Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A pobreza e a liberdade interior

16/04/2021

 

(Grande Sinal, XXIX, 1975, 429-450)

Introdução

O tema da reflexão é formulado assim: a Pobreza, a Obe­diência, o Celibato, a Vida fraterna, a Realização Pessoal, a Oração: enquanto caminho para a Liberdade Interior.

Na compreensão usual do cotidiano já sabemos o que seja pobreza, obediência, celibato, vida fraterna, realização pessoal, oração. Concebemos todas essas coisas em deter­minadas representações. A partir dessas representações fa­zemos ou deixamos de fazer isso ou aquilo. Elas são nor­mas e ideais da nossa vida de todos os dias.

A reflexão parte dessas representações que comandam o fazer e o não fazer do nosso cotidiano. Para isso, ela examina e questiona alguns traços da representação que constitui o lugar comum da nossa compreensão usual da pobreza, obediência, celibato, vida fraterna, realização pessoal, oração. Esse exame e questionamento, no entanto, não têm a pretensão de determinar, criticamente e de mo­do detalhado, a representação das respectivas realidades acima mencionadas; só servem para iniciar uma reflexão.

Reflexão é uma provocação. Provocação que coloca ques­tões acerca daquilo que já sabemos, para nos levar a sus­peitar que, na realidade, não sabemos o que nos parecia ser óbvio e familiar. O questionamento não quer destruir a compreensão usual, mas só tenta desvelar o estranho que se oculta naquilo que usualmente representamos co­mo realidades do nosso mundo familiar. Do estranhamen­to nasce a admiração. A admiração nos abre o coração pa­ra acolher o movimento de busca de um sentido mais profundo e radical daquilo que nos move no familiar co­tidiano. Com outras palavras, ela nos revela a raiz extraor­dinária do ordinário.

O sentido mais profundo e radical daquilo que nos move no familiar – o extraordinário do ordinário – denomina­mos como titulo de “Caminho da liberdade interior”.

A liberdade interior é pois o tema da reflexão. Tema é algo como uma tomada de posição a partir de uma orien­tação prévia, provisória. Tema ainda não diz o que seja a própria coisa, ela mesma. Ele nos dá uma orientação ini­cial da caminhada. Na medida em que caminhamos se nos desvela, aos poucos, a compreensão da liberdade in­terior. Mas, na medida em que a liberdade se nos abre na sua paisagem interior, começamos a descobrir o sentido extraordinário do nosso viver ordinário na representação usual da pobreza, obediência, celibato, vida fraterna, reali­zação pessoal e oração, como multiformes vias da nossa viagem existencial a partir de, para e em o país maravilhoso da liberdade dos Filhos de Deus.

1 Para refletir

  1. a) Examine a sua maneira de pensar quando você per­gunta: qual o sentido da pobreza? Qual o sentido da obe­diência, do celibato etc.? Você não representa, isto é, fixa a pobreza como “algo”, por exemplo ter ou não ter isso ou aquilo? E desse “algo” você não pergunta: que finali­dade, que utilidade tem isso? Você não entende a palavra sentido na acepção de utilidade ou finalidade?
  2. b) A nossa reflexão não pergunta assim. Ela começa sim como a representação. Ela entende de partida a pobreza como por exemplo ter ou não ter isso ou aquilo. Mas, quando pergunta que sentido tem isso, ela não per­gunta: que finalidade, que serventia, que utilidade tem isso? Ela não entende o sentido na acepção de utilidade ou fina­lidade. Antes, a reflexão entende o sentido como importância (o que nos conduz para dentro = im-portar), como pe­so existencial. Importância, o peso existencial, aqui signifi­ca: o inter-esse. Interesse se escreve inter-esse, isto é, estar por dentro, morar, estar na “sua”, o móvel, o vigor de vida que dá o peso, a importância, a significação ao que você faz ou deixa de fazer a partir daquilo que você é. O inter­esse projetado como coisa, abstratamente, é o que chama­mos de utilidade ou finalidade. Esta é a coisificação do vigor do interesse.
  3. c) Um exemplo do sentido como inter-esse: você tem um martelo na mão. Você pergunta: que utilidade tem o martelo, para que o martelo? Para pregar o prego na tá­bua. Para que pregar o prego na tábua? Para fazer mesa e cadeiras. Para que fazer mesa e cadeiras? Para se sen­tar à mesa. Para que se sentar à mesa? Para a ceia. Para que a ceia? Para o convívio familiar. Para que o convívio familiar?… Aqui você começa a ficar atrapalhado. O con­vívio familiar tem uma utilidade? Um fim? É uma coisa que serve para alguma coisa? Talvez você diga: claro que sim! O convívio familiar é para viver fraternal e humana­mente! Mas para que serve viver fraternal e humanamente? Para me realizar. Mas para que serve o realizar-me? Para que me realizar?! Ora realizar-me para me realizar!…

Você percebe uma coisa? Na série de perguntas que percorremos, de início não havia a dificuldade em pergun­tar “para quê”. Mas aos poucos a pergunta do “para que serve” começou a tornar-se inadequada. A realida­de viva como convívio, viver, realizar-me se rebelou con­tra tal maneira de perguntar pelo uso, pela utilidade, pela finalidade. E por fim acabamos numa resposta que por assim dizer marca os passos numa repetição: realizar-me para me realizar! Isto significa que o realizar-me tem a uti­lidade, a finalidade em si mesmo? Mas o que quer dizer ter a utilidade, a finalidade em si mesmo? Significa: ser o fundamento, a razão, o móvel, o vigor, o inter-esse a partir do qual efluem e para o qual afluem todas as utilidades, todas as finalidades em que se entrelaçam o fazer e o não fazer da minha existência. Com outras palavras, as perguntas “para que serve” são passos individualizados e não-refle­xos da manifestação do sentido da vida, isto é, do inter­esse. No nosso exemplo, portanto, o convívio familiar, a ceia, sentar-se à mesa, mesa e cadeiras, construção de mesa e cadeiras, martelo, prego e tábua são manifestações, são expressões do sentido, isto é, do inter-esse: realização humana.

  1. d) Muito bem. Da realização humana não posso pergun­tar: para quê. Mas eu me pergunto: o que é realizar-me?

Certamente… Mas você ao perguntar “o que é?” não está pensando quase sem o perceber: para que serve?

A pergunta “o que é?” não pergunta pela finalidade. Per­gunta pela essência das coisas. Essência no entanto não é uma coisa, um objeto, algo abstrato existente como uma coisa atrás das aparências. Essência é o inter-esse, o sen­tido. Por isso, perguntar “o que é” é sondar o fundo a partir donde vivemos, agimos, representamos, falamos. É per­guntar pelo móvel, pelo vigor fundamental da nossa inte­rioridade, ou melhor, da nossa identidade.

  1. e) Como se manifesta o sentido, o inter-esse? Ele não aparece diretamente como uma coisa. Ele aparece na con­creção. O que é concreção? Concreção vem do con-cres­cer. Concreção é a maneira de ser na qual uma compreen­são cresce junto de e junto com os passos que damos na viagem da nossa vida. (Exemplo: o velho casal e a sua estória. Cf. A vocação franciscana, hoje, em “Forma­ção Franciscana”, Documentos Franciscanos, vol. X, 1972, p.15ss).

Perguntamos hoje: que finalidade tem a pobreza, a obediência etc.? A nossa reflexão não pergunta pela fina­lidade, pela utilidade. Pois uma tal pergunta é abstrata e não se percebe da coisificação a que submete o sentido da vida. A nossa reflexão pergunta o que é a pobreza, a obediência etc. Isto é: ela pergunta qual é o vigor, qual é o inter-esse que move e aciona a pobreza, a obediência etc.; pergunta, isto é, busca uma compreensão mais con­creta do fundamento radical do nosso viver que denomina­mos Liberdade Interior.

A pobreza, a obediência etc., no entanto, não são coi­sas. Por isso a pergunta “o que é…?” não pode ser res­pondida com a resposta que dá determinações objetivas e fixas como informações de uma coisa existente, fisica­mente, em si, diante de mim. A pergunta só pode ser respondida através de insinuações e convites para uma experiência.

