do abismo que se oculta sob a insensível e opaca superfície de tal desolação… Talvez seja isso que está expresso na primeira frase da Confissão criativa de Paul Klee, quando diz: “Arte não reproduz o visível, mas faz visível[47].

  1. Arte e mito

O nosso tema é Mito e Arte. Mito, como se entende usualmente, é narração acerca dos heróis e mistérios da mais longínqua Antiguidade. Outrora, no antanho da nossa civilização europeu-ocidental, a arte se dizia em latim ars, e em grego téchne. Arte como ars, téchne em concreto indica a habilidade, o poder de quem pode e sabe fazer. Mas essa acepção da Arte não é tanto um agir como fazer[48], mas sim um fazer-se, um perfazer-se no se saber poder[49]. No Nordeste, p. ex. no interior do Ceará, ao se apreciar alguém que faz bem o que é o seu, na fidelidade e alegria, na aptidão do conhecimento perfeito do seu metier, se diz: ele é um artista. Artista nesse sentido não tem a conotação estética[50], mas sim de alguém que pode o que sabe e sabe o que pode e está bem assentado, integrado na finitude, na determinação concreta do seu ser ao executar o seu trabalho. Assim, o que hoje entendemos como habilidade de produção, de um fazer, no modo de manufatura, o que na Arte muitos artistas chamam de técnica, pode esconder uma acepção do que acima chamamos de existência ou Dasein na sua densidade, quando o trabalho artesanal se transforma no exercício de uma existência e cunha a pessoa como perfil da existência humana. Aqui surge uma diferença que muitas vezes não é possível ver sem mais nem menos.

Tentemos a seguir à mão do texto de A Origem da obra de Arte de Heidegger citado bem no início da reflexão, nos acercar do Mito, apenas como que a sugerir uma compreensão do Mito, a partir da compreensão da Arte como existência artística.

No texto de Heidegger, temos ‘duas obras’, a saber: a obra de pintura do par de sapatos da camponesa, de Vicente van Gogh e a obra filosófica, na leitura de Heidegger feita da obra de pintura de van Gogh. Aqui não se trata de um par de sapatos, confeccionado artesanalmente de couro, usado anos a fio pela camponesa, ali jogado num canto e visto sob dois pontos de vista: do ponto de vista do artista plástico van Gogh e do ponto de vista do filósofo Heidegger, de tal modo que tenhamos aqui uma realidade objetiva chamada um par de sapatos e dois aspectos subjetivos, um de um pintor, e outro de um filósofo. Aqui, o que temos é simplesmente uma obra de arte, uma coisa nova criada por artista chamado van Gogh. Esse par de sapatos pintado é uma coisa toda própria, nova, mesmo que de fato van Gogh tenha tido diante de si como modelo um par de sapatos semelhante ao da pintura. Pois nesse quadro não se trata de uma reprodução fotográfica de uma coisa visível ali na frente. Trata-se de sedimentação, de cristalização de uma ação criativa que abre todo um mundo, não objetivo, não subjetivo; mas sim, realidade, toda própria, prenhe da existência camponesa. Assim, a obra de van Gogh, por ser Arte, não reproduz o visível, faz visível. É como se a obra de van Gogh fosse uma fenda, através da qual se nos descortinasse toda uma paisagem sui generis da existência camponesa, na dinâmica e na vitalidade, na prenhez de uma realidade tão real na sua densidade de ser, que aqui perguntar se ela existe de fato ou não, ou se é algo objetivo ou subjetivo, é ir para um “outro mundo”, cujo sentido do ser é o do horizonte “algo” já mencionado bem no começo da reflexão. Chamemos tal paisagem que se descortina em leques de implicações das realidades existenciais, i. é, que trazem à obra a existência, de possibilidade. Mas não possibilidade como um estado de coisa a modo de um espaço geométrico, neutro, escancarado, onde não há nenhuma predeterminação, vazio de decisão, infinito a modo indefinido, mas sim possibilidade no sentido da plenitude da potência. Potência ou poder do “pode quem pode”, não no sentido de um talento recebido de graça, um privilégio de nascença, mas sim do dom de uma conquista, enquanto com-crescido, concreto, bem determinado na decisão de ser, bem assentado no perfazer-se do nascer, crescer e se consumar; poder como realização do historiar-se, como perfazer-se no destino do próprio no ser da existência humana. É essa possibilidade que está dita com maravilhosa maestria na descrição de Heidegger dos sapatos da camponesa de van Gogh. É o que o texto de Heidegger chama de Verlässlichkeit, i. é, a confiabilidade à Terra, o estar entregue ao abismo insondável da “vitalidade” da imensidão, profundidade e criatividade de ser, que Antoine de Saint Éxupéry denominou de Terra dos homens. É, pois, isso a existência, o inter-esse. Ou melhor, pré-sença, ou melhor, ainda o Da-sein, a essência, o ser do Homem: a Vida Humana. Na obra de van Gogh e na captação do vislumbre da paisagem nasciva que ali se torna visível, descrita por Heidegger, tudo isso vem ao nosso encontro com beleza, fascínio, a nos seduzir para dentro desse abismo da Vida Humana, para a interioridade e profundidade dessa aventura e ventura radical do eclodir do mundo a partir do enraizamento na Terra dos Homens. É a facticidade e sua densidade existencial levada à perfilação pela e na obra de Arte.

Mas se tudo isso que foi dito de modo sem jeito e desengonçado é de alguma forma o conjunto Arte, o que é o Mito? A hipótese dessa presente reflexão é a suspeita, expressa na seguinte pergunta: o que, no texto acima mencionado de A Origem da obra de Arte é denominado de confiabilidade à Terra não seria o “mundo” do Mito, que no dizer de Heidegger aparece na sua seguinte observação? Diz, pois, Heidegger: “Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir”. Não é isso a existência cotidiana dos nossos afazeres e corre-corre? Não é isso a aparente indeterminação que jamais é uma vacuidade vaga, vazia de sentido do ser, mas é antes um saber tudo isso sem observar e sem refletir, esse simplesmente em sendo? E tão em sendo simplesmente, i. é, no uno de todas as coisas, a ponto de se ser hén:pánta? Lá onde todas as coisas falam, são gente por e para ser pré-sença, claridade-superfície da obscura profundidade oculta do ser-em simplicidade? Mas, então, o que foi mostrado como paisagem, vista através da acima mencionada fenda, pela qual e na qual vimos o mundo tão bem exposto na “descrição” de Heidegger, é o mundo de vigência da vida extraordinária na sua fascinação e beleza, arrancada pela Arte, do esquecimento, da opacidade do banal cotidiano da rotina à claridade existencial? Ou não seria justamente o contrário, a saber, o que, na mira admirável da ação criadora artística, a vitalidade da vigência existencial da paisagem, implícita e aberta na obra sapatos da camponesa de van Gogh, quer conservar na continência da sua densidade não é precisamente o pudor no seu ocultamento desse ser camponês que sabe, pode, conhece, i.é, conasce com tudo isso sem observar, sem refletir, diríamos, sim, sem saber, apenas em sendo limpidamente tosco seco e sóbrio na alegria do pouco saber[51], portanto, contendo no seu bojo, a plenitude do Mito, do Mistério do ser, i. é, a confiabilidade à Terra? qual a superfície da Terra – lá onde todos os dias, a todo momento, todos os entes a pisam sem mais nem menos, sobre a qual andam de lá para cá e de cá para lá – que oculta a humilde profundidade abissal do ser humano; da Terra dos Homens? Se tudo isso e apenas isso, a saber, a rotina da cordialidade-superfície enraizada na contenção de um abismo profundo no seu silenciar imenso, profundo e sereno é Mito, então a compreensão usual do mito como narrativa heróica dos fatos nobres, e extraordinários e maravilhosos dos homens naturais e espontâneos na vitalidade inicial é antes uma arte menor do que Mito; é, antes, um modo deficiente da Arte Maior que vive do fascínio e da beleza da simplicidade inominável do syn plex, i. é, do uno, sem dobras de multiplicações e detalhes extraordinários e transcendentais, do muito sentir, muito viver, do muito querer na excelência de tudo. No momento em que, nesse fascínio e amor à simplicidade, a quer mais viva, mais maravilhosa e se deixa seduzir por esse eflúvio das vivências do maravilhar-se, a Arte comece ela talvez a se inclinar e proliferar como Estética da Subjetividade. A Arte como amor ao Mito não é maravilhosa, é rara[52].

  1. O Mito, abismo insondável do mistério do ser?

Dissemos acima, citando Paul Klee, que a obra de Arte não reproduz o visível, mas faz visível. Ela é como uma fenda. Rasga a rotina da vida usual e nos descortina toda uma paisagem sui generis da existência, na prenhez da mundidade mais profundamente real. Quando a paisagem do ser assim desvelada como mundo está integrada num per-feito assentamento no fundo abissal do ser da existência humana, se dá o Mito. É a entrega confiante do mundo à Terra do abismo insondável do “mistério de ser”[53]. Repetindo com outras palavras o que foi dito: a Arte como o conjunto Arte (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte) é a manifestação da estruturação que se abre como um leque de implicações e explicações, e forma uma totalidade sui generis, o mundo, cujo vigor e pulsações diversificadas da sua vitalidade se fundam no que se denominou inter-esse, ou existência (Dasein) ou essência da Arte. Como é o artista em todo esse processo? Aqui a essa altura da reflexão, entendemos a pergunta não mais referida ao sujeito homem, mas sim ao ser da existência, ao Dasein. Portanto: como é o Dasein, no abrir-se do vislumbre da nova paisagem-mundo, e na entrega do mundo à confiabilidade da Terra? Que força é essa que toca o Dasein e o faz lugar de eclosão, crescimento e consumação do mundo? Usualmente chamamos essa força de inspiração artística. E invariavelmente nos vem a pergunta: quem inspira o artista? Uma força alheia, anterior a ele? Uma divindade, um espírito? Klee fala aqui de criação. Ao explicar porque o artista não reproduz o visível, mas faz visível, Klee mostra que aquilo que aparece diante do artista como este ente ou aquele ente são formas terminais da Criação. O artista, ao ver o visível, o vê como uma determinada forma terminal de um fluxo de uma das possibilidades da força criadora. Assim, a sua mira penetra, através de uma determinada forma terminal, no fluxo criativo que a constitui, para nele rastrear aquela possibilidade das possibilidades da inesgotável vigência do ser, e assim se expor disposto, aberto ao toque da origem do ser, tornando-se passagem da gênese de outra nova possibilidade do fluxo criativo que então constitui outra forma terminal, até então inteiramente desconhecida[54]. A seguir tentemos examinar o que até agora dissemos da essência da Arte sob esse termo usado por Klee, a Criação. Pois esta parece ser uma das características bastante constantes na determinação do que seja propriamente a Arte, a criatividade.

Na nossa reflexão, esse quem, esse quê fundante e originante de todo o processo criativo artístico, que culmina na realização da obra de arte, é o próprio homem ele mesmo. Mas não mais considerado como sujeito e agente do ato criativo, mas como existência, como pré-sença, como Da-sein. Da-sein não é nenhum ente dentro do sujeito homem, nem algum momento do seu ser, mas sim modo de ser próprio do homem que no homem considerado como sujeito e agente do ato não pode aparecer. Pois, nessa consideração, o homem, já de antemão, é posto, colocado como um ente, cujo modo de ser é do objeto ao lado de outros objetos não-humanos. Mas podemos perceber em nós mesmos, em sendo, como é esse modo de ser próprio do homem, pois nós mesmos somos Dasein[55].

Como seria se nos aproximássemos da compreensão do que seja o Da do Da-sein através da dinâmica da criação? É o que vamos tentar a seguir.

