Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A vigência do poético na regência do virtual

22/04/2021

 

Emmanuel Carneiro Leão

Para Frei Hermógenes Harada, pelos oitenta anos de vida!

Hoje em dia todos somos pós-modernos. Pós-modernos, vivemos na e da baixa modernidade. Baixa modernidade é a conjugação de três ordens de transformação em detrimento da criatividade na história: a financeira, a genética, a virtual. Nesta baixa, impõe-se, cada vez mais, uma divinização do homem e uma humanização do sentido. Trata-se de uma imposição negativa: a desordem prevalece sobre a ordem. Desordem é o império da violência transformada em solução universal para qualquer problema, em satisfação universal de qualquer interesse. A força do direito já não é a justiça. Restou apenas o direito da força. A vida perdeu todos os acentos transcendentes e vai sendo sacrificada aos poderes da morte. Chega-se ao cúmulo de se reconhecer na teoria e na prática que a vida é um direito relativo, em contraste com a personalidade, direito absoluto, como se fosse possível vida humana, tanto em ato como em potência, sem personalidade e vice-versa. Até bem pouco, só podia morrer ou não morrer o inanimado. Hoje, não. A engenharia genética, a nanotecnologia, a automação e a robotização acenam com e para uma imortalidade inanimada. Por outro lado, retornam as questões de princípio por toda parte. Até ontem, não era possível transplante de cérebro, só era possível transplantar os outros órgãos do corpo. Hoje, não. A clonagem é do espírito. Está em jogo toda a gravidade da hominização. Parodiando Vergílio (Eneida, I, 33), deve-se dizer hoje em dia: é de tanta mole criar gente humana que o peso se tornou infinito.

Uma época histórica é uma caminhada que trabalha na construção de um caminho de feitos para fatos, de cenas para encontros ou desencontros, de cenários para realizações. A internet é um fenômeno virtual e poético, ao mesmo tempo. E é como tal que instala e define nossa baixa modernidade. No artifício da virtualidade, técnicas de processamento da imagem e do som, do movimento e da composição, da simultaneidade e da onipresença se transubstanciam em criação poética. Esta união transubstancial transfigura técnica em poesia, criando obras de arte virtuais. Uma tal transubstanciação não se dá sem pensamento. Por isso pensar a unidade de técnica e arte, realizando-se na internet, levanta questões sobre o lugar e a função do poético numa época de regência do virtual.

Vigência e regência não são duas condições separadas na história do homem de hoje. Formam um processo ontológico só, o processo de estruturação em que o real se está realizando. Na vigência do poético rege o virtual, assim como na regência do virtual já vige o poético. Quando se dão, nenhum dos dois se dá sem o outro, embora ambos aconteçam sempre um no outro, um com o outro, um pelo outro. É que, em sua recíproca constituição, está em causa a linguagem, tanto nas línguas da tradição, como nas línguas da técnica. Pois, na força da linguagem, poesia e técnica jogam, no campo da história, o desafio da criação, embora em níveis diferentes. Se a cultura do poético e a cultura do virtual surgem e pertencem a uma mesma tradição histórica, as suas línguas respectivas sofrem dificuldades radicais – i.é, dificuldades radicadas na própria essência de cada uma – para compreender os envios de ser e para lidar com as provocações de realizar-se na história de hoje, em tudo que é e está sendo, em tudo que não é, nem está sendo no mundo atual.

Urge, então, afundar a questão de nossa época. Mas afundar em que sentido? – Quando se diz, o navio afundou, entende-se logo que o navio foi a pique, que desceu, na vertical, para o fundo do mar. Pois bem, quando se fala em afundar a técnica, quer-se dizer que se deve ir direto para o fundo da técnica. Mas é um fundo estranho este fundo da técnica, pois se dá tanto na superfície quanto no profundo, como em qualquer lugar em que a técnica esteja. Pois não se trata de técnica apenas. Trata-se de qualquer coisa, igual e diferente da técnica. Assim afundar a questão de nossa época equivale a afundar as línguas e as técnicas da convivência atual. Se, no virtual e como virtual, a técnica nos domina de alto a baixo, numa regência, sem volta nem reserva, é por já se ter apoderado e haver controlado todas as nossas línguas. Na tendência de seus vetores, já não sobra espaço para nenhuma outra sintaxe, já não resta nenhuma outra semântica, já não nos fica nenhum outro encontro que não esteja logicamente controlado. Está dominado, está tudo dominado.

