Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Estudos fenomenológicos, anotações

05/02/2021

 

(Introdução à recordação amadora)

Introdução

O título indica o que a seguinte coleção de reflexões, artigos e observações gostaria de ser, a saber, uma espécie de cadernos de anotações. Daqueles que como estudantes trocamos, para ajuda mútua, recordando o que se ouve nas preleções, seminários e leituras, de autores, professores e especialistas abalizados e que bem ou mal conseguimos assimilar e anotar, dentro das nossas limitações de estudantes amadores. As anotações aqui recebem ocasionalmente forma externa de ensaio, artigo, discurso, apostila e reflexões avulsas e ocasionais, feitas durante seminários e colóquios. E algumas foram publicadas já há muito tempo ou recentemente em forma de artigos. Seja qual for a forma externa que as anotações assumem, todas elas gostariam de ser lidas como anotações de estudante amador e amante na coisa, i. é, na causa da filosofia, principalmente da fenomenologia. Anotações de tal caderno só as entende quem as rabiscou, e quem, ao lê-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixão. Complexo e paixão de busca da coisa ela mesma da Fenomenologia e do seu fascínio, sofridos pelo iniciante ou amador. De que complexo e de que paixão se trata, diz o sub-título: Introdução à recordação amadora.

Recordação aqui não tem nada a ver com memórias do passado longínquo saudoso e/ou traumático de antanho, nem com depósito de lembranças, reminiscências do passado, portanto com arquivo de dados. Antes, tem a ver com a cordialização, com a re-cordação, portanto, com cerne, coração, o fundo oculto, donde nasce, cresce e consuma-se, sempre de novo o que aparece, dentro, diante e ao redor de nós. Mas então o que é, pois, cerne, coração, o fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma o estudo de um amador na Fenomenologia? Por ser o fundo do amador há ali psicologicamente algo como medo de pouco saber, uma espécie de complexo do aprendiz que não é especialista, de ser apenas iniciante e diletante. Mas ao mesmo tempo há também ali algo como ímpeto da inocência alienada de um grande desejo, vontade de se adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo que a alma do amador ama, a saber, naquilo que a Fenomenologia lhe tem de mais próprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigência de exatidão objetiva e informativa que o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber exige. E a tudo isso se acrescente o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com o saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria com paixão e sentimento. Trata-se de um humor angustiante que toma conta de todo e qualquer estudante de Filosofia que ama a Filosofia, que se lança a cata de informações, cada vez mais numerosas, asseguradas, que lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante e ao mesmo tempo se sente inquieto, como que tocado por outro hálito de fascínio de uma concentração no pouco essencial, de um aprofundamento para a interioridade de uma intuição da verdade originária, onde se vislumbra algo como vivência aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimensão inominável. As exposições que se seguem sofrem da ambiguidade desse humor angustiante do amador, que sempre permanece iniciante, jamais iniciado, como que estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua ignorância. Por isso, no subtítulo a palavra recordação indica essa perplexidade psicológica, mas ao mesmo tempo esperança de que, mesmo também nessa perplexidade, possa estar talvez atuando, por menor que seja, um hálito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemáticas tratadas nas reflexões, no desengonço e na imprecisão, característicos de trabalhos de um amador.

O inter-esse dos termos fenomenológico e fenomenologia aqui na nossa exposição se refere à corrente filosófica que historiograficamente teve início com Edmund Husserl sob a denominação de Fenomenologia e se manifestou em diversas escolas e inúmeros movimentos de Fenomenologia. Na infindável série de nomes de filósofos e pensadores, de tendências filosófico-fenomenológicas, o nosso inter-esse se limita mais a três, a saber, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Heinrich Rombach, que usualmente são classificados como pertencentes à escola fenomenológica de Freiburg i. Br. No entanto não se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as reflexões que seguem tratam diversos assuntos de cunho filosófico ou semi-filosófico como que a partir do médium em que se acha essa corrente fenomenológica friburguense, na medida em que, bem ou mal, foi assimilada e compreendida pelas reflexões. Com outras palavras, os pensamentos válidos que ocorrem nas nossas reflexões foram tirados desses autores, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por casa da ignorância ou pouco volume do pensar. Por isso também o termo introdução não se refere a uma exposição historiográfica acerca dessa escola friburguense de Filosofia nem de apresentação sucinta, na medida do possível sistemática de suas teses, doutrinas e ensinamentos filosóficos, para estudiosos de Filosofia, ainda não iniciados nessa corrente filosófica contemporânea. A palavra introdução do sub-título praticamente não tem nada a ver com esse tipo de introdução. Pois nossas reflexões não conseguem realizar uma tarefa tão difícil. Para isso, lhes falta tanto o volume de conhecimentos como o domínio de complexos dados historiográficos como filosóficos, que implica qualquer introdução desse tipo.

Aqui no sub-título a palavra introdução indica tão somente o inter-esse, não propriamente de conduzir os outros para dentro da Fenomenologia, mas sim de a própria reflexão, de alguma forma, ser uma tentativa. Tentativa de intuir, i. é, de ir para dentro, mesmo que seja somente num vislumbre passageiro, do fundo incandescente da coisa ela mesma da fenomenologia e ser atingido pela sua faísca, na cintilação do seu aparecer.

Por isso, os pensamentos, informações, referências que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotações, se forem usadas, devem ser controladas na sua exatidão e na sua validade, pois são na sua maioria “chutações” e simplificações de um amador. Se, porém, nessas “chutações” do amador e amante da causa da fenomenologia, houver alguns pensamentos válidos, quem sabe possam ser úteis para os que sofrem das mesmas dificuldades e no entanto querem intuir, portanto, ir para dentro daquilo que é do fascínio da Fenomenologia. Nessa perspectiva, as reflexões, nos seus dados informativos, limitam ao mínimo a exposição dos conhecimentos e do saber usual acadêmico sobre a Fenomenologia, supondo-os como conhecidos de alguma forma.

  1. Fenomenologia e psicologia
  2. O título “Fenomenologia e psicologia” é uma questão

O título dessa exposição deveria ser propriamente Espiritualidade e psicologia. Pois o propósito do nosso encontro[1], do qual esta exposição é a inicial, quer exatamente examinar, embora de modo provisório, o relacionamento entre espiritualidade e psicologia. Por que então falar no início de tal encontro, de Fenomenologia?

No início, antes de toda e qualquer discussão sobre o relacionamento de duas coisas, costumamos primeiro definir o que seja cada uma delas, para somente então examinar o seu relacionamento. No nosso caso, seria, pois, tarefa inicial definir o que seja espiritualidade e psicologia. Por que essa troca da espiritualidade por fenomenologia?

Tomemos esse estranhamento acerca do título da nossa exposição como início de uma colocação da questão acerca do relacionamento entre espiritualidade e psicologia.

Em geral, a justaposição de dois termos, um ao lado do outro, ligado pela conjunção “e” demarca o modo de como expor e abordar o tema. Assim, no nosso encontro queremos saber de um lado o que é a espiritualidade e, de outro, o que é psicologia, e então ver o seu relacionamento. A tarefa, porém, não se resolve assim sem mais desse modo, quando se trata de realidade da possibilidade humana, cujo modo característico de ser implica numa totalidade cada vez própria que na Grande Tradição do Ocidente recebe o nome de espírito e psyché e muitas vezes até de razão.

Mas, aqui, não se trata talvez de implicar com espírito e psyché. Trata-se apenas e simplesmente de examinar o relacionamento entre duas ciências positivas diferentes, já constituídas, que abordam a existência humana e seus fenômenos sob dois ângulos de enfoques diferentes. E surgem de imediato, no entanto, perguntas como: ciência, em que sentido? Espiritualidade não é conjunto de experiências religiosas? É uma ciência realmente no sentido estrito? Não pertence ela mais a mundividências, a crenças, mais do que a ciências? E a psicologia? Pertence às ciências humanas? Ou às naturais? Em que consiste a cientificidade da psicologia, a logia, i. é, a lógica da psyché?; e de modo geral, em que consiste a cientificidade das ciências humanas? E as diferentes tendências e escolas da psicologia? Como elas se posicionam cada vez acerca dessas questões? Ou nem sequer consideram essas questões como problemas? E o que é afinal de contas a realidade chamada ciências e ciências modernas? De que se trata, quando nos constatamos vivendo, fomentando, sendo vividos e estimulados até a exacerbação por um empreendimento global, por uma instituição dominante e dominadora, chamada tecnologia-científica que banca a medida do ser de todas as coisas?

Todas essas interrogações que colocamos acerca do tema “Espiritualidade e psicologia” podemos também lançar sobre o tema “Fenomenologia e psicologia”.

Só que, apesar de os títulos na sua formulação parecerem semelhantes, gostaríamos de ouvir o título “Fenomenologia e psicologia” de modo bem diferente, como que nos dizendo bem outra coisa e de maneira diferente do que a modo de “Espiritualidade e psicologia”. Por isso, sob esse nosso título falemos apenas da fenomenologia, e isto não de modo usual, como que informando a modo de tomada de conhecimento geral sobre a fenomenologia[2], mas a partir de uma bem determinada questão, expressa no título “Fenomenologia e psicologia”. Com outras palavras: o estudioso da fenomenologia, quando escuta esse título, de imediato, se recorda de uma questão todo especial, surgida bem nos inícios da fenomenologia, questão essa que longe de estar resolvida, hoje até caiu no esquecimento como questão e aparece nas diversas disputas acadêmicas e, não raras vezes em intrigas acadêmico-políticas de escolas como as existentes entre as correntes filosóficas de orientação fenomenológica tradicional e assim chamada filosofia analítica da linguagem.

Tomemos, pois, essa questão bem determinada e especial como o fio condutor para dizer brevemente o que devemos ou podemos entender no nosso encontro por fenomenologia. E na medida em que nos acercamos da essência da fenomenologia, se tornará mais claro, ou melhor, menos estranho, por que em vez de falar da espiritualidade no encontro que quer examinar o relacionamento entre espiritualidade e psicologia, falamos da fenomenologia. Portanto, de que se trata? Em que consiste a questão sugerida e recordada no título “Fenomenologia e psicologia”?

Trata-se da fundamentação das ciências modernas e do papel exercido pela psicologia nos inícios da fenomenologia nesse problema da fundamentação, e ao mesmo tempo, trata-se da questão implícita nessa fundamentação das ciências, a saber, a questão da essência ou ser das ciências.

As ciências modernas, na sua acribia crítica, sempre de novo examinam e reexaminam sua própria fundamentação. O interesse e a preocupação para a necessidade de fundamentar e revisar as ciências, a partir dos seus posicionamentos básicos, começaram a se avivar intensamente no início do século XX, mobilizados pelo progresso da psicologia experimental. E na perspectiva desse interesse da refundação das ciências, o nome Psicologia não somente indicava essa inquietação pela busca da limpidez da cientificidade do ser científico, mas também uma autointerpretação da psicologia como a ciência primeira e última, i. é, como ciência básica, a meta-ciência que fundamenta todas as outras ciências, quer naturais quer humanas, no seu ser científico. Essa autointerpretação da psicologia como ciência fundamental de todas as ciências formou uma filosofia que recebeu na época o nome de psicologismo, que em breve começou a se des-almar, des-animando a alma para ser o bios da biologia, e des-vitalizar o bios para ser energia da ciência físico-matemática, recebendo sucessivamente o nome de biologismo e naturalismo ou fisicismo. Portanto, repetindo, o psicologismo é uma corrente filosófica que coloca a psicologia moderna experimental como ciência básica que fundamenta todas as outras ciências.

Fenomenologia surge, de início, como confronto com o psicologismo. De que se trata, em todos esses –ismos enumerados? Em que consiste o problema do psicologismo?

  1. O problema do psicologismo

De uma forma bastante simplificada e talvez até ingênua, podemos caracterizar o problema do psicologismo, mais ou menos da seguinte maneira: as ciências, sejam elas naturais ou humanas, são conjuntos sistemáticos de conhecimentos. Enquanto conhecimentos são atos de intelecção, juntamente ao lado dos atos de volição e de sentimento. Os atos na época também chamados de vivências são fenômenos psíquicos, i. é, fenômenos inerentes e provenientes da psique humana. Toda ciência tem o seu objeto próprio e o ato da intelecção que constitui o(s) conhecimento(s) desse mesmo objeto. Embora as ciências sejam diferentes entre si no seu objeto, todas elas têm de comum que são sistematização de conhecimentos, de produtos dos atos de intelecção. Sem referência à intelecção, ao ato do intelecto, que num sentido mais vago e geral também pode se chamar de atos psíquicos do sujeito-homem ou de atos da consciência, não haveria nenhuma ciência. P.ex., um objeto enquanto coisa ali simplesmente dada, que existe em si sem nenhuma referência ao sujeito humano ou à consciência humana, não teria nenhum sentido, pois algo em si, sem nenhuma referência ao homem já é uma referência. Ora, entre as ciências, existe uma que tem por objeto os atos psíquicos em geral e em particular: é a psicologia. Portanto, a psicologia tem por objeto os atos psíquicos, i. é, o elemento constitutivo do conhecimento, do saber humano, portanto das ciências. Assim, a psicologia, como ciência dos “fenômenos psíquicos” é a ciência primeira e básica que fundamenta todas as ciências.

No ano 1900 saiu publicado o I volume das Investigações lógicas de Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. O livrou causou um grande impacto no mundo acadêmico da época. Pois, ali, Husserl se confronta de um modo contundente com a tese do psicologismo. Mostra que p. ex. objetos-idéias como as estruturas matemáticas, lógicas etc. não podem ser reduzidos na sua objetividade a atos psíquicos da intelecção, os quais tem propriedade de serem atos passageiros, mutáveis, sujeitos à evolução psicossomática do ser humano. Se for assim que estruturas lógico-matemáticas como p. ex. 2+2=4 puderem ser reduzidas em última análise ao ato psíquico da sua intelecção, poderia no futuro acontecer que elas, pela mudança p. ex. do cérebro humano pela evolução, não mais fossem verdadeiras. A tese de que as estruturas lógico-matemáticas que regem os atos do pensar são na realidade momentos do próprio ato, e que por isso mesmo estão sujeitas às mutações biológicas constitui a posição fundamental da filosofia que agora não mais se chama psicologismo, mas sim biologismo. E dando mais um passo adiante, a tese de que as mesmas estruturas ideais estão sujeitas às leis das transmutações físicas puramente corporais materiais recebeu a qualificação de ser naturalistas, daí o naturalismo ou fisicista, daí o fisicismo. Assim, psicologismo, biologismo, naturalismo e fisicismo indicam uma mesma e única tendência, na qual se processa a redução de diferentes dimensões da realidade às estruturas psíquicas, destas às psicossomáticas, depois destas às biológicas, e por fim às físico-energéticas da física nuclear.

A reação de Husserl ao psicologismo no I volume das Investigações lógicas foi saudada com simpatia e entusiasmo pelos que na questão da verdade pertenciam ao realismo na teoria do conhecimento[3]. O I volume das Investigações lógicas parecia ter retomado a posição do realismo através da doutrina da intencionalidade. Em distinguindo claramente o conhecimento, entendido enquanto o conteúdo objetivo e o conhecimento enquanto o ato do conhecer e resgatando o aspecto objetivo da referência do conhecimento à realidade, existente em si, independente do ato de conhecer; a fenomenologia das Investigações lógicas, ao mesmo tempo que combatia o relativismo do psicologismo, mostrando-lhe a impossibilidade de identificar o conteúdo objetivo simplesmente com o ato fugaz e passageiro do ato de conhecer, parecia ter reintroduzido o conceito da intencionalidade da escolástica medieval no mundo acadêmico-filosófico, dominado pela teoria do conhecimento de cunho subjetivo-idealista. Essa recepção da fenomenologia, feita ao modo do realismo, fomentou a busca cada vez mais diferenciada na descoberta de diferentes tipos ou classes de objetos. Começou-se assim a distinguir objetos-coisas, objetos-valores, objetos-ideais, objetos-etiológicos, estéticos etc. e tudo isso em acentuando a “ocorrência” de todos esses tipos de objetos como “realidades” em si, cada qual a seu modo, entendendo-se a palavra realidade num sentido bem lato, não restrito ao modo de ser em si das coisas físico-corporais. Abre-se assim a possibilidade de uma fenomenologia “realista”, na qual se aprimora na descrição detalhada do objeto dado, sob diferentes ângulos. A fenomenologia que permaneceu nesse nível de colocação realista recebe muitas vezes o nome de fenomenologia descritiva[4].

Entrementes, na autocompreensão da fenomenologia de si mesma começou-se a perceber que essa maneira de entender a intencionalidade, não correspondia à grande descoberta de Husserl, a qual chamou de intencionalidade. Com a descoberta da intencionalidade, no sentido todo próprio de Husserl, a fenomenologia rompe com a camisa de força em que ela foi colocada na autointerpretação inicial, como sendo uma nova teoria de conhecimento. Com a descoberta da intencionalidade Husserl inaugura uma abordagem do conhecimento, não mais a partir da teoria do conhecimento, inteiramente dentro da bitola da definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus, mas a partir e dentro da questão do sentido do ser, a partir da “ontologia” toda própria e nova na indagação mais vasta e mais radical do ser do próprio ato, não mais entendido usualmente como referido ao sujeito, à consciência, ao intelecto, mas como o modo de ser sui generis: como intencionalidade.

  1. A intencionalidade

É sempre difícil entender e dizer adequadamente o que a fenomenologia convencionou chamar de intencionalidade, livre inteiramente da tendência realista da teoria do conhecimento[5]. Na tentativa de compreender a intencionalidade fenomenológica da melhor forma possível, mais condizente com ela, voltemos à obra de Franz Brentano, intitulada Psicologia sob o ponto de vista empírico[6], de onde Husserl intuiu a idéia da intencionalidade.

Na p. 115 da acima mencionada obra diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Uma afirmação banal em que, se não a captarmos com precisão, nada encontramos de novo, nada que denotasse uma descoberta importante, a não ser o óbvio de uma constatação, conhecido por todos, na teoria de conhecimento. Conforme essa compreensão óbvia, há de um lado a coisa em si, e de outro lado o sujeito humano com seus atos psíquicos, i. é, fenômenos psíquicos, de diversos tipos, como representação, juízo, volição, apreensão etc. Esses atos psíquicos se caracterizam como intenções, i. é, o ato de tender em direção a (in-tendere). Cada uma dessas in-tensões se dirige a, e tem na ponta da sua tendência um objeto, cada vez seu, para o qual está apontando. Assim compreendida, a intencionalidade não nos revela realmente de imediato, o que, digamos, corpo a corpo, em carne e osso, i. é, como a coisa ela mesma, experienciamos no nosso vivenciar. É que no modo usual de “descrever” a intencionalidade, não percebemos que todos os elementos que constituem o esquema sujeito-ato-objeto já estão prefixados como: duas substâncias-coisas ocorrentes e enfileiradas uma ao lado da outra, ligadas por uma relação, que por sua vez, não passa de uma representação vaga e sem conteúdo de ligação, i. é, de relação, como uma linha geométrica, reta entre dois pontos. Talvez é por isso que Brentano não diz: cada sujeito com o seu ato, mas sim, cada fenômeno psíquico.

