Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A vida fraterna

16/04/2021

 

(Grande Sinal, XXIX, 1975, 676-685)

Introdução

  1. Usualmente, nas conferências de retiro, se entende por Vida fraterna o convívio dos religiosos numa comunidade.
  2. Falar da vida fraterna no entanto não significa tanto falar do fato de o convívio existir entre os religiosos numa co­munidade. Antes falamos acerca daquilo que um tal con­vívio deveria ser.
  3. O que deveria ser, nós o representamos como fim, me­ta, objetivo, idéia, norma. E dizemos: o fato do convívio de­ve-se nortear conforme o ideal do convívio. O é do convívio tende ao que deve ser do convívio. O que congrega e moti­va o convívio na comunidade é o ideal do convívio, aquilo que o convívio deveria ser. Por isso dizemos: é necessário ter bem claro sobre aquilo que o convívio deveria ser, ter idéia clara e distinta do ideal para podermos viver o conví­vio. O ideal nos dá normas de como viver o convívio. Por isso, quando falamos da Vida fraterna, queremos encontrar a compreensão ideal do que ela seja.
  4. Mas justamente aqui surge a dificuldade. O ideal, o que deveria ser é usualmente determinado por nosso desejo. Assim, muitas vezes o ideal da vida fraterna é aquele con­vívio que gostaríamos que fosse. E, quando a realidade do convívio não corresponde ao que gostaríamos que fosse, dizemos que o convívio não é fraternal.
  5. Em oposição a esse modo de ser que sempre escapa da necessidade para o mundo do desejo, dizemos: é necessá­rio assumir a realidade como ela é, e não como aquilo que gostaríamos que ela fosse. Mas aqui surge uma dificuldade. O que se deve entender por realidade? O fato bruto em sua simples factualidade? Quer pois dizer que nada podemos mudar? Um tal assumir não é deixar-se asfixiar na factua­lidade de uma resignação sem élan, sem a perspectiva do fu­turo, sem esperança? Não é isso uma opção absurda, algo semelhante ao heroísmo fanático do desespero?
  6. Na realidade a vida humana jamais tem o modo de ser da factualidade de uma coisa. Ela jamais pode estar ali sim­plesmente como pedra. A realidade humana não pode ser compreendida como a categoria de factualidade. A reali­dade humana não é factualidade, mas sim facticidade. Fac­ticidade significa que a existência humana sempre já é si­tuada dentro e a partir de uma compreensão do ser. Essa compreensão não é uma compreensão teorética, mas sim o nosso próprio ser. Nós somos sempre uma determinada com­preensão do ser. O modo como somos sempre uma determi­nada compreensão do ser não é o mesmo modo de ser das coisas. Nós somos responsáveis pelo que somos. O que quer dizer, somos responsáveis pelo que somos? Significa: devemos assumir o que somos. O nosso modo de ser, isto é, o que di­ferencia o existir humano do existir das coisas é esse assumir.

Isto quer dizer que nós somos sempre mais do que a nos­sa factualidade. Por exemplo, de manhã, no inverno, eu fi­co deitado na cama com a preguiça de me levantar. Eu, porém, não posso ficar simplesmente deitado na cama co­mo o faria uma pedra, pois sou colocado diante de uma decisão: de levantar-me, de continuar deitado, de não me decidir, de simplesmente deixar-me levar pela preguiça etc.

Seja o que for o que somos, mesmo que nada sejamos, seja o que for o que fazemos, mesmo que nada façamos, não somos simplesmente, mas assumimos o nosso fazer, o nosso ser.

Aqui assumir não precisa significar um assumir decidido conscientemente. Ficar simplesmente na cama é também assumir. Pois o fazemos sempre a partir de um modo de ser que constitui o dar-se de um sentido daquilo que fazemos ou somos. Por isso, mesmo que fiquemos simplesmente na cama, temos que assumir, isto é, tornar-nos aquilo que fazemos ou somos. Esse tornar-se se dá sempre a partir da­quilo que é mais do que a nossa simples factualidade.

Essa estrutura de responsabilidade pelo nosso ser apare­ce na nossa vida como a busca do sentido de uma coisa, co­mo a pergunta: por que, para que, o que é?