Nessas condições, “só resta mesmo a saga do caminho”, na formulação lapidar de Parmênides, onde se poderá seguir os vestígios e investigar no nada da ausência o sentido de todo e qualquer domínio. O que, por sua vez, supõe que se aceite a dominação da técnica em toda sua extensão e profundidade, para se poder interrogá-la sobre o que ainda se poderá ser e dizer na técnica da técnica e com a técnica, mas não além ou aquém da técnica. Pois, neste último caso, prevaleceria a ilusão de se poder pular a própria sombra e arrancar-se de um pântano pelos próprios cabelos, separando conhecer de pensar, ciência de saber e técnica de ser.

Na vigência do poético, chega-nos uma linguagem que as línguas da tradição e as línguas do virtual não conseguem nem abafar nem controlar. É que, na regência do virtual, o descontrole ainda resta. Mas trata-se de um descontrole essencial, o descontrole salvador, pois exige de nós, homens da técnica, uma atenção desdobrada para a gravidade sorrateira de um perigo que não somente nos ameaça com a possibilidade de uma destruição física, como também nos poderá advertir para a originalidade de todas as coisas, salvando a essência inventiva de nossa humanidade das repetições monótonas e sem surpresas de uma estéril replicação.

Com o advento do virtual, põe-se em jogo uma atenção para a experiência do Nada no próprio seio de uma abundância sem limites, mas monótona, porque monocórdia. A humanização funcional do poder absoluto do virtual é uma caixa preta de Pandora: uma gigantesca armação, uma propaganda enganosa, em nível transcendental, sobre o modo próprio de ser de nossa existência. Pois, criando uma aparência em contrário, leva-nos para a forma mais perfeita de escravidão, uma escravidão não apenas inconsciente, como sobretudo nesciente, aquela escravidão que nos promete uma libertação total, desde que renunciemos operativamente à condição radical de sermos sempre fim e nunca meio, na formulação paradigmática de Kant. A taumaturgia do virtual mostra, então, a face oculta da técnica, sua essência originária, a com-posição universal que a realidade cumpre em todo novo real.

Na regência do virtual e com ela, a realidade é provocada a fazer o real apenas disponível e a tornar operativa toda energia de realização. Trata-se de um acontecimento pretensamente originário, embora inaparente, porque escondido em sua intenção de absoluto. Longe de ser um simples serviço prestado à humanidade, o virtual é, antes, uma força que põe a humanidade do homem a seu próprio serviço. Pois não somente arrasta todos os homens e convoca cada um de nós para uma ordem que nos assoberba e nos esmaga a singularidade, como substitui pela repetição a originariedade de nossa missão ontológica, que, única e original, nunca poderá ser replicada nem repetida.

Para se compreender o virtual em toda a extensão de seu sentido, há-de se penetrar em sua função histórico-ontológica no mundo de hoje. Mas, para tanto, deve-se descobrir-lhe o modo de ser metafísico que a tradição do Ocidente veio construindo, ao longo das épocas, desde a interpretação de Techne, como Episteme. Pensada em sua dinâmica especificamente grega, toda Techne e toda Episteme são Aletheia, toda técnica é pro-dução. Ora, pro-duzir é con-duzir, no sentido de levar um real à disponibilidade de sua serventia, num conjunto de relações e torná-lo, assim, acessível em sua vigência. O problema desta con-dução está todo na proveniência de seu vigor. O homem não pro-duz, em toda sua verticalidade, a con-dução, nem por invenção isolada, nem por espontaneidade gerativa. O homem apenas pertence ao processo de pro-dução com a força de seu esforço de pre-sença. Na técnica, portanto, a pre-sença do homem é um revelador fotográfico, que deixa aparecer o ser de tudo que toca com seu trabalho. Na técnica, o homem é sempre Midas e nunca criador do ser daquilo que é e está sendo, junto com sua pré-sença.