Usualmente, quando usamos a palavra criar, pensamos na efetivação, produção, causação ou fabricação. Criar é efetivar, produzir, causar ou fabricar. Nesse sentido, a criação artística seria produção das obras de Arte. Estas, porém, como viemos refletindo, têm um quê todo próprio que as diferencia de outros tipos de produção. Tentamos caracterizar esse quê diferente, dizendo que uma obra de arte é como uma fenda, como uma aberta que nos conduz para dentro de toda uma nova paisagem, até então nunca vista. Ou formulando-se de modo um pouco diferente, uma obra de arte é uma fenda, a partir e através da qual eclode todo um mundo de estruturações da possibilidade humana. O que aqui denominamos possibilidade humana  é o que anteriormente de vários modos tentamos expor como sendo existência, ou inter-esse ou Da-sein. Dasein é a interioridade do Homem, donde vem à luz, vem à fala a obra de Arte, que desvela toda uma nova paisagem da possibilidade de ser. Usualmente interpretamos essa interioridade como um núcleo, dentro do homem, como sujeito e agente da ação de produzir a coisa chamada, obra de arte. E perguntamos: e esse sujeito homem, quando faz a ação de produzir o objeto ‘obra de arte’, donde tira a ‘inspiração’? Há algo ‘anterior’ a esse sujeito-homem que o toca, o move para ação criadora? Com isso voltamos a repetir o que há pouco apresentamos. E se aqui respondermos que há um outro anterior que inspira o sujeito-homem para a produção artística, a pergunta agora passa a ser aplicada a esse algo ou alguém que toca e move o sujeito-homem: quem move aquele que move o sujeito-homem? Desencadeia-se um regresso para o sujeito e agente cada vez “mais anterior”, a perder-se na repetição interminável de pergunta. Todo esse regresso só é possível, porque entendemos o Da-sein sempre ainda como sujeito-quê, i. é, algo, objeto, coisa chamado homem. Esse impasse no fundo é algo parecido com o movimento das rodas de uma locomotiva antiga que ao puxar numa subida os vagões pesados não dá conta do recado e fica a marcar passo, girando vazio, parado num mesmo lugar. É para evitar esse tipo de impasse, no qual sempre de novo ficamos girando vazio no esquema fixo sujeito-ato-objeto, que reconduzimos a estrutura (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte) ao seu fundo dinâmico, ao Da-sein artístico. Esse fundo é sem fundo, no sentido de não haver nada de algo, nada de objeto, nada de coisa, portanto nada de sujeito em si, anterior. O que se dá aqui no Da-sein é apenas o ser do Da[56]. Para de algum modo ‘ver’ como é esse ponto nevrálgico do caráter artístico da estrutura (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte), usemos um conceito tirado da doutrina da Criação do universo na mundividência medieval cristã. O conceito é aseidade e se refere à anterioridade de todas as coisas criadas. Como a aseidade é exclusivamente só atribuída ao Ente Supremo, Deus, corremos o risco de fazer uso inteiramente inadequado desse conceito medieval, se o usarmos para se referir ao ser do Homem, que na mundividência medieval é denominado de ente finito. O nosso interesse aqui, porém, é apenas o de tentar à mão do conceito da aseidade[57] ilustrar de que se trata, quando dizemos que o ser do Homem é Dasein, e colocamos o Da-sein como o ponto de salto do surgimento do mundo. Aseidade vem da expressão latina a se. Significa: Deus na sua essência, no que lhe é próprio, é a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si[58]. A expressão a se foi criada para evitar o uso da expressão causa de si (causa sui). Pois causa sempre nos remete a uma causa superior que se torna causa do efeito que produz. Causa pressupõe o esquema sujeito-ato-objeto. A se porém não supõe nada, nem a si, nem o ato em si, nem o objeto produzido. É então nada? É nada de tudo isso que dizemos assim predicando disso e daquilo, que é, seja o que for[59]. Trata-se, pois, de não determinar a partir de fora o que é. Então se trata de que? É deixar ser a coisa ela mesma no seu ser. O modo de ser do a se não é portanto causa sui? Não. Mas então o que é? Não é um quê, mas sim simplesmente ser, i. é, a se, a partir de si, em si, para e por ser, a soltura de si, liberdade de e em si, a partir de si por e para o deixar-se ser. O deixar-se ser na liberdade, a soltura de si, a se é deixar ser todas as coisas nelas mesmas, também na soltura de si, a se. Mas deixar-ser já não supõe que algo seja, se não em ato, mas sim, ao menos, em potência? É possível deixar ser nada, sem cair totalmente no vazio do nihilismo, nada nadificado, um vácuo, tão vácuo que nem sequer se pode dizer que é vazio? No entanto, esse nihil é o Da do Dasein, a essência, i. é, o ser do Homem na sua interioridade, a mais própria, mais íntima do que ele a si mesmo, a possibilidade de ser ab-soluto na concreção do seu ser. É essa ab-soluta concreção, o sentido próprio do que se chama finitude humana[60]. É assim que alma do Homem, a psyché, que traduziríamos mais adequadamente como Dasein, é todas as coisas[61]. O in, a interioridade do Homem enquanto Da-sein é esse nada que é, na medida em que deixa ser o abismo de imensidão, profundidade e originariedade fontal da potência de ser ser na jovialidade gratuita da doação de si, na liberdade de ser. Essa liberdade de ser aparece sempre nova e de novo ‘contraída’, de-finida como simplicidade da finitude[62] no ser, i. é, no uno, cada vez seu, cada vez novo no surgir, crescer e consumar-se do mundo. É nesse sentido que o Da do Da-sein é passagem, não passagem de uma margem à outra[63], mas o “entre-meio” de cada “coisa”, que a deixa-ser, que a deixa eclodir como mundo. Da-sein é a mercê de, é afim de, é a afinação à gratuidade livre do abrir-se que é no seu fundo a recepção gratuita livre do ocultamento silencioso, humilde e contida da insondável potência de ser. Potência de ser que somente é no instante do abrir-se do mundo na sua finitude. Esse desvelar-se no e como ocultamento do estar-em casa em toda parte, no resguardo do aconchego do que é sempre, a cada instante, como presença modesta, sem nome, anônima do ocultamento, se chama em grego antigo léthe (a-létheia), e na descrição do quadro de van Gogh acima mencionado se chama Terra, e é a pátria, a matriz do mito, que em grego-se diz: mythos[64], cuja raiz significa toar, soar. Assim sendo, mythos não poderia ser a ressonância do assentamento do mundo na confiabilidade da Terra, que aparece, digamos onticamente, nos afazeres e nas vicissitudes dos homens, de imediato, na maioria dos casos como anônima e silenciosa ocorrência de todos os dias? Seria o “realismo” bem “seguro” da serenidade do fundo de todas as coisas? Não seria, pois, a positividade da gratidão e gratuidade de ser, sob cuja tenaz e resistente pele, se oculta a finura e a sensibilidade da tênue vibração de uma dynamis que irriga todas as coisas na sua raiz, protege e conserva o sopro de Vida do Uni-verso?

Isto significa: a opacidade da nossa existência cotidiana, na qual se dá a fenda da criatividade artística, não é asfixia, decadência, ou modus deficiente da beleza, da originariedade ou da vivência do carisma criativa da Arte. É, pois, tênue superfície da imensidão, profundidade e simplicidade da jazida bem assentada no abismo inesgotável da presença do ser, a se desvelar e se ocultar, através da aberta e na clareira do Da-sein, onde toda e qualquer estruturação do ser como mundo é enraizada e entregue à insondável confiabilidade do mistério[65] de ser, i. é, do em-casa da morada abissal da possibilidade inesgotável de ser.

 

Conclusão a modo de uma retratação

Ao terminar essa série de afirmações mal formuladas, sem nada dizer, quais faíscas apenas a piscar de algumas intuições mal elaboradas, para de alguma forma não deixar nas pessoas que tiverem a paciência de ler um blá blá do presente discurso, o mau gosto de uma comida semicru, destemperada e mal ajeitada, gostaria apenas de citar um texto do pensador oriental do caminho do ser: O texto é do pensador chinês Chuang-Tzu, na versão adaptada de Thomas Merton[66] e se intitula: Onde está o Tao?

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.

“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?” “Está na vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?” “Está no pedaço de taco”. “E onde mais?” “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando ‘toda escala do ser’, como se o que chamássemos ‘mínimo’ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a Realidade é o Uno. “Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures, onde todas as muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao é a simplicidade, a paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranquilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente, pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em “limites”, ficamos presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se “plenitude”. O ilimitado do limitado chama-se “vazio”. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um, nem outro. O Tao congrega e destrói. Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo.”

 

XI O QUE É SER MODERNO

Introdução

Esse é o tema acerca do qual queremos conquistar maior clareza. Os pensamentos aqui colocados foram tirados do livro “A Pergunta pela coisa” (Heidegger, 1962).

Nós que estamos aprofundando a espiritualidade franciscana, voltando às fontes, sentimos continuamente a marcante diferença existente entre o modo de ser e pensar dos textos-fonte franciscanos medievais e o nosso moderno. É costume aduzir como o ponto de destaque dessa diferença o advento da Ciência[67], principalmente na sua forma peculiar das ciências naturais. Ora, tornou-se uso explicar a mudança da mentalidade da era medieval para a moderna, dentro do esquema evolucionista de cunho positivista, onde há na História da Humanidade uma crescente evolução de esclarecimento para a maturidade e maioridade racional, cujo ápice atual são as ciências naturais. Temos assim a divisão das épocas da História do Espírito Humano em: era dos Mitos, era das Religiões, era das Filosofias e era das Ciências, ou encurtando a formulação Mito, Religião, Filosofia, Ciência. Nesse processo de evolução se pressupõe o Homem como um vivente que inicia no estado animal irracional que aos poucos cresce para cada vez maior tomada de consciência da sua racionalidade. Religião e Filosofia são como que diferentes degraus através dos quais o Homem, em saindo do obscurantismo do Mito (leia-se superstição) cresce para uma atitude mais racional, mas na Religião permanece ainda bastante impregnada da etapa anterior mítica, para a Filosofia alcançar um grau maior de racionalização. Na medida em que a Filosofia no entanto é questionada nas suas colocações metafísicas, restos por assim dizer da etapa anterior Religião, a razão humana começa a entrar na fase final do seu crescimento, alcançando a maturidade e maioridade da Humanidade Científica. Sem entrar na análise e no questionamento de tal simplificação esquemática da História Humana, mesmo aceitando de alguma forma um tal modelo de evolução, não teríamos nada à mão com uma tal explicação, se não determinarmos mais acurada e concretamente em que consiste a essência p. ex. da era da Ciência. Com outras palavras, de que se trata, quando dizemos que a nossa época moderna se caracteriza como era da Ciência?

1 O esquecimento hodierno da questão-ciência

Nós, hoje, dificilmente conseguimos sentir o impacto da transformação operada pelo advento das Ciências Naturais, como o sentiram um Copérnico (1473-1543), um Kepler (1571-1630), um Galileu (1564-1642), um Descartes (1596-1650) ou um Pascal (1623-1662). É que as ciências se nos tornaram coisas usuais do nosso cotidiano moderno como um saber, um instrumento e meio entre outros saberes, instrumentos e meios, como um ente entre outros entes que constituem a coisa do nosso mundo moderno. A essência da Ciência foi por assim dizer domesticada, a ponto de ela se retrair naquilo que constitui o seu próprio ser, o seu vigor originário, de tal modo que somos nós quem temos as ciências, somos nós que somos os sujeitos e os agentes desse meio instrumental da existência, e não mais uma possibilidade existencial e epocal, decisiva para a caracterização historial da nossa era.

É que algo como Ciência é somente uma parte esotérica de um evento epocal esotérico profundo, cujo vigor atinge a existência humana no seu núcleo, colocando-a, desde o fundamento, na crise de uma nova responsabilização de ser, numa nova tarefa de ser. Toda a tentativa de pensadores modernos como Descartes, Pascal, Leibniz, Kant e Nietzsche etc. era de despertar a Humanidade para a essência desse evento de transformação radical, cuja captação e compreensão se tornam cada vez mais decisivas também para nós, hoje, Daí a necessidade de compreender cada vez melhor o caráter próprio da Ciência, principalmente na sua forma como Ciências Naturais.

Nós conhecemos muitas coisas da História desse evento. Mas não temos ainda muitos pontos de referência para ter uma compreensão mais profunda e adequada do evento denominado Ciência Moderna. Mas uma coisa é certa: o acontecimento da assim chamada “revolução copernicana” só se deu, tendo como o fundo a dinâmica de mudanças paulatinas subterrâneas que duraram séculos, no empenho de questionamento e no confronto sobre conceitos e princípios fundamentais do pensar, isto é, sobre a impostação fundamental para com as coisas, isto é, com o ente no seu todo.

2 A ciência moderna, herança da razão ocidental

Um tal confronto, no entanto, só poderia ser realizado e executado, tendo-se um perfeito domínio do conhecimento medieval e antigo da Natureza e ao mesmo tempo domínio perfeito de novas experiências e processos e métodos. Atrás, porém, de uma tal dinâmica de busca estava pulsando a paixão sui generis de um saber todo próprio e dominante que antes de tudo e continuamente e sempre de novo coloca em questão suas próprias pressuposições e busca sempre de novo o fundo do que ali já prejaz. Esse impulso, esse clã de fundo é o que chamamos de Razão Ocidental, o vigor originário, cujo deslanche vem dos gregos. É, pois, a nossa herança grega. Isto significa que nas Ciências Naturais Modernas pode estar vindo de encontro a nós, de modo ambíguo e ainda apenas invocativo, o vigor fontal do Ocidente que nos gregos teve o seu oriente inicial.

A transformação da Ciência é sempre de novo realizada por ela mesma. Em se movendo em transformação, a Ciência se processa de duas maneiras:

  • A modo da experiência do trabalho, isto é, no domínio e no uso do ente: técnica e prática.
  • A modo de projeto do saber fundamental do ser, o qual se constitui como saber e conhecimento: teoria.
  • Esses dois momentos, experiência do trabalho e lance projectivo do ser, num mútuo relacionamento interativo, se perfazem como a estruturação fundamental de comportamentos da existência humana.

3 As pretensas características da ciência, hoje

É costume caracterizar o próprio da Ciência em contraposição ao saber antigo e medieval dizendo: A Ciência parte dos fatos, ao passo que os antigos partiam dos conceitos e princípios especulativos.

Embora até certo ponto possa ser correta essa diferenciação, acontece que também os antigos observavam fatos e com que acuidade e em detalhes! E também a Ciência lida e trabalha continuamente com conceitos e princípios gerais e abstratos[68]. Assim, não basta simplesmente colocar a diferença nos moldes de “hoje fatos, ontem conceitos e princípios especulativos”, se não se busca determinar o decisivo, a saber, o que é que deve ser entendido cada vez com fato, conceito e especulação.