1 [O que é vida fraterna]

  1. O que chamamos vida humana tem esse modo de ser da responsabilidade pelo ser que acima denominamos de facticidade. É nesse sentido da facticidade que a nossa vi­da em fraternidade é responsável pela vida fraterna. É por isso que perguntamos: qual é a vida fraterna que é um convívio ideal entre os irmãos?
  2. Isto tudo nos traz uma conseqüência embaraçosa: nós somos aquilo que damos a nós mesmos, mas o que damos a nós mesmos é o que somos. Por exemplo: nós somos au­tênticos ou não autênticos mais ou menos autênticos naquela compreensão da autenticidade que nos damos a nós mesmos, mas a compreensão da autenticidade que damos a nós mes­mos mostra o que somos. Essa estrutura embaraçosa da nos­sa existência se exprime nas palavras da Bíblia: “não julgueis para não serdes julgados”; “onde está o vosso tesouro, lá estará também o vosso coração”.
  3. Isto significa: a pergunta o que é a vida fraterna? não tem resposta, a não ser na forma de uma contrapergunta provocativa que me questiona: quanto é que você dá a ela? O que você faz dela? Dê você a medida daquilo que seja a Vida fraterna, pois o que ela é depende da medida do seu coração.
  4. O que eu penso que deve ser a Vida fraterna, o objeto do meu desejo, o que represento por Vida fraterna, trai a medida do meu coração.

Experimente examinar alguns exemplos cotidianos para ver essa estrutura:

– o que é o irmão? Até onde vai o âmbito do ser-irmão?

– o que é convívio? Quando não é mais convívio?

– o que é comunidade?

– o que é presença, ausência do irmão?

– o que é participar?

– o que é dialogar? etc.

  1. Se sondarmos assim o fundo do nosso coração, a par­tir de onde valorizamos e damos sentido à vida, percebemos a limitação de nossas medidas. Dessa limitação surge a distinção: bom e mau; valor e desvalor; autêntico e inau­têntico. O que entra no âmbito da nossa medida é posi­tivo. O que está além dele é negativo. E percebemos que a vida, a realidade não se encaixa dentro da nossa medi­da. Ela a transborda, é inesgotavelmente maior do que ela.
  2. Dessa observação surge então uma suspeita: será que a medida do nosso coração não se alarga, na medida em que auscultamos, acolhemos o novo sentido proveniente da vida, da realidade que está além, inesgotavelmente além da medida que nos damos a nós mesmos? Será que com a ampliação do nosso coração não começamos a ver a rea­lidade diferente? Não será ali nessa ausculta e nessa aco­lhida que está a nossa responsabilidade mais radical e o nosso assumir essencial?
  3. Tudo quanto transcende o âmbito da nossa medida é o outro. O outro se me apresenta como a diferença ne­gativa daquilo que corresponde à medida que dou a mim mesmo. Ele se me apresenta como o que não sei, o que não domino, o que não posso, o que não gosto, como o que não quero etc. A grande realidade, a vida que está além dos nossos limites, se me apresenta como a provocação da diferença do outro.

Auscultar o novo sentido da vida, acolhê-lo significa por­tanto assumir com responsabilidade a provocação da di­ferença do outro.

Assumir aqui não é simplesmente afirmar, ou entrar em ação. É muito mais. Assumir significa, antes, sustentar o trabalho e o crescimento lento de uma busca num país novo, onde as medidas a mim até agora conhecidas não têm serventia. Trata-se pois da busca de uma nova me­dida, maior e mais profunda. Mas a busca de uma nova medida significa também a busca de uma outra compreen­são da medida…

  1. Tal busca é experiência. Experiência é o cami­nhar que a cada passo põe em perigo o que já andamos para se abrir ao outro desconhecido e, a partir da nova paisagem, redescobrir no já feito um novo sentido antes não percebido.
  2. A vida fraterna é esse modo de ser chamado expe­riência. E é experiência que é a busca do sentido originá­rio do que seja o irmão. Mas a busca do sentido originá­rio do que seja irmão, na realidade, é a busca do sentido radical do Mandamento da Boa-Nova: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. E isto por sua vez significa: buscar compreender como só o Deus de Jesus Cristo pode e sabe amar…
  3. Todo e qualquer acontecimento do nosso cotidiano, todo e qualquer encontro e encontrão com a diferença do outro, é experiência dessa busca. As dificuldades e as ale­grias da vida comunitária estão ali como provocações de e para essa experiência.
  4. O encontro com a diferença do outro é, porém, uma provocação para o nosso próprio eu. Ao se chocar com a diferença do outro, todo o nosso eu repercute naquilo que constitui a sua identidade. Assim o encontro com o outro é no fundo o encontro comigo mesmo. O outro mais pró­ximo somos nós mesmos. A experiência da Vida fraterna como a busca do sentido originário do que seja o irmão é ao mesmo tempo a experiência acerca de nós mesmos, a busca do sentido originário da nossa identidade. A expe­riência da Vida fraterna portanto apresenta eu e o outro como dois momentos de uma mesma busca.
  5. Hoje que falamos tanto do amor ao próximo, da acolhida do irmão, não estamos esquecendo que somente podemos acolher o outro na medida em que acolhemos a nós mesmos? Amar o próximo como a si mesmo!…
  6. Não sei se você percebeu. O percurso da nossa re­flexão faz mudar aos poucos a colocação da nossa questão! Não mais perguntamos como deve ser o convívio ideal da Vida fraterna. Em vez disso, na situação em que vive­mos, com tudo de bom e de ruim que ali acontece, es­tamos atentos ao novo sentido da vida que continuamente aparece como o aceno do Mistério insondável da Boa-Nova: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O convívio fraterno é o lugar de aprendizagem, da ausculta e da aco­lhida, no modo de ser da experiência, do desvelar-se do modo de ser de Jesus Cristo que é na mesma nascividade do Pai: jovialidade da gratuidade.