A essência do virtual não está nem na virtuose nem, muito menos, na eficiência de um fazer técnico. E por quê? – Porque a essência da técnica não é técnica. A essência da técnica não pode ser produzida tecnicamente, só pode mesmo ser pensada, e pensada, afundando-se a própria técnica, cujo vigor ontológico a metafísica da tradição não soube, porque não pôde dizer e nem a técnica do virtual sabe e pode fazê-lo.

Quase todas as análises do virtual se concentram hoje na referência à ciência. A técnica seria a ciência aplicada ao fazer. Ora, o virtual é superação sistemática e operativa da separação entre ciência e técnica, pela suspensão real da diferença entre teoria e prática, entre conhecer e fazer, entre instrumentação e explicação. O instrumental técnico determina o conhecimento científico a ponto de reinar entre ambos uma relação de indeterminação, que, em última instância, reduz o cientificamente real, o real da e para a ciência, ao tecnicamente operativo, ao que a técnica pode operar e fazer. A automação, a retroalimentação, a robotização não constituem apenas resultados técnicos da aplicação da ciência. A regência do virtual nos veio demonstrar o nível, o grau e o ponto em que a técnica revela sua estrutura de fundo, reconduzindo toda linguagem a um sistema de traços e nivelando todo sinal, signo ou símbolo a meros bits e levando a comunicação a deixar de ser vínculos de diferenciação para vir a ser simples códigos de barra, jogo de unidades informacionais. No controle retroativo do circuito virtual, o reino da técnica mergulha inteiramente na com-posição das possibilidades de calcular e reivindica para si todo o homem, em todo homem.

O nexo entre a regência do virtual e a vigência do poético não é uma conexão extrínseca, nem relativa a determinados níveis de vinculação. Trata-se de com-pertinência na própria dinâmica do diferenciar-se das diferenças. Se o virtual dá provas de virtuosidade em nível combinatório e, na globalização da Internet, se estende numa escala planetária, a linguagem do poético, vigente nas poesias de todas as coisas, se configura num perfil originário de surpresas, justamente no funcionamento do virtual e, com base na própria língua da técnica. As línguas virtuais falam de muitas coisas, podem falar mesmo de tudo, só não podem dizer tudo de nada, justamente por e para não poderem errar e falhar. Entretanto, porque não se pode dizer tudo, nem de tudo nem de nada, não significa que não se possa mostrar nada de tudo. Para poder dizer, todo dizer resguarda em si o que não pode ser dito, não, porém, como reserva irracional e sim como amostragem portentosa da própria impossibilidade de dizer. O indizível constitui a condição de possibilidade de todo e qualquer dizer. No indizível e como indizível, a vigência do poético se mostra por toda parte, protegido e cultivado pela linguagem, sempre em silêncio a fim de deixar as línguas falarem.

Escondido no coração do virtual descobre-se, portanto, o mistério da linguagem, que não necessita de pronuncia para viger. O retraimento da linguagem é a linguagem do mistério em doação nos empenhos de ser e nos desempenhos de realizar-se. Por e para perfazer a força de qualquer dizer, a linguagem tem de retirar-se das falas e, ao fazê-lo, abre espaço e deixa lugar para o sentido correr pelos discursos das línguas. Desde o Tractatus Logico-Philosophicus de 1922, Wittgenstein não se cansa de repetir que os limites do dizer apontam para os limites do mundo, mas não da vida, de vez que a linguagem sempre mostra o que o discurso não pode dizer. Este mostrar recolhe em si toda a impossibilidade de dizer das línguas. Por isso é que, num esboço para Mnemosine, Hoelderlin, o poeta da poesia, nos remete para a dinâmica do esquecimento no âmago da própria memória:

Ein Zeichen sind wir deutungslos, Schmerzlos sind wir und haben fast Die Sprache in der Fremde verloren!

Somos um sinal sem sentido, Insensíveis à dor, quase per- demos a língua no estrangeiro.