Como entender, pois, a afirmação de Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”? O que Husserl intuiu nessas frases, não o podemos perceber, se continuarmos a interpretar a colocação de Brentano dentro do esquema usual da intencionalidade como “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele através do ato de conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.” Mas, por quê? Porque o indicado, o apontado pela frase “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele através do ato” não é vivência, mas sim produtos, i. é, resultados constituídos num processo de objetivação. Se somos assim que não percebemos tratar-se aqui de produtos de objetivação, e nos representarmos esses produtos simplesmente como entes reais em si, acontece então conosco o seguinte processo: primeiro isolamos os produtos da objetivação, separando-os do processo de objetivação, hipostatizando-os ora como coisas em si (substâncias), ora como ‘coisas’(acidentes) aderentes a outra coisa. A seguir tentamos ligar entre si essas coisas assim hipostatizadas, dizendo-nos mais ou menos “com os nossos botões”: aqui estou, eu, uma substância existente em e por si mesma, diante da qual está uma coisa chamada objeto, que é também uma substância em e por si mesma (ou se não o for realmente existente como coisa física, ao menos tida como algo em si a modo de coisa ideal, coisa psíquica, coisa estética, coisa-valor, coisa supra-sensível etc.), sobre a qual a substância-eu se dirige numa ação, i. é, numa ‘coisa’ chamada intencionar (conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.), que não é propriamente uma substância, mas algo que adere como seu acidente a uma substância. E se alguém nos chama atenção de que todas essas coisas (substâncias: res in se) e semi-coisas (acidentes: res in alio) são como que produtos da ação chamada objetivação, representamos a própria objetivação como acidente inerente a uma substância, chamada sujeito-homem, que por sua vez, através do acidente-ação, se dirige aos objetos, no nosso caso como p. ex. sujeito eu, o ato da intencionalidade, a saber, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc. E esse processo, cujo esquema é o do sujeito-ato-objeto pode se repetir indefinidamente[7].

Mas então, como entender a frase de Brentano, onde Husserl intuiu a essência da intencionalidade? Devemos entendê-la como acenando para vivência. Antes de percebermos a colocação de Brentano como indicativo da vivência, uma rápida observação sobre o título do livro de Brentano, onde Husserl leu a ‘definição’ do que seja propriamente intencionalidade. O título do livro de Brentano soa Psicologia do ponto de vista empírico. O título nos pode enganar se entendermos a palavra empírico na acepção usual hodierna do modo de ser experimental das ciências positivas do estilo das ciências naturais, físico-matemáticas. O empírico assim compreendido é o oposto do especulativo, do não-real, do fantasiado, apenas “fenomenal[8]. O empírico, aqui, deve ser tomado no sentido, o mais abrangente possível de captação imediata, simples, pele a pele – a tentação é de dizer –, anterior a toda e qualquer elaboração. Só que esse acréscimo desvia a compreensão do caráter empírico que Husserl reivindicava para a sua fenomenologia. Pois dizer anterior a toda e qualquer elaboração dá a entender que no início há o material informe, vago, indeterminado que depois toma forma e concreção; e que o empírico significa captar a realidade elementar ainda intacta[9], no seu estado material. Ao passo que o empírico na fenomenologia significa só e simplesmente o captar, ou melhor, o colher simples e imediato, sem mais nem menos que está expresso no slogan: à coisa ela mesma[10]. Isto significa que, se acaso houver, aqui apenas dado como suposto, esse processo de elaboração do material indeterminado, vago e informe para a gradual coisificação até o processo se consumar numa hipostatização, a modo de coisa ali presente em si, o captar simples e imediato acolhe cada etapa, cada ligação das etapas, cada crescimento das etapas, cada vez de novo, cada vez simples e imediatamente, sem mais sem menos, assim como tudo isso aparece sempre novo e de novo na sua totalidade. Trata-se da claridade e distinção do tornar-se da e-videnciação, algo como o contínuo e renovado abrir-se da claridade, i. é, da clarificação[11], um  surgir incessante, o vir à fala, o vir à luz. Essa claridade dinâmica da e-videnciação, da presenciação é o ponto de vista empírico. Aqui o ponto de vista não é um ponto fixo, a partir do qual se encaixem todas as coisas na perspectiva desse visual pressuposto, mas sim como que ponto nevrálgico, ponto de toque, o fundo do salto, dentro e a partir do qual continuamente brota o vigor elementar do e-videri, a clareira, o olho da luz que, enquanto condição da possibilidade, e enquanto espaço de jogo impregna todos os entes, i. é, cada ente, cada em sendo, cada vez na sua totalidade dinâmica[12]. Todo o segredo da compreensão adequada do que seja a intencionalidade fenomenológica está em compreender com precisão essa evidenciação, i. é, como é o puro ato chamado captar simples e imediato. Como já foi mencionado, para isso devemos fazer o processo de entender o modo de ser do conhecimento como vivência.

Como pois nos reconduzir à vivência, a partir da representação que fazemos da intencionalidade como relacionamento do sujeito sobre o objeto, através do ato chamado intencionalidade?

Repetindo, diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Brentano não diz: eu, o sujeito-homem, me dirijo ao objeto através do fenômeno psíquico, do ato. Diz simplesmente: Todo fenômeno psíquico. Em vez de fenômeno psíquico digamos vivência. Sem “definir” logo o que seja vivência, deixando vago de que se trata, ouçamos: “vivência” contém em si algo como objeto. Se a vivência se chama representação algo é representado; se juízo, ajuizado ou julgado (reconhecido ou rejeitado); se amor, amado etc. Usualmente no esquema sujeito-ato-objeto temos primeiro o objeto como coisa em si fora, diante, independente de nós, existente em si, ali presente na sua ocorrência, pronto para ser representado, julgado, amado, odiado, cobiçado. O objeto, a coisa em si é por assim dizer, enfocada várias vezes, de modos diferentes pelos atos subjetivos, i. é, do sujeito, denominados representar, julgar, amar, odiar, cobiçar. Na colocação de Brentano, o estado da coisa não é mais assim. Cada “fenômeno psíquico” é cada vez, por assim dizer um todo chamado representação, juízo, amor, ódio, cobiça que cada vez contém o seu objeto que tem cada vez o modo de ser que ele, o fenômeno psíquico, tem. É como o fundo, o horizonte, o âmbito aberto, que se estrutura como uma paisagem, no qual, contidas estão as coisas, ordenadas como mundo. As coisas da paisagem assim abertas em leques como mundo são impregnadas, são coloridas, segundo a matiz, segundo o modo de ser de cada uma dessas aberturas. Chamemos esse âmbito aberto como mundo a modo de uma paisagem, de intencionalidade. E ouçamos dentro dessa compreensão o que Brentano diz: “cada fenômeno psíquico contém algo como objeto em si”, visualizando o modo de ser da abertura da paisagem acima mencionada. Talvez assim, possamos adivinhar de alguma forma o que Husserl poderia ter intuído, ao ler esse trecho do texto de Brentano. Se assim é a intencionalidade, então não se trata do ato de um sujeito-homem dirigindo-se ao objeto, existente em si, fora dele. Mas para que a nossa compreensão tenha maior precisão, devemos agora completar a nossa descrição dizendo: o que denominamos acima como âmbito aberto a modo de uma paisagem que se abre em leques de ordenações de detalhes concretos da mesma paisagem como mundo não é algo que está diante de mim como uma paisagem da realidade fora de mim. Antes esse âmbito aberto com todos os seus “ingredientes” em mínimos detalhes de implicações e explicitações sou eu mesmo, eu mesmo não como esta substância-homem, mas sim como o âmbito aberto vivido na sua concretude, intensidade, no seu desvelamento e velamento, em todas as suas camadas dinâmicas de estruturações como totalidade do mundo, diante de “mim”, ao redor de “mim”, fora de “mim”, dentro de “mim”, enfim, essa totalidade, esse mundo que “me” envolve e envolve todas as coisas. Portanto, essa abertura, essa presença é a minha essência, eu sou todo inteiro, tout court, de imediato, esse ser-no-mundo, dito de outro modo: eu sou essa vivência. O que aqui denominamos de vivência coincide com o que acima, ao tentarmos dizer em que consiste o significado do ponto de vista empírico caracterizamos como captar simples e imediato.

A tentativa de dizer o que seja propriamente fenomenologia na nossa exposição se concentra apenas em compreender com precisão esse captar simples e imediato. Para isso, a seguir falaremos brevemente do que se convencionou chamar na fenomenologia de redução, ideação e constituição. Elas são três momentos da intencionalidade, ou melhor, são processos pelos quais e nos quais se dá a intencionalidade.

Antes, porém, de modo provisório e sempre interrogativo, repitamos o que seria Psicologia sob o ponto de vista empírico, se entendermos a empiria como foi insinuado há pouco. A alma (psyché) agora não seria mais aquela da acepção usual, na qual é um dos componentes do ser humano como substância: corpo, alma e espírito. Mas, então, seria a vida como vitalidade biológica no sentido ‘somático-vegeto-animal’? Ou Vida simplesmente na sua compreensão, a mais vasta, a mais profunda e dinâmica possível? Seria Ser, no seu sentido ainda originário como presença do abismo de possibilidade, como plenitude inefável e inesgotável do poder ser, sempre novo e renovado, sempre e cada vez mais origem, arché, ou melhor, hyparché, o nada, tinindo na potência da generosidade de ser?

Sem podermos nem querermos dizer o que é, deixemos abertas todas essas e outras perguntas, não como interrogações que tentam ter respostas que fecham, facilitam, satisfazem a busca, mas que a abrem e a mantem como questão, portanto como busca que se adentra cada vez mais cordial, generosa e crítica[13] na jovialidade atônita do não saber que se adensa como o tinir do silêncio de ausculta como a espera do inesperado… De repente, talvez, possamos vislumbrar num in-stante o que significa: captar simples, e-videri, ver simples da coisa ela mesma, a imediatez do sem mais nem menos. A concentração, a densidade da ausculta que integra essa abertura da espera do inesperado é um dos elementos que constitui o significado da palavra – logia (logoV) que expressa o caráter científico da Psicologia. Lógos (-logia) vem do verbo legein que significa usualmente falar, discursar, mas também no seu significado ‘radical’ arcaico, ajuntar, colher, recolher. Recolhermo-nos na atônita ausculta de um jovial não-saber, na total disposição da ausculta do inesperado, seja talvez  o significado, o mais interessante do “saber”, que recebe o nome de Psicologia. Se tivermos como pano de fundo tal compreensão da psicologia sob o ponto de vista empírico, podemos talvez melhor compreender o que Husserl dizia, em criticando a empiria dos filósofos ingleses (Locke, Hume), a saber, que o empírico e o experimental dos antigos positivistas ingleses ainda sofria de fixação e da bitola do dogmatismo filosófico, não superado; e que somente com a fenomenologia se alcançou a compreensão legítima e autêntica do que seria realmente o empírico e o experimental.

  1. Redução

Repetindo, o nosso objetivo é entender de que se trata, quando falamos de fenomenologia. Lembremo-nos do estranhamento que causou a troca do título do tema do nosso encontro nessa reflexão. O tema do nosso encontro é Espiritualidade e psicologia. O tema dessa nossa reflexão parece ser Fenomenologia e psicologia. No entanto, nessa exposição inicial falamos apenas da fenomenologia.  E porque falar da fenomenologia e não logo da espiritualidade, isso deveria começar a aparecer, na medida em que examinamos a intencionalidade como essência da fenomenologia. E em ‘definindo’ em que consiste, por sua vez, a essência da intencionalidade, dissemos que aqui se trata de um captar simples a coisa ela mesma de modo imediato na evidência. E advertimos que não é nada simples ver de que se trata, quando falamos de captar simples e imediato, i. é, na evidência. Para  vermos cada vez melhor e com maior precisão em que consiste esse captar simples e imediato na evidência, examinemos a intencionalidade enquanto redução, ideação e constituição.

Redução é ação de reduzir. Reduzir pode significar restringir, diminuir, mas também reconduzir. É o que mostra o latim reducere. Na fenomenologia redução significa reconduzir, propriamente, reconduzir à coisa ela mesma. Isso significa que nós estamos afastados, longe da coisa ela mesma?! O que é isso, do qual estamos longe, para o qual devemos ou queremos ser reconduzidos? A coisa ela mesma!? O que é na fenomenologia coisa ela mesma? Em vez de redução, usamos também expressões como pôr entre parênteses, suspender a crença na existência, voltar e permanecer na atitude do espectador sem pressuposições.

Alguns autores explicam o que é a redução fenomenológica, referindo-se às expressões acima mencionadas, como sendo “ação de neutralizar o posicionamento da realidade como existindo em e por si, fora do sujeito conhecedor, i. é, pôr entre parênteses; não ter nenhuma pressuposição prévia, apenas ver a coisa ela mesma. Hoje, teríamos a tentação de dizer: transformar a realidade real em realidade virtual. Percebe-se imediatamente que essa explicação expõe o que seja fenomenologia já partindo da posição de que na fenomenologia trata-se da teoria de conhecimento e de suas problemáticas, principalmente do problema do realismo e do idealismo. Assim, já representamos p. ex. o ato de ver uma floresta de quaresmeiras floridas, pondo incontáveis pressuposições, tais como “ver é um ato psicofísico”, “dentro de mim”, é “captar através dos nervos óticos os estímulos físico-ondulatórios provenientes de um organismo vegetal da espécie herbifólios etc. E a mais abrangente, tenaz e persistente pressuposição é a de que a coisa chamada quaresmeira florida está ali diante de mim, ocorrente em si, dada de antemão como realidade objetiva incontestável, independente da referência a mim. Segundo esses autores, redução fenomenológica seria descoisificar, sim, dessubstancializar as coisas assim dadas como se fossem coisa ela mesma, denunciando esses dados como não dados imediatamente, como não aparecendo, não vindo à luz eles neles mesmos[14] Esse processo de “desmaterialização” da “coisa hipostatizada” como esse bloco-cosa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da “realidade” em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regiões, sub-regiões, setores, áreas de conjunto de “coisas”, constituindo o aparecimento do mundo “objetivo” diante e ao redor de mim: temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez “dessubstancializado” se abre como todo um mundo de “realidades” sui generis próprias com seus variegados atos, noemas e egoidades: temos assim a paisagem denominada: noesis. Mas tanto a paisagem noema como a paisagem noesis são ainda de alguma forma colocadas como “realidades” “diante” ou “ao redor” de “quem” as percebe. Assim, de alguma forma, agora de modo menos “coisificado” e mais sutil se reitera o esquema do sujeito « objeto, postulando-se um sujeito, não mais empírico (sujeito do subjetivismo ingênuo), mas inteiramente descoisificado, como que pairando sobre todos os sujeitos, a modo de uma imensa área de possibilidade de surgimento de infindas paisagens noemáticas (mundo de noema) e noéticas (mundo de nóesis) que então recebe a denominação de subjetividade transcendental. Surge assim uma interpretação da fenomenologia que de alguma forma identifica a fenomenologia com o modo de ser do idealismo alemão, dando-lhe um cunho metafísico-transcendental. Nessa perspectiva redução significa descongelar todas as complexidades de “realidades” de diferentes tipos, de diferentes níveis de  composições que tendem a se endurecer como diferentes hipostatizações-coisa, em as reconduzindo às suas origens que as constituem a partir e dentro da dinâmica da subjetividade transcendental. A redução fenomenológica assim entendida, coloca, a modo metafísico, a subjetividade transcendental como grande pressuposição de toda a sua explicação, sem mostrar, sem nos fazer ver “de que se trata”, quando dizemos subjetividade transcendental. É que a subjetividade transcendental da fenomenologia não é propriamente nem subjetividade nem objetividade, nem transcendentalidade como nós as entendíamos na Filosofia, mas sim apenas, simplesmente, exclusivamente captar simples, imediato do e-videri. Trata-se de uma coisa” tão simples e imediata que se torna dificílimo dizer de que se trata, se não o captamos simplesmente. Tentemos, no entanto, dizer da melhor forma possível[15] esse captar simples, imediato do evideri.

E-videri é um ato humano. O ato de captar simples e imediato é o que somos. Por isso, o simples fato de sermos ato de captar simples e imediato e saber de que se trata no captar simples e imediato. Só que tudo isso, por ser absolutamente simples, deixa de ser simples para nós agora, pois representamos o “simples fato de ser ato e o ser do ato” como ocorrência de coisa, chamada fato, que implica numa coisa, chamada homem, que por sua vez faz uma coisa, chamada ver, e nesse ver capta uma coisa que se chama captar simples e imediato, o e-videri. Como, porém, esse simples fato de ser ato, representado como todo um entrelaçamento de diferentes coisas, está sendo captado por outro ver anterior, que por sua vez o capta simples e imediatamente, pensamos que podemos somente ver esse último captar, porque o representamos como uma coisa “diante” de mim. Assim pensamos que o ato de ver com todas as suas implicâncias, tanto do lado do sujeito do ato (noesis) como do lado do objeto do ato (noema), somente é percebido porque é colocado como objeto. Portanto, o ato como tal, no seu ser simplesmente ato de captar simples e imediato, se retrai, num processo de reduplicação dentro do esquema “sujeito – objeto” numa série infinita de reduplicações cada vez que o tentamos captar. Surge, pois, uma questão. Não é possível captar o próprio captar diretamente? A e-vidência, não é possível vê-la diretamente, simples e imediatamente? Repitamos a pergunta: A e-videncia, não é possível vê-la diretamente, simples e imediatamente? Percebamos o que dissemos! Dissemos: vê-la! Vê-la não é possível, pois, é poder da e-vidência  não precisar colocar-se diante de si como objeto, mas ela é evidência a partir de si e em si e por e para si. Portanto aqui na e-vidência, no captar direto, simples e imediato. Trata-se de da autopresença do espírito a si mesmo, da tautologia da coisa ela mesma, da Selbstgegebenheit[16], Como diz Husserl. O ser do ato, ou melhor, quando o Homem está no modo de ser do verbo[17], é ele mesmo. Com outras palavras, o Homem no seu ser, originária e propriamente, é ato; quando está impropriamente, é substância na acepção de coisa-bloco-em si. É o que a fenomenologia quer dizer, quando define o Homem como Da-sein, i. é, ser-aberto, Offen-sein. Esse ser-aberto, porém, não deve ser entendido como ser o Homem uma substância que tem a abertura, mas sim como: em sendo estância da abertura, i. é, existência, ou com maior precisão sistência do ex[18]. Portanto em sendo no ex o homem é. Dito com outras palavras, a essência do Homem está no seu ser-abertura ou ser-na abertura[19]. Assim apenas em sendo captar simples e imediato, se é captar simples e imediato; e-vidência. Essa abertura primordial, esse apriori da fenomenologia se chama das Offene, o Aberto, a Clareira. Perceber que em toda parte, a cada momento, a cada passo somos cada vez  ambiência, médium-abertura, liberdade da incandescência da evidência, se chama redução fenomenológica. Toda questão é ver tudo isso. Assim, parafraseando o título do livro de Brentano “Psychologie vom empirischen Standpunkt”, poderíamos dizer: redução fenomenológica é intencionalidade a partir de e fundada na estância, no médium da claridade ou clareira.

Apesar de ser chato, vamos insistir um tanto mais em precisar esse captar simples e imediato, o e-videri, o Da-sein que para a fenomenologia é o ser do Homem, a sua essência. As palavras usadas para caracterizá-lo são todas inadequadas, porque sempre de novo nos evoca representações “substancialistas”. Assim, p. ex., medium, ambiência, ser no etc.  nos fazem representar um espaço fixo, vazio, e mesmo que “dinamizemos” o espaço como “espaço de jogo”, de surgimento e aumento do ser etc., tudo isso é ainda representação da coisa, por mais movimentada, subtil e  desmaterializada que ela seja. Só que exatamente aqui é que reside o pivô da questão. A proibição de representar, de coisificar nos lança de volta a separarmos o ato do seu objeto, como se existisse o ato puro de um lado e juntamente com ele o ato impróprio de representar ou de coisificar etc. Tudo isso acontece, sempre de novo, porque tentamos entender o ato chamado captar simples e imediato, não tematicamente no seu apresentar-se ou na sua operação, no seu ser operativo, mas como que estando de e por fora do próprio em sendo. Com outras palavras, esse em sendo aparece ali aberto como mundo (Welt) em milhares de modulações e variedades cada vez como totalidades, que por sua vez se qualificam como sendo o surgir, crescer e consumar-se de um determinado sentido do ser como possibilidade de ser, em suas variegadas estruturações.