Ex-periência é per-curso. É o caminho que, ao cami­nhar, vai abrindo a possibilidade e o sentido dos seus pas­sos, na acolhida crescente do Mistério do seu envio.

2 Algumas questões acerca da nossa representação da pobreza

Comecemos com a representação muito banal e ingê­nua: a diferença que fazemos entre a pobreza material e a pobreza em espírito. Dizemos: não basta a pobreza em espírito. É necessária também a pobreza material.

  1. Por que hoje insistimos na necessidade de sermos pobres materialmente?
  2. Quando eu falo da necessidade de ser materialmen­te pobre, o que entendo por “materialmente pobre”?

Exemplo:

­– ser como um cidadão que ganha o salário mínimo e deve trabalhar para se sustentar, mal e mal, e não sobra muito para coisas supérfluas?

– ser como uma pessoa que nem sequer ganha o sa­lário mínimo, pois não tem um emprego fixo, se arranja com trabalhos ocasionais, nem sempre come o suficien­te, mas não morre de fome…?

– ser como um mendigo que está doente e não pode trabalhar, mas consegue não morrer de fome, por causa da esmola, ou se pode trabalhar não arranjou nenhum emprego por não ter nenhuma qualificação, deve pedir esmolas ou roubar para não morrer de fome?

– ser um miserável que sem força está deitado na es­trada, semimorto de fome, à mercê da compaixão espo­rádica dos transeuntes?

Pergunta: quando digo que, como franciscano, devo ser pobre materialmente, que tipo de pobre eu acho que de­vo ser? E por quê? A partir de quê?

  1. Você dirá: é uma casuística abstrata querer determi­nar a quantidade da pobreza que devemos ter, quando falamos da necessidade da pobreza material. Mas que sentido tem falar da pobreza material se eu não sei até certo ponto qual é o mais ou menos da quantidade da pobreza material? Na pobreza material, com o ter ou não ter, está implícita a maneira de ser da medida que avalia o grau da pobreza material. Essa maneira de ser da medi­da é a quantidade: posso, devo ter ou não ter: mais ou me­nos… Com outras palavras: ao falar da pobreza material, você já está falando na representação da quantidade: mais ou menos. Se você não quiser cair na casuística do cálculo de mais ou menos, deverá explicar a partir de onde você fala do mais ou menos da pobreza material.
  2. Você dirá: sim, mas o mais ou menos da pobreza ma­terial depende cada vez da situação. Não é possível pois determinar de antemão, pela norma, pela lei, o “quantum” da pobreza material.

Certamente. Mas depende de que situação? Da situação individual? Da situação comunitária doméstica, provincial? Da ordem em geral, da sociedade civil, onde atua a comu­nidade ou o indivíduo? O que determina a situação?

Se você vive numa sociedade, onde ninguém tem 2 pães inteiros, ter 2 pães inteiros é ser rico. Se você vive numa sociedade onde todo mundo tem 5 pães, ter 2 pães in­teiros é ser pobre…

Quando você diz: o “quantum” da pobreza material de­pende da situação, parece que você não está falando tan­to da pobreza material, mas sim da necessidade de ser como “todo mundo”. Se todo mundo tem automóvel, você pode ter o automóvel? Deve ter o automóvel? Donde vem, pois, a necessidade de nos igualarmos a todo mun­do? O que é “todo mundo”? O “todo mundo” da socieda­de de consumo? O que a publicidade acha que deve ser para ser “gente”?

  1. Você dirá: Nada disso tudo! Ser igual a todo mundo significa: ser semelhante aos menos privilegiados pela sociedade de consumo. Mas então voltam as perguntas fei­tas no nº 2. Quem são os menos privilegiados pela socie­dade de consumo? Com que tipo de menos privilegiados você quer ser semelhante? E a partir de onde, por que você deseja ser semelhante aos menos privilegiados pela socie­dade de consumo?
  2. Mas para que toda essa reflexão? Para perceber que a fala sobre a necessidade da pobreza material flutua no ar, na abstração, se antes não refletirmos mais, a partir de onde a pobreza material, o ter ou não ter, o usar ou não usar os bens materiais recebem o sentido do seu ser.
  • Dizemos hoje: não basta a pobreza em espírito. É necessária também a pobreza material. Essa afirmação pode estar dizendo:

– Não adianta ter atitude interior se ela não tiver efi­ciência numa obra concreta, externa.

– Fala-se da pobreza em espírito para racionalizar a fal­ta de engajamento numa obra real e concreta. A pobreza em espírito seria nesse caso um álibi para continuarmos, burgues­mente, instalados no comodismo.

– Falar da pobreza em espírito é não perceber a di­mensão social da pobreza. É refugiar-se na interioridade alienada de uma piedade subjetiva, privatizante, cuidar de si, egoisticamente, para adquirir a virtude interior da po­breza, não se incomodando com a miséria que campeia ao seu redor.

Assim, os termos “espírito”, “interioridade” receberam a conotação negativa de: ineficiência, privatização, individualismo, indiferença social, egoísmo, alienação, racionalização.

Nessa perspectiva não soa bem falar hoje da pobreza em espírito. Soa bem falar da pobreza material, concreta. Falar da pobreza material nesse caso seria falar: da desa­lienação, da dimensão social, comunitária, da eficiência da obra como do testemunho do Evangelho, do engaja­mento pela construção de um mundo melhor, da doação aos outros etc.

  1. No entanto, no nº 6 percebemos: a fala sobre a neces­sidade da pobreza material flutua no ar, na abstração, é alienada, enquanto não refletirmos mais a fundo, a partir de onde a pobreza material, o ter ou não ter, o usar ou não usar os bens materiais, recebe o sentido do seu ser.

Considerar o espírito, a interioridade como ineficiência, privatização, individualismo, indiferença social, egoísmo, alienação, racionalização é uma representação alienada da realidade chamada espírito ou interioridade. Essa alienação é o produto da pobreza de espírito, isto é, da falta, da anemia de espírito. É falta de eficiência, é privação (dali a privatização) do espírito. É um bitolamento indivi­dualista, subjetivo do espírito. É a racionalização do espí­rito. Pois o espírito que se esvai no dis-curso se chama ra­zão (Razão = ratio = reor = correr).

  1. Isto significa: mesmo para falar de e urgir a necessi­dade da pobreza material, necessitamos antes do vigor do espírito.
  2. Que tal, se o que chamamos de pobreza em espírito for justamente a existência humana, onde o espírito, a in­terioridade pode desabrochar em todo o seu vigor, na di­nâmica de sua cordialidade?

Se for assim, a pobreza em espírito não é a causa da alie­nação, de indiferentismo social, de privatização piedosa e egoísta etc. Antes, pelo contrário, é a falta da pobreza em espírito, a falta de uma reflexão mais profunda acerca da pobreza em espírito que causa tais fenômenos de aliena­ção. E, por outro lado, não é pelo fato de acentuarmos a necessidade da pobreza material que chegaremos ao vigor da pobreza em espírito. Pois a própria colocação da pobre­za material em oposição à pobreza em espírito é um sinto­ma de anemia, isto é, pobreza espiritual (cf. nº 7).

A reflexão acerca da pobreza portanto nos deve conduzir para uma dimensão mais fundamental, para além da dis­cussão alienada de oposição entre a pobreza material e es­piritual. Essa dimensão fundamental é o que chamamos de espírito ou interioridade.

  1. Quando falamos da necessidade de sermos pobres, também materialmente, a partir de onde falamos? Qual é o nosso interesse? Quais as representações que nos domi­nam e nos impulsionam? Falamos muito de dar testemu­nho da pobreza, da solidariedade com os pobres etc. Don­de vem tudo isso?
  2. a) Somos ricos. Estamos de má consciência. Pensamos na necessidade de ficar pobres materialmente. Podemos fa­zer isso, sem revolucionarmos toda uma estrutura que não depende só do meu desejo e idealismo individual? Posso fazer isso, sem que eu, individualmente, consiga agüentar física e psicologicamente essa mudança? Se não pode­mos, por que então falamos tanto dessa necessidade? E se queremos ser pobres, materialmente, para acalmar a nos­sa má consciência, não é isso uma espécie de egoísmo e comodismo moral? É isso ser testemunho e ser solidário com os pobres?