Dar-se ao retirar-se, arrebatar consigo, quando se afasta, é também a vigência do poético na regência do virtual. Tal como a da técnica, a essência do poético não provém de um ato que o homem possa praticar de moto próprio. Pois é sempre o poético que cria o ato dos poetas e cumpre no poema o modo de ser da poesia. É o poético que já sempre institui a possibilidade de o poeta praticar ato poético e exercer num poema a dinâmica de ser e consumar-se da poesia. Na Pre-sença de ser homem de todo homem, apresenta-se e se ausenta o jogo recíproco de atração e retração entre terra e mundo, entre vida e morte no curso temporal das peripécias históricas de ser no tempo. Pois ser e tempo são reciprocamente tempo e ser no desempenho doador de qualquer real. Este sentido, a vigência não dita da linguagem e a regência não técnica do virtual encontram na identidade entre o legado e o negado pela tradição. Na famosa formulação de Heidegger, “tradição não é mera transmissão. Tradição é Bewahrung und Verwahrung, é preservação e mobilização das forças criadoras do princípio em sempre novas possibilidades de cumprimento ontológico a partir do desgaste dos discursos já decorridos e dos percursos já percorridos.

Se a tradição metafísica evoluiu na pós-modernidade para o domínio total da técnica, a dominação em causa não se esgota com dominar. Nenhuma dominação domina seu próprio elã de dominar. Se no virtual a técnica atinge sua plenitude metafísica na tendência para a vontade de poder numa vontade de vontade (i.é, numa vontade inesgotável de querer sempre mais poder), o pensamento é, então, encaminhado pelo advento gracioso do poético, i.é, de um destino ambíguo, técnico e não técnico, que hoje se dá, como virtual, na medida que e enquanto se retira, como poético.

O grau superlativo de poder, porém, não instala apenas progresso e dominação, cria também regresso e servidão. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel chamou esta ambivalência de dialética do Senhor e do Escravo. Todo auge inclui perda de cadência e se faz de-cadência. Se tudo é poder, a dominação está em crise. Onipotência implica sempre impotência, tanto em sentido reativo, como em sentido criativo. Existe uma dinâmica de provocação na impotência. Com o virtual, opera também uma virada que está fora da alternativa de negativo e positivo. O não útil pode significar simples falta, uma carência do devido e esperado e, então, é o inútil, que vive na e da dependência daquilo de que carece. Mas há também um não útil que se constitui, que age e opera fora e dentro da diferença de útil e inútil. É, então, a graça que não decorre nem de força nem de poder, que não provém nem de mérito nem de conquista, mas da gratuidade de pura doação. É neste sentido gracioso de pura doação, que, na regência do virtual, o poético acontece, como a gratuidade do que não é nem útil, nem inútil.

Na China Imemorial, Dsi-Gung atravessava a região do Rio Han, quando encontrou um ancião todo ocupado em irrigar sua leira. Entre o poço e os leirões tinha rasgado veios no chão para fazer chegar água às plantas. Com grande esforço, descia e subia o poço com um balde nas mãos. E apesar de todo o trabalho, só muito pouca água escorria pelos regos.

Dsi-Gung teve pena do velho. Aproximou-se e disse: há um meio fácil de fazer correr muita água com pouca fadiga por muitos regos em pouco tempo. Assim pouco esforço rende grandes resultados. O ancião parou e perguntou: e qual seria este meio?

Dsi-Gung respondeu: a técnica, ora! Instalam-se no poço bombas de sucção e se tem água a rodo!

O velho olhou para Dsi-Gung e respondeu: sempre escutei a vida dizer que, para usar da técnica, é preciso um coração técnico. E quem tem no peito um coração técnico, perde a inocência da vida. E, sem inocência, não há nem vida nem morte, somente a secura do útil e inútil. E quem vive nos tremores do útil e do inútil, não se encontra com o mistério da realidade. Não é que despreze a utilidade e inutilidade da técnica. É que ainda não me foi dado relacionar-me, na técnica, com a graça de criação da terra!

É esta graça do inesperado que hoje na regência do virtual se espera que nos aconteça com a e na vigência do poético.

Rio de Janeiro, 2008

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