É de importância decisiva para a adequada  compreensão da intencionalidade e do seu momento-redução compreender com precisão em que consiste o que a fenomenologia chama de sentido do ser. Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Aqui na fenomenologia, sentido propriamente nada tem a ver com signo ou significação, tampouco com conceito, embora tenha muito a ver com o aceno. Sentido na acepção usual indica os cinco sentidos, que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, também à sensibilidade artística. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um a priori, para que se receba. Mas aqui não  se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre e depois atua, de algo que existe em si e então age. E também não é assim que então quem o recebe seja factualmente um algo que quer passiva, quer ativamente, acolha esse algo e sua atuação anterior. Aqui, tanto o anterior como o posterior, tanto a doação como a recepção são momentos de uma e mesma fluência, qual atinências, pertença ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente, i. é, nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo. A finura e disponibilidade cordial dessa recepção, a precisão da limpidez dessa recepção e o que vem à luz como mundo nessa sintonia do encontro, é o sentido do ser;  o captar simples e imediato é a finura e pureza dessa recepção que deixa ser o sentido do ser[20].

  1. Ideação

A sintonia do sentido do ser, cada vez no seu todo, em mil e mil estruturações, na implicação e explicação de entrelaçamento de paisagens, regiões, sub-regiões, áreas e campos e setores dos entes, é o que experimentamos como Vida, Ser, Realidade. E o Homem no seu ser próprio, é a limpidez da de-cisão da recepção e ausculta cada vez mais fiel e precisa das possibilidades do nascimento, crescimento e consumação das estruturações do(s) mundo(s). Assim estar nessaé o ser do Homem.  Por isso, a essência do Homem que antes foi definida como ato, intencionalidade, como captar simples e imediato ou como Da-sein, i. é, existência, é também denominada ser-no-mundo pela fenomenologia.

Se agora, ‘sentirmos’ atentamente essa recepção do sentido do ser, percebemos que há ali dois momentos que vem à luz como duas tendências de um e mesmo movimento. Uma tendência é a que acima chamamos de redução e sua limpidez. Essa tendência se adentra cada vez mais na ausculta da profundidade e da criatividade do abismo inesgotável e insondável das possibilidades do vier à fala do sentido do ser como mundo(s). E o faz na contínua vigilância crítica, na liquidificação de todo e qualquer preconceito, pré-julgamento e dogmatismo que possa instalar e estagnar o movimento da estruturação do(s) mundo(s). Mantém-se assim sempre de novo na limpidez, na claridade do aberto (das Offene) do abismo-nada da plenitude do sentido do ser, que se oculta como profundidade insondável[21] de ser. A outra tendência é o crescente desvelamento, o vir à luz das possibilidades do sentido do ser, cada vez como nascimento, crescimento e consumação do(s) mundos). Aqui começa a se dar, na dinâmica da Selbstgegebeneit, a abertura de diferentes paisagens, regiões, áreas, campos e setores do sentido do ser, que cada vez se estrutura como totalidade da possibilidade dos entes, ou na linguagem fenomenológica como ser do ente na totalidade. Isto significa que, no desvelamento que vem das profundezas do abismo da possibilidade do sentido do ser, emergem cada vez de novo e novos, toques do fundo do abismo-nada, lançando, rasgando horizontes de um determinado sentido possível do ser, como que vislumbres genéticos de um mundo em surgimento. Esse toque e lance de iluminação, esse vislumbre se diz em grego eidoV ou idea. É a partir e dentro desse vislumbre que se constelam mundos, cada qual na sua identidade e diferença, na sua estruturação ordenada, concreta e viva como que na fluência da potência do sentido abissal do ser. Manter-se na nitidez, clareza do vislumbre do iluminar-se do horizonte da constituição do mundo se chama então na fenomenologia de ideação[22].

  1. Constituição

Constituição é um momento da intencionlidade ou do captar simples e imediato. Nela tematizamos o momento de consumação, acabamento ou remate de todo o processo do vir à luz dos entes enquanto concreções do sentido do ser como mundos. Nessa estruturação concreta, i. é, concrescida do mundo como cada vez ente na sua totalidade, o ente vem à fala, toma corpo como isto e aquilo, mas não mais isolado, atomizado, separado um ao lado do outro como blocos substanciais, mas sim como consumação da finitude de cada mundo como possibilidade que veio a si na sua facticidade.

Facticidade é diferente da factualidade. Nesta, cada ente ali está como fato, como isto e/ou aquilo em si, qual bloco-coisa, sem desvelar nem ocultar a propriedade da sua possibilidade como uma bem determinada decisão do surgimento, crescimento e consumação de um determinado “possível”, i. é, do poder do sentido do ser. Assim, o ente na factualidade ocorre neutra e simplesmente na monótona igualdade de ser sob uma visão geral e panorâmica, sem deixar ser a intimidade oculta do seu destinar-se, como aventura e ventura do espanto na gênesis do mundo. Tal visual sofre da amnésia do sentido do ser, como quem se esqueceu da sua origem, da sua história, do seu destino, sim do seu ser. A redução desperta o ente dessa perdição no esquecimento do sentido do ser, liquidificando toda e qualquer fixação preestabelecida e o reconduz à sua gênesis, tornando-o em sendo concreção. E a ideação o faz se reencontrar e retornar à sua identidade, a partir e dentro do vislumbre, do nascimento de um determinado horizonte do sentido do ser. No movimento da redução e da ideação do processo de vir à fala do sentido do ser, o ente è desvelado como articulação viva e concreta de todo um mundo de percussão e repercussão do sentido do ser, que em cada ente, em cada em sendo, se torna presente como o abismo inesgotável do vigor sempre novo da sua possibilidade. O ente assim captado simples e imediatamente é  o próprio e-videri, cintilação, incandescência, percussão e repercussão do sentido do ser, que em sendo como tal na finitude da diferença da sua identidade, inclui sempre de novo na finitude de ser isto e/ou aquilo, na singularidade da decisão e liberdade de ser cada vez como seu destinar-se e historiar-se na fluência do envio da imensidão, profundidade e originariedade da possibilidade do abismo do ser. Tal historiar-se do lance do surgimento, crescimento e consumação do ente na sua totalidade como mundo é o que a fenomenologia chama de facticidade. A concreção consumada da facticidade como ente na sua totalidade se chama constituição. Essa facticidade é o in-stante da existência, a sua in-sistência, o em sendo prévio, o ser-homem: a intencionalidade, i. é, o captar simples e imediato.

  1. Fenomenologia e psicologia

A intencionalidade com os seus três momentos fundamentais redução-ideação-constituição como a tentamos esboçar de modo muito imperfeito sou eu, cada vez, enquanto existência. Esse “sou eu, cada vez” não significa a egoidade do sujeito-eu-indivíduo na sua autoafirmação aqui, agora, mas sim o modo de ser próprio do Homem, que a fenomenologia caracteriza como Da-sein. Trata-se, pois, do ser, da essência do Homem, que é a existencialidade. No entanto, a expressão “modo de ser próprio do Homem” na fenomenologia é sempre ambígua. Pode indicar o modo de ser diferencial do Homem em comparação com o modo de ser dos entes não-humanos, como p. ex. de animal, de planta, de coisas inanimadas. Pode também significar “condição da possibilidade” para que o sentido do ser venha à luz enquanto identidade diferenciada e diferencial no modo de ser do Homem e dos entes não-humanos. O Homem enquanto existência seria então clareira do sentido do ser, na qual e através da qual, emerge o abismo do sentido do ser e se estrutura cada vez, todo um mundo de possibilidades, no tempo e no espaço, mundo da constituição histórico-epocal da Humanidade e das suas vicissitudes. Isto significa que tudo que sabemos, podemos, queremos, sentimos e fazemos, tudo que não sabemos, não podemos, não queremos, não sentimos e não fazemos; tudo que construímos e destruímos, tudo que não construímos e pretendemos construir como projeto e prolongamento de nós mesmos, está como que por um tênue fio referido a e sob a responsabilidade da limpidez e atinência do nosso captar simples e imediato, do nosso e-videri ao toque do sentido do ser, como ser-no-mundo.

Esse modo de ser do Homem como clareira do sentido do ser, como “condição da possibilidade” do(s) mundo(s), portanto a intencionalidade ou o captar simples e imediato, com tudo que ele implica como acima mencionamos, é o “saber” fundamental para todos os outros saberes, quer pertençam eles à dimensão pré-científica, pré-predicativa ou mesmo também à pré-fenomenológica. Tal saber recebeu na fenomenologia o nome de ontologia[23] fundamental por ser ele a investigação do ente no seu ser, que se adentra mais e mais na recepção e sondagem dos toques do sentido do ser que vem do abismo da possibilidade da Vida. Como tal é esse saber fundamental, i. é, do fundo que oferece às ciências a adequação do seu positum, dando-lhes as possibilidades da formação dos seus conceitos fundamentais e da sua revisão.

Hoje, a psicologia se refere a todo um imenso e complexo sistema do saber denominado ciências modernas, que se dividem em ciências naturais e ciências humanas.  A psicologia pertence ora às ciências naturais, ora às ciências humanas. Onde busca ela a razão da sua cientificidade, a razão da lógica do seu saber, a sua fundamentação?

No início da fenomenologia, a palavra Psicologia evocava a questão do Psicologismo. A Psicologia experimental e o Naturalismo, dali decorrente, na sua autointerpretação buscava tornar-se a ciência fundamental, a ciência primeira, a meta-ciência de todas as outras ciências. E hoje, como a Psicologia se interpreta a si mesma na sua cientificidade? O que outrora, a Psicologia na sua forma do Psicologismo pretendia, parece que a fenomenologia tenta buscar como ontologia fundamental. Há hoje, alguma afinidade, algum relacionamento entre Psicologia e Fenomenologia como ontologia fundamental? Se a Psicologia, p. ex., em relação à Espiritualidade cristã, segundo religiosos cristãos, tem algo ou até mesmo muito a dizer, em que sentido isso acontece e como se ligam a verdade da psicologia e da espiritualidade cristã? A fenomenologia, como de modo muito imperfeito aqui expusemos, tem algo a contribuir nessa questão do relacionamento da Psicologia e da Espiritualidade? Esses assuntos e outros mais são o que nos interessam, ainda de modo bem indeterminado nos nossos três dias de encontro.

Conclusão

Todas essas questões que nos confundem na nossa vida de busca talvez pertençam a um grande processo epocal de radicalização a que somos submetidos, para que o que chamamos com muita facilidade de espiritualidade cristã retorne à seriedade, à existencialidade de sua identidade, de tal modo que da diferença que incandesce nessa identidade haja um real confronto mais finito, concreto e exigente com Ciências e Filosofia, as quais usamos com frequência como se fossem apenas um instrumento a serviço da religião.

O que acontece com a nossa existência cristã, a que chamamos de vida de Fé, se Filosofia (Fenomenologia) e Ciências (Psicologia) não são apenas meios ou instrumentos neutros, mas sim existências todo próprias, também radicais na seriedade das suas questões? Mas, hoje, o são realmente?

  1. O ver simples e imediato e a intencionalidade

III. Generalização e mostração formal

  1. A lógica e a alma seca
  2. Ciências, Filosofia e Teologia?

O interesse dessa reflexão está delimitado pela situação em que se acha um certo grupo de pessoas que por vocação e profissão estudam como encargo de sua formação: Ciências, Filosofia e Teologia cristã. Trata-se de um problema que surge dentro do ensino e dos estudos teológicos e seus prolegômenos para a formação dos sacerdotes católicos. O ensino e os estudos aqui possuem a estruturação da formação intelectual em três níveis de Ciências: de Ciências positivas, Filosofia e Teologia. Como se relacionam essas três ciências. Como o autor dessa reflexão é franciscano, quando aqui se fala desse assunto, é usada muitas vezes a expressão formação intelectual franciscana e se refere ao ensino e os estudos dos religiosos franciscanos, candidatos ao sacerdócio, acima mencionados.

A palavra Ciência aqui não está sendo usada no sentido unívoco. Tanto a Teologia como a Filosofia e as Ciências Positivas devem ter a sua maneira própria de entender a sua cientificidade. Por isso mesmo, se trata de três níveis de Ciências, diferentes, que entram em jogo na nossa formação intelectual. É de importância muito grande, de alguma forma, tentar ver o modo de ser de cada nível de Ciências e sua relação mútua.

Só que esse assunto é, em primeiro lugar, muito controvertido. Pois, são tantas as posições diferentes na definição do que seja a essência da Teologia, da Filosofia e das Ciências Positivas, que dificilmente se chega a um consenso. Em segundo lugar, a busca pela essência da Ciência é uma questão aberta, dificílima de se abordar e se orientar na direção de clareza e unanimidade de colocação. E, no entanto, apesar dessas dificuldades, é necessário, ao menos de forma provisória e muito imperfeita, refletir acerca desse assunto. Em todo caso, não podemos simplesmente permanecer na ingenuidade irresponsável de acreditar que, ajuntando os três níveis de ciências, uma ao lado da outra, damos uma formação sistemática aos estudantes.

  1. Ciência e ciências

Os documentos eclesiásticos, ao referir-se à formação intelectual do clero, tanto no seu modo de falar, como no uso explícito da palavra Ciência, mostram claramente que entendem tanto a Teologia como a Filosofia como Ciência. Deixando por ora de lado o questionamento sobre o que se deve entender aqui por Ciência, é importante atender bem esse modo de falar, pois ele nos indica a direção para a qual devemos orientar a nossa reflexão. E nos convida a pormos de lado uma compreensão usual ingênua do relacionamento entre a Teologia e Filosofia (e Ciências Positivas).

Usualmente, consideramos a Teologia como uma mundividência que vem da . E a Filosofia também como mundividência que vem da razão. Como “sabemos” que tanto a ordem sobre-natural como a natural vem de Deus, portanto, tanto a Fé como a Razão vem de um e mesmo Criador, não temos nenhum problema, em dizer que a Teologia e a Filosofia (e Ciências Positivas) se completam mutuamente.

Essa maneira de empostar o relacionamento Teologia e Filosofia, hoje, encontra uma resistência muito grande da parte da consciência crítica científica moderna, que vê numa tal explicação um círculo vicioso. É que, essa maneira de raciocinar o relacionamento entre a Fé e Razão já é um produto da maneira de pensar da crença em um Deus Criador, portanto de uma crença teológica. E se se objetar que não se trata de crença, mas sim de um conhecimento demonstrável pela razão, através dos argumentos da disciplina filosófica chamada na filosofia de Teodicéia, a consciência moderna científica de hoje logo responderá que essa Filosofia é na realidade uma “Filosofia” (leia-se Mundividência) Cristã, portanto uma parte da Teologia. E se insistirmos que se trata de um conhecimento real, objetivo, racional, a Consciência moderna nos vai perguntar, que conhecimento real, objetivo e racional é esse que só é tido como conhecimento certo pelos que de alguma forma creem numa religião, e que fé é essa que no fundo necessita da Razão para confirmar a sua crença? E se insistirmos ainda, dizendo que a Razão e a Fé não se contradizem, mas uma supre a outra, ou se complementam mutuamente, a consciência científica hoje vai nos dizer que a nossa fala é muito ambígua, uma vez entende-se a Razão de um jeito, outra vez de outro jeito, e a própria compreensão da Fé não está clara, e principalmente, que a nossa compreensão da Ciência está inteiramente alienada da compreensão hodierna da ciência.

E, realmente, aqui reina uma confusão entre nós. Independentemente de quem tem razão, se a nossa concepção usual ou a consciência moderna, no nosso modo usual e para nós tão óbvio de explicar o relacionamento Teologia e Filosofia (e Ciências Positivas), entram em jogo vários níveis de colocações, dos quais não nos damos conta. Tentemos enumerar algumas dessas colocações:

  1. a) Filosofia como Filosofia perene, i.é, um conjunto de doutrinas, que são objetivas, perenemente verdadeiras, sobre Deus, Homem e Universo, que podem ser alcançadas pela razão natural, e que estão depositadas como doutrinas filosóficas na assim chamada Filosofia Cristã e que constituem o Prolegomena à Teologia Cristã Católica: Filosofia Cristã como Ciência Racional.
  2. b) Filosofias que não pertencem à Filosofia Cristã, p. ex., as Filosofias modernas, contemporâneas, antigas-pagãs, como doutrinas não ou menos verdadeiras, como opiniões não objetivas, i.é, subjetivas, não perenes, i.é, relativas, históricas, com outras palavras: Filosofias não-cristãs como mundividências.
  3. c) Ciências Positivas como conjunto de conhecimentos certos do tipo da Filosofia Perene, objetivos, verdadeiros, não subjetivo-relativos, embora num estado imperfeito e em referência a objetos de níveis diferentes aos da Filosofia Perene, portanto: Ciências Positivas como Ciência Racional.
  4. d) Teologia como um conjunto de doutrinas, que são objetivas, perenemente verdadeiras, sobre Deus, e a partir Dele, sobre o Homem e o Mundo, mas num nível de realidade sobre-natural, não mais alcançáveis pela razão natural, mas somente pela Fé-Revelação. A Fé como a possibilidade de compreensão, que ultrapassa toda a possibilidade da Razão, portanto a Fé como uma Razão elevada ao nível sobre-natural: portanto Teologia como Ciência Sobre-racional.
  5. e) A Fé como experiência pessoal, vivencial, convicção, atitude de Vida: portanto a Fé como mundividência.

Essas colocações, aqui expostas de forma simplificada e semi-caricatural, parecem não ser mais a nossa posição. Pois tudo isso parece ter sido tirado de um manual de Teologia tradicionalista, antes do Vaticano II. No entanto, seria interessante examinar se nas colocações fundamentais, fora os detalhes e as nuances, pensamos hoje diferentemente, quando p. ex. montamos um programa de formação intelectual para o clero.

Nessas colocações, é interessante observar que tanto a Teologia como a Filosofia Perene Cristã e Ciências Positivas são entendidas como doutrinas objetivas, perenes e verdadeiras do tipo Ciência racional, embora de níveis e dimensões diferentes, ao passo que as demais filosofias, e também as outras religiões, são tidas como mundividências. E a Fé, enquanto convicção, vivência e atitude de Vida, também de alguma forma é tida como mundividência.

Aqui parece haver um entrecruzamento de duas concepções completamente diferentes:

  1. a) De um lado, uma concepção do Saber e da Razão como possibilidade essencial dada ao Homem por Deus, em cujo exercício adequado, o Homem pode e deve adquirir conhecimentos certos, objetivos e verdadeiros acerca da realidade, até alcançar o limite da sua possibilidade, e então através da Fé é levado a adquirir conhecimentos certos, verdadeiros acerca da realidade, cujo conhecimento ultrapassa toda e qualquer possibilidade humana. Esses diferentes níveis de conhecimento certo, objetivo, verdadeiro e essencial aparecem gradualmente como Ciências, Filosofia e Teologia, formando um edifício hierarquizado do saber racional, i.é, verdadeiro, essencial, substancial, que obriga sempre, a todos, em todos os tempos. Nesse modo de conceber a Teologia, a Filosofia e as Ciências como um grande sistema hierárquico de saber racional e sobre-racional, onde o sobre-racional é o ponto de referência, o móvel, o princípio coordenador de todo o sistema do saber, podemos talvez vislumbrar, ainda que de uma forma um tanto defasada, uma ideia grandiosa de Mathesis Universalis teológica, síntese tentada pelos melhores espíritos da clássica Teologia Escolástica Medieval. Trata-se pois de uma concepção teológica do Universo, Homem e Divindade, i.é da totalidade do ser.