E se falo tanto na necessidade de ser pobre materialmente, por que é que me queixo de tantas coisas, já agora que sou bastante rico? Por que acho insuportável um su­perior rabugento e impositivo, os horários cheios, a comida ruim, a sobrecarga de trabalho, a amolação de um confra­de neurótico, o frio, a dor de dente, a falta de televisão, a falta de diploma, a falta de reconhecimento dos meus méritos etc. etc.? Se nem sequer aguento as vicissitudes da vida rica, como é que posso agüentar a vida do pobre que não se pode dar ao luxo de se queixar dessas coisas?

  1. b) Se posso e sinto a necessidade de ser solidário com e dar o testemunho para os pobres, por que não o faço, eu sozinho? Por que exijo ou espero que a comunidade o fa­ça? Por que critico e acuso a comunidade de ser ela burgue­sa? Não é porque tenho medo de caminhar sozinho? Se eu fosse pai de família e tivesse mulher e filhos e sentisse o apelo de ser solidário com os pobres, e dar testemunho da pobreza, eu não poderia, por causa da minha respon­sabilidade, exigir que a minha família ficasse pobre por causa do meu idealismo excepcional. Mas se eu exijo da comunidade que ela fique pobre, responsabilizo-me por tu­do que ela pode sofrer por causa desse peso? Estou dis­posto a pedir esmolas, se for necessário, para comprar re­médios para o meu confrade idoso que fica enfermo?
  2. c) Nenhum operário pobre, se herdou um boa casa, vai desmontá-la para dar testemunho de pobreza. Ele não po­de se dar a tal luxo cristão. Nós que herdamos tantos pré­dios e casas, por que falamos justamente agora de vendê­-los e trocá-los por outros e assim sermos pobres, sem antes seriamente pensarmos em tirar o máximo de bem dessas propriedades para o bem do próximo? Se estamos chatea­dos e achamos insuportável a administração e a manuten­ção do que possuímos, porque dá muito trabalho, se sen­timos que tudo isso dá azo a muita faladeira e escândalo aos que nos olham só por fora, e é por isso que falamos em ficar mais pobres etc., será que nesse caso tudo isso tem algo a ver com o testemunho e com a solidariedade com os pobres? Aliás, não é assim que, hoje, quem deve admi­nistrar um enorme colégio pode passar pior do que o pai de uma família operária? Quem é “pobre”, aqui, sob o pon­to de vista do trabalho, estafa, responsabilidade e chateação? Que a gente se desfaça de prédios e instalações-peso, isso pode ser necessário para não sobrecarregar os religio­sos. Mas então que o façamos simplesmente porque vi­ver de outra forma é mais simples, fácil e mais funcional e não por causa de testemunho ou solidariedade com os pobres.
  3. d) Mas tudo isso é maldoso. Está-se interpretando, mal­dosamente e injustamente, o sincero esforço da ordem em voltar ao espírito da pobreza evangélica e dar o testemu­nho da pobreza através da pobreza material!

Mas o que é dar o testemunho da pobreza? Mostrar a pobreza? Viver a pobreza? Para viver e mostrar a pobreza, exige-se o reconhecimento do outro? Ou pode-se fazer tu­do isso só para si? Digamos, se ninguém percebesse a mi­nha pobreza, isto seria testemunhar a pobreza? Se ninguém me visse e não se escandalizasse comigo, poderia viver co­mo quiser, em luxo? Mas, se ninguém me visse, tem senti­do viver pobre materialmente? Não? Por que não? (“A rosa floresce por florescer. Não olha para si. Não cuida se al­guém a vê (Angelus Silesius). Parece que para o testemu­nho é necessário um relacionamento com o outro!? Que tipo de relacionamento? No fundo, testemunhar não é mos­trar? Mas mostrar o quê? Para quê? Para chamar atenção? Chamar atenção para quê? Para um sentimento mais pro­fundo da pobreza material? Qual é esse sentido mais profundo da pobreza? Esse sentido mais profundo da pobre­za é igual à pobreza material? A pobreza material não é ela um meio, um sinal para? Mas meio e sinal para quê? O que é isso para o qual eu aponto através da minha pobreza material? O que é afinal que eu testemunho quan­do vivo a pobreza material?

Testemunhar é ser sinal para. Mas nesse caso o impor­tante é eu ser sinal, isto é chamar atenção? O que está em jogo é o fato de que todos percebam que eu estou vi­vendo autenticamente? Mas como? Posso ser um bom si­nal, sem eu viver autenticamente? Ser testemunho não sig­nifica ser autêntico? Mas o que entendo por autêntico? Se por autêntico entendo eu viver etc., então talvez ser tes­temunho não signifique ser autêntico. Pois a função do si­nal não é tanto chamar a atenção sobre si, não é tanto se mostrar, mas apontar para, chamar atenção para algo que está fora dele. Enquanto tal, Deus pode fazer de algo es­candaloso um sinal de sua presença. Pois pelo contraste e pela diferença, através do negativo, o sinal escandaloso, pode apontar para o que não é ele, para o positivo.

Será que dar testemunho é igual ao eu-dar-bom-exemplo? Dar testemunho como dar um bom exemplo enquanto eu-ser-autêntico pode ser sinal se os que vêem o testemunho, o bom exemplo ficam edificados comigo de tal sorte que em vez de atribuir todo o bem ao Mistério de Deus atribuem a mim, como minha propriedade, como a virtude do sujeito-herói, autêntico. O testemunho se trans­forma em culto de personalidade (ideologia). O sinal não mostra mais, ele se mostra. Não é isso no fundo ignorar o Mistério da Gratuidade e recair da forma mais sutil no farisaísmo? O grande perigo que nos ameaça a nós que, hoje, tanto falamos de dar testemunho é o de entender­mos a autenticidade como a virtude do sujeito eu, do herói da “santidade”; ou de nós querermos ter vez aos olhos da sociedade como autênticos, isto é, de buscar o reconheci­mento social como homens de bem… O farisaísmo não é o que nós geralmente entendemos por esse nome. O fari­seu no fundo é o que nós hoje entendemos por homem autêntico no sentido moral. O problema do fariseu está nisso que ele não compreendeu que a raiz da autenticida­de humana é o Mistério da Gratuidade de um Deus livre, isto é, que ele colocou o homem sujeito como o portador e agente da autenticidade, sem perceber que tudo é dom da Gratuidade de Deus.

Talvez a essência, isto é, o vigor da pobreza em espírito consista nisto: em ser todo coração de acolhida desse Mis­tério da Gratuidade. Isto é, de também compreender que a pobreza do Deus pobre pode se manifestar tanto na pobre­za material como no maior luxo de riqueza escandalosa.

Se usarmos, de alguma forma, a pobreza para satisfazer­mos o desejo de afirmar o nosso eu, seja espiritual, socio­lógica ou psicologicamente, não somos sinais da pobreza. Não sou eu que “faço” o dar testemunho, mas sim a gratui­dade de Deus. A única coisa que podemos e devemos fa­zer é dar lugar a essa gratuidade, isto é, ficarmos vazios de nosso eu. Para isso é necessário um empenho maior do que todo o fazer ou não fazer, ou melhor, é necessário algo além do nosso fazer.

Quando falamos tanto em ser sinal, em dar o testemu­nho da pobreza etc., não soa nesse patético apelo da re­novação um tom fundamental, cheio de eu, do eu que pode e se sabe como autêntico?

Ora, com outras palavras, esse ego-ismo é o mesmo egoísmo privativo e alienado que atribuímos aos que bus­cavam a pobreza em espírito na representação negativa da crítica contra o “espírito e interioridade” (cf. nº 7).

  1. Falamos também da pobreza material como a solidariedade com os pobres. O que significa isso?

Poderia significar: tomar partido dos pobres, participar da sua sorte, para animá-los, para promovê-los e trabalhar e lutar junto com eles na reivindicação da justiça elemen­tar a que têm direito, a fim de poderem existir como ho­mens dignos. Ser pobre materialmente pode então ter a função de facilitar o meu relacionamento com os pobres, de compreendê-los melhor etc. Essa solidariedade podería­mos chamar de compaixão, isto é, compadecimento: pa­decer juntos a sorte dos pobres.