Aqui é necessário recordar que todos esses grandes pesquisadores da Ciência, que foram por assim dizer os fundadores da Ciência como p. ex. Copérnico, Kepler, Galileu, eram também filósofos. Eles sabiam que não há nenhum fato puro; que um fato é somente o que é, à luz de um conceito fundante, cada vez conforme ao âmbito, à envergadura, à extensão de uma fundamentação. A afirmação de que a Ciência lida com fatos, portanto, com a realidade objetiva e não como conceitos e especulação, isto é, com o irreal, com o subjetivo etc., caracteriza não tanto a Ciência, mas uma interpretação dominante da Ciência, chamada Positivismo. Este diz: basta o fato, o fato é explicado por outros fatos e novos fatos. Conceitos são apenas meios auxiliares no caso de emergência (nominalismo, cifras, códigos etc.); não devemos nos ocupar muito com eles, pois tudo isso é coisa da filosofia antiga e medieval e da especulação sem apoio na realidade etc. Hoje, a Filosofia deve se tornar científica. Tornar-se muito mais científica do que o próprio positivismo que ainda opera num certo dogmatismo “filosófico-ideológico”.

Há aqui certamente um grande equívoco. O equívoco de querer aprofundar, vencer o positivismo por uma filosofia que pesquisa mais, traz novos fatos e dados, portanto com o modo de ser do próprio positivismo mais moderno, mais diferenciado e avançado. Tal equívoco, uma tal atitude “cientificista” só acontece, lá onde só se fazem pesquisas de consequências e usuais; e não lá onde se fazem pesquisas fundamentais, onde se abrem novos horizontes, novas fronteiras, lá onde a Ciência progride na crise de seus conceitos fundamentais. Assim, caracterizar a Ciência como saber dos fatos é por princípio muito insatisfatório.

Diz-se também que a diferença e o próprio da Ciência está nisso que os antigos faziam conjecturas opinativas sobre a realidade, ao passo que a Ciência faz experimentação ou experimento e prova e fundamenta seus conhecimentos experimentalmente; a Ciência é essencialmente experimental.

Só que o experimento é uma ação de aquisição de informações sobre uma coisa e seus comportamentos através de uma ordenação e sequência de coisas e acontecimentos. Tal ação praticavam também os antigos e os medievais. Pois tal tipo de experiência está inteira e intimamente ligado e referido ao lidar artesanal e instrumental com as coisas; no que os antigos e os medievais eram exímios mestres! O decisivo aqui não está somente em ser experimental, mas sim no modo e na medida como o experimento é posto, é colocado, a partir de onde e para onde ou onde e como está fundamentado. Tudo isso depende pois da determinação conceitual dos fatores, do conceito-projeto da coisa.

Diz-se também que a Ciência se caracteriza por ser saber que calcula e mede, ao passo que os antigos e os medievais não combinam medições e cálculos exatos, contentando-se com probabilidades de observações imperfeitas. Portanto, cálculo e medição sérios o próprio da Ciência, do Moderno?

Acontece porém que os antigos e os medievais trabalhavam com medidas, números e medidas. Mediam e calculavam com maestria. Basta nesse sentido só olhar para as construções maravilhosas de suas catedrais. A questão é porém como e em que sentido as medições e os cálculos são colocados, elaborados e conduzidos, e que consequências tem para a determinação dos próprios objetos.

4 Caracterização da ciência moderna, o matemático

Mas, então, como é que se caracteriza a Ciência? Como captar o seu modo de ser próprio na sua diferença? O que cunha o seu modo próprio da Ciência Moderna, o modo epocal de ser novo?

Resposta: o que cunha o seu modo próprio da Ciência como o apanágio da Modernidade é o Matemático.

Acima dissemos: o duplo traço do impulso que constitui o élan e a paixão do saber da Ciência e sua epocalidade é o trabalho de lida com as coisas e o lance do projeto sobre o ente no seu todo, no seu ser, portanto, do projeto metafísico da coisidade da coisa: esse duplo momento do impulso se caracteriza como “matemático”, recebe a qualificação denominada “o matemático”. Assim diz Kant: “Eu, porém, afirmo que em toda a doutrina especial da Natureza pode ser encontrada somente tanta ciência propriamente dita, quanta ali pode ser encontrada matemática” (Kant). Mas então o que é Matemático?

5 O que é o matemático?

A tentação é de responder dentro da concepção usual da matemática, dizendo: o matemático é o que se refere à disciplina científica chamada Matemática. A Matemática é uma ciência estudada e cultivada nas faculdades de Ciências Naturais. Essa resposta, porém, não diz essencialmente o que é propriamente o Matemático, pois o classifica dentro de um modo de ser determinado, diríamos congelado na forma da disciplina matemática. Para intuir o que é o matemático na sua essência fosse talvez útil recordar o significado do matemático na antiga experiência grega.

Podemos assim dizer de início que o matemático é o que está referido à matemática. A palavra “matemática” se refere às palavras gregas: mathésis, manthanein, ta mathémata. Ta mathémata são coisas “aprendíveis” e ao mesmo tempo ensináveis. O verbo é manthanein que significa aprender. O substantivo mathésis significa então ensinamento, ensino, mas também a ação de ir ao ensino, isto é, aprender o que se ensina. Aprender e ensinar estão intimamente ligados no verbo manthanein. Mas para que possamos entender o que é ta mathémata, mathésis e manthanein é necessário examinar como os gregos distinguiam as coisas, os entes.

Os gregos distinguiam ta physika as coisas ou os entes enquanto surgem e eclodem a partir de si: coisas da natureza; ta poioumena as coisas enquanto são feitas através das mãos humanas, coisas produzidas manufactualmente e como tais ali estão diante de nós; ta chremata as coisas enquanto estão continuamente no uso e à disposição do uso: pode ser physika ou também ta poioumena conquanto que estejam em uso; ta pragmata as coisas enquanto são tais com as quais nós temos a ver, sejam que as elaboremos que estejam referidas à praxis. Esta é ação de prattein ou prassein que significa perfazer, agir, realizar. É um fazer que é diferente de poiein (cf. ta poioumena) Pois aqui trata-se não de fazer, fabricar, produzir, mas, sim, em fazendo isto ou aquilo, tornar-se; iniciar, crescer e consumar-se; fazer-se, fazer e tornar-se obra. É uma ação toda própria do ser humano, na qual, na medida em que age e cria obras, vai crescendo, aumentando cada vez mais no seu próprio ser, conhecendo e conhecendo-se, isto é aprendendo.

Mathesis, manthenein, ta mathémata têm a ver com a ação e o efeito de um tal aprender. Esse tipo da aprender-práxis é uma espécie de recepção, captação, tomada de posse, apropriação, dispor de coisas. Mas, na realidade, nós não nos apossamos da coisa, mas apenas do uso. Aprender é pois dispor o uso das coisas. É tomar e se apropriar não de coisas, mas sim do uso da coisa. A tomada de posse acontece pelo próprio uso. Esse modo se apropriar-se do uso se chama exercitar-se ou exercício. Exercitar-se é uma modalidade de aprender. Mas nem todo o aprender é exercitar-se. Isto significa que existe um aprender que é mais do que exercitar-se? Sim. Como? É o aprender todo próprio chamado mathesis o aprender “matemático”. Como é esse aprender “matemático”? Tentemos entender o que é esse modo de aprender por meio de um exemplo. Eu me exercito no uso de arma. No exercício tomamos o, nos apossamos do uso da arma, isto é, do modo, da maneira, da lida com ela. O nosso modo de lida e convívio com a arma se coloca, se dispõe naquilo que a arma exige para ser usada. Isto significa que na lida, não somente lidamos com, dominamos a função, mas em usando, ao mesmo tempo aprendemos a conhecer a coisa. Aprender assim é sempre aprender a conhecer. O aprender como exercitar-se, aprender o uso, apossar-se do uso, pode assim ser elevado para um nível de práxis mais perfeito como aprender a conhecer a coisa. Portanto, aprender no sentido de mathesis pode ter duas direções: a) aprender o uso e a aplicação; b) aprender a conhecer a coisa.

No aprender o uso e a aplicação (a), o conhecimento da coisa ela mesma permanece num nível bem limitado. Posso saber, por exemplo, o uso da arma, mas não sei como é construída a arma. O segundo (b) é um aprender que se abre ao conhecer a coisa ela mesma. Aqui se abrem diferentes níveis e extensões cada vez mais crescentes do conhecer. Para quem, por exemplo, não somente quer aprender a usar a arma, mas também fabricar a arma, não basta aprender o uso, mas é necessário aprender a conhecer de que se trata, em diferentes níveis de profundidade do conhecimento, até chegar ao conhecimento disso que a coisa ela mesma é, como ela mesma é. Na medida em que aprendemos a conhecer a coisa no que ela é e como ela é, portanto, aprendemos a conhecer o ser da coisa como tal, aprendemos também a ensinar o que e como ela é. O exercitar-se e usar é portanto somente um momento ou nível limitado daquilo que é possível aprender na coisa. Daí, o aprender originário é aquele tomar conta de, aquele apossar e aquele captar que é aprender a conhecer o que uma coisa é, o seu ser.

Mas o que uma arma p. ex. é, o que um ente ou objeto de uso é, o ser, portanto, nós já sabemos propriamente. Quando pegamos numa arma, quando queremos conhecer uma arma de um determinado modelo, não estamos propriamente aprendendo, aprendendo a conhecer o que é uma arma. Pois o é, o ser de qualquer coisa que seja, nós já sabemos antes de pegá-la, do contrário não poderíamos nos relacionar com ela e captá-la como tal. Somente enquanto nós de antemão, a priori, sabemos o ser de uma coisa, somente assim, o que nos é proposto, anteposto, se torna visível, captável naquilo que é. Só que, nós sabemos o que é uma coisa e certamente de antemão, a priori, mas de um modo assim geral, de modo indeterminado. Esse modo assim geral, indeterminado de conhecer chamamos também de saber operativo. Quando, porém, levamos, conduzimos esse saber indeterminado, geral e operativo a um conhecimento mais próprio, mais temático, então tomamos conhecimento do que já antes tínhamos como conhecimento. Esse “tomar conhecimento” do que já antes sabíamos em sendo é propriamente a essência do aprender que em grego se chama mathésis, isto é, “matemático” num sentido originário e profundo.

Através dessas descrições da mathésis importa tentar intuir o que é um saber chamado “matemático”, fazendo a seguinte reflexão vivenciada:

Þ Para que possamos conhecer a coisa, já de alguma forma devemos saber o que é e como é.

Þ O que é e como é, a saber, o é, o ser de uma coisa nós o sabemos já, em eu sendo. Embora eu e a coisa sejamos bem diferentes, estamos no mesmo ser, em sendo, eu aqui, a coisa lá na minha frente. Tanto eu como a coisa é, em sendo, somos entes. Esse ser, o sentido desse é, eu já sei, já conheço em eu sendo. Antes de entrar em contato com a coisa ao redor de mim, eu, em sendo, já conheço, sei o que é ser, tenho uma pré-compreensão do ser. Mas essa pré-compreensão do ser somos nós mesmos enquanto em sendo somos. É uma compreensão operativa, em sendo, geral, indeterminada, passível de tornar-se mais clara e distinta.

Þ Importa tentar se conscientizar bem que esse trazer à claridade a pré-compreensão do ser que já sempre somos nós mesmos, em sendo, é a experiência do “matemático”, isto é, do manthanein.

Þ Esse processo e exercício do aprender, a mathesis, o “matemático”, esse aprender a conhecer o que já sempre conhecemos em sendo, conhecer o que sempre já somos, é o “pensar”. É bom tentar vivenciar o que é “eu penso” através do seguinte exercício.

Ficar a sós em sua cela, ou em algum lugar bem quieto. Sentar-se comodamente, tentar relaxar, tirar toda a tensão, esquecer todas as preocupações, decidir-se a perder tempo com esse exercício. Ficar quieto e em silêncio. Deixar que tudo ao redor de você e dentro de você seja captado como se você fosse um espelho límpido transparente que tudo apenas registra serenamente. Se surgirem pensamentos, sentimentos, vivências, reações físicas, os barulhos de fora, o calor, o frio, o mosquito, apenas registrá-los silenciosamente, deixar tudo ser como é, serenamente. Ver e captar a si mesmo e tudo que está dentro de si e fora de si como coisa que ali está sendo espelhada por você que é ao mesmo tempo o espelhado e o espelho igualmente. Deixar que a quietude de apenas captar e ser captado tome conta de tudo, de todo o seu ser, de tudo que está ao seu redor, tornar-se sereno, translúcido, silencioso, quieto, apenas você mesmo como serenidade, cristal de clara captação. Esse estar ali aberto, disposto, sereno, apenas tudo captando é o que Descartes denominou de espírito, boa mente, ou “cogito-sum” e Kant mais tarde de Razão Pura[69].

6 O Matemático como aquilo que se aprende como o que sempre já se tem e se é

Assim, ta mathémata, as coisas matemáticas são “coisas” enquanto nós as tomamos em conhecimento como aquilo que nós já de antemão, isto é, a priori e propriamente conhecemos. Trata-se no manthanein e na mathésis, portanto, de um captar, tomar e receber todo próprio, altamente estranho, no qual, quem capta, toma e recebe, somente toma e recebe o que ele no fundo já tem e é.