Hoje, esta concepção é tida como tradicionalista, como o resto da Teologia Medieval. Certamente, na sua formulação e em diversas precompreensões operantes nessa síntese, ela é medieval e tradicionalista. No entanto, o que chamamos de tradicionalista, hoje, não coincide com o medieval nem com a Escolástica Medieval. A teologia tradicionalista é uma defasagem e equívoco moderno da interpretação mal feita da Escolástica Medieval. Nessa teologia tradicionalista, usando-se os mesmos termos usados na Escolástica Medieval, estão contrabandeadas inúmeras pressuposições da Filosofia Moderna, sem no entanto manter o grau de rigor do questionamento que ela possui, e sem conseguir captar a riqueza e a vitalidade do ser da Idade Média, transformando o ingente e profundo empenho medieval de busca especulativa da Verdade, numa espécie de doutrinas ideologizadas, que nem são antigas nem modernas.

Por isso, na nossa formação intelectual franciscana, na qual estudamos intensamente os nossos autores clássicos franciscanos medievais, quer na Filosofia quer na Teologia, seria muito importante nos desvencilharmos do envolvimento com a interpretação travestida tradicionalista acerca desses grandes autores clássicos, para que possamos vislumbrar uma idéia de Mathesis Universalis teológica de uma envergadura e profundidade, talvez, ainda muito mal conhecida. E se fizermos adequadamente e com competência esse trabalho, talvez surja em nós uma pergunta: será que nessa síntese teológica, tentada pelos grandes pensadores místicos medievais, como um saber universal perene, cuja consecução permaneceu imperfeita, defasada, e fragmentária e da qual hoje temos apenas um eco longínquo, cheio de interferências de nossas interpretações equivocadas, não estaria oculta uma idéia de como deve ser a Ciência da Fé, na sua Encarnação, que penetra todas as camadas do ser, desde a Divindade até o minúsculo pó do excremento da terra, envolvendo cada ente na Bondade difusiva do Amor Divino? E talvez uma tal concepção e um tal programa do Saber Universal não sejam mais nem medievais, nem modernos, nem antigos, não sejam nem europeus, africanos, asiáticos, nem sul-americanos, nem progressistas, nem tradicionalistas, nem “teológicos” nem “filosóficos”, nem científicos, nem simples, mas simples e concretamente Saber Intelectual Universal do Espírito Cristão?

  1. b) De outro lado, porém, juntamente com essa concepção teológica, acima mencionada, mas que é interpretada no nível de uma teologia manualística tradicionalista, temos, dentro dessa mesma teologia tradicionalista, a concepção de que as Filosofias que não pertencem a essa síntese teológica, ou que não se entendem como um momento desse sistema, não são ciências, mas sim apenas mundividências. E juntamente com tudo isso, se considera, dentro dessa mesma concepção tradicionalista, a Fé também como atitude pessoal, convicção religiosa etc. etc., i.é, também como mundividência.

Com outras palavras, examinando o a) e o b) podemos concluir, que aqui, na maneira como operamos a nossa formação intelectual nos nossos programas de ensino Teologia-Filosofia-Ciências Positivas, está atuando uma pressuposição de que, tanto as Filosofias (i.é, Filosofia) como Teologia (como síntese teológico do estilo Escolástico Medieval) são mundividências, e somente as Ciências Positivas são Ciência. E ao lado dessa pressuposição, outra, que é mencionada no a) de que somente a grande síntese teológica é a Ciência como tal.

A nossa confusão usual consiste em não percebermos que estamos operando em duas concepções do saber, do racional, i.é, da Ciência, inteiramente distintas. Por não as percebermos, não pensamos muito, ao falarmos da Ciência. Assim, estando dentro de duas concepções, em operando nelas, não assumimos tematicamente nem o a), pois dizemos que é uma ideologia tradicionalista do passado, nem b), pois o consideramos como decadência do relativismo historicista moderno, ao passo que, ao mesmo tempo, achamos que o b) é o moderno atualizado, e o a) o que todos devem aceitar como o fundamento da identidade cristã.

Por isso, quando examinamos os documentos eclesiásticos, que falam na e a partir da concepção a), os achamos um tanto ou bastante tradicionalistas. E, no entanto, como já foi rapidamente mencionado acima, atrás dessa impressão, que aliás pode não ser somente impressão, pode estar escondida e pulsando uma autocompreensão interessantíssima e grandiosa de como deve ser uma formação intelectual para quem a Fé de/em Jesus Cristo e seu Evangelho é tudo, o princípio, o meio e o fim da sua existência.

Deixando para mais tarde os detalhes desse assunto, aqui somente assinalemos que a compreensão de Ciência que está nesses documentos, tanto em referência à Filosofia como em referência às Ciências Positivas, já está subsumida, unificada e coordenada a partir da Teologia e da autocompreensão da Teologia. Mas nessa autocompreensão, a pressuposição que se tem da Ciência, seja como for o conteúdo, não coincide com a compreensão que nós hoje temos da Ciência, a partir das Ciências Positivas. Mas isto não significa que essa autocompreensão da teologia acima mencionada como a) se compreenda como mundividência, portanto que pertença ao outro extremo do binômio ciência-mundividência.

De tudo isso, podemos tirar a seguinte conclusão:

Na nossa formação intelectual, como ela é exigida nos documentos eclesiásticos, o estudo da Teologia (subsumindo Filosofia e algumas Ciências Positivas) não é um estudo, dentro e a partir da mundividência. É antes um estudo da Ciência sui generis. Mas não de uma Ciência no sentido simplesmente moderno da Ciência.

Assim, surge um grande problema e uma dificuldade incômoda para o planejamento da ratio studiorum. Pois se se exige um estudo dentro e a partir de um sistema grandioso da Teologia, como acima foi mencionado no a), cuja pressuposição na compreensão da Ciência é toda própria, e no entanto, se ao mesmo tempo, os mesmos documentos eclesiásticos que isto exigem, querem que o estudo da Filosofia e das Ciências, dentro desse sistema teológico, seja feito sem camuflar nem apagar as diferenças do ser e do método dessas Ciências, como se colocar com honestidade intelectual e científica diante das exigências da cientificidade, tanto da Teologia como da Filosofia e das Ciências Positivas? Mas para de alguma forma encaminhar uma resposta a essa dificuldade, devemos examinar melhor como se deve entender as Ciências e a Filosofia, a partir delas mesmas, hoje, e não já a partir da Teologia.

  1. Estudo e doutrinação

Nessa compreensão do que seja Ciência, devemos distinguir nitidamente entre o estudo e a doutrinação. Dessa distinção é que depende, se a nossa formação intelectual é realmente intelectual ou é apenas doutrinal. E uma pessoa pode ter absolvido um curso acadêmico universitário especializado brilhantemente, e, no entanto, permanecer no nível doutrinário, e nunca atingir o nível do estudo intelectual. Aqui, usamos a palavra doutrina, doutrinal no sentido usual, e não no sentido originário da doctrina como é de uso na Teologia e na Espiritualidade, quando p. ex. a Teologia é chamada de sacra doctrina.

Como é a diferença entre o estudo e a doutrinação?

Na doutrinação, trata-se de aprender uma ciência no seu estado atual da constituição, em todas as suas informações e práxis, a modo de dominar todo o seu funcionamento; mas não se tem a preocupação temática de investigar, como no caso do estudo, as suas pressuposições metódicas, as proveniências dos seus conceitos fundamentais, a fundamentação de suas estruturas, o sentido do ser do horizonte de suas constituições. Por isso, na doutrinação, a pessoa aprende a Ciência como doutrina numa mundividência ou ideologia, não se preocupa pela verdade racional do sistema em que funciona, é uma formação para funcionário da Ciência e não para seu investigador. É por isso que a palavra doutrinação hoje é sinônimo de ideologização.

Na colocação usual em que estamos na formação intelectual nossa, quando compreendemos a nossa formação como formação pastoral no nível da formação dos agentes pastorais, os nossos estudos teológicos, filosóficos e científicos, por mais completos que sejam no sentido acadêmico, estão no nível de doutrinação. E quando os documentos eclesiásticos falam da formação intelectual do clero e nós a queremos, a ponto de podermos dialogar com o mundo de hoje e compreender suas necessidades, crises, aspirações e perigos, esse nível de doutrinação é inteiramente insuficiente, por que não forma pessoas que sabem ler, entre as linhas da funcionalidade, outra realidade oculta mais fundamental. E principalmente isto hoje, na nossa era, que se caracteriza como científica, porque, o que hoje decide que uma ciência seja realmente ciência, não é a quantidade de suas informações, mas sim a investigação crítica de sua própria fundamentação. Torna-se naturalmente um desafio muito grande, o como realizar esse estudo ao mesmo tempo em que se dá a doutrinação numa Ciência.

Em todo caso, no nosso currículo de formação intelectual, onde além da Teologia, temos Filosofia, se quisermos introduzir certas ciências, devemos ter bem claro, que doutrinar alguém numa ou em várias ciências e isto em 6 anos já é quase impossível e muito mais impossível introduzi-lo no estudo investigador, se não se limitar bem com uma determinação bem competente de que, o que e como se faz todo esse estudo. Por isso é uma brincadeira irresponsável e alienação total do que seja uma ciência hoje, querer dar cursos de diferentes ciências, conforme as necessidades-modas da publicidade na nossa formação intelectual, num estilo de um enciclopedismo um pouco melhor do que o do Reader’s Digest. Por isso o estudo p. ex. da Psicologia, Sociologia, Economia etc., deve ser bem examinado, para que o estudante seja realmente iniciado no espírito científico, conforme a seriedade da consciência crítica investigadora das Ciências hoje.

E para a ratio studiorum da nossa formação franciscana, essa diferença entre a ratio studiorum e a ratio doctrinationis deve ser um constante desafio, que nos incite sempre de novo a buscarmos, tanto formadores como formandos, a levantarmos e mantermos o nível da nossa intelectualidade, nos dedicando conscientemente ao modo de ser do estudo, que é investigação crítica da fundamentação. E toda essa exigência de distinguir na própria dinâmica da Ciência dois movimentos, o studiorum e o doctrinarionis, não é uma exigência de brio e nível, no sentido de poder e de elite, mas sim, a grande vontade de, humildemente, de todo o coração, estar na disponibilidade da Verdade.

  1. As teorias das ciências

Hoje, se quisermos saber o que é Ciência, devemos recorrer a assim chamada teoria das Ciências (Wissenschaftstheorie, em alemão). Parece que um outro termo para indicar essa disciplina é meta-ciência.

O problema, aqui, porém, aliás como em toda parte hoje, é que existem várias teorias das Ciências, de diferentes níveis e procedências. No entanto, aos poucos, a consciência crítica acerca da própria Ciência, surgida dentro das próprias Ciências, começa a nos dizer o que é obsoleto dentro da teoria das Ciências. Vamos enumerar uma dessas compreensões obsoletas que pode muito bem povoar também as nossas mentes clericais, quando falamos das Ciências hoje, ou da necessidade de estarmos aggiornados para a nossa era científica. O que segue está baseado no artigo de Heinrich Rombach, Wissenschaft und Philosophie, Studienfuehrer, zur Einfuehrung in das kritische Studium der Erziehungs-und Sozialwissenschaft, Wissenschaftstheorie 1 1.1.2. Wissenschaftstheorie und Philosophie, Heinrich Rombach, p. 12-19, Schriften des Willmann-Instituts, Muenchen-Wien). Aqui daremos um pequeno resumo de uma pequena parte desse artigo.

Trata-se de uma concepção das Ciências, que poderíamos chamar de teoria ingênua das Ciências. Essa teoria ingênua das Ciências, embora obsoleta, está em toda a parte, ainda hoje, ou na nossa compreensão usual e popularizada, da Ciência ou também nas publicações, mesmo especializadas sobre o assunto e na mente de muitos cientistas eles mesmos.

O que caracteriza a teoria ingênua das Ciências é a ingenuidade ou a boa fé despreocupada com que generaliza e absolutiza, sim, dogmatiza e fixa um conceito unilateral da Ciência. Em geral, esse um conceito unilateral, o teorético ingênuo das Ciências tira-o da Ciência, na qual ele é especialista. Essa generalização ele a faz, porque acredita ingenuamente que existe uma única espécie de cientificidade. Conforme essa crença, também historicamente existe somente uma única forma de cientificidade. Podem se multiplicar conhecimentos científicos. Surgirem novas ciências. Evoluir. Mas todas elas tem o mesmo conceito da Ciência. A cientificidade em todas elas é sempre a mesma. É o típico do modo de pensar de A. Comte, que fala da “regime définitif de la raison humaine, i.é, a era da ciência positiva. É o conceito de Ciência do Positivismo em todas as suas nuances e variantes. Segundo essa concepção da Ciência, o que está fora dela ou anterior a ela é um “conhecimento” relativo e subjetivo, privativo-histórico. Ao passo que o saber científico é objetivo, definitivo, real, absoluto e supra-histórico.

Assim, a teoria ingênua das Ciências se caracteriza pelos seguintes preconceitos:

  1. a) Ciência é uma forma de saber, determinada, estável, constatável, sobre a qual se pode dar informações bem determinadas, estáveis e constatáveis. Estas informações nos dizem o que é objetivamente Ciência e nos dão a medida geral da cientificidade de toda e qualquer ciência.
  2. b) Assim, existe propriamente somente uma Ciência (e cientificidade). A multiplicidade das Ciências surge apenas devido à multiplicação dos objetos da Ciência. As Ciências na sua multiplicidade são como que diferentes objetos, sobre os quais se empostam as miradas científicas, cuja estrutura e cujo modo de ser é único. Por isso, quem conhece uma Ciência conhece a Ciência.
  3. c) Há certamente evolução, desenvolvimento nos conhecimentos científicos. Há correturas e revisões dos conhecimentos científicos. No entanto, tudo isso ocorre dentro do horizonte de uma única, bem determinada, estável e definitiva definição da cientificidade da Ciência. Por isso, através das Histórias de desenvolvimento dos conhecimentos científicos, corre uma linha contínua e bem definida, do que seja e o que deve ser Ciências. O conceito da Ciência não tem História. História só têm os conhecimentos, que dentro desse conceito, evoluem, crescem segundo a cientificidade. A História dos conhecimentos científicos se dá dentro de um horizonte de cientificidade único, supra-histórico e imutável.
  4. d) O desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos, por diferentes que sejam as ciências, se dão dentro de um horizonte de cientificidade, de tal sorte que, se pode constituir um progresso sistemático e lógico sem lacuna. E tudo que não segue esta lógica ou está fora dela, só tem valor de verdade, enquanto de alguma forma é redutível a ela.

É interessante observar que essa teoria ingênua das Ciências, que está no fundo de nossa compreensão usual da Ciência, cai num dogmatismo muito semelhante ao que encontramos na Teologia, onde a Ciência é conjunto de conhecimentos perenes, verdadeiros, atemporais e imutáveis. Só que, aqui na Teologia, esse modo de ser do conhecimento pode não ser um dogmatismo, sendo que o modo de ser dos dogmas, que aparentemente parece ser dogmatismo, pode provir do modo de ser próprio e adequado da Ciência sui generis, chamada Teologia; ao passo que nas Ciências, que pretendem radicalmente questionar e serem críticas, o maior pecado, que se pode cometer é o dogmatismo.

Nós começamos a despertar para a consciência crítica da nova teorias das Ciências, quando abandonamos esse dogmatismo camuflado da teoria ingênua das Ciências e compreendemos que, em diferentes ciências reais, devem se formar e ativar cada vez diferentes tipos de ciências. E que não existe a ciência, mas ciências. E se podemos falar, de alguma forma, de ciência como uma totalidade, essa totalidade não é uma estruturação geral e única, segundo a qual as ciências devem ser logicizadas, mas sim um organismo dinâmico, complexo e riquíssimo de diferenciações, níveis e dimensões, constituído pelas ciências particulares, que através das diferenças de cada tipo de ciência, num movimento dinâmico de confrontos, correturas, entrechoques, subsumpções mútuos, vai crescendo numa transmutação contínua.

Assim, o reinado do  absolutismo do conceito unilateral da Ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o progresso das ciências, que progridem, não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico da Ciência nos moldes da Matemática e da Lógica, do conceito empirístico-positivista no modelo da Física e da Biologia, do conceito materialista no modelo da Química, do conceito relativista no modelo da Historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo, que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização auticientíficas dos conceitos unilaterais da Ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciências, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.

Essa nova atitude científica da Nova Consciência, que começa a despertar por toda parte nas ciências, pode ser caracterizada mais ou menos da seguinte forma:

  1. aa) Não há um conceito da Ciência, fixo, parado, portanto, não há uma forma fundamental da “cientificidade como tal”. A ciência vive em transformações, tanto no todo da sua forma como nas formas das suas particularidades. Entre aquele e estas, se dá iteração mútua de influência.
  2. bb) No progresso científico não há um crescimento unívoco e unitário do conhecimento, unilinear, sucessivo e evolutivo. Por isso, os critérios que decidem o que é conhecimento científico e o que não é, devem ser examinados cada vez, na medida em que avançam as ciências, segundo o estilo de transformação assinalado em aa) acima.
  3. cc) Não há conceito de Ciência, que seja aplicável sem mudança a todas as ciências particulares. Conceitos fundamentais, como experiência, fundamento, fundamentação, causa, prova, demonstração, método etc. etc., significam diferentemente, em diferentes ciências particulares ou em diferentes grupos de ciências.
  4. dd) Como existe pluralidade de métodos das ciências particulares, assim também, dentro de uma e mesma ciência particular, pode existir pluralidade de métodos, que coexistem numa ambiguidade complementar. Os métodos recebem o seu aviamento, a partir do toque de abordagem principal, e assim, dentro de uma mesma ciência particular, podem ocorrer duas ou mais abordagens, que efetuam dois ou mais métodos. Estes, por sua vez, num confronto mútuo, mantendo cada qual a sua diferença, criam uma complementaridade, que não é nem ajuntamento, nem síntese, nem substituição ou mistura, mas uma tensão, que contêm a espera de uma descoberta. P. ex. a abordagem ondulatória e a abordagem corpuscular da luz na Física. Assim, a manutenção da pluridimensionalidade é um característico da cientificidade das ciências e não a sua negação.
  5. ee) Cada ciência permanece até à raiz de seus fundamentos, dos mais principais e básicos, em questão. Mesmo as bases confirmadamente válidas e “definitivas”, comprovadas por várias ciências, podem ser subversadas como um caso parcial de um todo maior ou como uma ausência de uma diferenciação e aprofundamento mais rigorosos e radicais.
  6. ff) A Nova Consciência científica no questionamento dos fundamentos imanentes das ciências, sonda, ao mesmo tempo, sua decisão imanente. Mas sabe que as regras de jogo imanente à própria ciência, provenientes dos fundamentos autoconstitutivos da decisão imanente das ciências, contêm também decisões e fundamentações sócio-históricas. Assim, ao acionar-se como ciência, se sabe partícipe das convicções operativas fundamentais do seu tempo e da sua sociedade. Por isso, não paira ou domina altaneira sobre o seu tempo nem sobre a sua sociedade. Não abstrai, mas assume plenamente a prenhez e pregnância situacional sócio-históricas. Mas, ao mesmo tempo, evita de cair no dogmatismo do Historicismo e do Sociologismo. Por isso, não considera a ciência simplesmente como produto ou imitação de uma sociedade. Deixa assim de se determinar dentro da ingênua e irrefletida colocação “sujeito-objeto”, deixa tanto o objetivismo como o subjetivismo de lado, como um dogmatismo não científico.
  7. gg) A contraposição sujeito-objeto, em todas as suas manifestações como p. ex. Saber-Objeto, Homem-Realidade, Teoria-Práxis etc. etc., não é mais colocada ingenuamente e externa e materialmente, mas sim como circulação de mútua iteração. A Ciência não está diante, contra, em frente à Vida, à Realidade, mas está inserida nela. E a vida humana pré-científica não é autarquia, mas já implica comportamentos e modos do pensar científico.