Para que e a partir de que eu faço isso? Dizemos: a par­tir do amor cristão ao próximo. Que relação existe entre esse amor ao próximo e a pobreza?

Pobreza material é algo como doença, desgraça, mal, o “medium” onde eu exerço o amor ao próximo? A função do amor solidário com os pobres seria a de eliminar esse mal? Ou, se não for possível eliminá-lo, de aliviá-lo desse mal? E se nem isso é possível, de sofrer com eles esse mal? E é isso a sua função?

Portanto, o que move essa compaixão é o desejo de ti­rar o pobre do seu estado negativo para que ele possa se pro-mover para o positivo. A privação desse positivo, a par­tir de um certo grau, começa a determinar um estado hu­mano que se chama infra-humano.

Mas a partir de onde esse positivo tem a verdade da sua positividade? O princípio que dá positividade ao posi­tivo para o qual queremos libertar os pobres não é ele o princípio que constituí a causa da opressão, injustiça, marginalização, pobreza: o poder? queremos pois pro-mover os pobres para e com o mesmo princípio do poder, portan­to da riqueza, princípio esse que os fez pobres e margina­lizados? O que significa promover, solidarizar-se, participar, se ricos e pobres estamos operando sob um mesmo domí­nio do princípio do poder e da posse?

  1. De repente, o problema da solidariedade com os po­bres descortina no seu próprio seio um outro problema muito mais fundamental: o problema do ser da nossa mo­dernidade produtiva e da dominação do seu poder. Esse problema essencial, embora não nos cause impactos emo­cionais como no caso da miséria social, é o problema mais agudo e trágico que todas as outras questões, pois é a raiz ontológica da miséria social. O que ofende mais a digni­dade humana: morrer de fome esfarrapado, mas sem per­der a compreensão e o pudor da dignidade humana da morte e da vida, da dor e da redenção, do desespero e da confiança, do pecado e da salvação, ou viver uma vida que apregoa como a dignidade humana e realização do homem, o poder, a posse, o saber, a projeção, o não sofrer, o não morrer? É bem possível que a paixão dos pobres seja a última ilha onde ainda se esconde o tesouro e a fonte da salvação para a nossa civilização do poder. Com­paixão, solidariedade, nesse caso, não significa mais ter piedade de cima para baixo, mas participar da paixão, isto é, do vigor de uma dimensão mais fundamental e origi­nária da pobreza. Promover não significa tanto pro-mover o necessitado “pobre” para um mundo “melhor” de poder e riqueza, mas sim: nós como necessitados do sentido mais profundo do humano vamos mendigar da pobreza dos po­bres a riqueza da vida para nos convertermos a um princí­pio mais digno do Homem. O que chamamos de poder, riqueza, bem-estar, progresso, desenvolvimento sofre, em sua raiz, de uma pobreza mortal acerca da verdade do Ho­mem, de tal sorte que é impotente para dar um sentido de ser à morte, à dor, ao sofrimento, à vida, às negatividades da Terra dos homens.

O problema da pobreza material em mim como francis­cano não está no fato de ser rico ou pobre materialmente, mas em sofrer de tal modo de anemia espiritual que nem sequer percebo a provocação da questão social como a provocação para a busca do sentido originário do Homem e do ser. A volta às fontes de São Francisco, à compreensão mais profunda da pobreza como se desvelou em São Fran­cisco, tem a tarefa de colocar-nos a questão da pobreza so­cial nesse nível essencial, onde se dá a referência epocal do sentido do Ser.

  1. A pobreza em São Francisco é uma concepção essen­cial do que é o homem. Está portanto no nível radical do ser e não no nível sociológico, psicológico ou político. Por isso, o amor de São Francisco à pobreza material deve ser entendido a partir e dentro dessa discussão radical e não a partir do nosso interesse atual da sociologia política e política social.

Interessar-se por essa dimensão não é alienação, mesmo que a situação atual seja premente no nível social, pois todas as questões, sejam elas psicológicas, sociológicas ou políticas etc. acabam, no fundo, colocando a questão do ser: o que é e como é o modo de ser que liberta o homem para aquilo que o faz humano? O que é essencial do homem?

Dizemos: a essência do homem é a liberdade. Por trás da questão da pobreza está pois a questão acerca da liberda­de como o vigor essencial do Homem.

3 Refletir acerca da pobreza é refletir acerca da riqueza essencial

  1. Dissemos no nº 13: ser solidário com os pobres, pro­mover significa que nós, “ricos”, como indigentes do senti­do mais profundo do homem, mendigamos da pobreza do pobre a riqueza da vida, para nos convertermos a um princípio mais radical e essencial do homem. Isto signi­fica: a reflexão da pobreza material é e, ao mesmo tem­po, pressupõe a reflexão acerca do que entendemos por riqueza.

Vendei vossos bens e dai-os de esmola; fazei para vós bolsas que não se gastam, um tesouro ines­gotável nos céus, onde o ladrão não chega nem a traça rói: porque onde está o vosso tesouro, ali estará o vosso coração (Lc 12,33-34).

  1. Você poderia objetar: um tal texto da Bíblia não po­deria se transformar em ópio do povo? Pensar só no além ­túmulo, esquecendo-se da realidade terrestre? Não pode favorecer a resignação, a alienação, a nada fazer para me­lhorar a nossa condição humana, esperando tudo do que virá depois da morte?

Talvez fosse possível ler o texto numa tal representa­ção… Coloquemos no entanto o texto no nível da nossa reflexão essencial.

  1. a) Para a nossa reflexão é importante ver nesse texto uma estrutura que está insinuada também em Mt 7,1-2: “Não julgueis para não serdes julgados, porque com o juí­zo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que medirdes ser-vos-á medido”. Isto significa: ao julgar­mos os outros, ao medirmos os outros, traímos o que so­mos, o que valemos; nos julgamos a nós mesmos. Em ou­tras palavras, a medida que projetamos sobre os outros, é a medida que temos, é a medida que somos. Assim, ao medir os outros, na realidade estamos medindo a nós mes­mos. O julgamento sobre os outros, a medição dos outros não é outra coisa do que a expressão do que somos.

Assim, em relação a Lc 12,33-34 podemos dizer: lá onde está a medida de vossa riqueza, ali está a medida do vosso coração. A medida com que medis algo como rico ou po­bre é a medida do vosso coração. Algo é rico ou pobre, con­forme a medida que acolhe o vosso coração. Que algo seja rico ou pobre trai a riqueza ou pobreza do vosso coração.

Coração é o âmago, a essência, a cordialidade de ser. Se dizemos: isso é rico, aquilo é pobre, isso é bom, aquilo é ruim, isso tem valor, aquilo não tem valor, isso é aceitá­vel, aquilo inaceitável, esse juízo julga e dá a medida da cordialidade de ser que emite tais sentenças.

Se chamarmos de riqueza essencial a cordialidade de ser, podemos então afirmar: a discussão sobre a pobreza mate­rial, seu valor, seu desvalor, a discussão sobre o móvel que nos leva ao engajamento social, à solidariedade com os pobres, ao testemunho da pobreza etc., trai onde estamos, isto é, qual o nosso inter-esse em referência à riqueza essencial.

Riqueza essencial, no entanto, é o que denominamos de Pobreza em espírito, Pobreza essencial ou vigor da Pobre­za interior.

  1. b) Do que dissemos, podemos concluir: Somente pode ser rico essencialmente quem pode, livremente, ter ou não ter riquezas. Somente pode, livremente, ter ou não ter ri­quezas quem está no inter-esse da cordialidade de ser, isto é, conhece a essência da riqueza, a riqueza essencial. Isto, porém, só pode quem pode ser pobre no sentido da pobreza que não é nenhuma privação.