Vida fraterna é essa experiência. Vida fraterna é por­tanto o próprio caminhar da busca da nossa identidade radical, a busca do sentido radical do nosso viver, da nossa realização humana.

  1. Se é assim, surge uma questão: hoje, na renovação do espírito franciscano, falamos muito da importância da vida fraterna. E ao acentuar a sua importância, nos refe­rimos a São Francisco. No entanto, é necessário examinar com rigor, se o acento que hoje damos à Vida fraterna tem a mesma importância da importância do acento dado por São Francisco. Não estamos hoje hipostatizando a Vida fraterna como uma espécie de sociedade de convívio ideal dos nossos desejos, ao passo que talvez para São Francisco a Vida fraterna era o lugar de batalha, o cami­nho, no qual e pelo qual se desvela o Mistério da gratui­dade de Deus?

2 O diálogo

  1. Diálogo é caminho. Ele nos envia para onde não sabe­mos nem queremos. Caminhar com outro só pode quem caminha só para e por si mesmo. A via do diálogo não progride; se recolhe antes no regresso do envio da via. No recolhimento do meu caminho, o diálogo se abre à paisagem do envio, em cujo Mistério viajam outros caminhos.

O envio do Mistério é a comunidade das vias. Comuni­dade que liberta o meu caminho para as diferenças das vias, as acolhe na comunhão da gratuidade.

A comunidade do diálogo é a festa da Liberdade. A festa da Liberdade celebra o meu caminho na jovialidade de ser na gratuidade. A jovialidade de ser re-corda o pu­dor e a cordialidade da diferença. No pudor e na cordia­lidade dessa comunhão habita a amizade: a fraternidade.

O diálogo é caminho. Não, porém, um caminho traçado de antemão. Por isso não é colocação dos pontos de vista, não é oposição nem pôr-se de acordo sobre duas posições. Ao iniciarmos o diálogo, eu devo me dispor a ir parar num lugar, numa visão das coisas desconhecida, para lá onde nem sequer suspeitava que pudesse chegar.

Você quer dialogar com o outro para chegar ao acordo sobre uma comunidade ideal, o desejo do seu coração. O outro não se abre, ele afirma a sua posição, não cede. Ele é totalmente diferente de mim. Diante de tal oposição você desanima. Culpa o fechamento do outro. Com isso você ficou com a sua razão, ficou parado. Não caminhou dentro de você. Se quiser caminhar com o ou­tro, você deve acolher esse fechamento como uma provo­cação, e como um desafio que leve você a revisar a sua concepção de diálogo, de comunidade. Se fizer isso, você começa a andar consigo mesmo, em direção a um eu mais profundo e vasto, você regressa para seu eu mais originá­rio e vigoroso. Esse regresso, em vez de confirmar, de fazer progredir a sua posição, aquilo que você estava pen­sando e desejando, faz você se voltar para a sua posição jamais refletida criticamente e começar a interrogar: será que o meu modo de imaginar o diálogo e a comunidade não está fixo e estreito demais? Você perde a segurança orgulhosa de até agora, se recolhe na humildade, sofre, tateia, fica parado na sombra de si mesmo. Mas, aos pou­cos, a sua visão se alarga. Surge uma nova paisagem, um novo modo de ver e sentir a realidade. Você começa a per­ceber que a vida não se encaixa no estreito enfoque do seu desejo e do seu plano. Começa a perceber que o ou­tro, cada um de nós, é uma caminhada diferente, cada qual para si, que é uma história humana, uma aventura com o Mistério do apelo divino. Assim, você começa a admitir, respeitar o outro na sua diferença, no Mistério da sua diferença. Com isso começa também a respeitar a si mesmo, também como o envio do Mistério. Você começa a sentir que a Bondade de Deus, a Gratuidade de Deus se manifesta de várias maneiras. Acolher uma tal visão da realidade é ser comunitário. Assim você liberta a si e aos outros na comunidade do Mistério que une e acolhe os diferentes modos de ser na bondade do seu Mistério. Isso é a Festa da Liberdade: a fraternidade.

