Denise Quintão
A afirmação de que depois de Aristóteles toda história é metafísica impõe uma reconsideração. O que se dá a ser reconsiderado, antes de tudo, é justamente o sentido de metafísica, pois não se pode entender esta atitude histórica, apenas a partir da perspectiva interna, que sustenta todas as possibilidades de realização, oferecidas pela sua própria dinâmica de constituição: isto é, não se pode entender metafísica apenas meta-fisicamente. Toda dificuldade reside no fato de que a ambivalente compreensão metafísica (meta-física) reduziu, ao longo de seu percurso, a ambigüidade infinitamente plural do real numa tirania monovalente, onde tudo só pode ser na medida em que corresponde à lógica de um princípio fundado numa razão subjetiva, privilegiando, desta forma, apenas, a eficiência e a operatividade das realizações. Na procura avassaladora de ser cada vez mais lógica, a metafísica deixou para trás a grandeza inicial, na qual se desvelou, consolidando a sua atualização enquanto esquecimento da origem.
Nesse sentido, o espírito religioso recolheu-se e tornou-se obscuro ao olhar do homem contemporâneo. Pelo esquecimento da unidade originária1, a metafísica distingue e discrimina, entre si, o pensamento cristão, judeu e mulçumano. Posta dessa forma, a questão torna-se puramente lógica e, assim, tem sido enfrentada na atualidade contemporânea. A unidade religiosa da Idade Média, vista pelo modo de ser da tecno-ciência, fragmenta-se em abstrações, isoladas do todo. Essa atitude decorre de um longo percurso histórico de despotencialização do espírito2 e engendra, nos homens de hoje em dia, uma onda de ceticismo, ateísmo e fundamentalismo. Só há fé no e pelo todo. Nenhum homem pode sentir fé pelas partes. Isto é crença, é desejo, muitas vezes ambição, outras ingenuidade, mas nunca fé. Raimundo Lulo viajou três meses, a pé, da Espanha para Paris a fim de assistir as aulas de Duns Escoto. Lá chegando entrou maltrapilho na sala. No fim da aula, Raimundo Lulo permaneceu sentado, cansado da viagem. Duns Escoto perguntou-lhe de maneira provocadora: E Deus, que parte da gramática é? Raimundo respondeu: Deus não é parte, Deus é todo3.
Se aceitamos a unidade primordial em que as diferentes realizações medievais emergem, pode a identidade do mundo medieval ser compreendida como cristã, de maneira que o modo de ser judaico e mulçumano possam ser considerados expressões da ontologia humana, originariamente cristã? Seria esta interpretação um facismo? Bom, se entendemos o sentido da palavra “cristão” positivamente, isto é, como um conceito regulador e definidor do real, então, para esta estrita percepção metafísica, a noção de unidade passa a ser contraditória e impossível, a Idade Média torna-se uma colcha de remendos escolásticos, e a escolha de um desses remendos, para designar esta época histórica, se mostra como um comportamento arbitrário e interessado, próprio do esquecimento histórico de um tipo de desenvolvimento da lógica metafísica4. Isto não significa que o modo de ser cristão se dê na exclusão de qualquer arbitrariedade e interesse; ao contrário, ser cristão se constitui no embate contínuo com não ser cristão, de modo que ser cristão supera o ser cristão e o não ser cristão, enquanto posições tomadas. Ser cristão, na perspectiva histórica da superação constitutiva do ser, pensada no primado da vontade, almeja a identidade, a infinitude. O enfrentamento contínuo das dificuldades, dos limites, das certezas e das dúvidas faz aparecer, no cristão, o vigor da dignidade humana, que se expande, trazendo à lembrança a unidade em que o ser foi concebido. Na unidade, teoria e prática não são mais duas distinções.