A privação é a insatisfação do não-possuir que busca constante e imediatamente encher o vácuo de si mesmo, querendo possuir sempre mais. No desejo de possuir sem­pre mais, a privação se trai como não-se-possuir na cordia­lidade de ser. Como tal, a privação não brota do vigor da Pobreza essencial. Ela é apenas a indigência que se apega sempre mais à riqueza, sem poder conhecer a verdadeira essência da riqueza que é a Pobreza essencial. Assim, é na medida em que desconhece a riqueza da Pobreza essen­cial que a privação se enreda na problemática do ter ou não ter, definindo a Pobreza essencial no nível do possuir, ao passo que a Pobreza essencial está lá onde o nosso ser e pensar se recolhe na acolhida da cordialidade de ser, da liberdade, do tesouro, da riqueza inesgotável do país essencial, isto é, dos céus, onde o ladrão não chega nem a traça rói. Onde está o vosso tesouro, ali está vosso coração…

  1. Somente na medida em que buscarmos a cordialidade da riqueza essencial, da Pobreza em espírito, do vigor da Po­breza essencial, podemos nos relacionar criticamente à ri­queza e à pobreza material. Somente na medida em que nos relacionarmos criticamente, a partir da riqueza essencial, à riqueza e à pobreza material, podemos promover a sociedade de consumo a descobrir o verdadeiro sentido da sua riqueza e da sua pobreza, do seu poder e da sua impo­tência. Pois criticar é purificar, ou melhor, reconduzir a re­presentação ao seu sentido originário. Somente na medida em que promovermos assim a sociedade, podemos ser os testemunhos da Pobreza.

4.  O que é a Pobreza em Espírito: o vigor da pobreza essencial ou a Riqueza essencial?

  1. A pobreza em espírito não é coisa. Por isso a pergun­ta não pode ser respondida com a resposta que dá determi­nações objetivas e fixas como informações de uma coisa existente em si diante de mim. Só podemos insinuar um convite para acolher o fenômeno em si mesmo.

A Pobreza em espírito é antes uma atitude interior. Ati­tude vem do latim aptitudo, significa aptidão. A forma obje­tiva de aptitudo é aptus, em português apto. Aptus vem do hindu antigo aptá-h e significa: apropriado. O ap do aptá-h significa: alcançar, apropriar. O verbo latino derivado de aptá-h, apio (apere) significa: ligar, coligar, prender, ajuntar firmemente com vínculo.

As significações dessas palavras nos indicam o que de­vemos entender por atitude.

Atitude é a firmeza e a coesão, a conseqüência interna da concreção que ajunta e coliga os afazeres da existência ao alcance do uno e simples, no recolhimento e na acolhi­da do limite, isto é, da plenitude de si mesma. É o que cha­mamos de unidade interior ou interioridade. Por isso, dizer atitude interior é uma tautologia.

Com outras palavras: atitude é o vigor do próprio, a pro­priedade. A propriedade é a riqueza de ser. A cordialida­de que nasce do recolhimento da existência. O recolhimen­to da existência, a interioridade é a permanência no envio do uno como na fluência da identidade. A identidade dá sua vida às diferenças e vive das diferenças, constituindo-se como o vigor inesgotável da interioridade de todos os entes.

Exemplos:

– Como Frei Egídio louva mais a obediência do que a oração (Silveira, 1983, p. 1257-8).

– O sopro da Natureza, A Via de Chuang-tzu (Merton, 1994, p. 52).

– A riqueza é essencialmente fonte, em cuja fluência a posse se torna propriedade. A fonte é o desenvolvimento do Uno para o vigor inesgotável da sua unidade. O uno nesse sentido é o simples.

  1. A pobreza em espírito como atitude é portanto propriedade. O termo propriedade, no seu uso comum, signi­fica posse, domínio, bens que possuímos.

Aqui, na reflexão ele significa: o vigor do próprio.

O que é o próprio? O que está plenamente na “sua”, o satisfeito, o que tem a medida de si mesmo em plenitude: nem mais nem menos, no ponto. O que assim está “no ponto”, os antigos o chamavam de bem, de bondade (cf. as orações de São Francisco, quantas vezes ocorre o ter­mo bom, bem).

A nossa representação no entanto imagina a satisfa­ção do próprio, a sua bondade, estaticamente. Assim, pen­sa que o satisfeito é algo como um copo cheio, saturado e parado, onde não há mais nenhuma possibilidade de aber­tura para o outro. É nesse sentido que dizemos um sujeito cheio de si. O sujeito cheio de si é uma forma decadente do próprio.

A satisfação do próprio no entanto é dinâmica. É algo como a satisfação do vigor da fonte que inesgotavelmente envia a fluência do riacho, a cada instante novo e originário. No envio da fluência, no entanto, a fonte não deixa de ser ela mesma. A satisfação do próprio é a efluência da identidade na diferença, e a afluência da diferença na identi­dade é como a fluência musical. A cordialidade da música, a musicalidade, envia o fluxo da cadência como a diferenciação de notas, como articulações, e ao se estruturar nesse desenca­deamento, conasce, concresce, se conserva e se consuma como o vigor da musicalidade. A cordialidade da música se envia a si mesma, e ao assim se dar, vem a si na cadência.

Nesse movimento de efluxo e afluxo, de dar-se e vir a si, podemos distinguir dois movimentos:

  1. Um movimento para fora, para a decadência que ten­de ao fechamento, à delimitação de uma articulação bem concreta e determinada.
  2. Simultaneamente um outro movimento para dentro, que procura manter-se sempre aberto à cordialidade do envio, à liberdade, à vivacidade, à novidade, à inesgotabili­dade da doação.

O movimento a) cria diferenças e concreções. O movi­mento b) recolhe as diferenças na simplicidade do uno e dá a cada coisa a nitidez, o frescor, a bondade, a consistên­cia, o próprio da sua diferença, o vigor da sua interiorida­de, conduzindo-a à satis-fação de si mesma. Por isso, é na medida da abertura do b) à doação do envio que está a diferença, a concreção do a).

Imaginemos a vida como a cordialidade inesgotável da magnífica inspiração artística que se difunde livre, gratuita e jovialmente em mil e mil concreções de diferenças. Em cada uma dessas concreções a vida está toda presente com a plenitude da sua graça, com o carinho e bondade, cui­dando dela nos mínimos detalhes para que a obra seja, na sua diferença, ela mesma. Digamos que exista um artis­ta que se coloca justamente naquele ponto onde se dá o envio da difusão que se orienta para a consumação das diferenças em obras. Esse artista seria como que o tímpano de ressonância que acolhe a inesgotável inspiração e dei­xa ser a concreção dessa inspiração em mil e mil possibili­dades de suas diferenças, em melodias.

Isso é criar. Criar nesse sentido é deixar ser a proprieda­de de cada diferença no seu vigor, e nesse deixar ser, tornar-se cada vez mais in-spirado, isto é, acolher o modo de ser da cordialidade da vida. Acolher o modo de ser da cor­dialidade da vida é abrir-se para a inesgotável profundidade da gratuidade, da liberdade da doação, é tornar-se cada vez mais como Deus que é o Mistério da profundidade do seu mistério insondável.

A obra que nasce de um tal envio é a entoação, o louvor do Mistério de Deus. O louvor é a festa da cordialidade do envio na confissão cada vez mais nítida, na transparên­cia, do Inefável, do Inaudível, do Intocável como do recato da abscôndita liberdade do grande, altíssimo e bom Senhor (cf. O cântico do sol).

Isto significa: todos os entes são na medida em que são reportados a e temporalizam a nitidez e a transparência da noite clara do Mistério da liberdade de Deus. Portanto: o que constitui a interioridade dos entes é a liberdade abscôndita do Mistério de Deus.

  1. O termo pobreza, segundo São Francisco, parece in­dicar essa atitude de acolhida acima insinuada.

O que na nossa reflexão denominamos de Pobreza em espírito é o movimento b), a abertura radical ao uno, ao inesgotável Mistério do envio jovial da Liberdade de Deus.

O que na nossa reflexão denominamos de pobreza ma­terial é o movimento a), a diligência, o serviço na cura da concreção do próprio de todas as coisas, a partir da joviali­dade de Deus, difusivo na gratuidade.

Quando essa acolhida constitui o único e o radical neces­sário da existência (Lc 10,42), quando as múltiplas arti­culações da minha existência se recolhem no simples dessa acolhida, sou pobre essencialmente. Sou a propriedade da riqueza essencial, livre de todas as diferenças das articula­ções. Sou o pastor e não o dominador dos entes, sou mãe e pai, isto é, o servo de toda humana criatura, rico em vir­tude, isto é, rico em vigor da cordialidade de ser, o teste­munho, isto é, a fala da Linguagem do Mistério da Liberda­de, sou radical, sou solidário com tudo a partir da raiz do ser (O homem do Tao, Merton, 1994, p.120).