A esse aprender a aprender corresponde também um ensinar todo próprio. Ensinar aqui é certamente dar e oferecer, mas o que é dado, oferecido no ensinar não é o que pode ser aprendido ou ensinado. O que é dado ao aluno não é outra coisa do que senão apenas aceno, incentivo para que ele mesmo tome, capte de si a si mesmo o que já é, o que ele já tem e o tem. Se o aluno toma o que lhe é oferecido, ele não aprende. Só vem ao aprender, se experienciar o que ele toma como o que ele propriamente já tem e é. Há somente um verdadeiro aprender lá onde a tomada e a recepção do que a gente já tem e é, é um dá-lo a si mesmo, é um vir a si de si mesmo como autoevidenciação. Daí, ensinar não é outra coisa do que deixar o outro aprender, isto é, mutuamente se deixar aprender. O verdadeiro professor se diferencia do aluno apenas nisso, que ele pode aprender melhor e propriamente mais quer aprender. No todo do seu ensinar aprende mais quem ensina assim[70].

Nesse sentido diz Martin Heidegger no seu livro O que evoca o pesar?:

Ensinar é mais difícil do que aprender. Isto a gente sabe muito bem; mas ponderá-lo se faz raras vezes. Por que ensinar é mais difícil do que aprender? Não por isso, porque quem ensina deve possuir a maior soma de conhecimentos e tê-la a cada momento à sua disposição. O ensinar é mais difícil do que aprender por isso, porque ensinar significa: deixar aprender. O professor propriamente dito não deixa a não ser apenas aprender, nada mais do que aprender. Por isso o seu agir desperta muitas vezes também a impressão de que com ele não se aprende propriamente nada, enquanto aqui a gente imperceptivelmente entende por “aprender” somente a angariação de conhecimentos úteis. O professor está apenas nisso à frente dos alunos aprendizes, que ele, ainda muito mais do que eles, tem que aprender, a saber: o deixar aprender. O professor deve poder ser mais ensinável do que os alunos. Ele é muito menos seguro da sua coisa do que os alunos o são da sua coisa. Por isso, no relacionamento de professor e alunos, quando ele é verdadeiro, jamais entra em jogo a autoridade de quem-sabe-muito e a influência autoritativa do autoritário de quem foi incumbido da missão. Por isso, permanece uma causa sublime ser quem ensina, o que é totalmente diferente de ser famoso como docente (Heidegger, 1961, p. 50).

7 O matemático como o a priori

Esse tomar em conhecimento o que já antes sabíamos é propriamente a essência do aprender, do manthanein, da mathésis.

O que é pois o Matemático? É aquilo que nós já conhecemos nas coisas, o qual não tiramos primeiro das coisas, mas num certo modo já nós mesmos trazemos junto, conosco. Este aprender, este tomar em conhecimento o que nós já sempre sabemos e somos até ao fundo abissal que se abre em nós mesmos é a célebre frase do oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!”. É por isso que no portal da academia de Platão estava escrito: “Ninguém que não tenha captado o matemático, jamais tenha entrada aqui” isto é: Ninguém ageométrico jamais entre[71]!

Mas como é que esse conhecer apriorístico, onde nada vem de fora, mas tudo, por assim dizer, se desdobra e se ex-plica de dentro, a partir de dentro, aparece como matemático dos cálculos e medições matemáticas da nossa era moderna, nas ciências?

É que, nos cálculos e medições matemáticas da própria disciplina chamada matemática, o que conhecemos assim pela medição e cálculo não é aquilo que nós conhecemos nas coisas, tirando-o primeiro das coisas, mas sim num certo modo o que já trazemos nós mesmos junto conosco e depositamos, lançamos de antemão sobre as coisas. Assim o modo de saber e conhecer matemático é bem diferente do contemplar medieval.

8 O matemático como a “concepção da mente”

Esse modo de ser a priori aparece nitidamente numa famosa frase de Galileu[72]:

Eu conheço mentalmente um corpo móvel, excluindo todo impedimento: assim consta disso que num outro lugar foi dito extensamente que o movimento desse corpo sobre o plano será igual e sempre, se o plano se estende infinitamente[73].

Diz Galileu “Eu concebo”, isto é, me lanço por sobre, ajuntando tudo sob o que se torna determinante de antemão, saltando por sobre as coisas, tendo já o que é decisivo para todas as coisas atingidas por esse lance. Assim nesse lance sobre todos os corpos vale de antemão:

® que todos os corpos são iguais;

® nenhum movimento é especial, destacado;

® cada lugar é igual ao outro;

® cada momento do tempo é igual ao outro;

® cada força se determina, segundo o que causa a mudança do movimento, entendido como movimento de mudança de localização. Assim, Todas as determinações sobre o corpo são esboçadas num traçado básico de um plano, segundo o qual o processo e o fato da Natureza nada mais são que determinação ou definição espaço-temporal do movimento uniforme dos pontos de massa, numa totalidade, cuja, medida é homogeneamente igual em toda parte.

A partir do que foi dito, resumamos a essência do Matemático em alguns itens:

Þ O matemático é um “mente concipere”, isto é, um projeto lançado por sobre as coisas. O projeto abre então um espaço de jogo, onde as coisas, isto é, os fatos se mostram.

Þ Dentro desse projeto é posta a medida, pela qual as coisas são tidas como aquilo que é apreciado no seu modo próprio, de antemão.

Þ Apreciar ou ter por, em grego, é axioó. As determinações e as sentenças que predeterminam de antemão no projeto são axiomata (axiomas). Axiomas são princípios fundamentais que colocam o fundo de antemão para as coisas.

Þ O projeto matemático, enquanto axiomático, é o lance conceitual prévio, a ordenação prévia para dentro da vigência das coisas, dos corpos. Com o projeto matemático é preparado o esboço fundamental de como cada coisa e cada referência de coisa a cada coisa é construída.

Þ Este esboço fundamental dá a medida para delimitar a região, o âmbito, ou a área que daqui por diante abrange todas as coisas que tem a mesma “essência”[74].

Þ Natureza não é mais aquilo que como substância é a capacidade e possibilidade interior dos corpos, o que lhes determina cada vez a sua qualidade, a sua forma de movimento e o seu lugar, o seu habitat próprio. Natureza agora é a região dentro do projeto axiomático. É a Natureza das Ciências naturais. Essa região tem a caracterização de ser um conjunto de movimentos referidos um ao outro dentro da homogeneidade do tempo e do espaço, igual em toda parte e a cada tempo, dentro do qual (conjunto) os corpos são inseridos e estendidos e somente assim podem ser corpos.

Þ Tal região da Natureza dita e determina o modo de acesso, o modo de abordagem próprio para corpos e corpúsculos que assim se acham no âmbito de sua abrangência.

Þ O modo de interrogar e determinar o conhecimento da Natureza não mais é orientado e dirigido por opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não possuem mais propriedades, forças, capacidades ocultas, mais profundas e interiores. Os corpos da Natureza são apenas isto como eles se mostram dentro do âmbito do seu projeto.

As coisas agora se mostram apenas em referência à localização pontual no espaço e no tempo homogêneos, em referência à medida homogênea de massa e das forças atuantes.

Como as coisas se mostram é pretraçado através do projeto. O projeto determina por isso também o modo da captação e da sondagem do que se mostra, isto é, determina o modo da experiência. Porque agora a sondagem é determinada de antemão pelo esboço fundamental do projeto, o interrogar pode ser ajeitado de tal maneira que se põem de antemão condições, às quais a Natureza deve responder assim ou/e assim. O interrogar é uma interpelação produtiva à Natureza. Tendo no fundo esse projeto matemático, experiência se torna experimento ou experimentação no sentido moderno.

A Ciência é experimental por causa do projeto matemático. O impulso experimental para com os fatos é uma consequência necessário do a priori matemático, isto é, do saltar por sobre todos os fatos predeterminado o seu modo de ser e o âmbito do seu aparecer[75].

Segundo o que foi dito, o projeto coloca a homogeneidade e uniformidade de todos os corpos segundo espaço, tempo e relacionamento de movimentos. Por isso, possibilita, fomenta e exige ao mesmo tempo como o modo de determinação das coisas a medida igual do início até ao fim, isto é, medição numérica quantitativa[76].

O modo do projeto matemático dos corpos segundo Newton nos levou à formação, a constituição de uma determinada “matemática”, no sentido estrito, como a temos na disciplina chamada Matemática.

Dizer que o Matemático é o próprio da Ciência não quer dizer que o Matemático no sentido essencial deva ter a forma da matemática no sentido estrito da disciplina Matemática. Na realidade, a possibilidade de a Matemática do cunho especial enquanto medição e cálculo numéricos ter podido entrar no jogo da epocalidade e dominar não é a causa mas sim uma consequência do projeto matemático no sentido essencial[77].

O que dissemos à mão da famosa frase de Galileu e a sua variante em Newton é o que está no fundo dessa caracterização da Ciência, isto é, das Ciências Modernas como o Matemático, o característico essencial da nossa era moderna.

9 O ser da modernidade como o profundo prejacente no matemático

Esse Matemático essencial que aparece escondido na forma da Matemática como cálculo e medição numérica quantitativa, possui um fundo mais pro-fundo. É necessário captar esse fundo para entendermos bem como é o ser do Moderno, sua essência e o seu modo próprio de ser.

Dissemos acima que o Matemático é a estrutura fundamental das Ciências Modernas. Estas constituem um dos traços básicos do modo de pensar e ser epocal moderno. Todo o modo de ser e pensar assim epocal pertence à facticidade da existência historial: à decisão acerca da colocação fundamental ontológica, isto é, em referência ao Ser e ao modo como o ente se revela como tal no seu todo, a saber como verdade epocal. Somente assim, mostrando o Matemático dentro dessa perspectiva é que podemos compreender quão diferente é o modo de ser e pensar antigo e medieval e o nosso moderno, e ao mesmo tempo captar um toque de contato num nível de ser mais profundo e radical. Para podermos ver melhor a essência do Matemático nesse sentido essencial como o próprio do nosso modo de ser e pensar moderno, é necessário examinar qual é a nova colocação fundamental acerca da existência humana que se mostra nessa dominação do Matemático e em que sentido o Matemático, conforme o élan correspondente da estrutura interna da sua essência, se torna hoje uma determinação filosófica nova da existência humana.

10 O matemático e o “eu penso” de Descartes[78]

Essa nova colocação fundamental acerca da existência humana e com isso, através dela, também acerca do ente na sua totalidade aparece no modo como o existir humano moderno se comporta para com a Tradição. Aqui à primeira vista parece haver uma ruptura radical diante do passado. Costumamos citar Descartes como aquele que realizou a ruptura revolucionária contra o passado, no pensamento moderno.

É que tal posicionamento da realidade como o que acima foi refletido acerca da concepção da Natureza nas Ciências Naturais, reduzindo tudo à Matemática de cálculos e medições numéricas quantitativas, fez com que se colocasse em questão a concepção que se tinha até então da realidade física. É por isso que a Modernidade se inicia através da assim chamada “dúvida metódica” de Descartes. Costumamos dizer que Descartes, em duvidando metodicamente de tudo, a modo de alguém que diz “suponhamos, façamos de conta que tudo é duvidoso”, nos conduz gradualmente de um conhecimento mais duvidoso para um menos duvidoso, até numa aproximação cada vez maior se achegar à verdade certa e indubitável no fato da existência de um eu que tudo pensa, tudo sente, tudo percebe, portanto do eu-sujeito, do núcleo do solipsismo do subjetivismo moderno. Daí, a nossa mania de colocar o pensamento moderno como Filosofia da imanência do Subjetivismo, unilateral, centrado em si, antropocêntrico, em contraposição à Tradição que era realista, aberta ao Ser, teocêntrica, universal etc. Mas, talvez em Descartes, a afirmação absoluta do “Eu penso, logo sou” não tenha muito a ver com o subjetivismo, nem com a imanência antropocêntrica, mas sim com o Matemático das Ciências Modernas.

Pois na Modernidade, através das Ciências Naturais iniciantes, aos poucos, com a redução da explicação da Natureza à extensão quantitativa, a movimento, massa e suas localizações no tempo e no espaço homogêneo, começa a dominar a compreensão matemática do universo. A essência do Matemático que aparece aqui nessa interpretação físico-matemática do universo, do mundo, ultrapassa o nível das Ciências Naturais, portanto ultrapassa o âmbito da região Natureza, e se mostra como a dinâmica do projeto a priori, lançado não tão-somente por sobre os corpos físicos da Natureza, mas sim por sobre o ente no seu todo ou os entes na sua totalidade, pondo-lhes de antemão a medida pela qual os entes podem e devem aparecer como entes. Esse projeto tem por pretensão e exigência fundamentar-se, fundar a si mesmo a partir e dentro de si, a ponto de que nesse caso tudo que vem à fala já tenha estado ali como sempre sabido. Essa paixão de autoidentidade implica que se coloque em questão todo o saber de até então, independentemente do fato de se esse saber era sustentável ou não. Nesse sentido Descartes duvida, não porque é céptico. Ele duvida de tudo porque coloca o Matemático como o absoluto fundamento para todo o saber. Ele busca encontrar não somente uma lei fundamental para o reino da Natureza, mas para o saber do ente no seu todo. Essa posição fundamental matemática não pode ter nada que seja anterior a ela, não admite, não suporta nada que lhe seja dado previamente. Nada aqui pode ser pressuposto[79]. Se aqui algo é dado, então deve ser tão-somente a própria posição (como ato, como ação), no sentido do pensar que põe o projeto como autoposicionamento autônomo do matemático, isto é, da evidência a partir de si, nela mesma. É o pensar que se pensa a si mesmo. Isto é: tomar em conhecimento, tomar conhecimento do que nós já somos: o manthanein.