Esta nova compreensão dinâmica das Ciências, à primeira vista, parece dissolver toda a nitidez e clareza da cientificidade a um fluxo, certamente dinâmico, mais diferenciado e rico, mas confuso, sem contorno e sem determinação, portanto a um relativismo, historicismo, a um vitalismo caótico, onde tudo, qualquer opinião, práxis ou tentativa de busca já é uma ciência.

Na realidade, no entanto, não se trata de dissolução à confusão e ao caos relativista. Pelo contrário, trata-se de libertar as ciências da infiltração de velhos e obsoletos ídolos dos dogmatismos e torná-las claras e distintas (Descartes), não conforme o totalitarismo de uma medida unilateral absolutizada, mas conforme a exigência da pluriformidade e pluridimensionalidade de uma Mathesis Universalis.

Essa clarificação pluridimensional das ciências começa a nos mostrar a estrutura interna das ciências e o seu relacionamento com a Filosofia.

  1. Ciências e filosofia

A nova concepção da Ciência, acima mencionada, nos proporciona uma nova compreensão do relacionamento entre ciências e filosofia.

Mas, para podermos compreender esse relacionamento, é necessário deixar de lado o esquema usual, em que costumamos explicar esse relacionamento.

Costumamos representar o relacionamento entre as ciências entre si, entre as ciências e a Filosofia e a Teologia num esquema, onde temos diante de nós o objeto (realidade, a coisa, o campo, a região, a área etc.) sobre o qual as ciências, a Filosofia, a Teologia empostam a mirada do seu ponto de vista e cada qual, as ciências, a Filosofia, a Teologia, capta um aspecto parcial desse objeto. E ajuntando-se os resultados dessas captações temos conhecimento cada vez mais global. Por isso, quanto mais captações de diferentes pontos de vista, tanto melhor, porque se somam as informações de diferentes aspectos. Aqui, as ciências, a Filosofia e a Teologia são três miradas diferentes, uma ao lado da outra, sobre um mesmo objeto, cada qual com seus conhecimentos parciais do objeto, conhecimentos que podem ser somados entre si, dando assim informações cada vez mais abundantes sobre o mesmo objeto (cf. esquema I).

Esse esquema é ingênuo demais para poder ser levado a sério. Trata-se simplesmente de um esquema estereotipado, que não faz nenhum jus à realidade complexa do relacionamento das Ciências. É uma representação ingênua de um realismo epistemológico caricatural, que na realidade não diz nada. E, no entanto, no uso comum, mesmo entre nós, é freqüente encontrarmos uma tal representação, orientando a composição de um programa de estudo da Filosofia e da Teologia. Essa ingenuidade dogmatizada devemos pois abandonar, se quisermos compreender as ciências, a Filosofia e a Teologia, hoje.

Essa representação ingênua do objeto diante de mim e eu aqui, com o meu ponto de vista das Ciências, da Filosofia e da Teologia a mirar o objeto e adquirindo informações sobre o objeto, é na realidade uma abstração. Pois a realidade não está diante de nós. Nós com tudo que nos cerca, tanto por dentro como por fora, na sua totalidade, já é realidade, já somos realidade e sua compreensão. E isto que na representação ingênua da realidade como objeto achamos que está diante de nós, aparece como estando diante de nós, porque nós nos pontualizamos como esta coisa-objeto aqui relacionada a aquela coisa-objeto pontualizada lá, e cortamos por assim dizer a ligação viva e concreta com a experiência anterior a toda essa operação de pontualização objetivante, experiência essa, que nos possibilita essa pontualização dual, eu aqui e a coisa lá como sujeito e objeto. Essa experiência anterior é a percepção direta-imediata simbiótica da realidade que somos nós mesmos como a totalidade do mundo.

Na nova Teoria das Ciências essa realidade da percepção direta e imediata, em sendo como totalidade mundo, se chama realidade pré-científica, que a Teoria ingênua das Ciências dogmatizada, já mencionada acima, confunde com mundo primitivo, imerso na obscuridade da vitalidade irracional, ainda infante e sem consciência. Na realidade, ela é a presença e plenitude da totalidade dinâmica da possibilidade da Vida, no nosso viver, em sendo, na pregnância da evidência imediata da coisa ela mesma. Essa realidade na concreção Vida, Edmund Husserl chamou de “Lebenswelt”. Esse termo alemão é usado sem tradução na nova Teoria das Ciências, e que poderíamos traduzir como “mundo vital circundante”. Essa Lebenswelt é o espaço da plenitude da possibilidade aberto, que poderíamos chamar de Insondável Abismo desvelante das possibilidades do ser.

Ora, toda ciência se funda e está assentada nesse Abismo Desvelante, na Lebenswelt, que não é um espaço escancarado e homogêneo, mas implicações de diferentes níveis e dimensões de Lebenswelte numa contenção, pregnância e dinâmica de possibilidades genéticas infinitamente ricas e pluriformes de ser. É desse Abismo Desvelante que provêm  as diferentes decisões de possibilidades epocais da História.

As ciências, cada vez, em diferentes epocalidades, em se fundando e se assentando nesse e desse Abismo Desvelante, como que se fixa num dessas Lebenswelt, e começa a trazer cada vez mais à tona as implicações dessa possibilidade. Mas, em fazendo essa explicitação, estabelece um corte, um entalhe na totalidade dessa imensidão do Abismo Desvelante, e começa, por assim dizer, a construir em cima dessa Lebenswelt-entalhe, todo um mundo de explicitações, ordenações, coerentes, desenvolvidos a partir do modo de ser próprio ali dado nessa Lebenswelt-entalhe.

As ciências, portanto, se movimentam ao mesmo tempo em duas direções:

  1. a) Para cima, no sentido de construção positiva de estruturações, que são explicitações das possibilidades da Lebenswelt, sobre a qual e a partir da qual erguem essas estruturações. E é da Lebenswelt que elas colhem os seus conceitos fundamentais, o modo de ser do método, etc., que então se transformam em pressuposições fundamentais de cada ciência. É esse movimento construtivo, que dá às ciências o seu característico de ciências positivas, i.é, cada ciência tem o seu positum, i.é, o embasamento, o posicionamento, o assentamento na terra fértil da(s) Lebenswelt(en) do Abismo Desvelante Vida.

Esse movimento construtivo das ciências positivas, em tematizando, em explicitando, em ordenando, ganha em clareza e precisão no mapeamento e na presentificação das possibilidades, dadas pela Lebenswelt, sobre a qual repousa, mas, ao mesmo tempo, perde na radicalidade, na imensidão e orginariedade da sua pertença ao Abismo Desvelante, se nas ciências, continuamente e conscientemente não é trabalho o movimento de penetração, sondagem e ausculta atenta do sentido do ser, que incessantemente emerge do Abismo Desvelante Vida.

  1. b) Esse movimento de penetração, sondagem e ausculta do sentido do ser da Lebenswelt a emergir do Abismo Desvelante é o segundo movimento das ciências que vai na direção oposta ao do movimento construtivo, portanto para baixo, para as profundezas da Lebenswelt.

Esse movimento de penetração na raiz da própria ciência não é construtivo, mas sim destrutivo. Mas não destrutiva no sentido de agressão a uma posição para aniquilá-la, impondo-lhe uma outra posição. Destrutiva no sentido de, sempre de novo, reconduzir, i.é, reduzir toda e qualquer construção positiva das ciências à radicalidade da sua pertença ao Abismo Desvelante, desfazendo toda e qualquer infiltração ou sedimentação de dogmatismos e unilateralidades, hipostatizações e absolutizações, mantendo sempre de novo e nova a abertura à possibilidade abissal de renovação e ao toque do inesperado. Do jogo desse movimento construtivo e destrutivo, do jogo desse movimento estruturante-constitutivo e do movimento desestruturante-reductivo se dá a fundamentação da Ciência, e a cientificidade e o quilate de uma ciência se medem pela limpidez e pelo equilíbrio desse jogo.

Esse movimento, que se dirige à profundidade radical do Abismo Desvelante, que caracteriza a nova Ciência e a distingue de ideologia e mundividência, agora levado a últimas conseqüências e tematicamente buscado, constitui o movimento da Filosofia. Isto significa que as Ciências e a Filosofia copertencem intimamente. A Filosofia é no fundo o movimento de redução, que corre no próprio seio das ciências, juntamente com o movimento da constituição. Essa maneira nova de compreender as Ciências nos seus dois movimentos constitutivo-reductivos pode ser talvez esquematizada da seguinte maneira (cf. esquema II). Talvez seja útil observar que os dois movimentos não são propriamente lineares opostos, mas sim movimentos espirais em implicação centrifugal-centripetal.

  1. O ensino da filosofia

No passado, quando o ensino da Teologia e da Filosofia ao clero estava estabelecido, numa bem ordenada e fixa estrutura do ensino manualístico da Escolástica, a Filosofia ministrada era escolástica, ou melhor, néo-escolástica e possuía o seu conteúdo, seu método bem determinados e tinha a função de ser a “ancilla theologiae”, servindo de Prolegomena da Teologia. Como tanto a Teologia como a Filosofia tinham o mesmo estilo escolástico, havia uma coordenação e sintonia perfeitas entre ambas as disciplinas, de tal sorte, que a Filosofia, no fundo, era uma iniciação à Teologia sistemática. Nesse sentido, a Filosofia do antigo ensino clerical, fora do meio eclesiástico, não era considerada propriamente Filosofia, mas sim já Teologia. Essa totalidade bem coesa e coerente do ensino teológico-filosófico era ainda, mesmo numa escala já institucionalizada e padronizada e com apoucado vigor especulativo, uma herança da grandiosa síntese conquistada pelo Pensamento Medieval, repristinada pelos esforços do assim chamado movimento da Néo-Escolástica. E como tudo que é verdadeiramente grande no Pensamento, se bem ministrado, forma o pensamento, as pessoas que se dedicavam com empenho ao estudo da Teologia e Filosofia Escolástica, principalmente em contacto direto com os textos dos grandes Mestres Clássicos da Escolástica, recebiam uma formação coesa, coerente, bem assimilada e assentada, embora também corressem o grande risco de deixarem se doutrinar, e em vez de aprender a pensar grande, cair no dogmatismo intransigente e estreito de funcionários clericais, adestrados ideologicamente, sem a capacidade de pensar.

O revigoramento nas pesquisas históricas sobre a Idade Média, novas descobertas e edições críticas dos grandes Mestres do Pensamento da Idade Média, desencadearam dentro da Igreja um estudo cada vez mais vasto e profundo do Pensamento Medieval, e a grande síntese teológico-filosófica da Escolástica começou a vir à tona como um dos “sistemas” de Pensamento, os mais bem trabalhados e consumados do Ocidente, revelando um vigor especulativo inaudito.

Essa redescoberta da Escolástica Medieval deu início, no estudo da Filosofia no seio da Igreja, uma tentativa chamada Néo-Escolástica, na qual, se tentou retomar e continuar o trabalho, que na Idade Média realizaram os grandes Mestres da Teologia, de fazer, a partir do “Fides quaerens intellectum”, uma síntese teológico-filosófica, onde agora as novas filosofias, modernas e contemporâneas fossem assimiladas, como contribuições valiosas no crescimento do Pensamento Católico, como as antigas filosofias não-cristãs o foram para os mestres medievais.

Assim, no ensino da Filosofia na formação intelectual do clero, hoje, em muitos países, principalmente lá onde a Igreja tem ainda muita influência e guarda a Tradição, o ensino de Filosofia é da Filosofia Néo-Escolástica: o núcleo do pensamento é constituído de teses fundamentais da Escolástica, mas com muita abertura às filosofias novas, modernas e contemporâneas, às ciências e às questões diversas dos nossos tempos. E a Néo-Escolástica tem formado dentro da Igreja gerações de grandes intelectuais, autores e professores.

A Néo-Escolástica na Filosofia, no entanto, fora a época do seu florescimento no seio da Igreja, nas décadas passadas, onde aderiram ao movimento grandes intelectuais, muitos deles convertidos, jamais encontrou no meio filosófico extraeclesiástico, muita credibilidade. E embora se reconhecesse particularmente o mérito e a competência acadêmica de seus grandes representantes, filosoficamente a Néo-Escolástica ela mesma parecia um ser híbrido, mais um conjunto de doutrinas teológicas da Mundividência Católica do que propriamente Filosofia. A nova consciência científica de hoje, quer na Filosofia como nas ciências, via na maneira, como a Néo-Escolástica, a priori, abordava a Filosofia e as Ciências modernas, uma espécie de instrumentalização da Filosofia e das ciências, em função da manutenção da Mundividência Teológica Católica. Além disso, o conceito de Filosofia pressuposto nesse sistema teológico-“filosófico” parecia jamais poder aceitar e compreender, sim admitir a autonomia, como a reivindicava a nova consciência científica da Filosofia Moderna como sendo a essência da Filosofia, pois a Néo-Escolástica já a partir do seu sistema não admitia o direito e o dever da absoluta e total autonomia do pensar à Filosofia, e a considerava no fundo como uma mundividência.

E, na prática, na formação intelectual, esse sistema de ensino da Filosofia, a Néo-Escolástica, sob a camuflagem do ensino sistemático e temático, acabava no fundo reduzindo a Filosofia à História da Filosofia, onde a Filosofia era dada como uma sucessão interminável de mundividências de diferentes épocas, sobre as quais se falava resumidamente, numa interpretação já padronizada, com as quais a “Filosofia” (Leia Teologia) Cristã se confrontava para examinar o que é verdadeiro e o que é falso.

Um tal ensino, já que o ensino de Filosofia usualmente durava 2 anos, jamais conseguia realmente formar intelectualmente alguém na Filosofia. Assim começou a produzir pseudo-intelectuais, que falavam de todas as filosofias e da Filosofia como o faz um ideólogo crente, que sabe julgar tudo com toda a segurança de quem crê que tudo sabe, sem saber que nada sabe, determinando o que é certo e o que é errado.

Entrementes, o próprio ensino da Teologia, depois da grande abertura do Vaticano II começou a entrar na tentativa de um novo caminho do ensino teológico. E as influências das Teologias e das Filosofias Modernas e das Ciências, desenvolvidas fora da ambiência clerical-católica, começaram desencadear dentro do ensino tradicional da Teologia mudanças significativas. Com isso, no ensino da formação intelectual clerical começou a desmoronar aquela coesão e unidade orgânica da Escolástica na sua síntese teológico-“filosófica” medieval. O nome Escolástica se transformou aos poucos numa denominação pejorativa para indicar um ensino tradicionalista, fechado e obsoleto, anacrônico de Teologia e Filosofia. As disciplinas teológicas e filosóficas, que formavam uma unidade bem estruturada, começaram a se dispersar, cada qual para si, no estilo, no modo de ser e na filiação a diferentes “escolas” de pensamento, correspondentemente antigo ou moderno.

Na escolástica, aquilo que segurava num pulso dinâmico e firme as disciplinas e as unia numa ordenação mútua de confrontos, debates, embates, diálogos e correturas mútuas de aprofundamento em direção a uma síntese cada vez mais profunda, vasta e originária, subsumida pela Fé, desaparecia completamente, restando apenas a organização institucional externa de um Instituto, de uma Universidade ou Centro de Estudos com seus programas. Por dentro, porém, esse ensino não possuía mais nem unidade, nem coerência, a não ser dentro de uma ou outra disciplina particular. Começou a dar-se a infiltração de diferentes mundividências, justaposições de métodos, nivelamento de dimensões de diferentes ciências. Essa confusão e a perda do centro começaram a abaixar muito o nível de formação intelectual. O apelo unilateral, pragmaticista e pouco refletido à ação e à pastoral engajada diante da avalanche de urgências e necessidades da Humanidade hoje, ao caluniar a formação intelectual como luxo burguês sem efetividade, abaixou ainda mais o nível da formação intelectual.

E hoje, diante dessa situação incômoda e bastante confusa da nossa formação intelectual, estamos querendo reagir a tudo isso, para retomarmos com seriedade e muito empenho a formação intelectual para valer.

No entanto, quando lemos dentro dessa situação os documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero hoje, a Igreja parece ter diante de si o método, a concepção de Filosofia e Ciências do sistema de pensar que acima caracterizamos como Escolástica, ou melhor, Neoescolástica.

E surge uma suspeita: a Igreja não está querendo colocar ordem nessa confusão e levantar o nível da nossa formação intelectual, retomando o ideal da neoescolástica? Não é isto um anacronismo, uma tendência tradicionalista, que teme realmente um diálogo e confronto mais sério com a nova consciência científica de hoje, quer na Filosofia quer nas Ciências? Não é agarrar-se a um sistema, que não deu certo, por implicar no seu sistema, pressuposições não tematizadas suficientemente para nos fazer maior evidência?

Como compor uma ratio studiorum que realmente tenha validade real numa situação como essa, com todas essas dúvidas?

  1. A Filosofia como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante

No entanto, o que está sendo dito pelos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual nossa pode significar uma coisa bem diferente de uma volta tradicionalista a um estilo de formação neoescolástico, mesmo que toda a linguagem e as concepções ali pressupostas acerca da Filosofia e das Ciências apresentem colorido acentuadamente neoescolástico. É que a própria neoescolástica é uma maneira de realizar uma concepção que, por ser neo, já capta a própria Escolástica num nível já bastante pouco pensado e minguando na sua profundidade e vigor. Não somente isso, a própria Escolástica, mesmo na consumação clássica da sua plenitude, é uma realização concreta de outro vigor essencial e transcendente, cuja realidade não coincide nem com a Escolástica Clássica Medieval nem com a neoescolástica Moderna. Pois esse vigor outro e transcendente é o Abismo Desvelante da Vida, que possibilita essas concreções como a Escolástica e neoescolástica, ele mesmo se nos ocultando e ao mesmo tempo nos acenando nessas próprias concreções Escolástica ou neoescolástica, para que nos aviemos a uma busca intrépida de uma Sabedoria que vem das alturas e profundezas desse abismo insondável, inundando com o seu sopro vital todas as nossas possibilidades, como a Sabedoria do Deus de Jesus Cristo: a Teo-logia.

Com outras palavras, não são os documentos eclesiásticos que falam a partir e dentro da neoescolástica ou da Escolástica. Pelo contrário, são a neoescolástica e a Escolástica que falam e pensam, de alguma forma, de modo bastante insuficiente, a partir e dentro da Grande Tradição da Igreja. E se a Escolástica e de alguma forma a neoescolástica foram apoiadas, fomentadas pela Igreja na formação intelectual do seu clero, é porque elas de alguma forma ecoam no Grande Pensamento, que flui e palpita na Tradição da Igreja.

Isto significa que as recomendações da Igreja na formação intelectual do clero, quando fala “escolástica e neo-escolasticamente”, propondo um “sistema” semelhante ao defendido e apresentado pela Escolástica e neoescolástica, não nos estão dizendo, que hoje, no século XX, devemos de novo montar um ensino com Escolástica e neoescolástica. Mas sim, estão nos dizendo que, se quisermos nos formar intelectualmente como pessoas que pertencem a essa grande Realidade do Corpo Místico de Cristo, devemos colocar como ideia (leia-se eídos) reguladora do nosso intelecto e da nossa formação intelectual um saber na plena pregnância da presença do Deus de Jesus Cristo, onde Deus (compreendido a partir desse mesmo saber e não a partir de um outro horizonte), em tudo e em todas as coisas, como sabedoria insondável, que inunda e penetra todas as coisas, é luz, lógica, conhecimento que nos guia e orienta em nossa caminhada através de todos os tempos, portanto um saber e ideal de um saber que, no passado, brilhou por um instante e de modo fragmentário, mas concreto, na forma do Pensamento dos grandes Mestres da Escolástica Medieval e que se tentou retomar na neoescolástica, sem no entanto consegui-lo.