  1. Dissemos acima (nº 2): Todos os entes são na medi­da em que são reportados a e temporalizam a nitidez e a transparência da noite clara do Mistério da liberdade de Deus. O que constitui a interioridade dos entes é a liberda­de abscôndita do Mistério de Deus. Isto significa: em todos os entes está presente o Mistério da gratuidade de Deus. Mas como aparece o Mistério de Deus? Ele não apare­ce… Ele se esquiva, se retrai no seu silêncio. Esse re­trair-se envia a si próprio como o encanto e estranhamen­to do “proprium” de todas as coisas. Ao se retrair, o Mistério nos alicia, nos evoca, nos apela no fascínio da sua estranheza, desencadeando a vontade, isto é, a cobiça de posse, de domínio, do asseguramento do Estranho-Outro. O modo de ser que chamamos de cobiça dos olhos, de cobiça dos sentidos é a nossa existência na provocação do alienamento do Mistério do Deus abscôndito. Essa provo­cação se manifesta como a avidez de posse e domínio, na insatisfação sempre crescente da privação, mas também na satisfação saturada da posse; aparece também na repulsa da náusea do que nos desagrada, no tédio, na monotonia vazia etc. Pois no fundo da repulsa somos atingidos pela atração do estranho ameaçador, pelo abismo fascinante do desconhecido; no tédio, na monotonia, no vazio de senti­do, pela angústia difusa do esquecimento total do estra­nho, pela asfixia da impossibilidade de ser diferente no es­tranho de nós mesmos.

O que buscamos, pois, na cobiça, na vontade da posse e do poder, na cura e ânsia do domínio é a apropriação da graça do Radical-Outro. Pois, sentimos: esse radical-outro é o próprio do desejo do nosso coração, aquilo que satis-faz a interioridade mais íntima de nós mesmos.

É na tendência dessa busca que se constitui o Eu. No entanto, essa busca do Eu se precipita e se atropela na própria tendência de si mesma. Encantada pela graça do estranho-outro, a busca corre atrás dele, procurando se­gurar o Radical-outro como o “proprium” de si mesma, o seu próprio Eu, como a sua própria identidade. O encan­to do Mistério no entanto está na jovialidade. A jovialidade emana do retrair-se do Mistério na sua liberdade. O próprio da liberdade de Deus é a Gratuidade.

A apropriação do Mistério da gratuidade de Deus, isto é, da graça de Deus não é pois assegurar-se, apoderar-se, apossar-se do Mistério, mas sim deixar ser o Mistério de Deus na sua cordialidade, deixar-se guiar por ele, abrir-se a ele no “fíat” incondicional. É nesse abrir-se que se dá a identidade do Eu com a Identidade do Mistério da liber­dade de Deus: ao deixar ser a liberdade de Deus, somos no mesmo fiat da nascividade cordial da sua graça, somos gratuitos como o próprio Deus, somos em verdade filhos de Deus (cf. o relato do Gênesis: as palavras da criação: fiat lux etc.)

É nesse sentido que diz Chuang-tzu: A alegria é leve como a pena, mas quem pode carregá-la? (Confúcio e o louco, Merton, 1994, p. 77). A busca do Eu não pode carregar a graça da liberdade da jovialidade de Deus. O único caminho para possuir, dominar e assegurar a jovia­lidade de Deus é deixar-se carregar por ela, tornar-se pro­priedade da sua riqueza.

Essa impossibilidade de carregar a leveza, isto é, a graça da liberdade de Deus, São Francisco a chamou de: Eu, a vontade própria, carne ou corpo.

Essa apropriação  errônea da identidade de Deus, por conseguinte do meu próprio eu, é a causa do desejo de possuir, de dominar. A esse tipo errôneo e inadequado de apropriação, de auto-identificação, na sua regra São Francisco (Silveira, 1983, p. 67) chamou de próprio. Ali a Pobre­za evangélica se define: nada de próprio, sine proprio, sem o próprio.

A palavra sem, latim sine, se relaciona com o hindu anti­go sanutar que significa: fora de, bem longe de.

A Pobreza como sine próprio significa, pois, o modo de buscar o próprio fora, bem longe do caminho inadequa­do da falsa apropriação como do querer possuir, dominar, assegurar a riqueza essencial que só pode ser apropriada, deixando-se apropriar pela graça da alegria da liberdade do Deus de Jesus Cristo.

A vida de Jesus Cristo é o caminho dessa libertação. A cruz de Jesus Cristo é a alegre-nova dessa libertação. Mas por que a cruz? Por que a abnegação, o sofrimento, a privação? Por que tanta negatividade, se a Boa-Nova é a Nova da alegria da liberdade divina?

Dissemos acima: É a impossibilidade de carregar a leve­za, isto é, a graça da liberdade de Deus que constitui o Eu. Ao se apossar das coisas, ao adquirir o poder, ao constituir segurança do meu eu, eu me iludo, pensando ter alcançado a satis-fação da verdadeira apropriação. O sofrimento, a negatividade surge, quando descobrimos que a nossa pre­tensa apropriação não nos pode satisfazer, porque uma tal apropriação é, em sua raiz, insegura, falsa e passageira, por não ser a identidade radical do meu próprio eu. O sofrimento, a negatividade, no entanto, me revela a estru­tura fundamental do meu modo ilusório de existir. Ela nos mostra que a verdadeira apropriação é abandonar o ca­minho desse pequeno e bitolado eu, para largar-se à cor­dialidade da gratuidade. Isto significa: renúncia a todo o poder, a toda segurança, na acolhida da cordialidade de ser. Todo o empenho da abnegação tende portanto a de­sintegrar o bloqueamento do Eu, para que liberte o seu vigor na abertura da acolhida do radical próprio de nós mesmos, da cordialidade do Deus de Jesus Cristo, cuja essência é a gratuidade.

5 O sine proprio e o cotidiano

  1. Algumas características do modo de ser chamado Po­breza essencial ou Pobreza em espírito, quando ele se ma­nifesta em suas concreções.

– Vivo: é no frescor do originário; flexível e leve; vivaz.

– Decadência: irrequieto, instável, ávido de novidades, espalhafatoso.

– Vigoroso: é na firmeza e na fortaleza do simples e do uno, no envio de infindas concreções, cada vez diferente; é na consistência da plenitude da diferença, concreto; lento no crescimento, sempre no seu tempo, cada passo a seu tempo; apto à espera; in-sistente no pouco, na cordialidade da acolhida; sempre todo em cada coisa; é na paciência da afirmação, tenaz na coragem de ser; jamais inflacioná­rio; sempre só o próprio; autêntico; constância suave e forte.

– Decadência: agressivo, violento, explosivo, totalitário no igual, disperso nas diferenças da igualdade, pesado, intem­pestivo, precipitado, impaciente, inflacionário, fogo de pa­lha; rápido em se inflamar; rápido em desanimar; temerá­rio e esbanjador de energias, falso, vazio, abstrato.

– Pleno: é todo aberto à simplicidade do envio que se difunde na jovialidade concreta das diferenças; nada é, por ser tudo da vitalidade do deixar-ser o próprio de todas as coisas; não se fixa, por estar presente todo e inteiro em cada coisa; não quer nada possuir, por ser a propriedade da riqueza essencial.

– Decadência: escancarado do vazio da igualdade; ape­ga-se ao abstrato normativo; facilidade em encher-se com o imediato; ávido de novidades, presente em toda parte sem estar em nenhuma situação concretamente; tudo quer possuir por estar privado da riqueza essencial e, por isso, de nada pode se apropriar.

Experimente descobrir mais características nesse estilo.

  1. Examinar no fazer ou não-fazer, no ter ou não-ter do nosso cotidiano, como se dá o caminhar dessa desintegra­ção do Eu falso, para a liberdade do sine proprio.