Todo problema é que a orientação abstrata da lógica, que, predominantemente, sustenta, hoje, o nível da formalização do pensamento veicula através de uma aparência liberal, na qual o senso comum, a funcionalidade, a atualidade contemporânea das realizações se destacam como marcas de uma intelectualidade flexível e condescendente. A lógica da metafísica, na contemporaneidade, entende as diversas realizações da religiosidade, na Idade Média, como expressões culturais e étnicas de uma época histórica, admitindo, em certas circunstâncias, a influência co-recíproca entre elas. A liberalidade desta mentalidade tende a relacionar analogicamente as diferenças, excluindo das relações, que propõe, a radicalidade de toda e qualquer identidade, ou seja, Criador não é criatura, teologia não é filosofia, razão não é fé, nem ente é essência, nem espírito é corpo, ou finito é infinito, substituindo identidade por igualdade. Mas idêntico não é o mesmo que igual. Ser idêntico ao outro é ser, na diferença de si mesmo, o mesmo que o outro é, de maneira que ser idêntico não exclui a diferença do outro. A identidade originária do real é intuída em quase todas as épocas e civilizações, não só ocidentais, como orientais. A dinâmica relacional da Trindade, a pericorese, fonte criadora para e da fé cristã, realiza-se num movimento de identificação em que tudo é tudo, cada vez, na singularidade de cada um. O Pai é o Filho e o Espírito Santo, sem deixar de ser Pai ao ser outro. O mesmo ocorre com todas as pessoas trinitárias, o Filho e o Espírito Santo. A dinâmica pericorética da Trindade reflete a si mesma na constituição primordial de tudo que está sendo, isto é, mostra e oculta, nos perfis singulares5, o envio da identidade originária. Sem a comunhão que irmana, originariamente, todos os seres, não pode haver a irrepetibilidade de cada real e de cada realização. Uma margarida perdida à beira da estrada que atravessa a floresta é única, guarda e segreda, na sua extraordinária singularidade, a identidade e a diferença de todos os seres. Nela, encontramos a face dos seres amados e o perdão dos inimigos. Pequena e frágil, é o sinal de uma vastidão incompreensível. No acolhimento da identidade originária, as relações entre os diferentes não se constroem por uma relativa proximidade, que, por meio de comparações, seleciona, apenas, as diferenças adequadas a uma igualdade ideológica entre as partes. A igualdade, de que fala a lógica da ideo-logia6, não desce fundo até a raiz inalcançável do real, mas se compõe pela articulação abstrata de partes, artificialmente, extraídas do ser. A proximidade na e da identidade é plena, é cheia de infinitas e diversas possibilidades de ser, que se desvelam e se ocultam7 na unidade totalizante do real. Hoje, a técnica, na sua compulsão simplificadora aboliu uma das pontas dessa dicotomia metafísica, de tal maneira que só há criatura (sem Criador), razão (sem fé), filosofia (sem teologia), ente (sem essência), corpo (sem alma) e finitude (sem infinitude). A infinitude admitida pela ciência, não remete para o mistério da unidade, mas se define contrapondo-se ao finito, por uma equação, e, desta forma, chega, ao coração dos homens, desprovida de qualquer apelo do mistério, na medida em que a pretensa exatidão de uma fórmula procura sempre desfazer a tensão ambígua e ontologicamente constitutiva do real. A apologia do corpo, que prega a mentalidade contemporânea, seja a da ciência, seja a da filosofia, sutilmente despreza o espírito, reduzindo tudo a uma vida sem o mistério da tensão unificadora entre transcendência e imanência. Assim, na ordem da lógica metafísica, filosofia cristã não é sinônimo de filosofia medieval, uma vez que admitir isto seria desconhecer a filosofia judaica ou árabe.
A maioria dos manuais de filosofia medieval contemporâneos, escritos fora da preocupação ontologicamente comunitária de encontrar a identidade nas diferenças, assume a postura lógico-científica de uma individualidade, que exclui a alteridade, na constituição íntima e profunda de cada real8, e vê as diversas doutrinas, que nesta época se constituíram, marcadas pela autonomia de um perfil individual. Hoje, fala-se muito em alteridade9. No entanto, a alteridade contemporânea é ideológica e toma o outro como um estranho, uma outra individualidade de um outro indivíduo que constitui a individualidade de um, também, outro indivíduo. Este modo de pensar, apesar das vestes modernas, vive, ainda, às expensas da rígida estrutura do pensamento neo-escolástico, que já não apresenta a riqueza e a liberdade das reflexões escolásticas. Isto é, pelo entendimento lógico, pode-se entender Averróes nele mesmo e por ele mesmo, sem encontrar, no pensamento do filósofo árabe, a presença comum10, e ontologicamente constitutiva, de qualquer outra possível compreensão do real. Entendido dessa forma particularizada, o conhecimento passa a ser interessado e dirigido a um só aspecto da diferença. Diferença, para a lógica da metafísica, é entendida como parte e não como dinâmica do todo, que integra, em unidade, identidade e diferença. Vista dessa maneira, a diferença de Averróes é uma parte individualizada e interessada da Idade Média, cuja compreensão não exige, necessariamente, o estudo de outros pensadores da Idade Média cristã, da Antigüidade, ou mesmo da contemporaneidade. Levada a finco, esta atitude pode alcançar uma idiotia destrutiva do vigor e da vitalidade das realizações. Então, para fazer frente à intensificação