Mas, tudo isso, vire você o argumento como virar, na prática, não acaba numa implícita recomendação de tentar um empreendimento como o tentando no tempo relativamente recente do florescimento da neoescolástica? E como na prática não existe nenhum sistema extra-cristã de Filosofia, que tenha esse característico, recomendado pela Igreja, em última instância, não acabamos adotando a neoescolástica como o ensino de Filosofia, apoiado e recomendado pelos documentos eclesiásticos?

Tudo isso não teria nenhuma inconveniência, se a precompreensão de Filosofia, que está na própria neoescolástica tivesse um nível filosófico adequado às exigências da Filosofia. O que não acontece, porque compreende a Filosofia como Filosofia Cristã, i.é, Teologia.

Surge assim uma pergunta: por que ensinar a Filosofia na formação intelectual clerical? Por que não ensinar só a Teologia, plenamente, profundamente, exclusivamente, como um grande e completo saber, sem acrescentar Filosofia e Ciências num nível tão provisório, instrumentalizado, a modo de mundividências? Por que Filosofia e Ciências, se o que ali é ministrado não é mais nem Filosofia nem Ciências, mas sim “preparados” com aparência de Filosofia e Ciências, para servir de não sei o que, para a formação teológica do clero? Por que a própria Teologia não assume interpretações e informações “ajeitadas” da Filosofia e das Ciências a seu modo para a Teologia, para ministrar a seus alunos como Teologia? Por que recorrer à Filosofia e às Ciências, se já de antemão, no modo de ser da “sacra doctrina”, a partir da sua colocação, a Teologia não pode aceitar as exigências da plena e absoluta autonomia das pesquisas filosóficas e científicas?

Assim, as mais recentes recomendações dos últimos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, de que se tome a sério cientificamente o estudo da Filosofia e que se ministre a Teologia e a Filosofia, distinguindo nitidamente, no ensino, a diferença destas duas matérias, soam como meras retóricas curiais ou como sintomas da falta de rigor e precisão na compreensão do que a nova consciência científica compreende por essência da Filosofia e das Ciências. Ou será que, apesar de toda essa aparência, esse modo de ver e falar pensa outra coisa e tem plena razão?

Marquemos o ponto nevrálgico da questão. Segundo a nova consciência científica na autocompreensão da Filosofia e das Ciências, hoje, a Filosofia, segundo a compreensão que o ensino da Teologia tem da Filosofia, não é Filosofia, mas sim mundividência. Por isso, se a Filosofia quiser dar o melhor de si à formação intelectual do clero, não pode ser ensinada num sistema assim, porque não pode, sem perder inteiramente a sua identidade, corresponder à expectativa do ensino clerical. Mas, se, apesar de tudo, for ensinada, não como mundividência, mas na precisão e no rigor da sua “cientificidade”, ou permanece paralela à Teologia ou será considerada por ela como sua destruição. Com outras palavras, quanto mais a Teologia e a Filosofia quiserem permanecer fiéis à sua identidade, tanto mais parecem ser irredutíveis uma a outra, de tal sorte que pensar numa síntese, complementação ou coisas similares, se torna um sinal do desconhecimento da questão.

E, no entanto, exatamente nesse impasse, onde começa a aparecer uma fenda irredutível entre a Teologia e a Filosofia, naquele sistema coeso e unitário do ensino teológico-“filosófico” eclesiástico tradicionalista escolástico, parece começar a se insinuar uma solução! Uma solução que não apaga os contornos das diferenças, não facilita o diálogo aparente superficial, mas exige o máximo na precisão e no rigor em manter-se limpidamente atinente, cada qual à sua identidade profunda e originária. E a partir dessa insinuação de uma possível solução, talvez possamos entender as recomendações de colorido “néo-escolástico e escolástico” dos documentos eclesiásticos, num sentido mais profundo, em referência à nossa formação intelectual. Mas como? E em que sentido?

Explicitando melhor, repitamos aqui numa forma esquemática a compreensão da Filosofia, que a nova consciência científica nos dá da Filosofia, compreensão esta já mencionada acima no nº 4.

  1. a) As ciências são conjunto ordenado de conhecimentos, na mútua implicação e fundação, construído como um todo cada vez mais crescente, sobre e a partir de uma experiência imediata, no uso e da vida do existir humano, chamada Lebenswelt. A inesgotável e insondável imensidão do Abismo da possibilidade pulsante do ser aparece, cada vez em concreto, como Lebenswelt. Como Lebenswelt, i.é, como mundo-circundante, que somos nós mesmos, cada vez em sendo no uso e na vida, tematizamos um setor, uma incisão, um átimo, uma área, uma região ou um campo dessa imensidão, para fazermos deste campo destacado o horizonte dentro e a partir do qual vamos explicitando, segundo a lógica desse horizonte, as implicações ali prejacentes como possibilidades – o positum de uma ciência –, construindo um conjunto coeso de conhecimentos, a partir dos princípios, conceitos fundamentais e do modo de proceder, oferecidos por esse campo.
  2. b) Esse movimento construtivo, com toda a sua estruturação materializada como conhecimentos, métodos, instituições, ensino, pesquisas etc. etc., perfaz a constituição, a concreção externa, digamos, exotérica (i.é, virada para fora) das Ciências. Os conteúdos de uma ciência, como conjunto de conhecimentos transmissíveis, pertencem a essa parte exotérica das ciências.

É no processo dessa construção positiva, nos trâmites de seus passos de explicitações, que podem surgir desvios, defasagens, extrapolações, insuficiências na diferenciação, esquecimentos da lógica do horizonte, mistura indevida de horizontes etc. etc. Essas defasagens, às quais o processo de construção de uma ciência está continuamente exposta, transformam a Ciência em ideologias, mundividências, com os seus inúmeros dogmatismos, conhecidos sob diferentes títulos que trazem em geral a terminação “ismo” como p. ex. naturalismo, positivismo, racionalismo, historicismo etc.

  1. c) O modo como se processa esse movimento exotérico (i.é, virado para fora) da construção das Ciências, na sua pluriformidade e pluridimensionalidade e seus mútuos relacionamentos, está resumido nos pontos já mencionados no nº 3.
  2. d) Pertence essencialmente à Ciência a consciência crítica da sua cientificidade. Essa consciência crítica não é mais a fixação referencial à ideia unidimensional da Ciência da Teoria ingênua das Ciências como foi descrita no nº 3, mas sim a limpidez, a precisão, o pulso certeiro de sondagem da lógica implícita no positum de cada campo, dentro e a partir do qual as Ciências recebem a possibilidade de sua construção. Esse movimento de sondagem e ausculta para a raiz-horizonte de uma ciência, portanto, esse movimento de recondução ou re-dução da construção a seus princípios, a sua fundamentação, as suas pressuposições fundamentais, é um movimento contrário ao movimento da construção, é um movimento virado para dentro, i.é esotérico, movimento para a profundidade, para a interioridade de uma Ciência. É desse movimento que depende se a construção de uma ciência se processa como ciência verdadeira ou não. É esse movimento que mantém o vigor, a precisão e a vitalidade de uma ciência, é dele que depende a cientificidade de uma ciência.
  3. e) Os grandes progressos revolucionários de uma ciência não se dão na parte exotérico-construtiva, embora na publicidade, as novidades e as descobertas espetaculares nessa parte das Ciências sejam celebradas como progressos revolucionários de uma ciência. O autêntico progresso revolucionário de uma ciência se dá quando, devido a uma sondagem de penetração e ausculta do positum do horizonte, dentro e a partir do qual a ciência levanta a sua construção, acontece uma recolocação do campo para dentro de Lebenswelt mais profunda, mais rica e mais abrangente, operando uma mudança dos conceitos fundamentais de uma ciência, possibilitando e provocando a revisão de toda a construção, a partir e dentro de um horizonte mais profundo, vasto e originário.
  4. f) Esse movimento de redução na ausculta da possibilidade prejacente no horizonte de uma ciência não tem conteúdo. Não constitui, portanto, conhecimento do tipo conteúdos e saber como o tem a parte exotérica das Ciências. É movimento, dinâmica de penetração, sondagem, ausculta, é a dinâmica de precisão e sensibilidade no ler entre linhas, i.é, do intelecto.
  5. g) Por não ser conteúdo, não está delimitado a um determinado saber ou conhecimento. Ele nada tem, nada sabe de antemão, a tudo examina, a tudo aborda, sondando o sentido das pressuposições, inclusive e principalmente das suas próprias investigações que podem se depositar como conteúdos.
  6. h) Esse duplo movimento caracteriza a cientificidade de uma ciência. Esse duplo movimento apresenta nas suas respectivas polaridades o seu modo próprio de se processar, algo como movimento centrifugal e centripetal de um redemoinho espiral. Quanto mais o movimento positivo da construção alarga o seu âmbito e cresce, tanto mais o movimento de recondução à profundidade da Lebenswelt deve se centrar na sondagem do sentido, que se desvela a partir da imensidão abissal do ser.
  7. i) Como dissemos acima no nº 3, esse movimento que se dirige à profundidade radical do Abismo Desvelante das Lebenswelte e que caracteriza a Nova Ciência e a faz distinguir-se de ideologia e mundividência, agora levado a últimas conseqüências e à radicalização e buscada tematicamente, constitui o movimento, a dinâmica da Filosofia. Tentemos, por assim dizer, aplicar tudo isso que dissemos acima à Filosofia, para, com maior clareza, vermos o que pensa hoje a Filosofia para si mesma como a sua identidade.
  8. A finitude ou a pobreza da filosofia
  9. a) Na filosofia, propriamente não se tem conteúdos. Tudo que ali aparece como conteúdos, p. ex., explicações, argumentos, descrições da realidade, termos, conceitos, são materiais do exercício da colocação das questões, que no fundo, são um único empenho e intrépido movimento de, em sondando e auscultando, buscar o sentido do ser, que emerge nas Lebenswelte, da imensidão abissal do ser. E o sentido do ser não é nenhum conteúdo determinado, mas sim um desvelar-se do Abismo da serenidade do Nada, que afeiçoa cada vez mais a nossa busca para sabermos cada vez menos, a fim de nos dispormos cada vez mais a melhor ouvir, a melhor auscultar e a melhor receber as novas possibilidades de ser, emergentes dessa plenitude abissal do Nada. Essa busca, quanto mais busca, tanto mais se torna pura disponibilidade da espera auscultante do inesperado, na total pobreza do saber, na plenitude do vazio de uma recepção atenta, na vulnerabilidade da finitude alegre e grata.
  10. b) É esse não-saber como a disposição de ausculta do fundo que dissolve e faz permeável o fundo de uma ciência, i.é, o seu horizonte fundante, dentro e a partir do qual uma ciência levanta o seu edifício, possibilitando-lhe uma fundamentação mais profunda e mais vasta, uma radicalização nos níveis e nas dimensões mais originárias do ser, abrindo assim à Ciência novos horizontes.
  11. c) A filosofia, propriamente, não apresenta nenhum conteúdo, mas se avia cada vez à ausculta e ao aprofundamento nos abismos do sentido do ser no permeio dos conteúdos das ciências, hoje. Não somente no permeio dos conteúdos das Ciências, mas também junto de todo e qualquer conteúdo da existência, hoje, ontem, amanhã, aqui, lá, cada vez, onde o empenho da busca se concretiza, a partir e dentro de um determinado horizonte da Lebenswelt. Por isso, ela toma diferentes formas de aparecimento, constituindo variegadas e infindas modalidades de “filosofias”, que povoam os manuais da História da Filosofia.
  12. d) Quando a Filosofia é tomada na sua forma de aparecimento exotérico, e usada como conteúdos de saber, opiniões, doutrinas, sabedoria, experiências, ciências, ideologias, expressões culturais etc., ela como Filosofia se retrai, e o que temos à mão são mundividências de um ou mais sujeitos ou de certa época da História.
  13. e) Se no ensino da Filosofia quisermos ter encontro com a Filosofia ela mesma, é necessário intuir e captar o movimento de descida à interioridade radical do abismo do sentido do ser, que a Filosofia, enquanto ela mesma, efetua cada vez no permeio das “filosofias”.
  14. f) Essa intuição e captação do movimento radical da Filosofia enquanto Filosofia, no permeio das “filosofias” e das vicissitudes da existência humana, se chama Ontologia, i.é, Ciência do sentido do ser, ou Questão do sentido do ser.

Questão ou busca do sentido do ser, a Ontologia, é o mover-se da busca e não uma disciplina. Mas ela pode se estabelecer como disciplina. Nesse caso, participa da mesma ambigüidade, que inere às “filosofias” como mundividências.

  1. g) Como Ontologia ou Questão do sentido do ser, a Filosofia é sempre e em toda parte, i.é, cada vez, em concreto, sempre de novo e sempre nova a mesma (não igual!). Como tal não há nem Filosofia Antiga, Medieval, Moderna ou Contemporânea.
  2. h) Aqui sempre a mesma não significa absoluta, imutável, definitiva, perene. Mas sim, sempre na disponibilidade finita do frescor da vulnerabilidade pelo sentido surgente do ser. Como tal, esse movimento ontológico deve ser exercitado e apreendido cada vez no permeio de um ou mais concreções históricas das vicissitudes do empenho da existência humana.

O equívoco da Filosofia Perene é de entender o “sempre a mesma” no sentido do absoluto e eterno infinito e não no sentido do cada vez nova e de novo na disponibilidade finita. E o equívoco do Relativismo, do Historicismo é de entender esse “cada vez nova e de novo” no sentido de negação do infinito. A negação do infinito não faz nascer a dinâmica e a novidade da Finitude. Pelo contrário, estraçalha o infinito em indefinidos pedaços iguais da infinitude do agora, agora, agora, agora.

  1. i) No ensino da Filosofia, amontoar informações sobre a Filosofia, tomada como “filosofias” não possibilita a captação da essência da Filosofia como Ontologia, no sentido acima insinuado. O mesmo se deve dizer de uma especialização numa única “filosofia” com todos os detalhes históricos e temáticos sobre ela. O decisivo aqui é, em conhecendo bem a estruturação ambígua da Filosofia em dois movimentos centrifugal e centripetal, através de um concreto permeio ou de um ou mais filósofos e suas obras, ou de uma ou mais obras de quaisquer áreas da existência humana como, p. ex., religião, arte, ciências, experiências da vida etc., adaptando-se à disposição do tempo de estudo (2, 3, 4, 5 anos, etc.), conduzir o formando a amar e assumir o movimento da Questão do sentido do ser. Aqui se abre uma pista concreta de como ensinar Filosofia na nossa formação intelectual franciscana.
  2. j) Todos os grandes Pensadores na Filosofia entenderam a essência da Filosofia como Questão do sentido do ser.
  3. k) A Questão do sentido do ser, a disponibilidade atenta da ausculta, na plenitude da espera do inesperado, que constitui a essência da Filosofia, não deve ser confundida com vivência “mística” de “passividade” pietista. Antes, é o movimento intenso de trabalho intelectual, i.é, o empenho máximo de, no permeio da materialidade desta ou daquela vicissitude da existência humana (esta obra, este autor, esta arte, esta questão, etc.), exercitar-se na disponibilidade, que realmente penetre no Abismo de profundidade do sentido do ser. Nesse equívoco de identificar a espera do inesperado com a passividade pietista cai o vitalismo, o espontaneismo, o espiritualismo, eivados de esteticismo. Essa espera do inesperado, na plena atenção no permeio do trabalho árduo e intenso, é antes um labor operário, corpo a corpo com o sentido da Vida. Exige engajamento de toda a nossa liberdade, de todo o nosso ser humano.
  4. l) Na linguagem de Kierkegaard a disponibilidade da espera do inesperado é o estágio ético, levado a sua máxima consumação.
  5. Filosofia e teologia

A essência da Teologia está condenada na expressão da Escolástica Medieval “fides quaerens intellectum”.

Se entendermos a palavra fides como a nossa crença cristã e o intellectus como a razão humana, essa expressão parece significar a nossa crença sobrenatural se expressando, buscando uma concretização através da razão humana. E imediatamente surge a questão, como se dá esta síntese, qual é esse ponto de ligação entre o saber da Fé e o saber da Razão, entre o Sobre-Natural e o Natural. É uma justaposição, uma mixagem, uma subsumpção, uma fundamentação, uma dialética? Fides necessita de Intellectus para se expressar, para se fundamentar? Não há a melhor possibilidade de ela mesma, a partir de si se expressar, se fundamentar? Para que a Filosofia? Para que a Teo-logia? Por que não simplesmente a Fé? O que significa formar-se intelectualmente na Fé? E essas questões entram e se traduzem no cotidiano da nossa vida cristã em posicionamentos, que encontram a sua expressão numa linguagem como essa: Estudam, estudam a Teologia, mas não acreditam mais; eu que sou simples, ao menos tenho a Fé; essa gente que não estuda Teologia permanece no estado de ignorância da fé do carvoeiro; é necessário esclarecer e formar melhor a fé desse povo etc.

E se desencadeia um rolo de discussões, onde se contrabandeiam compreensões de Fé e Intelecto, provenientes de outros contextos como p. ex. a fé como vivência do ato de sentimento, portanto um ato da área dos atos humanos irracionais, que necessita de uma orientação proveniente da razão etc.

Aqui, em vez de entrar nessas discussões, exatamente para entender melhor o relacionamento Teologia e Filosofia, tentemos entender essa expressão medieval Fides quaerens intellectun não como um indicativo da síntese fé e razão, mas como vir à fala da estruturação interna da suprema experiência chamada Fé Cristã.

  1. a) Por Fé, aqui, não entendemos em primeiro lugar, nem nosso ato de fé como vivência, nem a nossa crença, nem a confiança nossa, nem a atitude de disposição, nem o conjunto de dogmas e artigos da nossa doutrina cristã. Tudo isso, de alguma forma, pode ser chamado de Fé ou ser referido à Fé, porque tudo isso já é fruto da Fé.

Por Fé entendemos a própria Presença do Deus de Jesus Cristo, que se nos doou e nos amou primeiro (a aprioridade da Fé), vindo ao nosso encontro em Jesus Cristo seu Filho, no-Lo dando pela nossa salvação. Com essa descrição imperfeitíssima, se tenta acenar a inefável e insondável ternura e vigor do Amor Misericordioso do Pai como Ele se manifestou em Jesus Cristo e continua se manifestando através da História da Salvação: a Fé é a Fidelidade da doação do Amor do Deus de Jesus Cristo, a Fidelidade que é o próprio Deus.

  1. b) Tudo que de alguma forma pertence à nossa Vida Cristã, desde Jesus Cristo até um pequeno gesto de bênção, toda a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, com tudo que ele implica, a vida cristã como Seguimento de Jesus, as doutrinas cristãs, os dogmas, as experiências místicas cristãs, as nossas atitudes de confiança, disponibilidade, amor e fidelidade, a nossa vocação, sim tudo, que é de alguma forma cristão, existe e ali está, porque tudo isso é sustentado, doado pelo Pai de Jesus Cristo, porque tudo isso é a própria Presença viva do Pai em Jesus Cristo como Fé, i.é, como Fidelidade da Doação do Pai. É nesse sentido que dizemos: não é assim que nós tenhamos a Fé, é a Fé que tem a nós. E até a possibilidade, a disposição de nos abrirmos à Fé, é doação da Fé.
  2. c) A nossa tentação aqui é de levantar uma falsa questão e perguntarmos: mas, se é assim, onde fica a nossa liberdade e responsabilidade? E embarcarmos na célebre polêmica do relacionamento entre a graça e o livre arbítrio. Essa questão, em referência à Fé, porém, é uma questão extrapolada. Levantar uma questão extrapolada é como levantar falso testemunho. Um falso testemunho parece verdadeiro e razoável, somente porque ele sorrateiramente infiltra, na raiz de uma verdade, uma pressuposição, que não é dessa verdade, mas tirada de outro lugar, desviando assim o percurso de busca e investigação para outra coisa inteiramente diversa.