 

2 A obediência

(Grande Sinal, XXIX, 1975, 483-490)

  1. Obediência, na acepção usual, é um relacionamento do poder. Poder é o pressuposto, a partir do qual se esta­belece a medida de superior e inferior. Quem tem mais poder é superior. Quem tem menos poder é inferior. O in­ferior, pela sua posição na escala do poder, é submisso ao superior. A superioridade no poder dá ao superior o direi­to de mando e ao inferior o dever de submeter-se à vontade do superior, executando, cumprindo as suas ordens, estan­do sujeito a ele. Manda quem tem poder, obedece quem não tem poder. Essa submissão, decorrente da estruturação do poder, e tudo quanto ela implica em referência ao fazer e não-fazer do nosso cotidiano, se chama obediência. Nessa perspectiva o fundamento da obediência é o poder. Mas o que fundamenta o poder? Dizemos: a autoridade. Mas donde vem a autoridade? Em que consiste a autoridade? Se a autoridade é o fundamento do poder, então onde há autoridade, há também o poder? Onde há o poder, há tam­bém a autoridade?
  2. Você dirá: esse esquema não é adequado para escla­recer a obediência religiosa, hoje. Na comunidade cujo pressuposto é o fraternismo, somos todos iguais. Não há su­perior nem inferior. O que existe é a co-responsabilidade de todos para com a comunidade. Essa co-responsabilidade es­tabelece funções de cada um na sua co-responsabilidade pela comunidade. Caso se escolha um membro da comuni­dade como o coordenador, isso não significa que ele tenha mais poder, seja superior no poder. Ele é apenas o repre­sentante, o dinamizador daquilo que fundamenta e move a comunidade: da co-responsabilidade fraternal. Mas o que é isso: a co-responsabilidade fraternal? A que responde, a que corresponde, a que e com que se mede a co-responsabi­lidade? Ao bem da comunidade? Mas o que e quem esta­belece o que é bom para a comunidade? O coordenador? O mais inteligente? O mais santo? O diálogo? Mas a partir de onde, seja o coordenador ou o mais inteligente, seja o mais santo ou o diálogo, estabelece o que é bom para a comunidade? A partir de onde vem a determinação daqui­lo que funda, fundamenta e move a comunidade? Na co­munidade onde cada qual é igual na co-responsabilidade fraternal, cada qual tem suas funções. Essas funções têm respectivos direitos e deveres, determinações de suas com­petências, do que pode e não pode. Embora não gostemos de falar do poder, do superior e inferior, aqui, na estrutura funcional, volta de novo, de uma forma bem camuflada, o problema do poder e da autoridade, insinuado no nº 1: o que fundamenta o poder e o não-poder das funções na comunidade? A co-responsabilidade? Mas a que correspon­de a co-responsabilidade? Em que consiste a essência, o vigor da co-responsabilidade? Se a co-responsabilidade é o fundamento das funções, então onde há co-responsabili­dade, há também funções? Onde há funções, há também co-responsabilidade?

Na renovação, ao trocarmos o esquema do poder e da autoridade pelo esquema da co-responsabilidade, pensamos ter superado a concepção antiga da obediência. No entanto, a troca de esquema apenas camuflou a questão, pois deixou de colocar, e esqueceu, a questão essencial da obediência: o que é a essência da autoridade cristã, para nós, franciscanos?

  1. Autoridade vem do latim auctoritas. Auctoritas é o beneplácito adequado que autentica o autor, o certificado, o testemunho da autoria do autor.

Autor, auctor em latim, vem do verbo augere e significa: fazer crescer, aumentar, encher, enriquecer. Intransitivo: tornar-se maior, crescer, aumentar. Autoridade é o que cer­tifica, faz aparecer a verdade do aumento, do crescimento. O que faz aparecer a verdade do crescimento é a plenitude do vigor de crescimento, a concreção. A autoridade é a ple­nitude do vigor do crescimento. Com outras palavras: au­toridade é o ser do crescimento.

Na Via de Chuang-tzu, uma anedota nos diz como é a autoridade enquanto o ser do crescimento (O galo de briga, Merton, 1994, p. 142).

A imobilidade do galo é como a plenitude-contenção do crescimento do vigor da luta, que por assim dizer é toda presença na sua serena grandeza. Aqui o ser é a própria presença do vigor como o desenvolvimento pleno do con­crescimento, isto é, da concreção. Esse desvelamento da ple­nitude é a autoridade. Por isso a autoridade é a plenitude do poder. A plenitude do poder como autoridade é, porém, serena em si mesma por ser puro poder. De um tal poder da autoridade diz Laotse:

Quem pode conduzir bem não é guerreiro.

Quem pode lutar bem não é raivoso.

Quem pode superar bem os ini­migos não luta com eles.

Quem pode usar bem os ho­mens se mantém submisso a eles.

Isto é a Vida que não luta; isto é a força que envia os homens;

Isto é o pólo que alcança até os céus.

Mas em que consiste a serenidade do poder da autorida­de? O que é o puro poder? O puro poder é poder puro. A inocência do poder na sua propriedade, isto é, na sua vita­lidade. A vitalidade da inocência do poder como o poder da inocência é a autoridade. É dessa autoridade que vive a obediência. Como entender isso?

  1. O substantivo poder vem do verbo: poder. Em latim se diz: possum, potui, posse: posso, pude, poder. Posso, possum, vem do potis sum. No indogermânico poti-s signi­fica: senhor, regente, o pai de família, esposo; poti signifi­ca: mesmo, próprio; em alemão selbst, em inglês self. No hindu antigo em vez de poti se dizia paiti: senhor, dono, esposo; pátyate: ele domina, rege, ele participa.

O que insinua pois o poder enquanto: ser senhor, pai, re­gente, esposo, e próprio, mesmo, participante?

Hoje, sob o domínio do poder da subjetividade entende­mos todas essas palavras como indicativos do sujeito. Pri­mordialmente há o sujeito que por sua vez possui a função, o atributo de ser senhor, regente, pai, ele mesmo etc. Essa colocação nos impede de vermos o verdadeiro sentido do poder. Para compreendermos radicalmente o que é o poder, é necessário pensar, por assim dizer, às avessas: primordialmente há senhorio, dominância, paternidade, esponsabilidade, identidade, propriedade. O “sujeito” não é outra coisa do que participante, a concretização dessa realidade pri­mordial. Senhor, regente, dominus, esposo, pai são a pre­sença do vigor, isto é, autoridade do senhorio, regência, do­minância, esponsabilidade, paternidade. Somente enquanto tais o senhor é senhor, o rei é regente, o dono é dominus, o pai é pai de família. O senhor é, enquanto autoridade, ser­vo, à mercê do senhorio; o pai é, enquanto autoridade, ser­vo, à mercê da paternidade; o esposo é, enquanto autorida­de, servo, à mercê da “esponsabilidade” (de esposo). Os termos senhor, rei, pai, esposo nessa perspectiva não são substan­tivos, mas sim adjetivos! Poder, portanto, é o modo de ser do servo, isto é, servir, acolher. É nesse modo, nesse acolher que o senhor, o dominus, o rei, o esposo se apropria, vem a si naquilo que per-faz a propriedade dele mesmo: a auto­ridade. Por isso, não é pelo fato de o rei possuir a regên­cia como sua posse que ele tem o poder. Antes, pelo con­trário, é na medida em que é possuído pelo senhorio, é na medida em que o rei é possuído pela regência que ele tem o poder. É nesse sentido que eles participam do poder.

Poder significa portanto a atitude, isto é, a aptidão de acolhida. Mas acolhida de quê? O que é isso que constitui o vigor do poder, que vem à fala nas palavras como senho­rio, dominância, regência, paternidade, “esponsabilidade”? Não há neles todos algo como a dominação do poder na acepção desses termos na nossa compreensão usual? A dominação do poder que parece contradizer o modo de ser da acolhida?

  1. Vamos chamar de regência o vigor que dá autoridade, Isto é, a plenitude do crescimento ao senhor, ao rei, ao pai, ao esposo, e que na nossa compreensão usual se entende como dominação do poder e poder da dominação. Em que consiste originariamente a regência a que se refere o se­nhor, o rei, o pai, o esposo no seu poder como a acolhida?