gradativa da estreiteza desse modo de conhecer, a modernidade contemporânea imaginou aberta, para diversos conteúdos individuais e independentes entre si, a estrutura de qualquer expressão do pensamento radical, seja a arte, seja a música, seja a filosofia ou a poesia. Foi a experiência que a lógica metafísica fez da abertura da obra, como resistência11 ao processo cognitivo de fragmentação abstrata do real em conteúdos específicos, entendendo, no entanto, a força originária desta abertura, apenas, no nível ôntico, e raramente ontológico, das realizações. Exemplo desta busca de libertação é a teoria da obra aberta de Umberto Eco e as diversas concepções do estruturalismo, que viam a obra de arte como uma estrutura aberta, capaz de aceitar uma diversidade de jogos simbólicos, desde que logicamente compostos. Passou a ser quase um crime intelectual não aceitar certos entendimentos de uma obra, em respeito à celebrada abertura. Esta atitude reduziu gravemente o empenho de penetração no mistério de toda obra e trouxe uma promiscuidade de pensamento inibidora do movimento de superação. Qualquer abordagem passou a ser igualmente aceitável. Esta é uma visão ideológica e superficial da liberdade das interpretações e da profundidade constitutiva das realizações. Mas a abertura da obra não significa permissividade hermenêutica. A abertura da obra se dá antes de qualquer conteúdo ou mesmo de qualquer ontologia e, por isso, oferece, cada vez, um horizonte de compreensão do todo. No retraimento e nas atualizações do pensamento de Averróes estão, originariamente dispostos, os envios do pensamento radical, expressos nas elaborações de São Tomás, Avicenas, Platão, Aristóteles e Descartes, Kant, Husserl, Heidegger e de todo pensamento que está por vir, já dado, desde sempre, na dinâmica de realização do real.
O movimento que integra, logicamente, as diferenças do real, conservando as partes em seu enfoque ab-strato, exige a autonomia de uma realização diante de outra autonomia, propiciando relações que se articulam por parataxe ou por sintaxe. Na perspectiva desta ordem lógico-sintática, passa a ser possível, reconhecer a influência de uma realização sobre outra (aliás, este é o fundamento da interdisciplinariedade). A síntese é sempre, por mais profunda que seja a expectativa que a embala, uma ordem que articula realizações individuais. A doutrina de São Tomás abre-se e acolhe a doutrina de Averróes, seletiva e adequadamente, de tal maneira que Averróes e São Tomás se mostram e permanecem como diferentes, enquanto a identidade se recolhe na e da analogia para a identidade imemorial. A análise dos textos neo-escolásticos sobre a Idade Média não admite encontrar a vigência da identidade entre a doutrina de Averróes e a de São Tomás. Só encontram, nas obras de São Tomas, São Tomás, mesmo quando admitem a influência de Averróes em São Tomás. Enquanto a autonomia da lógica fecha a individualidade de cada realização, o sentido primordial e próprio de individualidade é aberto, é comunitário, pois não há propriedade fora da comunhão de ser todos em cada um. A propriedade é, portanto, um desprendimento, e impróprio é o impulso de retenção e conservação, constitutivo de toda realização. Ora, constitui o ser tanto o próprio, quanto o impróprio, de tal maneira que não há desprendimento sem retenção, nem retenção sem desprendimento. Mas próprio e impróprio são, ainda, faces da identidade. A profundidade do real supera, na simultaneidade de próprio e impróprio, as diferenças e remete para o mistério insondável, de onde brotam inesperadas possibilidades de compreensão. Mas, até mesmo para a lógica, seria ilógico entender o real como um “amontoado” de realizações individuais; por isso a ordem que, entre elas, a lógica estabelece é interativa e reflete os princípios constitutivos e organizacionais de um fundamento que estrutura e sustenta o real, mas não é o real. Embora, a interatividade da lógica, no nível da elaboração do pensamento, não leve em conta nenhum desprendimento, nenhuma superação e permaneça interessada na conservação da individualidade de cada real, ela vive da tensão que integra, na raiz do real, superação e conservação. A superação que propõe a interatividade da lógica tem em vista a organização ôntica do real. Realiza-se de forma individual e sucessiva e não singular e simultânea.
No entanto, com-apreender (esta dinâmica só se mostra na e pela experiência comunitária, esquecida e lembrada no prefixo com-\) o movimento medieval como um só desdobramento do advento, acolhendo sua realização histórica como experiência originariamente religiosa da comunidade de uma época, cujo vigor primordial remete para além e aquém das decisões e das escolhas de um seguimento, é o que se oferece como possibilidade de superação dos limites, constitutivos de toda realização lógica da metafísica. E, pode haver uma realização da metafísica que não seja lógica? A metafísica para ser metafísica deixa aparecer, na diferença de si mesma, a não metafísica, que se oferece como superação da própria metafísica em que surge. A não metafísica do pensamento pré-socrático encontrava sua força de realização na metafísica que, retraída, guardava e preparava o acontecer da história. A metafísica surge no embate de ser e não ser metafísica. A criatividade do real não está somente naquilo que aparece como real, mas, primordialmente, no embate gerador do real. Na metafísica medieval, a abertura da superação se desvela e atualiza como mística.