Como tal, essa posição do próprio posicionar a si mesmo é o “eu”: “eu penso”. O pensar aqui é sempre caracterizado como EU penso, ego cogito. Nesse “eu penso”, nessa ação do autoposicionamento[80] é que aparece a experiência do “eu”. E essa experiência da densidade de ser “eu” se expressa na fórmula: sou. Cogito, ergo sum, isto é, cogito: sum = cogitans sum, em pensando sou. É pois a imediata segurança da posição como autoresponsabilização, a densidade de autoidentidade da autopresença de si a si mesmo: = subiectum, isto é, o sujeito, não no sentido de uma substância que ali ocorre como núcleo de referência de acidentes que sobrevêm a ela, mas sim no sentido de subjacência, isto é, assentamento, dominância plena e cheia p. ex. de um tom fundamental que pervade e impregna tudo, portanto subjacência dominante e bem assentada da autonomia da autoevidência e autoidentidade do autoposicionamento. Este sujeito-eu a modo de ser do Matemático não é nada de “subjetivo” como uma propriedade do Homem. Somente quando a essência, isto é, a vigência, a dominância prejacente do tom fundamental do Matemático que é e está no “Eu” não é mais visto, é que caímos na interpretação subjetivista do eu como se fosse uma substância centrada no eu-núcleo solipsista.

O “Eu penso: sou” assim compreendido, portanto não é o polo subjetivo de um outro polo objetivo chamado coisa, diante de mim. Nesse modo de ser do “Penso” o esquema Sujeito – Objeto, no sentido usual, desaparece inteiramente. Antes o que chamamos de objeto não é outra coisa do que o vir à fala do Sujeito-Eu na sua autoidentificação. Pois no Cogito, isto é, em pensando, em coagitando a modo do lance de projecto, portanto em projectando a possibilidade a priori de todos os entes no seu todo, se inaugura, funda-se o modo de ser, em cuja dinâmica os entes vêm de encontro a lance do projeto, isto é, de encontro a “Mim” como ob-jeto, isto é, o explícito do projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto[81].

11 Eu-sujeito como substância e o sujeito-eu como o matemático[82]: a essência do moderno como subjetividade

O eu como “eu penso” não deve ser entendido como uma substância-coisa-sujeito que emite um ato de pensar (modelo do pensar substancialista). O “eu penso” deve ser entendido como a experiência originária que o homem tem de si mesmo, de modo imediato, concreto, vivenciado como autoevidência, autopresença do autoposicionamento de si a partir de si, como estar-ali na disposição de ser, enquanto lance e projeto a partir de si e em si mesmo.

Este “eu penso” como autoevidência, autopresença imediata do ser do homem a si mesmo é o que denominamos de matemático ou mathesis. Um saber que se determina de antemão como aquilo que contém tudo em si e está na feliz posse de si mesmo. A consciência feliz, plenamente realizada, dessa autoposse de si é o que Descartes chama de bona mens ou espírito: isto é, “eu penso”. Para Descartes a ciência, o saber, o conhecimento, isto é, a mathesis não é outra coisa que a plena realização do “eu penso” ou do espírito: é o próprio espírito plenamente ele mesmo.

Aqui portanto o “eu penso” é o modo de ser que caracteriza o próprio do homem, de ser sempre já a partir de si, de estar sempre consigo mesmo. Se o próprio do homem é esse modo de ser, então o homem encontra o seu progresso não na aquisição dos conhecimentos mas sim no esvaziamento deles. Mas em que sentido?

Até Descartes, a tradição ocidental definiu a verdade, isto é, o conhecimento verdadeiro como adaequatio rei et intellectus: como o espírito, indo à realidade, o saber adequando-se, dirigindo-se à coisa. Daí, a verdade ser adequação, correspondência, concordância do intelecto com a coisa e da coisa com o intelecto. Agora com Descartes, com a descoberta do “eu penso”, isto é, do matemático como o princípio básico de todo e qualquer conhecimento verdadeiro, a verdade não é mais o movimento de relacionamento do sujeito-eu-coisa com o objeto-coisa, do ir de encontro à coisa, abrindo-se a ela na adequação ou concordância. É antes simples, imediata e concretamente o eclodir, o abrir-se do próprio dar-se do espírito.

Na compreensão usual da teoria de conhecimento, conhecer é um ato do sujeito-substância simplesmente dado, entre outros atos do mesmo sujeito de p. ex. volição, sentimento etc. Nesse ato de conhecimento o eu-sujeito se dirige às coisas, sejam elas coisas fora de nós ou dentro de nós em diferentes níveis de entificação, para assim adquirir um acervo de conhecimentos. Quando esses conhecimentos correspondem às coisas e reproduzem o conteúdo das coisas, dizemos que ali há verdade, isto é, conhecimento verdadeiro. Se não houver a correspondência, temos então falsidade, isto é, conhecimento falso. Nessa usual e tradicional teoria de conhecimento a mente (espírito, intelecto) é algo espiritual (portanto não material) que está no corpo humano, algo espiritual, cuja característica é de ser vazia, sem determinação, mas que na medida em que vai adquirindo conhecimentos, torna-se como papel branco vazio que vai aos poucos sendo enchido de escritas. Quanto mais adquire conhecimentos, quanto mais se apossa do saber, quanto mais bem informada é a mente sobre a realidade, tanto mais verdades ela possui.

Descartes inicia o processo da busca de uma certeza absoluta, duvidando passo a passo da validade do conhecimento de tudo, a partir dos conhecimentos os mais físico-materiais dos nossos cinco sentidos até a validade dos conhecimentos os mais abstratos e mais espirituais, até chegar a uma única intuição derradeira, onde não dá mais para pôr em dúvida a validade da adequação. Esse último ponto é o “eu penso, e enquanto penso, que penso não posso duvidar!”

Por que Descartes duvida de tudo, assim passo a passo? E, quando por fim Descartes constata: eu, enquanto penso, que eu penso, não posso duvidar; enquanto duvido de tudo, da própria dúvida que duvida de tudo, não posso deixar de ver claramente que enquanto duvido não posso duvidar que duvido, o que restou de tudo isso? De que se trata? Pois, se duvidar, o fato de duvidar já está mostrando que eu, enquanto duvido, que duvido não posso duvidar.

Tudo isso parece uma brincadeira, enquanto não intuirmos que aqui não se trata de averiguar, de descobrir um ponto firme, um fato, uma realidade em si, a qual eu não posso duvidar, realidade essa que receberia o nome de sujeito-eu ou o subjetivo, isto é, o eu que é o ponto de referência centro-núcleo e portador de todos os meus atos de conhecer.

Mas, então, de que se trata? Todo esse processo de duvidar de tudo é para eliminar da minha mente tudo quanto não é ela mesma, isto é, para esvaziar a nossa mente de conhecimentos adquiridos e inatos. Mas para quê? Para chegar a um resto firme, a um fundamento, um ponto seguro que não se deixa eliminar, mas que ali está como algo, antes de todos esses movimentos?

Não! Mas antes para estar bem junto da mente, do espírito, como ele é nele mesmo, isto é, sem as sobrecargas, os acréscimos, as aquisições de conhecimentos. Dito com outras palavras, aqui Descartes quer encontrar-se com o ser do espírito, com o ser da mente, com o ser do intelecto, não o conhecendo a modo de conhecimentos de coisas, adquiridos ou inatos, mas sim esvaziando-se deles e deixando o espírito ser espírito.

Duvidar aqui portanto não tem a função de testar da validade da adequação do espírito ou do intelecto com a coisa, mas sim de esvaziar o espírito, a mente de todos os conhecimentos adquiridos e inatos, para que o espírito se torne presente, nu, puro, com ele é, a partir de si, nele mesmo.

Como é então o espírito esvaziado, limpo de tudo quanto não é ele, de todos os conhecimentos adquiridos e inatos?

Responde Descartes: é como “eu penso”. Mas, atenção, Descartes não diz: como eu sujeito aqui, tendo um ato chamado penso. Mas, sim: “eu penso” significa sou um conhecimento, uma experiência, um saber, uma ciência que não conhece distância para si mesma, não conhece caminho para si mesma, não conhece elaboração de si, porque vive na plena posse de si. Mas não é muito exato dizer “vive na posse de si”, pois ter posse é sempre um ter, que tem ainda distância entre o que se tem e quem o tem. Ao passo que no “eu penso” cartesiano, na experiência descartiana do espírito de si mesmo, a coisa não está diante do espírito, mas ela é nele, ou melhor, ela é a presença do espírito ela mesma, é por si, para si, é o espírito ele mesmo. Uma tal “realidade” (eu penso, logo sou) não tem mais o modo de ser da substância, do sujeito, da coisa ou do ente simplesmente dado, mas sim possui o caráter da luz, claridade incandescência, distinção, nitidez. Não vem de fora ao espírito, mas sim nasce nele, como ele mesmo, é ele mesmo em nascendo, portanto, conascimento: conhecimento, conaître. Essa presença, essa presencialidade não é um espaço aberto dentro do qual uma coisa se mostre (isto é, coisas prováveis e duvidosas), mas sim: o espírito ele próprio no seu tornar-se presente. Tal incandescência, a qual aparece a partir de si na sua própria presença se chama e-videri (evidenciar-se), evidência.

Espírito (intelecto, mente) é vigência desse modo de ser de se estar junto de si, na autocaptação de si mesmo, na vivência da plenitude da imediatez. É esse modo de ser que está dito na famosa sentença de Descartes: “eu penso, logo sou”. E a partir dessa “realidade”, tudo quanto tem esse modo de ser da evidência é verdadeiro: ideias claras e distintas.

Assim, Descartes dá à verdade uma nova essência, a essência da evidência. É sob o signo da evidência que se reconhece o “espírito”. Até agora, o espírito estava impedido de ver na evidência o seu ser, devido a uma compreensão falsa do saber, do conhecimento. Isto é, saber ou conhecimento = adequação do espírito às coisas; adquirir, ganhar o saber, o conhecimento, isto é, ir às coisas, dirigir-se às coisas, ser correto. Assim o espírito, em vez de permanecer nele mesmo, começou a se afastar de si, alienar-se de si, começando a se interpretar a partir dos conhecimentos que estavam longe dele mesmo.

Recordemos porém que esse modo de ser do “eu penso” como o de estar junto de si naquilo que já sempre era, e buscar a si mesmo a partir do lance e projeto de si, sem jamais sair de si, mas sempre de novo só considerar válido o que se dá a partir de si, é o modo de ser que está expresso no verbo grego manthanein (ta mathémata, mathésis = o matemático.

Esse modo de ser da autopresença da e-vidência é o espírito que na Tradição do Ocidente se chama logos e que os latinos traduziram por ratio e em alemão se diz Vernunft (de vernehmen). Quando esse modo de ser da Vernunft está na sua absoluta limpidez, na plenitude de si, ele aparece na sua pureza. Esse caráter da pureza, essa qualificação da pureza, da limpidez, da translucidez (portanto, o adjetivo puro(a)) é o que está designado pelo termo “o matemático” no sentido da transparência límpida da evidência[83]. O matemático como razão pura, assim compreendida é o que no sentido autêntico denominamos de subjetividade na Filosofia de hoje.

Conclusão

Tentamos compreender em que consiste o próprio da era moderna, em cuja fluência vivemos e somos, ou talvez apenas, quem sabe, estamos começando a entrar, embora seja hoje moda falar com muita facilidade do post-moderno.

O que é Matemático no entanto nós ainda não o sabemos bastante para podermos usá-lo sem mais para a formação a modo de um saber agenciável. Ou, quem sabe, se soubéssemos o suficiente, talvez haveríamos de perceber que o próprio, o essencial de uma época jamais pode ser utilizável como meio de instrumento de nossos interesses, por ser ele a condição da possibilidade da própria epocalidade. Assim, no nosso caso, numa época onde temos como valor de realização ser sujeito e agente do agenciamento do ente no seu todo, o ser de tal impostação, a sua essência talvez não seja algo que possamos ter, usar e dominar, mas sim um a priori que nos tem, nos determina a partir de um sentido do ser que, em sendo o fundo de nós mesmos, nos está velado no seu mistério…

O que mais faz-se necessário hoje a respeito do ser do Moderno é aprendermos a ponderá-lo atenta e pacientemente como quem ausculta um sinal dos tempos.