Por isso o diálogo não é para eliminar, sintonizar as di­ferenças, o diálogo jamais me leva à igualdade, à unifor­midade, mas sim à acolhida total da diferença do outro como dom de Deus. Dialogar só pode, portanto, quem consegue manter a diferença, em si e no outro!

Diferença nesse caso deixa de ser oposição, para trans­formar-se num traçado característico do meu irmão que, graças a Deus, é diferente de mim.

Talvez na nossa concepção usual do diálogo e da comu­nidade haja muita ilusão e falsa concepção do que seja a unidade humana. Unidade humana não é unidade das coisas, mas o vigor do Uno que se manifesta em diversidades.

3 A tentação

  1. Um ponto dificílimo de ser superado na realização da vida fraterna é o desânimo, a falta de fé na realidade da presença do Mistério na fraternidade. Nós tivemos decep­ções demais para ainda acreditar euforicamente que a comunidade melhore como nós o queremos… No entanto tais desejos se iludem acerca da realidade fundamental da Boa-Nova. O Evangelho não fala tanto do que vai surgir, mas sim do modo de ser. O modo de ser do Evangelho não é o de resultado, da re-ação. Re-ação é quando a gen­te só tem vigor e age, quando tem resultado. O semeador do Evangelho não semeia porque vai brotar, mas semeia porque é generoso. A Vida fraterna que sempre ali está como o lu­gar de busca do sentido originário da gratuidade jamais será compreendida se se lutar e trabalhar em função do resultado. Se a gente começar assim, de antemão não vai dar resultado, pois você já pôs, logo de iní­cio, um limite para a Vida fraterna. E sabe você de ante­mão o que é ela? Você está dizendo: eu serei bom se ele for bom como eu concebo o ser bom. Você se faz assim escravo e dependente de si e do outro. Ora, a realidade humana, a fortiori a realidade divina, jamais ocorre como nós planejamos e delimitamos, como gostaríamos que se tornasse. O crescimento da Vida fraterna é Mistério da Li­berdade, ele escapa ao nosso controle. Se fosse controlá­vel não seria Mistério! Por isso, se você, ao semear, espera de antemão certos resultados, você se frustra dentro de pouco tempo. É necessário, pois, de antemão tomar uma decidida atitude de tentar e tentar sempre de novo, com calma e serenidade, com o longo fôlego de quem tem como Pai um Deus de Eternidade, como se estivesse ten­tando sempre de novo pela primeira vez. Essa coragem e essa capacidade de ser sempre novo é a jovialidade. O modo de ser de Jovis, de Deus. Por isso São Francisco antes de morrer disse aos seus discípulos alegremente: Ir­mãos, até agora nada fizemos. Comecemos tudo de novo.

A Vida fraterna é luta. Nessa luta talvez comecemos a perceber o seguinte: que o sentido da luta pela realiza­ção da Vida fraterna não é o de conseguir um “habitat”, seja material, seja espiritual, agradável e até certo ponto paradisíaco, ideal, mas sim de eu me purificar cada vez mais na dis-posição e na compreensão do que é gratui­dade, isto é, amor. É como a pérola. Você coloca uma pe­drinha dentro da concha. A concha se incomoda com o obstáculo e quer eliminá-lo, cuspindo-o para fora. A pedri­nha não sai. A concha tenta cuspi-lo sempre de novo. E nessa tentativa, nessa luta, aos poucos vai surgindo a pé­rola. A concha pensara que a solução era eliminar a pe­dra. Não conseguiu. Mas tentou. E dessa tentativa surgiu a pérola como dom da conquista, como a solução, doa­ção do novo sentido da pedra. Assim a concha recon­ciliou-se com a pedra e descobriu o verdadeiro sentido da dificuldade. O crescimento da pérola é a verdadeira libertação.

  1. Mas se é assim a Vida fraterna é possível em qual­quer situação e estrutura? Sim. Mas então para que nos esforçamos para melhorar a situação? Então não devemos mais criticar, dar sugestões de melhora, julgar se uma cer­ta estrutura é boa, má, melhor, pior, ótima ou péssima? Essa pergunta não fisgou bem de que se trata, quando dizemos: a Vida fraterna é possível em qualquer situação. A afirmação não diz: que devemos ser passivos, resigna­dos, indiferentes a tudo que acontece. Mas também não diz que não devemos sê-lo… Quer suportemos tudo com resignação, quer tentemos melhorar a situação, na medi­da de nossos esforços e compreensão, a nossa reflexão nos diz sempre: ficai de ouvido atento para o Mistério da gratuidade de Deus. Do contrário fazemos da passivida­de e da atividade (sabemos nós o que é isso?) dogma e ideo­logia e estancamos a fonte de novas possibilidades.