O pensamento medieval, mesmo aquele que é elaborado a partir da lógica é, predominantemente, místico. Para o modo de ser medieval, as diferenças são filhas de um mesmo mistério. Trata-se, portanto, de um modo de ser que se entrega ao fluxo contínuo de superação e desprendimento do pensamento de todas as épocas. Sempre entendemos que os limites metafísicos não são transparentes para os medievais por carecerem eles de “evolução”, profundidade ou avanço no pensar. Não é verdade, pois os medievais são animados (anima, alma) pelo elã do mistério, mais do que pela metafísica que lhes serve de solo. Guardam como desejo íntimo a imensidão livre e abissal, na qual se encontram inteiramente mergulhados, ou como diz Santo Agostinho, pensador místico que deu as bases da doutrina cristã, os homens não cessam nunca de querer a liberdade infinita, onde as possibilidades se recolhem em silêncio e se projetam como real. O grande salto que o contemporâneo herdou do medieval está, justamente, no desafio de compreender que não se pode querer a liberdade infinita como quem quer ter alguma coisa que ainda não tem. A liberdade infinita não se deixa apreender por nenhum desejo de domínio, posto pela finitude do querer humano, nem se deixa determinar por uma subjetividade, quer individual, quer coletiva12. A liberdade infinita instala-se em cada homem como a vontade íntima de todo homem, originária e ontologicamente dada. A vontade que torna o homem humano não é resultado de uma decisão subjetiva, mas advém do mistério. É que no humano do homem a semelhança de Deus se realiza. Por isso, o empenho do homem, em tornar-se o que lhe foi dado ser, busca escutar, atento, aos apelos dessa estranha intimidade. Só pelo desprendimento, pela paixão da entrega, pela obediência, o homem pode se libertar da dominação, que o seu querer exerce sobre si. Os limites no lidar com a infinitude da vontade criadora são postos pelos múltiplos modos como a finitude do criado se instala, sempre inesperadamente, em cada homem. A vontade criadora faz ressoar no homem o apelo da infinitude e doa-se como farol, que ilumina o percurso de superação e conservação das diferenças e dos limites existenciais e históricos. Por mais firme que seja uma decisão há sempre de se esperar pelo inesperado e crer no mistério, pois só nesta prontidão o empenho do homem pode perseverar. O inesperado chega para todo homem, o que espera e o que não espera. Mas somente no desprendimento dos pré-conceitos ou das decisões pré-estabelecidas o homem se põe à espera das transformações. Pobre de ter e haveres espirituais, a vontade de Deus pode nele ecoar.
A dificuldade em reconhecer esta aliança não torna o homem menos homem, mas mostra como intempestiva a transformação. A cada homem é dado um tempo de ouvir e compreender. Compreendendo, o homem se transforma. Ora, o contemporâneo é cheio de propriedades e posses, cheio de desejos, como pode querer não querer? Como pode não querer, nem o querer, nem o não querer? Como pode simplesmente nem querer, nem não querer? Como pode ser tomado pelo silêncio do vazio se o alarido das coisas, que imagina ter, se sobrepõe ao ser? As rápidas mudanças que presenciamos na contemporaneidade são oriundas da técnica e não significam uma transformação espiritual, que torna o homem capaz de se abrir à virada do pensamento. A vontade humana, finita, funda-se e identifica-se, em Santo Agostinho, como posse da liberdade infinita que Deus é. Como pode o homem contemporâneo aceitar ser ele posse da liberdade? É que ser posse da liberdade não significa estar sob o domínio de alguma coisa. A liberdade não é algo ou alguma coisa. Ser posse da liberdade é um movimento originário, que deixa aparecer no perfil humano, a dinâmica comunitária da Criação que tudo irmana. Este é o sentido de posse na famosa definição de Boécio sobre a eternidade: A posse simultânea de todas as coisas na vida infinita de Deus. A questão se coloca de forma premente quando procuramos pensar radicalmente os afazeres do cotidiano: na vida do dia-a-dia de todos nós, filhos da técnica, como podemos fazer a estranha experiência de ser a posse de Deus, uma posse sobre a qual Deus não exerce um domínio determinador, mas simplesmente acolhe com um amor gerador? Para a mentalidade da técnica, se ao menos posse de Deus significasse poder, no sentido subjetivo, das decisões de conteúdo, Deus serviria para alguma coisa. Talvez para melhorar o clima, para resolver questões internacionais ou encontrar a cura de certas doenças. Mas, para a funcionalidade moderno-contemporânea, Deus não serve para nada. Que sentido, então, o homem contemporâneo encontra em gerar filhos, criar animais, cultivar o solo, possuir propriedades? O que é ser amigo ou viver um amor? Será que tudo se resume a ter? E ter é somente colocar alguma coisa sob domínio? Quando o ter prevalece, o homem se desfaz facilmente da responsabilidade de ser.