Quando se fala da Fidelidade do Deus de Jesus Cristo, que nos amou primeiro, portanto, absolutamente independente da nossa iniciativa, a tal ponto absolutamente primeiro, que a própria iniciativa de receber já é a iniciativa do Amor que é Deus, estamos falando já dentro da experiência possibilitada pela Fé e como Fé. E como se trata da experiência, é anterior a toda e qualquer explicação, anterior também à dúvida se essa experiência não é um ato subjetivo psicológico etc. etc. A melhor explicação, o melhor critério da verdade é a evidência da experiência. Aliás, a evidência é a própria experiência e não há testemunho mais verdadeiro do que o testemunho da experiência, i.é o toque direto e corpo a corpo do amor Primeiro que é o próprio Deus.

As objeções surgem quando, em vez de permanecer na experiência e buscar a inteligibilidade, a partir dos fios condutores que surgem na própria experiência, nos dispersamos e disparamos a perguntar, a partir de certas pressuposições usuais, em que estamos atrelados, sem, no entanto, ter evidência de que e a partir de onde estamos perguntando. Assim, ao objetarmos sobre as iniciativas livres de Deus e do Homem, estamos representando as iniciativas como impulsos, que partem de e pertencem a dois pontos separados como ocorrência e coisa, ponto Deus e ponto Homem. Como um ponto não é o outro, dizer que aqui somente há uma iniciativa do ponto Deus, parece eliminar o ponto Homem. E como 2 não pode ser 1, entramos na perplexidade e perguntamos: como? Em vez de permanecermos na fluência viva da Fé, estamos sendo conduzidos e atrapalhados pelo princípio de contradição, hipostatizado como princípio, que diz respeito a 1 e 1 e 1, à identidade concebida como igualdade quantitativa de coisas. Com isso, caímos completamente fora da experiência primeira, nos extrapolamos completamente…

Ao passo que o testemunho da experiência diz bem outra coisa, aliás inteiramente diferente. A tal ponto diferente que uma questão colocada como concorrência e contradição entre duas iniciativas, referindo-se a Deus que nos amou primeiro, e a nós que com gratidão recebemos tal doação, é semelhante à pergunta de alguém que, ao ouvir falar da grandeza de uma mãe gestante, que, atacada de câncer, apesar de terríveis dores, não toma nenhum remédio para aliviar a sua dor, por amor, para não prejudicar o bebê, que está no seu seio, pergunta quantos metros cúbicos tem a grandeza dessa mulher e quanto pesa…

  1. d) A lógica da Fé, no sentido acima mencionado, é muito simples, i.é, una, inteiriça, coerente. Trata-se da experiência da Gratuidade do Encontro e Encontro da Gratuidade. A absoluta doação da Fidelidade do Amor do Pai é toda ela, inteira e radicalmente gratuita. Essa Gratuidade, quanto mais claramente captada na sua Gratuidade, suscita em nós também a doação da mesma “natureza”, portanto inteira e radicalmente gratuita. A uma doação primeira de Encontro de tamanha boa vontade, só se pode corresponder da mesma maneira, ser do mesmo modo, ser uno, ser o mesmo. Esse ser o mesmo não é ajuntamento de duas coisas, mas simplesmente, concretamente, a própria dinâmica e ser do Encontro, o próprio Encontro ele mesmo. Quem assim é dá o melhor de si, em tudo, e em assim se dando, se percebe não como dono, como proprietário da doação, mas sim agraciado pela doação do outro. Aqui não se trata de acionar ou não o livre arbítrio da minha vontade. Trata-se de um novo modo de ser, que atinge e impregna a nossa liberdade, despertando-a para a essência a mais entranhada dela mesma.
  2. e) Esse modo de ser, talvez, possamos denominar de afeição obediente. Trata-se de um movimento de crescente “passividade” (leia afecção), não no sentido da passividade vazia, neutra e indiferente, mas sim no sentido do aumento cada vez mais diferenciado e profundo da possibilidade de ser atingido, e em sendo atingido, deixar ser em máximo grau o ser de quem nos atinge. É o que se expressa na formulação usual: fazer a Vontade de Deus. Essa habilidade e esse hábito de co-responder pode crescer a tal ponto que todo o vigor do nosso empenho não é outra coisa do que fluir grato e gratuito na Gratuidade do outro: “Não eu, mas Cristo vive em mim” (S. Paulo), “Meu alimento é fazer a Vontade do Pai” (Evangelho).
  3. f) Esse modo de ser é a essencialização sofrida pelo nosso ser, quando somos agraciados pela Fé, i.é, somos afetados, atingidos pela Fidelidade do Deus de Jesus Cristo: a Vida pela Fé e na Fé Cristã.
  4. g) A Teologia é um saber que constrói todo um mundo de conhecimento (leia-se conascimentos) dentro e a partir do “horizonte” dessa afeição obediente. Por isso, tudo que vem à fala, a partir da afeição obediente da Fé, é Palavra de Deus, o Logos, o Verbum, a Colheita e Obra de Deus. A sondagem e a ausculta do sentido do ser, que emerge da profundidade aberta pela afeição obediente da Fé, é o Positum da Teologia, a Imensidão abissal e o Mistério absoluto e último da Ternura do Amor do Deus de Jesus Cristo, que é Tudo em todas as coisas.

Mas quem faz essa sondagem e ausculta não somos nós mesmos a partir de nós, mas sim o Espírito de Deus, i.é, o sopro vital da própria Ternura do Amor do Deus de Jesus Cristo, que continuamente mantém límpida, na precisão da Gratuidade, a Dinâmica desse Ab-ismo.

Se agora, observarmos bem esse vigor da doação da Gratuidade, que nos vem ao encontro, nos atingindo, impregnando todo o nosso empenho na afeição obediente a essa Gratuidade, percebemos que esse modo de ser, embora muito mais qualificado e elevado como a plenitude da Liberdade, na docilidade à Graça-Deus, possui muita semelhança com o modo de ser, que na Filosofia, aparece como INTELECTO, i.é, como o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante. Também no intelecto há o movimento de ausculta e de disponibilidade, em direção à profundidade do sentido do ser, para além das pressuposições que nos dão base de construção aos nossos empenhos. Também no intelecto, a busca da disponibilidade recorda algo como doação gratuita na radical responsabilização da Liberdade. Também no intelecto há a acribia de manter sempre de novo a limpidez da espera do inesperado.

Mas o que no intelecto é a vontade do trabalho, na afeição obediente da Fé é deixar-se levar na fluência da doação.

O que no intelecto é plena atenção da especulação, na afeição obediente da Fé é a pregnância da translucidez.

O que no intelecto é precisão e rigor de penetração, na afeição obediente da Fe é a docilidade na ternura do Encontro.

O que no intelecto é o puro movimento da busca, sem conteúdo, na afeição obediente da Fé é a Plenitude da Verdade absoluta, que contém todas as coisas.

E, no entanto, nessa diferença do modo de ser do intelecto e da afeição obediente da Fé, se auscultarmos bem o modo de ser do intelecto como movimento de redução à profundidade do Abismo Desvelante, percebemos que ele pulsa como que no mesmo ritmo da repercussão da Gratuidade da afeição obediente da Fé.

E de repente, a expressão Fides quaerens Intellectum nos faz suspeitar:

Será que a afeição obediente da Fé, na sua Gratuidade, não busca com simpatia os que se dispõem de corpo e alma à busca e ao empenho no modo de ser do intelecto? Não porque a Fé necessitasse do Intelecto. Não para se expressar, não para se complementar. Mas sim, porque no Intelecto há a repercussão do toque da afeição obediente…?! Pois não diz o Salmista que o abismo chama o abismo? E o que se move no Encontro não é a syn-tonia da syn-patia?

Tentemos esquematizar esse relacionamento entre a afeição obediente e o intelecto, i.é, entre a Teologia e a Filosofia num gráfico imperfeito, mas que nos pode ajudar a segurar na representação os movimentos que constituem esse relacionamento. Para isso cf. o gráfico III.

  1. A teologia, a filosofia, as ciências

Isto tudo significa que, no cerne da Filosofia e no cerne da Teologia, há movimentos gêmeos, do INTELECTO, i.é, da redução à profundidade do abismo desvelante e da afeição obediente, na Fluência da Doação da Graça Misericordiosa. Esses dois movimentos, por sua vez, se movem em espiral, à semelhança do movimento espiral centrifugal e centripetal das Ciências, mas agora de uma forma toda própria, estranha. O movimento do Intelecto, que se esvazia cada vez mais na limpidez da espera do inesperado, quanto mais se radicaliza, tanto mais se reduz à clareza, precisão e rigor do Nada, e nada de conteúdo ou de positivo à Teologia. Pois ele é algo como o tinir cada vez mais intenso da espera. Esse Nada é mantido com árduo e intenso labor no permeio da construção positiva das Ciências e dos outros empenhos e desempenhos humanos, que em se estruturando em mundos e mundos de realização, são convocados, ao mesmo tempo, a se trabalhar criticamente como busca sempre mais intensa do sentido do ser, na nadificação de fixações, dogmatizações e hipostatizações do sentido do ser. A Filosofia é pois o trabalho operário da existência humana, em todas as manifestações do seu empenho, de perfazer-se como a radical responsabilidade de ser a verdade do seu ser: é o Intelecto. Esse trabalho conduz tudo e qualquer empenho humano à raiz de si mesmo, que é a disponibilidade absolutamente autônoma da Liberdade de ter que ser cada vez o seu próprio ser. Essa disponibilidade é a essência do Homem: Finitude do Nada, disposta na espera do inesperado.

A Graça do Amor do Deus de Jesus Cristo, quando gratuitamente se afeiçoa na sua simpatia a esse nada e desce sobre ele como orvalho, faz florir no deserto límpido desse nada da espera, todos os empenhos, que permeiam o todo da existência humana, impregnando-os com o modo de ser radicalmente outro, e, no entanto, sem nada mudar nos seus conteúdos, como que concebendo tudo na ternura e no calor de um outro hábito: é a Encarnação.

Essa subsumpção de tudo em todas as coisas do empenho humano pela Graça é Fides quaerens Intellectum e é o movimento chamado Teologia.

Como a Filosofia é um movimento de redução ao Abismo Desvelante do sentido do ser, assim a Teologia é um movimento de constituição toda nova da totalidade das possibilidades de existência humana em todos os tempos, a partir da afeição obediente da Ternura e do Vigor da Fidelidade do Deus de Jesus Cristo.

E como a Filosofia, na sua manifestação exotérica aparece em diferentes estilos e escolas de filosofias como mundividências, assim também a Teologia aparece na sua manifestação exotérica, em diferentes escolas e estilos de teologias.

Mas, como na Filosofia, também na Teologia, estando em uma ou em mais dessas manifestações, o essencial da formação intelectual é fazer o movimento esotérico, i.é, o movimento-cerne, que atravessa como Intelecto a Filosofia, e como afeição obediente a Teologia.

Como dissemos, a Filosofia não pode contribuir em nada à Teologia com conteúdos positivos. Ela, porém, pode servir de ancilla theologiae, no sentido da faxineira, que varre e limpa os habitantes espúrios, alojados na Teologia, camuflados de filosofias ou filosofemas. Com outras palavras, a acribia do Intelecto, no seu movimento de redução de toda a positividade das Ciências ao exame das suas pressuposições, abre cada vez mais profundamente a limpidez do seu horizonte e do sentido do ser, que ali se desvela. Assim, a Filosofia detecta na Teologia a presença de elementos, cuja crítica pertence à Filosofia, por tratar-se, não de Teologia, i.é, da afeição obediente da Fé, mas sim do Intelecto, i.é, das Ciências e de outros empenhos da existência humana.

Mas, para que a Teologia mantenha o seu horizonte na limpidez da afeição obediente, não basta somente esse serviço da Filosofia. Pois esta não lhe pode dar nada, a não ser retomar para si, o que a Teologia foi buscar fora de si, para usá-lo como muletas.

Para que positivamente a Teologia seja Teologia, ela continuamente necessita se enraizar na afeição obediente do Encontro com o Pai. O vigor crítico, i.é, purificativo da Cientificidade da Teologia reside no Encontro com o Pai.

10 “Santidade e sabedoria” e a formação intelectual

Soa estranho afirmar que o vigor crítico que mantém a limpidez da Cientificidade da Teologia está no Encontro com o Pai. Não é isto reduzir a Teologia a uma intimidade pessoal subjetiva? Não é confundir a Teologia com a Piedade, a Espiritualidade, a Mística? Certamente, o Encontro com o Pai, a Vida Interior é importantíssima para a formação espiritual do religioso e sacerdote. Mas essa formação espiritual, sem negar a sua necessidade e importância, não é propriamente a formação intelectual, muito menos a quinta essência da formação intelectual, a Teologia…

O que significa, pois a afirmação: a Teologia para ser ela mesma na sua Cientificidade, necessita estar continuamente enraizada na afeição obediente do Encontro com o Pai?

Se examinarmos bem o processo de aprendizagem num estudo, seja de que matéria científica, arte ou técnica for, percebemos que, além da disponibilidade e disposição positiva e do talento do discípulo, o segredo do progresso na aprendizagem e saber está na competência do mestre. Por isso, um velho provérbio chinês recomenda a quem quer aprender uma das inúmeras e dificílimas artes marciais chinesas, que se não tiver muito tempo à disposição, gaste ao menos 3 anos para procurar um ótimo mestre! Com outras palavras, em vez de, com pressa pegar qualquer mestre e logo iniciar o treino de 3 anos, é mais eficiente gastar esses 3 anos procurando um ótimo mestre, porque este o pode fazer progredir em pouco tempo, mais do que um mestre incompetente em muitos anos.

Já imaginou cair nas mãos de um mestre como p. ex. S. Basílio, S. Justino, S. Boaventura, Mestre Eckhart, Aristóteles, Platão, para não dizer um Anjo, um Serafim, um Querubim, um Gabriel que nos pegasse pelas mãos e nos ensinasse?

Mas, se abrirmos as Sagradas Escrituras, elas nos dizem constantemente que o próprio Deus, Ele mesmo em pessoa, o Espírito Santo nos ensina todas as coisas! Deveríamos uma vez fazer um levantamento, tanto no NT como no AT, para sentirmos num volume muito grande a Boa Vontade imensa de Deus, de nos ensinar! E se fizermos um levantamento acerca dessa Boa Vontade de Deus de nos ensinar, nas experiências de iluminação que tiveram os grandes místicos e santos de todos os tempos, ficaremos impressionados quão pouco acreditamos em tudo isso, a ponto de, no fundo, sermos indiferentes diante desse Mestre de todos os Mestres, ao passo que passamos anos a fio, gastando milhões, para fazer cursos com certos professores, que são especialistas p. ex. em Psicologia, cuja origem não se sabe lá muito bem donde vem… e que não são lá grandes coisas.

Se pois considerarmos a aprendizagem da Teologia, compreendida como acima insinuamos, quando falamos do relacionamento Ciências-Filosofia e Teologia, logo compreenderemos, que o melhor e o único Mestre absoluto dessa Ciência maravilhosa, que Deus tem, a Teo-logia, é o próprio Pai de Jesus Cristo. Assim sendo, não é nada estranho, antes completamente coerente que a Teologia tenha como fonte da sua Cientificidade no contato profundo, pessoal e íntimo com o Pai.

No entanto, numa aprendizagem, uma vez que temos um bom mestre, o decisivo é o volume de trabalho. Mas por que é importante o volume de trabalho? Para nos familiarizarmos com o mestre e sua matéria. Como a palavra familiarizar-se nos diz, é necessário entrar a ser familiar com o mestre e sua matéria. Na família estamos todos os dias juntos, um próximo do outro, estamos em contato, corpo a corpo na busca, na intimidade do trabalho, num diálogo, confronto e desafios constantes com o mestre.

Digamos que para obter um doutorado, para adquirir a habilidade esportiva, para aprender a profissão de alta tecnologia, para tornar-se competente nas pesquisas, gastamos anos a fio, sim toda a vida, dia por dia, hora por hora, nos engajando nesse ou naquele trabalho de uma aprendizagem. Experimentemos então fazer uma estatística para ver quantas horas gastamos nesse trabalho em 20 anos. Imaginemos agora alguém que faz todo esse trabalho, gastando 30, 40, 60 anos, só para entrar corpo a corpo, em contato imediato com Deus, tornar-se familiar com Ele, ter intimidade com Ele, de tal sorte que Ele nos revele os segredos, os mais abscônditos do seu coração, ensinando-nos tudo acerca de todas as coisas.

Mas, como se faz isso, o contato imediato, corpo a corpo com Deus? Se Ele é o Pai que habita uma luz inacessível? Não estamos, aqui, fazendo uma confusão, dando exemplos de aprendizagem do estudo humano, onde o mestre é visível, material, e físico, e aplicando à aprendizagem do estudo, onde o mestre é o próprio Deus, que transcende todas as nossas medidas, todos os  nossos sentidos, físicos e sensíveis? Não é assim que, aqui, não há contato pessoal, corpo a corpo, mas sempre através da mediação de mestres visíveis?

O interessante dessa objeção é que ela nos aponta para uma equivocação, que raras vezes percebemos. Equivocação de identificar o visível, o físico com o imediato, com o contato direto, com o corpo a corpo. Por causa dessa identificação, o não-visível, o não físico não é imediato, não é contato direto, não é corpo a corpo! Logo, mediato!

Juntamente com essa equivocação, corre paralelo outra equivocação. A de identificar o visível físico e sensível, já identificado com o imediato, contato direto e corpo a corpo, com o pessoal. E identificar o não-visível também aqui com o mediato, o mediatizado, e muitas vezes com o não-pessoal, no sentido de mediatizado pelo grupo, pela sociedade, instituição, etc. Por isso, quando p. ex. dizemos, para ser ensinado diretamente por Jesus Cristo, ele deveria estar ali fisicamente presente, para eu poder ter um contato imediato, direto com ele, pessoalmente, estamos agenciando todas essas equivocações. E continuamos a operar nas mesmas equivocações, quando dizemos, como Ele viveu há 2.000 anos, só nos pode ensinar indireta, mediatamente, através das pessoas, mestres atuais, Igreja etc. que nos cercam como comunidade e instituição.

E, no entanto, quando nos examinamos bem, percebemos que o problema é bem outro. A questão de imediato ou mediato, do contato corpo a corpo direto ou mediatizado e indireto, é um problema da familiarização. Não está relacionada nem com o visível ou invisível, nem com o físico ou espiritual, nem com pessoal ou institucional. Mas em que sentido?

Todas as coisas, com que nos familiarizamos, depois de um longo convívio de empenho, estudo, confronto, se tornam próximas de nós, nós as tocamos, se nos tornam imediatas. E todas as coisas que nos são estranhas, são longínquas, não nos tocam, não tem relacionamento direto conosco, devem ser mediatizadas pelas coisas que nos são mais familiares. Mas todas as coisas que se nos tornaram familiares, para que possam ser familiares, pressupõem de nós uma decisão de assumi-las, e na medida em que se nos tornam cada vez mais familiares, exigem cada vez mais que as assumamos corpo a corpo.

Com outras palavras, o que experimentamos como pessoal, direto, imediato, corpo a corpo, contato pele a pele não tem propriamente nada a ver com o físico, sensível, individual, corporal. Mas tem tudo a ver com índice de transformação no meu modo de ser, que eleva o meu ser a uma qualificação, antes não existente.