No entanto, uma coisa podemos concluir de tudo isso com bastante clareza e decisão em referência à nossa formação religiosa franciscana. Se o ser do Moderno é autonomia na limpidez, na pureza da autoresponsabilização como autoevidência, tudo quanto falamos da espiritualidade, da religiosidade, sim do ser cristão, hoje, não pode mais operar sem mais na ingenuidade antiga, por mais bela e inocente que ela seja. Sem cair na hipocrisia, não podemos mais falar de “Sabedoria dos Pobres”, da “Simplicidade dos que creem”, da imediatez e concreteza da Fé, não podemos mais falar com tanta facilidade da lógica do Coração, do Espírito da Finura, colocando-nos como autênticos, simples de coração, contra os doutores e os escribas da intelectualidade e dos estudos acadêmicos, contra a força avassaladora da Técnica e da Ciência, sem antes termos seriamente assumido a responsabilidade de sermos simples, obedientes, cheios de cordialidade da gratuidade da Fé, na encarnação da temporalização do destinar-se historial da nossa epocalidade, hoje, isto é, da vigência do Matemático. Pois a exigência única e absoluta dessa vigência é limpidez de impostação e coerência absoluta na acribia de autoevidenciação dentro e a partir da autoidentidade. Não basta mais vivermos e praticarmos a nossa formação cristã e religiosa no ecletismo confuso e cômodo onde nem sequer estamos acordados para a necessidade de um radical aprofundamento na busca da limpidez de identidade e autoevidência da(s) dimensão(ões) que vivemos. O ser do Moderno como a exigência absoluta da autonomia da autoevidenciação é perigoso, não porque ele é um antropocentrismo, um imanentismo subjetivista, uma hibris de autossuficiência, mas porque nos coloca, a nós cristãos de ontem, hoje e de amanhã, num interrogatório acerca do Ser de nossa Fé, acerca do Ser da nossa vida na Graça.

Nós vivemos hoje como cristãos o desafio de assumirmos na autonomia da autoresponsabilização a heteronomia da Fé e a autonomia do Pensamento Matemático como dimensões que não comportam síntese fácil, ou melhor nenhuma síntese, nenhuma pacificação, mas sim a radicalidade de uma seriedade mortal no corpo a corpo de engajamento epocal na tarefa e na missão, que vem do Mistério da encarnação, cujo signo é signo de Contradição.

Referências

HEIDEGGER, Martin. Was heisst Denken? Tübingen: Max Niemeyer, 1961; Die Frage nach dem Ding.