Por isso a reflexão não diz que devemos rejeitar a comu­nidade que funciona bem para preferir a comunidade di­fícil. Se não o pudermos de outra maneira, é bom tentar­mos formar uma comunidade harmoniosa. Mas se disser que o amor fraternal só pode ser vivido na comunidade assim constituída harmoniosamente (o que é ser harmo­nioso?), se a dogmatizamos como o ideal, se a partir da­li medirmos as outras comunidades como sendo menos boas, então estamos fazendo uma discriminação “racial” diante de Deus e estamos dizendo que o Mistério de Deus está dependendo das condições psicológicas e so­ciais das nossas comunidades. Essa atitude parece não es­tar bem de acordo com o modo de Deus amar, ele que manda sol e chuva aos justos e pecadores.

Nas comunidades surgem certas situações em que, por exemplo, o funcionamento de uma casa no seu aspecto profissional, haja visto hospitais, creches, colégios, semi­nários, casas de formação etc., exige a seleção dos mem­bros e até em casos extremos a exclusão de um dos ir­mãos da comunidade. Muitas vezes uma tal exclusão é também manifestação do amor fraternal. Mas, ao fazer­mos isso, e muitas vezes não poderemos senão fazê-lo, se formos responsáveis, devemos sempre dizer como o pu­blicano: tende piedade de mim pecador. É nessa atitude de humildade diante do Mistério de Deus que está o nos­so amor fraternal.

A nossa reflexão portanto não está dizendo que não devemos agir com decisão, intervir etc. Mas diz que, se uma situação não puder ser mudada, e se compreender­mos o que é a jovialidade de Deus, então também pode­mos dizer: nessa situação “impossível” pode também se realizar o Mistério do amor de Deus. E à mercê desse vigor, tentar com sobriedade realizar o pouco que podemos com todo entusiasmo, sem amargor, sem ilusão, porque o ideal da vida fraterna nesse sentido não é uniformidade, mas o vigor que agüenta e suporta as diferenças, como Deus acolhe todas as diferenças, por isso a comunidade cristã é cristã na medida em que suporta as diferenças. A comunidade que pela técnica, pela organização, pela bus­ca de homogeneidade e afinidade procura eliminar as diferenças como algo negativo não tem, até mesmo psicologicamente, muita duração. Pois ela enfraquece as pes­soas quais plantas cultivadas numa estufa, que morrem ao contato da dura e rica realidade humana. E torna os membros da comunidade superficiais e pobres em ex­periências humanas. A reflexão não dá propriamente ne­nhuma norma do que deve ser feito num determinado caso. Ela tenta dizer a atitude e a concepção que deve estar atrás de tudo o que fazemos, independente de fazer isso ou aquilo, de não fazer isso ou aquilo.

  1. Mas somos fracos, “humanos”, cheios de defeitos. Não é temeridade, utopia deslavada, ambicionarmos ser como é o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo? A provoca­ção da Boa-Nova: “Sede perfeitos como o Pai dos céus”! Mas um tal “ideal”, em vez de nos dar força, não nos de­sanima constantemente, mostrando a cada passo o nosso fracasso? Sim. Mas nessas contínuas frustrações de não con­seguirmos nos apossar do dom da jovialidade vamos nos abrindo para uma compreensão mais profunda do que é o vazio da acolhida, a pobreza que, livre de todo e qualquer orgulho e sentimento de posse e dominação, alegremen­te se dá à graça, isto é, à gratuidade de Deus: Meu Deus e meu Tudo. A nossa frustração e o nosso desânimo vêm dali, do fato de nós estarmos apegados ao nosso pequeno eu e querermos que ele seja o dono e o senhor das virtu­des (para se elevar), sem perceber que é muito mais van­tajoso e inteligente transplantar em mim um outro e um maior eu que é o coração do Deus de Jesus Cristo. Se as­sim acontecer, continuaremos talvez tendo os mesmos de­feitos, sentindo as mesmas dificuldades, jamais sentindo-nos como super-homens e santos, mas em tudo isso des­cobriremos a presença do outro Eu maior, o qual começa a se tornar o centro do meu inter-esse. Com isso, mesmo os nossos fracassos começam a ficar pouco importantes e assim, aos poucos, nos libertaremos para a Jovialidade.
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