Esse modo de ser qualificado recebe vários nomes, por ser difícil de ser dito, mas que na experiência se pode perceber com simplicidade e relativa facilidade. É o modo de ser que se chama encontro, relacionamento pessoal, intimidade, familiaridade etc. Só que, infelizmente, essas denominações dificilmente nos conseguem mostrar, que aqui não se trata de sentimento ou sensação, mas sim de um quilate novo de ser.

Esse modo de ser qualificado, esse quilate novo de ser, acima também designado como corpo a corpo, imediato, contato direto, só se dá no e através do empenho. E o empenho, dizemos nós, quanto mais decisivo, intenso e engajado, quanto mais se aproxima de uma busca de vida ou morte, onde a pessoa põe em jogo todo o seu ser, tanto mais se torna pessoal.

Como foi dito, é difícil não entender esse pessoal como subjetivo e individual. Mas, perguntemos, o que é o oposto de pessoa. O impessoal? O grupal, comunitário? Para que seja pessoal deve haver só uma pessoa (leia-se indivíduo)? Quando é mais de uma pessoa, se torna impessoal? Ou se torna comunitário? Logo percebemos que aqui entra uma confusão. Ou melhor, a nossa compreensão do pessoal e do comunitário está confusa. Sem entrar em discussões e exames mais detalhados da questão, observemos apenas que essa confusão se dá, porque temos na nossa mente o esquema: um sujeito = o pessoal; mais sujeitos = grupo, comunidade. Deixemos de lado por completo esse esquema e olhemos com simplicidade e diretamente o fenômeno. O que percebemos? Percebemos que, quanto mais a intensidade da experiência se torna forte, profunda, familiarizada, assumida num trabalho de engajamento para valer, tanto mais a experiência se torna única, cada vez minha, singular. Então em assim sendo singular, percebemos o que quer dizer pessoal. Pessoal é quando a minha existência alcança a densidade de um corpo a corpo, na radical seriedade de ter que ser, sem poder transferir essa tarefa de ser a um outro. Mas essa singularidade e unicidade não tem muito a ver com 1 no sentido numérico quantitativo, mas sim com a inexorabilidade, inalienabilidade, a identificação do Encontro. Que essa intensificação absoluta da singularidade do Encontro nada tem a ver com individual, privativo e subjetivo, pois estes não possuem o quilate todo próprio do ser, que caracteriza o pessoal, i.é, a absoluta doação de si e a abertura transcendente universal.

Mas o que tem a ver essa singularidade do Encontro com a formação intelectual e principalmente com a manutenção da Cientificidade da Teologia?

Tem tudo a ver com o estudo da Teologia, entendida como foi colocada nos capítulos anteriores. Pois, se olharmos os nossos estudos da formação intelectual franciscana, não no seu aspecto virado para fora, i.é, esotérico, mas na sua estruturação virada para dentro, i.é, para a sua essência, esotérica, percebemos sem dificuldade que, aqui, se trata do engajamento e do radical empenho de toda uma existência humana na busca apaixonada pelo último e absoluto sentido de Tudo. Mas esse Tudo não é mais a totalidade dos entes, a modo de uma paisagem panorâmica da explicação da verdade do universo, mas sim União, Comunhão, Identificação, Encontro Pessoal de Amor que faz gritar a um São Francisco de Assis: Meu Deus e Meu Tudo!

Mas… tudo muito bonito, porém, … e a Teologia, e a formação intelectual? Não é apenas, por mais profundo e belo que tudo isso seja, uma experiência pessoal de São Francisco, subjetiva, particular?

Se compreendermos bem o que viemos refletindo nos capítulos anteriores acerca do estudo da nossa formação intelectual, todas essas objeções não passam de escrúpulos estéticos de uma existência humana, que tem a cabeça feita num academismo estéril e não fez ainda experiência da Teo-logia, i.é, “do contato imediato de primeiro grau” com o único Mestre de todas as Ciências e Sabedorias, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aqui, como já foi dito antes, não se trata de um saber nosso acerca de Deus e Homem e Universo, a teologia no sentido de “theologia quoad nos”, mas sim “Theologia quoad Deum”, participação discipular, filial, esponsal, íntima, pessoal, total com a Sabedoria que Deus tem!?

Não é essa a única formação pela qual vale a pena dar toda uma vida, toda a vida de nossa Ordem, sim da nossa Humanidade?

VI . Nietzsche e a Razão Ocidental (Conferência feita em Belo Horizonte para os estudantes de Filosofia e Teologia,na semana filosófica do Instituto dos religiosos; melhorar e ampliar o texto.

VII. Fenomenologia do Corpo

VIII. Ontologia estrutural e fenomenologia (homenagem a Heinrich Rombach)

IX: Esquecimento do esquecimento do ser em Feldwegsgesprachäch: Wundersame e Seltsame

X: Fenomenologia e o encontro: o in-sein e mit-sein nos sermões alemães do Mestre Eckhart


[1] Encontro de 3 dias, realizado em outubro de 2001, na casa de retiro das Catequistas Missionárias de São Francisco, Jaraguá-Paulista, São Paulo, entre psicólogos, formadores, estudantes de psicologia, estudiosos de Filosofia, na maioria religiosos e religiosas preocupados em ver claro na formação dos candidatos o relacionamento possível entre psicologia e espiritualidade.
[2] Hoje, falar da fenomenologia assim em geral é uma missão impossível, pois há tantas fenomenologias diferentes quantas existem autores que expõem sobre a fenomenologia. Em geral, é costume distinguir fenomenologia como uma espécie de procedimento digamos mais sofisticado de descrever uma realidade simplesmente dada e fenomenologia como um radical retorno à questão da essência da filosofia que na sequência de autores como Edmund Husserl, Eugen Fink, Heinrich Rombach e principalmente em Martin Heidegger reavivou de uma maneira aguda e profundamente filosófica a questão do sentido do ser, que recebe em Heidegger (Ser e Tempo) o nome de Ontologia Fundamental. Para informação geral, cf. verbete-artigos fenomenismo, fenômeno, fenomenologia, escola fenomenológica, método fenomenológico, e movimento fenomenológico, em Enciclopédia luso-brasileira, Logos, vol. II.
[3]  O problema do psicologismo e a reação da fenomenologia iniciante está dentro da perspectiva da teoria do conhecimento, proveniente da definição tradicional da verdade veritas est adaequatio rei et intellectus (verdade é adequação da coisa e do intelecto). Segundo essa definição, um conhecimento é verdadeiro, se há concordância entre o intelecto e a coisa. Em vez de intelecto podemos também dizer homem-sujeito, consciência humana e, em vez de coisa, objeto. Se nessa adequação a que se conforma é coisa (res) e o que se adequa é intelecto (intellectus), temos a predominância da anterioridade da coisa, da res sobre o intellectus ou do objeto sobre o sujeito: temos nesse caso a teoria do conhecimento do realismo ou do objetivismo. Se pelo contrário, a que se adequa é o intelecto, e o que se adequa é a coisa, temos então a teoria do conhecimento do idealismo ou do subjetivismo. Entre a posição do realismo e do idealismo ou do objetivismo e do subjetivismo, pode haver variantes de acentuação, ora na direção da coisa, ora na direção do sujeito-homem. Assim surgem teorias de conhecimento do conceptualismo, do criticismo etc. Em todas essas tendências a posição fundamental permanece igual, a saber: todos eles colocam no ato do conhecer o lugar onde se dá a adequação, mas parece não questionar se é possível a adequação, e como se dá a adequação, o que é afinal a adequação e em que consiste o ser do intelecto, do ato e o ser do objeto e da coisa.
Na Idade Média, nessa definição veritas est adaequatio rei et intellectus estavam implicadas duas colocações, relacionadas mutuamente na dinâmica da ação de Deus na Criação. Assim a definição se lia uma vez: veritas est adaequatio rei ad intellectum divinum e outra vez: veritas est adaequatio intellectus humanus ad rem. Aqui a medida dos entes (criaturas) está no intelecto divino; e a medida do intelecto humano está na coisa. O que fundamentava a relação entre a coisa e o intelecto era a relação que as coisas tinham com o Intelecto Divino.
[4] Entretanto, se torna bastante claro que a adaequatio da explicação realista do conhecimento parece ser mais próxima e natural, e reproduzir a obviedade das nossas vivências da experiência da realidade concreta e simplesmente dada de todos os dias. A sensação de segurança de que as coisas estão ali diante e ao redor de mim, assim como elas são e se apresentam, e que eu capto a coisa ela mesma ali presente em seus vários aspectos, parece ser um fato inegável, indubitável. Assim, o realista parece ter razão quando afirma que as coisas existem em si, ocorrem ali dadas simplesmente de antemão, anteriores a todas as nossas captações. Tudo isso, porém, parece ser evidente até certo ponto, quando se trata de captar as coisas sensíveis corpóreo-físicas. Mas também as assim chamadas coisas psíquicas, coisas espirituais, coisas estéticas, coisas valores, coisas ideais etc. se nos dão, se nos apresentam. São todas essas coisas, coisas também no sentido das coisas físicas, algo sensível palpável pelos 5 sentidos, diante de e ao redor de nós, existentes em si, independente e anteriormente à percepção da consciência? Por ouro lado, o que significa coisas existentes em si, independentes e anteriormente à consciência? Não é assim que tudo de alguma forma Esse processo de “desmaterialização” da “coisa hipostatizada” como esse bloco-coisa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da “realidade” em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regiões, sub-regiões, setores, áreas de conjunto de “coisas”, constituindo o aparecimento do mundo “objetivo” diante e ao redor de mim:  temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora, tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez “dessubstancializado” se abre como todo um mundo de “realidades” sui generis próprias com seus variegados atos, noemas e egoidades: temos assim a paisagem denominada: noesis, que está referida à consciência, ao ato do sujeito que capta, percebe, valoriza? Que sentido faz falar de algo que existe em si, independe e anterior à consciência, se essa fala já é uma referência à captação da consciência?
[5] Intencionalidade vem do verbo latino intendere, que quer dizer: tender em direção a e para dentro de. Na teoria do conhecimento de cunho realista dizemos: no ato da intelecção o sujeito tende de dentro de si para fora, em direção à coisa, existente em si, fora, diante ou ao redor dele.
[6] O título original em alemão soa Psychologie vom empirishcen Standpunkt, foi editado em 2 volumes, na cidade de Viena, em 1874. A tradução do Stanpunkt por ponto de vista não é exato. Pois Stand não significa vista. Stand vem do verbo stehen que significa estar de pé,erguer-se e permanecer de pé, permanecer, ficar. Talvez possamos traduzir Stand por “estância”, i. é, o lugar onde se está, o chão que serve de base para ficar de pé. O “ponto da estância” seria então o pivô fundamental, o fundo dentro e a partir do que algo se ergue e se firma. Psicologia a partir do ponto da estância empírica diz portanto: psicologia a partir da pressuposição empírica.
[7] Cf. MERTON, Thomaz. A via de Chunag-Tzu. Petrópolis: Vozes, p. 126-7: Chuang-Tzu e Hui-Tzu atravessavam o rio Hao. Disse Chuang: “Veja como os peixes pulam e correm tão alegremente. Isto é a sua felicidade!” Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?” Chuang respondeu: “Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?” Hui argumentou: “Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem”.
[8] Talvez fosse interessante examinar como o especulativo começa a receber a conotação do irreal, e aos poucos do subjetivo, ao passo que o empírico, a conotação do real, do objetivo. Usualmente não percebemos como nesse real objetivo, o sentido do real já está identificado com o objetivo, de tal sorte que facilmente aceitamos sem ver a coisa, i. é, a causa ela mesma da igualação: real = objetivo. Quando na fenomenologia falamos do real, da realidade, i. é, da res, ou mesmo do ente, do ser e também do ôntico e ontológico é necessário observar essa diferença entre coisa e objeto. Por isso, na fenomenologia o termo alemão Gegenstand (Gegen = gen; stand = do stehen) e Objekt (Ob, também pro; jekt = iect = iactare = jectar = lançar) indicam dois modos de objetivação, i. é, do processo através do qual o ente se torna presente, vem à fala dentro de um determinado horizonte. Objekt é o ente que vem de encontro a nós, da objetivação que se processa a partir e dentro do horizonte das ciências do tipo “ciências naturais”. Gegenstand é o ente que nos vem de encontro no horizonte da paisagem que se abre no assim chamado “mundo vital circundante natural”, que muitas vezes é denominado também de mundo pré-predicativo ou pré-científico. Por isso, o que na fenomenologia é indicado com pré-predicativo ou pré-científico não deve ser identificado com não elaborado, informe, vago, ou indeterminação abstrata, espaço vazio sem estruturações, mas sim como concreto, imediato pleno, natural, enquanto nascivo, nascente, o que é na fluência do que vem à concreção i. é, o em sendo, o ente, o fenômeno.
[9] Isto levou a inúmeras aporias que aparecem em perguntas como: – esse material, anterior às elaborações, é real em si, algo ali existente em si, independente do sujeito que o capta? – e as formas que o material recebe, donde vêm?; não vêm do sujeito que projeta sobre essa “tela” vazia objetiva seus projetos subjetivos? Percebemos que o real, entendido como substrato indeterminado, facilmente nos leva a entender a realidade como espaço vazio objetivamente, i. é, matematicamente mensurável, onde se acham por sua vez as substâncias a modo de núcleos-átomos, sem propriamente conteúdo qualitativo, mas apenas como que concentrações quantitativas de uma “substância” geral, que não é nenhuma realidade “subjetiva”, mas sim objetiva, homogênea, “etérea”, quase nada. Daí, passar para a compreensão da realidade como energia e diferentes variações de intensificações e rarefações dessa realidade energética homogênea, calculável e calculada segundo precisão e rigor da objetividade matemática, é um passo. Logo vemos que essa realidade objetiva pouco tem a ver com a realidade concreta da captação imediata e simples, dada no nosso cotidiano. Aqui podemos ver, por outro lado, como em todas as colocações, em geral não analisadas, ainda domina um dogma difícil de ser desmascarado, que é o dogma do problema mal colocado do sujeito-objeto, na forma do “idealismo-realismo”, i. é, a colocação equivocada da teoria do conhecimento.
[10] Zur Sache selbst.
[11] Klärung.
[12] O verbo latino evideri (leia-se e-videri) no seu modo de “atuar” não é nem ativo nem passivo, nem propriamente reflexivo, mas medial. O modo medial expressa movimento de dinâmica toda própria, a qual, de modo muito imperfeito tentamos descrever acima. É “algo” como o movimento de “autonomia” que aparece no crescer, entumecer, aumentar, incandescer, brilhar, vir à luz,  tomar corpo, vir à presença ou ausência etc.
[13] Crítico, -a, crise, vem do verbo grego krinein, que significa distinguir, separar,  separar cortando, escolher, decidir etc. Indica todo um modo de ser da existência humana que denominamos de luta do empenho para tornar-se claro e preciso na responsabilidade de existir.
[14] Pôr entre parênteses é uma operação na aritmética. P. ex. (‘0-1) – (3+5) = 1. Aqui ( ) suspende o valor de cada número em si, mantendo-o como que implícito no conjunto abrangido dentro dos parênteses. Assim, se tenho diante de mim esta coisa ao lado de outra coisa etc., como existente em si, eu suspendo, ponho entre parênteses a suposição prévia de que cada uma dessas coisas existe em si, para deixá-la como que implícita no conjunto em que aparece.
[15] Aqui ocorre um fato “irreparável” que se expressa na disjunção: ou se vê ou não se vê. Portanto, o verbo ver aqui na fenomenologia não possui a acepção usual de ver alguma coisa que está diante de mim, que pode ser captado ora objetivamente ora subjetivamente. Não se trata portanto de ver um fato. Trata-se da facticidade do ver, ou acordar, despertar, iluminar-se, se transmutar para dentro de abertura de uma nova clareira, surgimento de um novo horizonte. Mas falar aqui de horizonte não é conveniente, pois horizonte é um termo que no fundo indica o transcendental. Não se trata de um ato de ver de um sujeito, mas o próprio ver é ele mesmo existência humana, possibilidade da existência.
[16]  Selbstgegebenheit se compõe de duas palavras: Selbst = Self, a coisa ela mesma, e Gegebenheit = dadidade = a ação de se dar a si mesmo. Em vez de e-vidência ou Selbstgegebenheitg, dizemos na fenomenologia de preferência: fenômeno, o vir à fala, vir à luz ele mesmo.
[17] Por isso, na fenomenologia, o ser ou o ente deve ser captado no gerundivo, a saber, ente=em sendo. Assim o Ser deve ser entendido como ato puro, não isto ou aquilo infinito, supradimencional, absoluto, mas o “que” (sic!) de modo mais próprio é nada da coisa em si, mas tudo da potência ou possibilidade de doação de si.
[18] Aqui não se deve entender o ex a partir do sistir, mas o sistir a partir do ex.
[19] É que abertura aqui não é um espaço aberto, escancarado, mas sim dinâmica do surgimento e estância do mundo (Welt). Por isso o Homem é definido como ser-no-mundo. Aqui no possui conotação de dinâmica do crescimento.
[20] Essa recepção não deve ser identificada com intuição ou com algo como sentimento de evidência, ou com o que os alemães gostam de expressar com Aha-erlebnis, i. é, vivência do aha! Trata-se de acribia e limpidez da crítica, no sentido de continuamente liquidificar os pré-conceitos e pré-juizos que se estabelecem como sendo o indicativo da realidade, e manter continuamente no pique da limpidez a redução, i. é, a disposição de apenas ser o captar simples e imediato.
[21] Quando esse abismo-nada da plenitude da possibilidade insondável do sentido do ser não é mais captado na pureza reducional, pode se hipostatizar como o significado lógico do conceito do ser, o mais geral, o mais óbvio, o mais abstrato dos conceitos, que diz o mesmo que nada vazio nadificante.
[22]  É a ideação que constitui a condição da possibilidade de classificações das ciências positivas a partir do vislumbre com-creto do seu positum. O(s) vislumbre(s) concreto(s) e vivo(s) da paisagem ou região dos posita serve de fundamento, donde as ciências positivas haurem seus conceitos fundamentais. Esses vislumbres são iluminações que arrancam das incomensuráveis trevas da imensidão e profundidade do retraimento do sentido do ser – que se oculta, se a-pro-funda cada vez mais em si, velando, resguardando o frescor, a disposição, a ternura e o vigor das possibilidades do ser – o ente como eclosão do mundo. Enquanto servem de fundamento aos posita das ciências, formam a assim chamada dimensão pré-científica ou pré-predicativa ou até mesmo pré-fenomenológica. Essa dimensão se perde então na profundidade da incomensurabilidade do que antes denominamos abismo insondável e inesgotável do sentido do ser que usualmente chamamos de Vida, Ser, Realidade. Fenomenologia é, no movimento da redução e ao mesmo tempo da ideação e com ela da assim chamada constituição, a sondagem da possibilidade do abismo do sentido do ser no rigor, na nitidez e clareza da sua estruturação como vir à fala do(s) mundo(s), e é demarcação das possibilidades das ciências positivas como ausculta crítica do rigor do surgimento do seu saber e da sua sistemática a partir da dimensão pré-científica das dinâmicas genéticas das eclosões dos horizontes do sentido do ser. É a ideação que no fundo possibilita diferentes tipos de classificação na vida e nas ciências.
[23] Ontologia se compõe das palavras on, -toV, i. é, em sendo e logoV (logia), i. é, discurso, ciência, mas também, colheita, ajuntamento, recolhimento. Ontologia não tem aqui a acepção usual tradicional da ciência do ente, concebido como algo que existe em si como ocorrente simplesmente, contraposta à antropologia filosófica, dentro do esquema da teoria do conhecimento S « O.
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