Regência, rei vem do verbo reinar, reger. Reger (latim: rego, regere) tem o radical indogermânico reg: ereto, colo­car ereto, erigir, dirigir. Nós entendemos a expressão colo­car ereto, erigir, abstratamente como movimento geométri­co. Algo deitado, o horizontal, se move para a posição ver­tical. O profeta Ezequiel 37,10, no entanto, nos insinua como sentir o colocar ereto do reger: corpos deitados, ina­nimados, como que no profundo sono da morte. Sobre esse monte inerte de corpos da morte se dirige a palavra do Se­nhor, qual zéfiro sobre as copas da floresta obscura e emu­decida no torpor da noite. De repente, a massa inerte se agi­ta na festa da alegria de viver e se levanta ereta, ressurge como a coorte ordenada na plenitude do seu vigor. O ere­to, portanto, significa mais do que uma posição geométrica. Indica antes o ressurgir da vida no vigor da sua presença. Por isso, por exemplo, a eclosão de verdor depois de uma chuva na terra árida do deserto é erigir-se, colocar-se ereto, o viço: a vigência, isto é, a regência. Reger é portanto o movimento do aparecimento da vida, a vigência da cordialidade de ser. Assim, podemos dizer: o poder como regência é a vigência da cordialidade de vida.

  1. Como é, porém, a vigência desse poder: a regência? Diz Laotse: O Tao é transbordante; pode estar à direita e à esquerda. Todas as coisas lhe devem o seu ser, e não se nega a ninguém. Consumada a obra, não a destina como sua posse. Veste e alimenta todas as coisas e não se faz seu senhor. Enquanto jamais é possessivo, pode-se chamá-lo de menor. Enquanto todas as coisas dele dependem, sem o conhecerem como senhor, pode-se chamá-lo de grande. Por isso, também o enviado nunca se faz grande; assim perfaz a sua grande obra.

A dominação da cordialidade de vida, a regência, é algo como a presença da tarde de outono. Na suavidade clara da transparência a tarde, a véspera, acolhe a paisagem e nessa acolhida ela a faz aparecer nítida em todos os seus detalhes. Essa maneira de dominação do poder é a pleni­tude do poder, a autoridade, e se chama: a Paz. Há nesse poder algo como carinho do esposo, algo como o rigor sereno da bondade do pai, algo como ternura e cuidado da mãe e ao mesmo tempo algo como a dignidade humilde da grandeza do rei: a benignidade.

Essa maneira de ser da vigência da plenitude do poder, São Francisco a chamou de servir ou ser menor. Servir ou ser menor é o modo de ser do puro poder. Poder como ser­vir é a inocência, isto é, a nascividade, a originalidade do poder. A verdadeira garantia, a autoridade do poder é a sua inocência.

  1. Mas por que o termo servir, servo? Servir é um termo que elimina toda e qualquer suspeita de superioridade, de ser mais, melhor. O poder que serve pode ser generoso, superabundante, vivo, forte e apaixonado, mas não tem a conotação de domínio, opressão, superioridade, “poder”. Quem serve, dá tudo, mas fá-lo não por favor, não à mercê da grandeza da sua generosidade, mas como quem recebe o favor. Mas no poder, essa doação de quem recebe o favor não é “humildade” no sentido de submissão ao “poder”, ao direito, ao medo do outro, mas sim: a total abertura de simpatia, diria meiguice, ternura, uma liberdade gratuita da bondade. É o pudor do mistério que ao se dar se retrai no seu recolhimento, sem se posicionar. É nessa gratuida­de que a mãe serve ao seu recém-nascido. É a doação agra­decida e graciosa do encontro, é aquela abertura que se expressa numa única palavra, num único olhar: Tu (cf. Jo 20,16). Essa gratidão, essa benignidade, essa ternura é o núcleo da inocência do poder, do servir, da regência. Isto traz conseqüências para a nossa concepção do poder do Deus do Evangelho. Deus, ao se manifestar, não se revela como majestade, força, doador-supremo, como ser supremo, mas sim como benignidade, gratuidade, gratidão, graça, no servir. Ele é o servo de toda humana criatura. Enquanto servo ele é frágil, vulnerável, não tem outro poder a não ser essa regência da benignidade, a não ser o rigor, a lim­pidez e o pudor da bondade, a gratuidade ela mesma e na­da mais: A rosa é sem porquê. Floresce por florescer (Angelus Silesius). A fragilidade dessa gratuidade, no entanto, é mais radicalmente vigor do que o poder de dominação, pois é a jovialidade de ser. É a nascividade, a inocência, a liberdade da fluência de ser, da vida que não necessita do poder de dominação para poder ser em super-abundân­cia. Essa nascividade é tão jovial que consegue de graça e com graça assumir e sustentar tudo que o poder de domi­nação não consegue assumir: a negatividade. Na sua cor­dialidade colhe e recolhe o mais baixo, o mínimo, com tanta graça e gratidão, de tal sorte que nada há que não seja de graça e graça do Mistério. Por isso podemos também de­finir o poder do Deus de Jesus Cristo como a minoridade de Deus e Deus de minoridade.

Encarnação, Jesus Cristo como envio da História que veio para servir, é a concretização desse Poder da regência de Deus. A Boa-Nova de Jesus Cristo consiste em procla­mar que ser-homem, ser criatura, ser livre, realizar-se hu­manamente, é poder servir assim, dessa maneira tão lím­pida, tão humilde, tão gratuita, na jovialidade e no pudor de ser como só Deus pode e consegue ser. Ser assim é ser-menor. Mas ser-menor assim é ser verdadeiramente po­deroso como filho de Deus. Nesse servir a toda humana criatura podemos dizer do fundo do coração, a partir do núcleo da nossa identidade, exclamando Abba, Pai!, pois somos apropriados do mesmo poder de Deus, somos os herdeiros do seu poder, servindo na gratuidade da cordia­lidade da autoridade de Deus. É desse poder que vive a obediência.

  1. O termo obediência vem do latim oboedientia. Oboe­dientia é a contração de duas palavras: ob + audientia. Obe­diência é ob-audiência. Ob é uma preposição indicativa da abertura de acolhida. Audiência que vem do verbo audire, isto é, ouvir, indica o vigor da escuta. Ob-audiência é pois a atitude de ser todo ouvido na escuta e acolhida. A partir do que até aqui refletimos, a obediência é a atitude (a respeito da palavra atitude, cf. o artigo “A pobreza e a liberdade interior”, supra p.) da radical acolhida do Mistério do poder da autoridade e da autoridade do poder do Deus de Jesus Cristo que se cha­ma: servir. Auscultar em tudo, também no impositivo da prepotência, no “poder” imperialista de uma época, de uma estrutura a presença da inocência do poder de Deus, e em­penhar-se de corpo e alma para se libertar na acolhida dessa inocência para o poder puro da liberdade, isto é, da cordialidade, e só contar com a garantia do poder da ino­cência do mistério da gratuidade de Deus, é obediência. Se é assim, devemos inverter a formulação usual que afir­ma: manda quem tem autoridade, manda quem tem poder; dizendo: só pode obedecer quem tem autoridade, poder, isto é, quem se apropriou, se tornou propriedade do au­mento da cordialidade de Deus. Não é nessa obediên­cia que se constitui a Liberdade, como a liberdade dos filhos de Deus?

Para a reflexão: Como aparecem no nosso cotidiano o poder e a autoridade? Favor re-cordar: as considerações aci­ma não precisam ser aceitas ou seguidas. Só servem para provocar a reflexão. Provocar tem também o sen­tido de irritar. Mas não foram escritas para irritar de propósito. Não se trata de uma técnica de provocação. Pro­vocar significa chamar para frente, chamar à patência. O pensamento provoca no sentido de não me poupar no em­penho de trazer para frente de mim mesmo o que me mo­ve no cotidiano. O pensamento, em vez de facilitar o traba­lho, o agrava. Isso pode irritar a gente. No entanto, a verda­deira dificuldade do trabalho não está nisso que se sinta a dificuldade do problema, mas sim nisso que não se sinta a gravidade, o peso do problema. Assim caímos facilmente na repetição de lugares comuns da nossa representação. Fa­vor usar as considerações como pro-vocação no sentido aci­ma insinuado. Não podem nem querem poupar a você do empenho de você mesmo pensar o problema na sua gra­vidade. O vigor do empenho de pensar é como a morte. Nin­guém pode morrer em seu lugar. Ninguém lhe pode dar esse vigor a não ser você mesmo.

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