Ter é ser, reúne no imediato o envio distante e religioso de ser. Ter, enquanto sentido primordial de ser, é celebração do mistério que, continuamente, se doa nos seres, permanecendo como vazio gerador. Ter, no sentido subjetivo de exercer um domínio, esconde-se, no mundo da técnica, como ilusão, e se apresenta como verdade irredutível, da qual não se pode duvidar. Ter uma propriedade é ter o registro da propriedade e isto vale erga omnis. Ora, neste raciocínio não cabe nenhuma dúvida. Mas a verdade, em que tudo vem a ser, não é determinante, nem determinada, não é nada, porque é tudo. O desprendimento revela-se ao empenho de ser como a forma radical de ter, lembrança constante do amor que simplesmente amou, antes da diferença entre ser e ter. O esquecimento do amor, que embala o ser, encontra no ter a autonomia de um poder subjetivo, instância última e decisiva sobre qualquer coisa. O ter da razão, como fundamento do ser, despreza o ser que da liberdade emana em Graça e torna tudo que toca uma produção, sem a grandeza do mistério. A morte da natureza, a morte dos homens pelos homens, a decadência do mundo anunciam a era do pecado contra o espírito, contra a vontade que consagra o homem à vida eterna da liberdade. Só na liberdade do desprendimento há encontro gerador entre os seres, a fraternidade entre diferentes se revela, a harmonia entre os homens prevalece e a natureza resplandece: o animal se oferece ao trabalho humano, ao afeto dos homens e se entrega como alimento pela força amorosa da transformação. Ser posse de Deus é ser amor de Deus. Aos seres não espirituais não é dado recusar ser posse de Deus para ser posse de Deus. Somente o homem, para ser amor de Deus, tem de ser capaz de recusar o que desde sempre já era: amor de Deus. Esta é a natureza espiritual da condição humana, uma natureza que se assemelha a e reflete, no seu modo próprio de ser, a tensão entre ser e não ser, geradora do real.
Mas que significado encontramos em Deus? Deus é sentido primordial. Nele são concebidos todos os significados, de todas as épocas, de cada civilização, inclusive da civilização da técnica, pois Deus também está presente na ação que tudo entorpece e desfigura. Qualquer ação, para ser ação, encontra sua força em Deus, mesmo a ação que mata. Sem Deus, sem a vida do mistério, não há mundo, não há homem, nem bom nem mau. É uma ingenuidade achar que teorias científicas podem explicar o aparecimento da vida, aqui, tomada em seu sentido amplo. No e do mistério que habita a ciência e a técnica irrompe, de forma incompreensível, o desejo avassalador de vida e de morte que alimenta os sonhos humanos. No mistério da técnica, também, repousa a esperança.
Toda ação transcende aquilo que faz. A ação funcional da técnica é mais do que técnica e do que funcionalidade. A transcendência da ação, de qualquer ação, fala sempre do mistério, do não sabido. Por isso, nenhum conceito satisfaz o empenho do homem em atender ao apelo da vontade em seu coração. Somente, a humildade do perdão e o abandono da caridade são capazes de lidar com o mistério, que supera qualquer decisão ou posição, e traz paz ao coração dos homens. Nietzsche, na sua famosa oração “Ao Deus Desconhecido”, clama por Deus, o parente incompreensível. Conhecer Deus é servir ao desconhecido. Nesta doce sabedoria de um mistério em que tudo se gera e de onde tudo provém está a radicalidade de ser homem.
Os medievais são antes de tudo místicos, servos do mistério e não conquistadores do mistério. Qualquer que fosse a posição doutrinária, eram arrebatados por uma paixão que os lançava, continua e concomitantemente, para dentro e para fora de toda e qualquer compreensão do real. Faziam a experiência da superação da metafísica em toda metafísica elaborada. A verdade jamais poderia ser evidente ou mesmo uma só, mas sempre ambígua, sempre generosamente una e plural.