[1] Leia-se inter-esse, a saber, aquilo na qual já sempre estamos.
[2] Encontro de 3 dias, realizado em outubro de 2001, na casa de retiro das Catequistas Missionárias de São Francisco, Jaraguá-Paulista, São Paulo, entre psicólogos, formadores, estudantes de psicologia, estudiosos de Filosofia, na maioria religiosos e religiosas preocupados em ver claro na formação dos candidatos o relacionamento possível entre psicologia e espiritualidade.
[3] Hoje, falar da fenomenologia assim em geral é uma missão impossível, pois há tantas fenomenologias diferentes quantas existem autores que expõem sobre a fenomenologia. Em geral, é costume distinguir fenomenologia como uma espécie de procedimento digamos mais sofisticado de descrever uma realidade simplesmente dada e fenomenologia como um radical retorno à questão da essência da filosofia que na seqüência de autores como Edmund Husserl, Eugen Fink, Heinrich Rombach e principalmente em Martin Heidegger reavivou de uma maneira aguda e profundamente filosófica a questão do sentido do ser, que recebe em Heidegger (Ser eTempo) o nome de Ontologia Fundamental. Para informação geral, cf. verbete-artigos fenomenismo, fenômeno, fenomenologia, escola fenomenológica, método fenomenológico, e movimento fenomenológico, em Enciclopédia luso-brasileira, Logos, vol. II.
[4]  O problema do psicologismo e a reação da fenomenologia iniciante está dentro da perspectiva da teoria do conhecimento, proveniente da definição tradicional da verdade veritas est adaequatio rei et intellectus (verdade é adequação da coisa e do intelecto). Segundo essa definição, um conhecimento é verdadeiro, se há concordância entre o intelecto e a coisa. Em vez de intelecto podemos também dizer homem-sujeito, consciência humana e, em vez de coisa, objeto. Se nessa adequação a que se conforma é coisa (res) e o que se adequa é intelecto (intellectus), temos a predominância da anterioridade da coisa, da res sobre o intellectus ou do objeto sobre o sujeito: temos nesse caso a teoria do conhecimento do realismo ou do objetivismo. Se pelo contrário, a que se adequa é o intelecto, e o que se adequa é a coisa, temos então a teoria do conhecimento do idealismo ou do subjetivismo. Entre a posição do realismo e do idealismo ou do objetivismo e do subjetivismo, pode haver variantes de acentuação, ora na direção da coisa, ora na direção do sujeito-homem. Assim surgem teorias de conhecimento do conceptualismo, do criticismo etc. Em todas essas tendências a posição fundamental permanece igual, a saber: todos eles colocam no ato do conhecer o lugar onde se dá a adequação, mas parece não questionar se é possível a adequação, e como se dá a adequação, o que é afinal a adequação e em que consiste o ser do intelecto, do ato e o ser do objeto e da coisa.
Na Idade Média, nessa definição veritas est adaequatio rei et intellectus estavam implicadas duas colocações, relacionadas mutuamente na dinâmica da ação de Deus na Criação. Assim a definição se lia uma vez: veritas est adaequatio rei ad intellectum divinum e outra vez: veritas est adaequatio intellectus humanus ad rem. Aqui a medida dos entes (criaturas) está no intelecto divino; e a medida do intelecto humano está na coisa. O que fundamentava a relação entre a coisa e o intelecto era a relação que as coisas tinham com o Intelecto Divino.
[5] Entretanto, se torna bastante claro que a adaequatio da explicação realista do conhecimento parece ser mais próxima e natural, e reproduzir a obviedade das nossas vivências da experiência da realidade concreta e simplesmente dada de todos os dias. A sensação de segurança de que as coisas estão ali diante e ao redor de mim, assim como elas são e se apresentam, e que eu capto a coisa ela mesma ali presente em seus vários aspectos, parece ser um fato inegável, indubitável. Assim, o realista parece ter razão quando afirma que as coisas existem em si, ocorrem ali dadas simplesmente de antemão, anteriores a todas as nossas captações. Tudo isso, porém, parece ser evidente até certo ponto, quando se trata de captar as coisas sensíveis corpóreo-físicas. Mas também as assim chamadas coisas psíquicas, coisas espirituais, coisas estéticas, coisas valores, coisas ideais etc. se nos dão, se nos apresentam. São todas essas coisas, coisas também no sentido das coisas físicas, algo sensível palpável pelos 5 sentidos, diante de e ao redor de nós, existentes em si, independente e anteriormente à percepção da consciência? Por ouro lado, o que significa coisas existentes em si, independentes e anteriormente à consciência? Não é assim que tudo de alguma forma Esse processo de “desmaterialização” da “coisa hipostatizada” como esse bloco-coisa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da “realidade” em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regiões, sub-regiões, setores, áreas de conjunto de “coisas”, constituindo o aparecimento do mundo “objetivo” diante e ao redor de mim:  temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora, tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez “dessubstancializado” se abre como todo um mundo de “realidades” sui generis próprias com seus variegados atos, noemas e egoidades: temos assim a paisagem denominada: noesis, que está referida à consciência, ao ato do sujeito que capta, percebe, valoriza? Que sentido faz falar de algo que existe em si, independe e anterior à consciência, se essa fala já é uma referência à captação da consciência?
[6] Intencionalidade vem do verbo latino intendere, que quer dizer: tender em direção a e para dentro de. Na teoria do conhecimento de cunho realista dizemos: no ato da intelecção o sujeito tende de dentro de si para fora, em direção à coisa, existente em si, fora, diante ou ao redor dele.
[7] O título original em alemão soa Psychologie vom empirishcen Standpunkt, foi editado em 2 volumes, na cidade de Viena, em 1874. A tradução do Stanpunkt por ponto de vista não é exato. Pois Stand não significa vista. Stand vem do verbo stehen que significa estar de pé,erguer-se e permanecer de pé, permanecer, ficar. Talvez possamos traduzir Stand por “estância”, i. é, o lugar onde se está, o chão que serve de base para ficar de pé. O “ponto da estância” seria então o pivô fundamental, o fundo dentro e a partir do que algo se ergue e se firma. Psicologia a partir do ponto da estância empírica diz portanto: psicologia a partir da pressuposição empírica.
[8] Cf. MERTON, Thomaz. A via de Chunag-Tzu. Petrópolis: Vozes, p. 126-7: Chuang-Tzu e Hui-Tzu atravessavam o rio Hao. Disse Chuang: “Veja como os peixes pulam e correm tão alegremente. Isto é a sua felicidade!” Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?” Chuang respondeu: “Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?” Hui argumentou: “Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem”.
[9] Talvez fosse interessante examinar como o especulativo começa a receber a conotação do irreal, e aos poucos do subjetivo, ao passo que o empírico, a conotação do real, do objetivo. Usualmente não percebemos como nesse real objetivo, o sentido do real já está identificado com o objetivo, de tal sorte que facilmente aceitamos sem ver a coisa, i. é, a causa ela mesma da igualação: real = objetivo. Quando na fenomenologia falamos do real, da realidade, i. é, da res, ou mesmo do ente, do ser e também do ôntico e ontológico é necessário observar essa diferença entre coisa e objeto. Por isso, na fenomenologia o termo alemão Gegenstand (Gegen = gen; stand = do stehen) e Objekt (Ob, também pro; jekt = iect = iactare = jectar = lançar) indicam dois modos de objetivação, i. é, do processo através do qual o ente se torna presente, vem à fala dentro de um determinado horizonte. Objekt é o ente que vem de encontro a nós, da objetivação que se processa a partir e dentro do horizonte das ciências do tipo “ciências naturais”. Gegenstand é o ente que nos vem de encontro no horizonte da paisagem que se abre no assim chamado “mundo vital circundante natural”, que muitas vezes é denominado também de mundo pré-predicativo ou pré-científico. Por isso, o que na fenomenologia é indicado com pré-predicativo ou pré-científico não deve ser identificado com não elaborado, informe, vago, ou indeterminação abstrata, espaço vazio sem estruturações, mas sim como concreto, imediato pleno, natural, enquanto nascivo, nascente, o que é na fluência do que vem à concreção i. é, o em sendo, o ente, o fenômeno.
[10] Isto levou a inúmeras aporias que aparecem em perguntas como: – esse material, anterior às elaborações, é real em si, algo ali existente em si, independente do sujeito que o capta? – e as formas que o material recebe, donde vêm?; não vêm do sujeito que projeta sobre essa “tela” vazia objetiva seus projetos subjetivos? Percebemos que o real, entendido como substrato indeterminado, facilmente nos leva a entender a realidade como espaço vazio objetivamente, i. é, matematicamente mensurável, onde se acham por sua vez as substâncias a modo de núcleos-átomos, sem propriamente conteúdo qualitativo, mas apenas como que concentrações quantitativas de uma “substância” geral, que não é nenhuma realidade “subjetiva”, mas sim objetiva, homogênea, “etérea”, quase nada. Daí, passar para a compreensão da realidade como energia e diferentes variações de intensificações e rarefações dessa realidade energética homogênea, calculável e calculada segundo precisão e rigor da objetividade matemática, é um passo. Logo vemos que essa realidade objetiva pouco tem a ver com a realidade concreta da captação imediata e simples, dada no nosso cotidiano. Aqui podemos ver, por outro lado, como em todas as colocações, em geral não analisadas, ainda domina um dogma difícil de ser desmascarado, que é o dogma do problema mal colocado do sujeito-objeto, na forma do “idealismo-realismo”, i. é, a colocação equivocada da teoria do conhecimento.
[11] Zur Sache selbst.
[12] Klärung.
[13] O verbo latino evideri (leia-se e-videri) no seu modo de “atuar” não é nem ativo nem passivo, nem propriamente reflexivo, mas medial. O modo medial expressa movimento de dinâmica toda própria, a qual, de modo muito imperfeito tentamos descrever acima. É “algo” como o movimento de “autonomia” que aparece no crescer, entumecer, aumentar, incandescer, brilhar, vir à luz,  tomar corpo, vir à presença ou ausência etc.
[14] Crítico, -a, crise, vem do verbo grego krinein, que significa distinguir, separar,  separar cortando, escolher, decidir etc. Indica todo um modo de ser da existência humana que denominamos de luta do empenho para tornar-se claro e preciso na responsabilidade de existir.
[15] Pôr entre parênteses é uma operação na aritmética. P. ex. (‘0-1) – (3+5) = 1. Aqui ( ) suspende o valor de cada número em si, mantendo-o como que implícito no conjunto abrangido dentro dos parênteses. Assim, se tenho diante de mim esta coisa ao lado de outra coisa etc., como existente em si, eu suspendo, ponho entre parênteses a suposição prévia de que cada uma dessas coisas existe em si, para deixá-la como que implícita no conjunto em que aparece.
[16] Aqui ocorre um fato “irreparável” que se expressa na disjunção: ou se vê ou não se vê. Portanto, o verbo ver aqui na fenomenologia não possui a acepção usual de ver alguma coisa que está diante de mim, que pode ser captado ora objetivamente ora subjetivamente. Não se trata portanto de ver um fato. Trata-se da facticidade do ver, ou acordar, despertar, iluminar-se, se transmutar para dentro de abertura de uma nova clareira, surgimento de um novo horizonte. Mas falar aqui de horizonte não é conveniente, pois horizonte é um termo que no fundo indica o transcendental. Não se trata de um ato de ver de um sujeito, mas o próprio ver é ele mesmo existência humana, possibilidade da existência.
[17]  Selbstgegebenheit se compõe de duas palavras: Selbst = Self, a coisa ela mesma, e Gegebenheit = dadidade = a ação de se dar a si mesmo. Em vez de e-vidência ou Selbstgegebenheitg, dizemos na fenomenologia de preferência: fenômeno, o vir à fala, vir à luz ele mesmo.
[18] Por isso, na fenomenologia, o ser ou o ente deve ser captado no gerundivo, a saber, ente=em sendo. Assim o Ser deve ser entendido como ato puro, não isto ou aquilo infinito, supradimencional, absoluto, mas o “que” (sic!) de modo mais próprio é nada da coisa em si, mas tudo da potência ou possibilidade de doação de si.
[19] Aqui não se deve entender o ex a partir do sistir, mas o sistir a partir do ex.
[20] É que abertura aqui não é um espaço aberto, escancarado, mas sim dinâmica do surgimento e estância do mundo (Welt). Por isso o Homem é definido como ser-no-mundo. Aqui no possui conotação de dinâmica do crescimento.
[21] Essa recepção não deve ser identificada com intuição ou com algo como sentimento de evidência, ou com o que os alemães gostam de expressar com Aha-erlebnis, i. é, vivência do aha! Trata-se de acribia e limpidez da crítica, no sentido de continuamente liquidificar os pré-conceitos e pré-juizos que se estabelecem como sendo o indicativo da realidade, e manter continuamente no pique da limpidez a redução, i. é, a disposição de apenas ser o captar simples e imediato.
[22] Quando esse abismo-nada da plenitude da possibilidade insondável do sentido do ser não é mais captado na pureza reducional, pode se hipostatizar como o significado lógico do conceito do ser, o mais geral, o mais óbvio, o mais abstrato dos conceitos, que diz o mesmo que nada vazio nadificante.
[23]  É a ideação que constitui a condição da possibilidade de classificações das ciências positivas a partir do vislumbre com-creto do seu positum. O(s) vislumbre(s) concreto(s) e vivo(s) da paisagem ou região dos posita serve de fundamento, donde as ciências positivas haurem seus conceitos fundamentais. Esses vislumbres são iluminações que arrancam das incomensuráveis trevas da imensidão e profundidade do retraimento do sentido do ser – que se oculta, se a-pro-funda cada vez mais em si, velando, resguardando o frescor, a disposição, a ternura e o vigor das possibilidades do ser – o ente como eclosão do mundo. Enquanto servem de fundamento aos posita das ciências, formam a assim chamada dimensão pré-científica ou pré-predicativa ou até mesmo pré-fenomenológica. Essa dimensão se perde então na profundidade da incomensurabilidade do que antes denominamos abismo insondável e inesgotável do sentido do ser que usualmente chamamos de Vida, Ser, Realidade. Fenomenologia é, no movimento da redução e ao mesmo tempo da ideação e com ela da assim chamada constituição, a sondagem da possibilidade do abismo do sentido do ser no rigor, na nitidez e clareza da sua estruturação como vir à fala do(s) mundo(s), e é demarcação das possibilidades das ciências positivas como ausculta crítica do rigor do surgimento do seu saber e da sua sistemática a partir da dimensão pré-científica das dinâmicas genéticas das eclosões dos horizontes do sentido do ser. É a ideação que no fundo possibilita diferentes tipos de classificação na vida e nas ciências.
[24] Ontologia se compõe das palavras on, -toV, i. é, em sendo e logoV (logia), i. é, discurso, ciência, mas também, colheita, ajuntamento, recolhimento. Ontologia não tem aqui a acepção usual tradicional da ciência do ente, concebido como algo que existe em si como ocorrente simplesmente, contraposta à antropologia filosófica, dentro do esquema da teoria do conhecimento S « O.
[25] Usamos e abusamos das notas, para fazer reflexões laterais como comentários. Isto não é adequado e talvez nem é permitido num artigo acadêmico. Mas tomamos a liberdade de fazê-lo, pois a nossa reflexão não é reta, mas um tanto ’enrolada’.
[26] HEIDEGGER, Martin. Der Ursprung des Kunstwerkes. Mit einer Einführung von Hans-Georg Gadamer, Stuttgart: Philipp Reclam jun. 1960, p. 29-31.
[27] Insistência sugere substância, i. é, o in se da escolástica medieval. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: hypokeímenon.
[28] Verlässlichkeit é a palavra do texto alemão. A tradução por confiabilidade não está bem correta. A tentação foi de traduzir por serenidade que em alemão é Gelassenheit. É que tanto na Verlässlichkeit como na Gelassenheit está a palavra lassen que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, se abandonar, digamos à serena imensidão, à serenidade como à plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. É algo como deixar se ser na, e a partir da imensidão, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotável e assim tornar-se uma presença totalmente confiável, por ser plenamente consumada em si e por si, idêntica a si. Verlässlichkeit tem a conotação do ‘inteiramente confiável’ p. ex. num artefato que cumpre totalmente o que promete e deve ser  e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteiriço na sua identidade.
[29] A redução de-cadente do artefato à entificação factual como sendo ele apenas uma coisa ali dada simplesmente, pressupõe que antes de algo estar ali simplesmente dado como fato, há toda uma presença viva de uma estruturação da manualidade, onde se acena uma dimensão mais profunda e subterrânea da existencialidade, lá onde ‘algo’ como realidade humana ou vida humana ou existência se torna possível.
[30] Embora na reflexão, o que houver ali de válido, tenha sido todo ele, de alguma forma assimilado – de modo certamente facilitado e imperfeito –, da mencionada obra de Heidegger, não citamos cada vez de onde foi tirado.
[31] Informações sobre o evento, o acontecer, Ereignis, ereignen, em alemão (cf. INWOOD, Michel. Dicionário Heidegger.  RJ: Jorge Zahar Editor, 1944, p. 2).
[32] O ente (das Seiende) e o ser (das Sein) são termos que dizem tudo e nada, indicando a imensa, profunda e a mais criativa questão do sentido do ser. Assim sendo, podem indicar o significado, o mais abstrato e geral e, ao mesmo tempo, o mais concreto, singular, denso e universal de toda a realidade das realidades.
[33] Mas objeto pode também ser usado com a mesma função de algo.
[34] Mas coisa aqui pode ser também um termo usado com a mesma função de algo.
[35] Aqui trata-se de artefato cuja densidade de ser não é a de um simples utensilio.
[36] Sujeito aqui, embora diferenciado do objeto, no fundo, participa da mesma coisalidade. A diferença do ser entre sujeito e objeto é encoberta debaixo de uma compreensão prefixada do ser, comum a dois, de modo que o próprio sujeito (Homem) é considerado como um caso do objeto.
[37] Se eu aqui é entendido como eu empírico ou como eu transcendental, no fundo parece não haver muita diferença no que se refere ao sentido do ser dominante no horizonte algo ou objeto.
[38] HARADA, Hermógenes. Reflexões de quem não sabe o que é oração, in: coleção de artigos de vários autores, no livro intitulado A oração no mundo secular, 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
[39] Se não ficarmos atentos, podemos estar entendendo tanto sujeito como objeto como uma determinada coisa-bloco. Aqui devemos entender, cada vez, tanto sujeito como objeto como mundo na sua complexa textura da dinâmica das suas implicações.