A ambigüidade para a lógica metafísica não é real, mas abstrata. Pensando assim, a lógica da modernidade acaba marcando as realizações da mística como primitivas e secundárias frente à metafísica e as reflexões da filosofia como subalternas à ideologia, na medida em que não reconhece a recíproca e una constituição que há entre mística e metafísica, filosofia e teologia. É justamente a rigidez discriminadora e excludente desta interpretação lógico-metafísica que levou a contemporaneidade ao questionamento explícito da superação da metafísica. A questão da superação da metafísica é uma lembrança que risca a noite escura da técnica. O questionamento que a superação, constitutiva de qualquer real, provoca na metafísica surgiu da gravidade do esquecimento que a própria metafísica, ao longo dos séculos, vem consolidando em relação à unidade originária. Os medievais viviam, de diversas formas, a unidade da mística e da metafísica, da filosofia e da teologia, do espírito e do corpo, do ente e da essência, na medida em que o envio originário da vida se mostra e se oculta na experiência amorosa do divino. Divino aqui não diz um processo de entificação, mas refere-se a uma dinâmica de realização do real, onde todo ordinário se mostra como extraordinário.
A radicalidade da pregação de Cristo se anuncia como um impulso de superação, apontando, sempre, para a fraternidade primordial. Seja metafísico, seja místico, o cristão tem como luz uma paixão: a caridade. A paixão da caridade revela-se como via de superação das dificuldades, quer pessoais, quer históricas. Comunitária, a paixão da caridade está concentrada no mandamento que Cristo nos deixou: “amar o próximo como a si mesmo”. Não se pode amar o próximo, sem amar a Deus, nem amar a Deus, sem amar o próximo. A lembrança desta identidade originária deve abraçar, nos mais breves dos pensamentos, nos mais frugais dos gestos, a vida do cristão. Ser caridoso está além da factualidade de fazer o bem, seja para o bem, seja pelo bem, seja conforme o bem. Estas são apenas expressões do amor que Cristo é. Ser caridoso é deixar-se colher pela vontade de Deus que habita o fundo da alma de cada homem. caridade é, antes de tudo, a disposição infinitamente generosa de aceitar as diferenças, obedientes à presença íntima e desconhecida da vontade de Deus em nós. O despojamento das presunções e do orgulho, que escravizam a alma humana, permite ao homem viver na finitude de sua humanidade a infinitude da liberdade de Deus. Santo Agostinho alerta que a presunção e o orgulho de ser e ter, junto com a concupiscência que penetra o vazio deixado pelas ambições de ter e ser, são as tentações que levam o espírito a uma mortal decadência. Para o cristão, não há amor sem liberdade, não há liberdade sem entrega radical à voz da vontade criadora. Tomados por este sentido místico de ser, os escolásticos disputavam questões, sempre permeadas pela compreensão amorosa de pertencerem, todos os homens, a uma só filiação. Os medievais eram homens, o que significa que sofriam das mesmas tentações que todos os homens, de todas as épocas. Quando se fala do espírito de uma época, no entanto, refere-se à mentalidade, à atitude, que conduz, historicamente, as realizações, as ações e as decisões humanas, conferindo, cada vez, um perfil singular à comunidade dos homens.
A racionalidade moderna separa a influência filosófica dos árabes da fé teológica dos cristãos, a despeito do maior pensador do movimento cristão, Santo Agostinho, ter deixado como ensinamento o princípio que remete para o amor de Deus a unidade entre fé e intelecto: fides quaerens intellectum. Essa assertiva de Santo Agostinho não apresenta a fé como primordial ao intelecto. Na originariedade da condição humana, fé é intelecto, é pensamento. Sem fé, o pensamento não se sustenta. A fé de Deus13 realiza-se como intelecto. A questão que se coloca no primado da vontade, antecede à relação de identidade nesta afirmação pensada: o que é fé de Deus? É vontade criadora, elã amoroso que, em si, nada detém, mas que doa, de si, toda possibilidade de ser. Pode-se imaginar um ato de amor que não seja de doação? A vontade de Deus é amor, um amor, ao mesmo tempo, compreensível e incompreensível para a inteligência do homem. Incompreensível porque a finitude humana nunca pode alcançar a profundidade misteriosa desse amor. Diante do milagre da vida, não há explicação que satisfaça as ambições de poder e a ânsia de conhecer. Compreensível na medida em que todo homem é tocado pela vida do amor de Deus e lançado para fora de si mesmo em atendimento ao apelo primordial da Sua vontade, que nele habita. Tudo que é e está sendo se dá e se busca na ordem intelectível da vontade de Deus, na harmonia do amor. O intelecto de Deus supera14 o inteligível do espírito humano e se retrai como mistério. A superação não nega o inteligível, ao contrário, o movimento de superação inclui aquilo que supera. Mas, a inteligência do homem, mesmo com todo avanço da técnica, não pode explicar a plenitude intelectível de Deus, seja pelo conhecimento, seja pelos princípios morais, pois a ordem de Deus não pode ser traduzida em conteúdos de qualquer natureza. A ordem de Deus é puro sentido, abertura que se instaura, cada vez, numa disposição singular, em que o ser aparece na tensão ambígua e constitutiva de seu envio originário. No sentido, há uma remissão cordial ao mistério que sempre se retrai em tudo que de si gera. A cordialidade dá o tom do canto que entoa o diálogo dos homens com Deus e cuida da promessa de permanência e conservação da aliança. O homem cordial é aquele que se dá inteiro em cada ação, em cada pensamento, em cada atenção, em nada se poupa. Cordialidade é totalidade, inteireza, radicalidade.
Não há vontade sem intelecto. O primado da vontade não indica uma prevalência da vontade sobre intelecto. Deus é todo, a simultaneidade da eternidade, identidade radical. Em Deus tudo é igualmente Deus. Por força da infinitude, não há partes, diz Raimundo Lulo. Algo só prevalece sobre outro na fragmentação da finitude. A vontade de Deus é identidade radical, simultaneidade de todas as coisas, sem a primazia de uma sobre a outra. O primado da vontade pensa a identidade originária entre Deus e o homem, na realização singular de cada um. O que constitui a condição espiritual do homem é a infinitude nele presente. Pela infinitude da vontade livre, a dignidade do homem mostra sua natureza divina. A vontade livre de Deus no homem torna-o espírito semelhante ao Criador. Enquanto espírito, o homem é sempre arrebatado pelo apelo da comunhão originária. A comunhão originária é dinâmica radicalmente livre em que as diferenças não se realizam como limites, mas como possibilidade de ser.
Só o ser do espírito pode sofrer crises, ainda que a crise seja de niilismo. Na crise, a vontade de Deus ressurge em meio aos escombros trazendo a esperança e o ardor de um novo recomeço. Isto é liberdade. Adverte Cristo que o único pecado sem perdão seria aquele que, se possível fosse, tentasse contra a própria condição espiritual do homem, pois seria tentar contra Deus. Se o homem pudesse deixar de ser homem, estaria violando a semelhança com Deus, por Deus concedida. O homem pecaria diretamente contra a própria natureza livre de Deus. A vontade de Deus espelha-se na criação. Deus se doa, livremente, em tudo que cria. Deus é a criatura, dirá Eckhart algumas décadas mais tarde que Duns Escoto. O primado da vontade lembra o caminho da unidade, em que os homens reencontram, sempre de novo, a força e o vigor de ser no todo.
Duns Escoto apresenta uma concepção do homem fundada no sentido místico do primado da vontade. A vontade é o que de mais radical há no homem, sussurra, continuamente, no mais fundo do coração, despertando a lembrança da união originária e esperando que o homem atenda ao apelo do divino que traz em si mesmo. É Deus no homem, enquanto vontade criadora, força radical de identidade, que faz com que o homem seja homem e como homem permaneça. No chamado da vontade de Deus, o homem se reconhece criado à semelhança15 de Deus. Ciência, técnica, ética, tudo se torna possível a partir da transparência para o sentido que recebeu, originariamente, da vontade de Deus. Nenhuma vontade humana pode existir fora da vontade de Deus, nem mesmo a vontade de matar. Esta identidade, no entanto, não se sustenta em nenhum conteúdo moral. A vontade de Deus no homem é a força da liberdade, que faz dele um ser do espírito. A partir da vontade, inspirado por ela, o homem constrói a compreensão moral da existência, de acordo com as possibilidades dadas em cada vez. Não se trata, aqui, de um relativismo moral ou de uma permissividade, ao contrário, a imitação da semelhança de Deus emerge de uma concentração fora de qualquer medida. Quanto mais próximo da semelhança de Deus, mais o homem se esvazia de princípios, regras e conteúdos de vida. A vontade em Duns Escoto não é apenas ontológica, mas originária16, pode transformar a disposição singular de cada homem, pela força inexorável de seu toque amoroso. Se o mestre franciscano pensasse a natureza íntima da vontade, no homem, como meramente ontológica, a força da sua condição de ser perderia o vigor de transformação. A vontade de Deus só pode ser originária e, sendo originária, é ontológica e ôntica.
Porque provém do mistério insondável, da identidade abissal, a vontade não pertence ao homem, ao contrário, o homem pertence à vontade, presença divina capaz de transformar as decisões e mudar os caminhos do espírito. A dinâmica de transformação da vontade de Deus, no homem, não pode ser explicada pela inteligência humana como uma troca. Mérito não é o critério. O empenho de permanência na fé já é transformação, graça recebida. A dificuldade é que sempre se espera um resultado já previsto, pedido, um acontecimento querido. Aceitar o primado da vontade é aceitar o desconhecido como abrigo e moradia. Ao sentir-se recolhido pela vontade de Deus, o homem desprende-se do seu querer, dos seus desejos, das suas vontades. Bem e mal são escolhas de vida, mas o que habita no fundo de todos os homens é a vontade livre de Deus, clamando-lhes a filiação em toda e qualquer situação da existência humana. Pela presença da vontade de Deus em si, o pior dos homens morre como homem. Este é o sentido da dignidade humana que o cristão acolhe em todo e qualquer homem. Arrebatado por uma vontade maior que si mesmo, tudo que, diante dela, o homem pode fazer é orar para que, por ela, seja sempre abraçado: “Senhor, eu não quero compreender sua verdade, mas penetrar Seu Mistério” (Santo Anselmo). Por maior que seja, a vontade do homem não pode querer o que lhe é dado querer.