[40] Cf. HEIDEGGER, Martin. Das Ding, in: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Günter Neske, 1954, pp. 163-181. Ding diz mais do que um objeto, manufaturado artesanalmente, entendo a manufatura artesanal a partir da fabricação de um utensilio. Por Ding deve-se entender uma obra, na qual está presente a perfilação coesa de todo um mundo da existência humana.
[41] Cf. a compreensão antiga dos termos ars e téchne, no V. Arte e Mito.
[42] Artesanal aqui significa antes um modo de ser e trabalhar do que propriamente o estilo de confecção.
[43] Anonimidade aqui não precisa ser no sentido estrito de desconhecermos totalmente o autor. Pode também significar que o autor, enquanto sujeito e agente do produto, não im-porta.
[44] Lá onde, porém, se dá a badalação estética, a ‘obra’ é valorizada pela celebridade do autor.
[45] O único ou o singular aqui não é igual ao individual ou ao particular, oposto ao geral, mas densidade de ser convergido no uno, uni-versal.
[46] Da-sein, traduzido na versão de Ser e Tempo, da Editora Vozes, por Pré-sença, é mais apropriado aqui para a nossa reflexão do que Existência. Pois existência além de conotar de um lado a acepção tradicional da existência como ocorrência, por outro lado traz insinuação de que se trata de um modo de ser a la Subjetividade Transcendental, embora mais concreta e elementar do que a de Husserl. Nós usamos o termo alemão Dasein. Só que Dasein pode nos levar a imprecisão de o entendermos como sendo, de alguma forma, ôntico-antropológico (cf.  HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. parte I, tradução de Márcia de Sá Cavalcati, Petrópolis: Vozes, 1988, notas explicativas, verbete Pré-sença = Dasein, p. 309).
[47] “Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondern macht sichtbar” (KLEE, Paul. Schöpferische Konfession, em: Das bildnerische Denken, Schriften zur Form- und Gestaltungslehre. Herausgegeben und bearbeitet von Jürg Spiller, 2ª edição, Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1964, p. 76). Por isso, não há situações, por mais banais e “piores” que sejam, que não se transformem em obras de Arte, sob o toque da essência da Arte.
[48] Fazer significa, aqui, a ação tecnológica de transformação da realidade na realização do saber. Do saber como poder de dominação da subjetividade do sujeito-eu-homem, dentro do projeto de asseguramento da certeza, no processamento de tudo como dados de cálculo projetivo.
[49] Poder aqui deve ser entendido não como dominação do projeto da subjetividade, mas sim como jovialidade da potência do próprio da autoidentidade como finitude.
[50] A compreensão da Arte como a Estética é um modo deficiente da compreensão da essência da Arte.
[51] HÖLDERLIN  (IV, 240): Zu wissen wenig, aber der Freude viel, Ist Sterblichen gegeben.
[52] Raridade, ao mesmo tempo, que significa pouco comum, diz também rarefeito. Cf. HEIDEGGER, Martin. Der Lehrer trifft den Türmer, in: Martin Heidegger Gesamtausgabe, III. Abteilung: Unveröffentlichte Abhandlungen, Band 77 Feldweg-Gespräche, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main1995, 165 ss.
[53] O Mundo (Da-sein  = ser-no-mundo) se assenta no fundo abissal da existência humana (Da-sein), através do qual se abre e se oculta o abismo insondável do mistério do ser. “Terra” é na medida em que o Mundo é confiado, a partir de e dentro da aberta do ser ( = o Da do Da-sein). Aberta  significa clareira, abertura; nesga do céu que as nuvens, abrindo-se por instante deixam ver, através da qual vislumbramos a imensidão do céu aberto.
[54] Ao falar do inter-esse da vigência criativa tanto na existência artística como na obra de arte, diz Klee: “Gostaria, pois, de considerar a dimensão do objeto, num sentido novo para si, e com isso, tentar mostrar como o artista chega muitas vezes a uma tal ‘deformação’ aparentemente arbitrária da forma natural de aparecimento. Aliás, ele não dá a importância obrigatória às formas naturais de aparecimento, como o fazem muitos realistas críticos. O artista não se sente tão ligado a essas realidades porque não vê nessas formas-terminais a essência do processo natural de Criação. Pois lhe interessam mais as forças formadoras do que as formas-terminais. Ele é talvez, sem o querer, exatamente filósofo. Embora não declare, como o fazem os otimistas, que este mundo é o melhor de todos os mundos e também não queira dizer que este mundo, que nos cerca, é ruim a ponto de não se poder tomá-lo como exemplo, embora, pois, não diga nada disso, diz para si: O mundo nesta forma prefigurada não é o único de todos os mundos! Assim mira as coisas que a natureza lhe faz perfilar diante dos olhos com um olhar penetrante. Quanto mais profundamente olha, tanto mais facilmente consegue estender os pontos de vista de hoje para ontem. Tanto mais se lhe cunha nele, no lugar de uma figura pronta da natureza, a figuração unicamente essencial da Criação como Gênesis. Ele permite também, então, o pensamento de que a Criação hoje, ainda mal pode estar concluída, e assim estende aquela ação criadora do universo de trás para frente, dando duração à Gênesis. E vai mais além. Permanecendo aquém, se diz: Este mundo tinha aspecto diferente e este mundo há de ter aspecto diferente. Mas, tendendo para além, pensa: Nas outras estrelas pode-se ter vindo de novo a outras formas bem diferentes”, KLEE, Paul, op. cit. p. 92: Übersicht und Orientierung auf dem Gebiet der bildnerischen Mittel und ihre räumliche Ordnung. Deixemos suspensa a pergunta: como é em tudo isso o artista, enquanto interioridade à disposição do nascimento da forma-terminal como obra de arte?
[55] Pressupomos como já conhecido esse modo de ser que se encontra exposto detalhada e exaustivamente no que se chama analítica do Dasein no livro “clássico” da Filosofia  “Ser e Tempo” de Martin Heidegger. Aqui, somente algumas considerações no que diz respeito ao nosso tema Mito e Arte. Da-sein como modo de ser próprio do homem deve ser entendido com precisão na oscilação da sua ambigüidade. Pois, uma vez pode ser entendido como o modo diferencial que distingue o homem dos entes não-humanos. Assim entendido, no jargão filosófico, dizemos que o Dasein é uma diferença ôntica que distingue o homem de outros entes não-humanos. Nesse caso teríamos duas grandes regiões do ente como: a região do ente humano e a região do ente-não humano. É o que no início pressupomos, quando falamos da classificação do Mito e da Arte como sendo produtos do homem, distinguindo-os de outros entes como produtos da natureza. Embora nessa divisão entre o modo de ser próprio do homem e o modo de ser do ente não-humano haja grande diferença, o sentido do ser que abrange essas duas regiões numa generalidade maior e mais vasta é o ser num sentido bem determinado. Pois tanto os entes humanos como também os entes não-humanos são entes. O sentido do ser aqui é comum, geral a ambas as regiões. A expressão o modo de ser próprio do homem, entendido como diferencial diante do ente não-humano, debaixo do igual sentido do ser, comum a ambos, é diferença ôntica. O modo de ser próprio do homem, porém, ao ser entendido como diferença ôntica, pode ao mesmo tempo ser entendido também como diferença ontológica. Na diferença ontológica, a diferença existente não é entre este ente e outro, nem entre ente e ente num sentido mais geral, mas entre o ser e ser, ou melhor, “entre” o sentido do ser e o sentido do ser. Mas de que se trata? Em vez do ser ou sentido do ser, usemos os termos horizonte, ou melhor, mundo, que no início da nossa reflexão, ao falarmos das diversas acepções dos termos algo, objeto, coisa, troço, trem, ou em alemão etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, mencionamos como indicadores do modo de ser característico de cada modo de ser. Nesse sentido, então, a diferença ontológica diz respeito à diferença existente entre horizonte e horizonte, entre mundo e mundo. Só que aqui é necessário não entender o horizonte (ou o mundo)  de modo vago e abstrato como se fosse um grupo, uma classe ou uma região diferente de entes. Pois horizonte ou mundo diz respeito à totalidade, de tal modo que não se trata de “objetivar” a totalidade como ente e colocá-las uma ao lado da outra a modo de conjunto de coisas. O horizonte ou o mundo como cada vez totalidade abrange todos os entes atuais e possíveis sob o sentido do ser ali operante, de tal modo que uma vez dentro, não há nada que possa ficar fora e, a partir de dentro não se pode perceber que é possível uma outra totalidade. Surge a pergunta, é possível pensar o mundo o mais geral que abrangesse todos os mundos na sua mundidade? Não seria possível um mundo assim geral, pois o mundo não é um gênero, nem espécie, nem isso ou aquilo, mas … cada vez mundo, cada vez seu, na total autoidentidade de e consigo mesmo, sem se trancar em si, pois a partir de dentro se expande indefinidamente, mas na sua identidade diferencial, se perfaz radicalmente “fechado” ou “oculto” a si mesmo, pois não se pode sair do mundo e tomar pé numa posição extra ou além-mundo, para adquirir uma visão panorâmica geral dos mundos na sua mundidade. Uma tal visão panorâmica é fruto de um bem determinado horizonte, cujo modo de ser é caracterizado pelo termo algo (etwas) e mesmo ente (Das Seiende) ou também objeto (Objekt), cujo “grau” de mundidade é tão baixo que o ente não aparece aqui a não ser como um quê-bloco totalmente abstrato e indeterminado. O modo de ser da mundidade caracteriza o modo de ser ôntico do Homem que ambiguamente se pode chamar também Da-sein, mas é precisamente nesse modo de ser onticamente diferencial que aparece a possibilidade de recolocar a busca, i. é, a questão do sentido do ser, na sua diferença ontológica, pois é somente no Homem, agora entendido como Dasein que se abre a compreensão de que se trata quando dizemos ser como horizonte, como mundidade do ente na sua totalidade. Esse modo de ser que é ao mesmo tempo ôntico e ontológico, ou melhor, o modo de ser ôntico, que na sua diferença ôntica, ao se distinguir do ente não-humano, traz nessa diferença identificadora do ser do Homem a revelação, a abertura que mostra a mundidade como a diferença que caracteriza a identidade de cada ente no seu ser, (diferença ontológica) se diz no “Ser e Tempo” ser-no-mundo e se refere à finitude essencial do Homem como Da-sein.
[56] Da em alemão significa abertura prévia tanto espacial (ali, ai) como temporal (pré, anterior). Significa também já que, por que, em sendo assim.
[57] Usar o termo aseidade que é só atribuído a Deus para caracterizar a finitude parece ser absurdo, para não dizer uma ignorantia elenchi. Aqui a pressuposição é a seguinte: o ponto nevrálgico da identificação no modo de ser a se, do ente finito e ente Infinito, reside no fundo na doutrina da mundividência cristã denominada Filiação divina e Mistério da Encarnação. O pretenso panteísmo que poderia surgir da atribuição da aseidade ao ente finito, é no fundo um problema da colocação mal feita e defasada da questão do sentido do ser. É que colocamos Deus e criatura numa igualdade. Igualdade não é idêntica com a mesmidade. O termo mesmo dessa mesmidade não está sendo usado como igual (= ), que é uma categoria adequada para a quantidade nas coisas físicas. Quando o sentido do ser é horizonte de e para o ente qualitativamente mais rico, profundo e diferenciado do que um objeto físico, portanto mais e diferente do que o ente do horizonte algo (etwas) e objeto (Objekt), o termo igualdade não serve mais. Usamos, então, de preferência o termo identidade para determinar o relacionamento “entre” os entes no tipo do horizonte Gegenstand, Ding, Sache e a fortiori Pessoa (Person), que não deve ser entendido como Sujeito (Subjekt).
[58] I. é, ab-soluto, i. é, solto, inteiramente espontâneo na sua identidade: jovialidade da graça.
[59] O que segue não está mais falando da aseidade como ela é atribuída a Deus infinito da doutrina cristã. Aqui está se falando somente do Dasein, do ser da essência do Homem, na tentativa de ilustrá-lo à mão da aseidade, mesmo no seu uso inadequado. O a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si é como se a gente quisesse dizer: o Da do Da-sein é a gratuita liberdade ab-soluta da pura recepção, na qual o doador e o receptor são simultânea e mutuamente límpido nada, i. é, nada a não ser pura dinâmica de ser, no dar e receber. A saber, pura dinâmica de puro receber no puro dar e puro dar no puro receber, de tal modo que o dar é recebido e o receber é recebido na mútua doação de ser a não ser apenas o puro deixar ser. Esse aberto é o lugar do salto originário e originante da gênese do mundo novo. Essa mútua implicação no nada ser a não ser como a límpida dis-posição de doação na recepção da possibilidade do abismo inesgotável de ser é a essência do homem,
[60] Finitude vem do finito. Finito é oposto do infinito. Finito é usualmente compreendido como privação do infinito. O que o infinito é em plenitude o finito é em parte. Finito carece da infinitude. No cristianismo a palavra finitude cai bem à criatura. Pois os entes na sua criaturidade são finitos, i. é, são criados por um ente supremo, cujo ser é o próprio ser, de tal modo que fora dele não há ser propriamente dito, portanto, por um ser supremo denominado Deus, cujo ser é absoluto e infinito. No fundo a criaturidade é nada, ao passo que a increabilidade e increaturidade é tudo.  Essa doutrina geralmente nos foi transmitida, já um tanto defasada e reduzida a uma compreensão de pouca precisão, na qual a finitude acaba virando sinônimo de privação. Mas, como seria essa doutrina da Criação se levássemos a sério a doutrina, na qual ser criatura não significa ser privado do  Ser Infinito, mas sim participar Dele como filho? Não é assim que o filho de dragão dragão é? Filhotinho de dragão, quando encontra na estrada solitária um tigre adulto que feroz avança sobre ele, abre instintivamente a pequena goela e lança-se sobre o inimigo, emitindo o chiado-dragão. Pois ser pequeno ou grande, finito ou infinito, não lhe é critério para a sua identidade. Ele, o filhotinho, no seu ser-dragão é o mesmo com o pai dragão…
[61] Cf. “… a alma é, num determinado sentido, a totalidade dos seres” (ARISTÓTELES, Da Alma, (De anima), introdução, tradução e notas por Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edições 70, 2001; cf. ARISTÓTELES, Peri Psyché, 431b 20).
[62] O finito, a finitude nesse sentido não é privação, carência do infinito. É antes positividade do infinito encarnado como esta obra aqui concreta na perfilação optimal da sua vigência assumida.
[63] Portanto, não é meta-física.
[64] Mythos, Ö– toar, soar.
[65]  Mistério em alemão se diz Ge-heimnis. Ge indica densidade, ajuntamento. Heim, o lar, o ser em casa.
[66] MERTON, Tomas. A via de Chuang Tzu. 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A Tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. FEIFFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959, p. 47.
[67] Nessa nossa reflexão, a palavra escrita maiúscula Ciência significa Ciência Moderna, como ela veio sendo desenvolvida desde os tempos de Galileu até aos nossos dias. Inclui tanto as Ciências Naturais (Ciências da Natureza) como as Ciências Humanas (Ciências do Espírito). Só que, hoje, o modo de ser das Ciências Naturais recebe uma acentuação predominante, de tal sorte que as Ciências Humanas são medidas e agenciadas, tendo como modelo e medida as Ciências Naturais. A essa tendência de padronizar as ciências segundo o modelo de Ciências Naturais se chama na Filosofia, Naturalismo.
[68] O próprio Galileu foi acusado de recair no abstracionismo e na mania especulativa da Escolástica medieval, devido aos conceitos e princípios usados nas suas explicações científicas que não eram possíveis de serem verificados como fatos concretos e sensíveis.
[69] A grande dificuldade aqui é de entender e experienciar essa serenidade como autoidentidade do ser do espírito, sem transformá-la em sensações físico-psicológicas, isto é, sem já de alguma forma encaixá-la num enfoque proveniente da fisiologia, biologia e psicologia. O que vale aqui é ver, captar tudo direta e imediatamente, a “coisa ela mesma”.
[70] Cf. Platão, Menon, o escravo e a sua recordação das idéias matemáticas.
[71] Agewmetrhtoj mhdeij eisitw.
[72] Discorsi, 1658; esta frase é considerada como percursora dos princípios desenvolvidos por Newton no seu livro Philosophiae Naturalis principia mathematica (1686/1687).
[73] Diz Newton: “Todo o corpo, cada corpo deixado em si mesmo, isto é, não é coagido pelas forças a ele impressas, se move de modo reto e uniforme”.
[74] Essência aqui está entre aspas por que não se deve entender essência como substância, no sentido da Filosofia Antiga e Tradicional, mas sim no sentido literal de vigência em sendo.
[75] Somente lá, onde esse transcender no projeto cessa ou é enfraquecido, são ajuntados apenas fatos e assim surge a ideologia chamada Positivismo.
[76] É o que Descartes denominou de res extensa.
[77] P. ex. o cálculo de fluxo de Newton, o cálculo diferencial de Leibniz e a geometria analítica de Descartes, todas essas novidades são possibilitadas pela estruturação fundamental matemática do pensar “matemático” como tal.
[78] Colocamos o início do Pensamento moderno em Descartes (1596-1650). Descartes é da geração de Galileu. O seu tema principal é o Mundo! A idéia do Mundo está intimamente ligada com o movimento da determinação do Matemático da existência humana na França, Inglaterra e Holanda daquela época.
[79] O voltar à “coisa ela mesma” de Edmund Husserl que em outras palavras se diz também “sem nenhuma pressuposição, abrir-se ao dado ele mesmo” (Voraussetzungslosichkeit) ou a posição de um observador neutro não são outra coisa que a posição dessa absoluta validade do Matemático como o critério da verdade.
[80] Cogito, dizem alguns autores, vem do co-agito. Coagito significaria então em agitação, em vibração, que faz vibrar tudo. A palavra “auto” vem do grego e significa eu mesmo, ele mesmo, o mesmo, e indica não o ocorrer espontâneo de um “automático”, sem consciência, mas sim o responsabilizar-se de uma ação que vem de si, a partir de si e permanece nessa responsabilização de si em cada momento da sua ação.
[81] Até Descartes, o “sujeito” era a coisa ocorrente ali, simplesmente dada. Agora, com Descartes, o “Eu” se torna um subiectum bem próprio, em cuja referência estão todas as coisas e são determinadas. Se o “Eu” é a autonomia do autoposicionamento do projeto, então tudo quanto a priori é referido a esse projeto se torna ob-iectum. Aqui sujeito diz objeto e objeto diz sujeito.
[82] O que se segue é um resumo mal feito dos pensamentos que estão no livro de Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur. Freiburg i. B./München: Karl Alber.
[83] Esse modo de ser da Evidência Pura que mais tarde, depois de Descartes, em Kant recebeu o nome de Razão Pura no seu famoso livro “A Crítica da Razão Pura”.
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