Deus criou o mundo por sua livre vontade. A vontade de Deus é Deus, isto significa que as criaturas foram todas criadas à imagem do criador, e o homem à sua imagem e Semelhança, revela a sabedoria do Gênesis. Em que consiste exatamente a semelhança que se estabelece entre homem e Deus? A semelhança se ilumina no irromper contínuo e transformador da singularidade, sempre última, de cada homem. A transformação não descaracteriza a concentração final de cada homem, ao contrário, possibilita a diversidade infinita da vida e a superação dos limites. Pela força da transformação, não há um perfil último e definitivo de cada homem. Haecceitas não põe um ponto final no homem. Na constante conquista de si mesmo, o homem pode mudar o rumo da sua existência.
Pensar e ser são um só, diz Parmênides, e quase dois mil anos depois Santo Anselmo. Ao pensar a semelhança, ao se identificar com o divino, o homem está vivendo a semelhança que recebeu de Deus, e com isto está demonstrando a existência de Deus. Como o pensar é um empenho criativo, o homem está sempre sendo, cada vez de maneira diferente, a semelhança que é. O cavalo se desvela, em cada singularidade última, como cavalo, na repetição do modo de ser cavalo, por todas as gerações eqüinas, sem conflitos, sem angústias, sem questionamentos. Por mais diferente que um cavalo seja do outro, o seu modo de ser cavalo é marcado por uma repetição comportamental. Os pássaros têm seus ninhos e as raposas suas tocas e isto nunca muda. Não há inesperado para os seres não espirituais. O homem é filho do Inesperado, desvela-se como homem pela liberdade com que enfrenta os envios do mistério. O que é o inesperado? Para o cavalo a morte não é inesperada, nem esperada, tampouco a doença, a tormenta ou a alegria. O Inesperado é o mistério de Deus que o homem, pela semelhança do espírito concedida, encontra no acontecer da vida. O horizonte do pensamento limita, cada vez, o embate entre o finito e o infinito no homem, o que faz do modo de ser homem uma caminhada errante. Errância, aqui, diz transformação e plenificação do que sempre já foi, no que está sendo. E, em tudo que pensa e faz, o homem nunca se encontra totalmente em si mesmo, por isso sempre se põe em fuga, à procura de si mesmo. A condição própria de ser homem não está nas diferentes formas de civilização e cultura, mas na conquista contínua, livre, comunitária, histórica e pessoal de seu modo de ser homem. O esforço do homem em atender à voz do mistério em si, projeta e expande uma força intensa de relação, identificação e diferenciação, tornando humano tudo que está ao seu redor. Transformando o que está à sua volta em obra, o homem se faz homem e instala o mundo. O mundo do homem é movido pela experiência desafiante e religiosa de ser semelhante a um mistério que não pode conhecer. A aceitação da originariedade religiosa de ser homem é a coragem que o ser do espírito leva consigo, na busca por si mesmo. Ao assumir a religiosidade primordial de seu modo de ser, o homem faz a experiência da liberdade do espírito. Compreende-se como um ser cujo destino é mistério. Ser da liberdade, liberta o mundo, libertando-se, espiritualmente. Libertar não significa abandonar, mas amar o amor em tudo que tem e não tem, em tudo que é e não é. Só, consigo mesmo, o homem não tem onde colocar a cabeça, e
mais uma vez, antes de ir adiante e olhar para frente, elevo, na solidão, as mãos para ti, em quem me refugio, a quem altares solenes consagram, no mais fundo do coração, a fim de que, todo o tempo, minha voz me chamasse de novo. Sobre tudo arde em letras profundas as palavras: ao Deus desconhecido. Dele eu sou, ainda que até agora me tenha entregue ao bando dos sacrílegos.
Dele eu sou – e sinto os laços, que lutam para derrubar-me, e de fato me forçam a servi-lo, mesmo na fuga. Quero conhecer-te Desconhecido. Tu, que tocas fundo a minha alma e qual onda penetras em minha vida. Tu, incompreensível parente meu. Eu quero conhecer-Te, até mesmo, servir-Te. (Oração ao Deus Desconhecido de Nietzsche, tradução Emmanuel Carneiro Leão).