Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A  leitura dos escritos de São Francisco de Assis

29/04/2021

 

O autor e o leitor

1 – A leitura do livro “Os escritos de São Francisco  de Assis”.

2 – Quem é São Francisco  de Assis? O autor do livro?!  E o livro o que é? O livro do autor!? O autor do livro e o livro do autor; no entanto, estes só são, na medida, em que obedecem à autoridade.

3 – Autoridade é aumento.  O crescimento do vigor da presença, isto é, do aparecimento que subsume o fazer e o não fazer do autor, no livro, como lugar de afeição da – Alétheia.

4 – Alétheia  é a autoridade do ser, isto é, o envio do aparecimento da presença do ser. O ser,  porém se envia como presença, se oculta no poder do seu mistério. Esse retraimento do ser  é a fonte inesgotável da autoridade. Na autoridade presente como  o crescimento  do vigor, exige o retraimento  do mistério  como a autoridade do ausente, que acolhe e recolhe todas as coisas na fluência do seu retraimento, liberando-as na autoridade da sua vitalidade.

5 – O autor do livro é autoridade enquanto se abnega, isto é, deixa de fazer o fazer e o não fazer da autoridade para deixar-se fazer na fala da vigência  do ausente como a concreção de Alétheia, a obra.

6 – A leitura é o empenho da ascese, na qual nos abnegamos  da autoria do autor do livro para deixar-nos  acolher pela autoridade da Alétheia, que colhe o autor  na sua concreção recolhida. Como tal, o leitor é leitor só na medida em que segue os passos abnegados  do autor no crescimento, isto é, na autoridade da Alétheia.

7 – A concreção da Alétheia se dá na evocação do acesso. A evocação do acesso é o caminho: a experiência, o acesso do caminho, na abnegação da renúncia, dá a força inesgotável da autoridade do simples.

8 – Na simplicidade da autoridade, somos conduzidos ao uno, à tese natal da vida, onde o autor é o leitor, na concreção  recolhida do livro, na obra, comemoramos obedientes  o diálogo, no vigor simples da gênese do mundo.

A leitura

A palavra diz: lei-tura. A terminação tura indica a acumulação, o ajuntamento de força. Leitura é, pois, o recolhimento da dinâmica do ler.

Leitura vem do verbo ler. Ler, em latim legere, remonta ao verbo grego legein. Legein, originariamente, significa ajuntar, colher, recolher. O que colhemos, recolhemos, ajuntamos na leitura? O sentido. Mas podemos ajuntar na leitura o sentido, como se ajunta espiga de milho? O sentido é algo que podemos pegar como objeto?

O sentido não é objeto, é uma realidade, nos afeta, nos colhe e recolhe em seu vigor. Deixar-se colher no sentido, no vigor do sentido, é ler, é leitura.

No texto há a escrita: palavras, conjunto de palavras, fases e preposições. O que anima a escrita é conceito ou representação. Mas o que anima a representação é o sentido.

O sentido não é escrita. Não é representação. Mas sim o que evoca, me chama para além da escrita e representação, abrindo-me a mira nova, viva, sempre mais evocativa, afetando-me ao sabor da caminhada, na ausculta crescente do mundo. É na concreção do mundo que se desvela a vida.

O mundo aparece no permeio do sentido, na representação. O sentido permeia a representação. Deixa ser mundo na representação. O aparecimento do mundo no permeio do sentido  na representação  é o aspecto, o sentido é a cadência, o brilho do aspecto.

A representação fixa na escrita o aspecto do mundo. A fixação apaga  a cadência  do aspecto.

Na fixação, o aspecto declina do mundo. Ao declinar do mundo, o aspecto se dá como algo no mundo, ao se dar como algo no mundo, determina o mundo como o mundo de algo; e o mundo declina de si, fixa-se como algo, o espaço vazio, povoado de algos, um ao lado de outros, iguais entre si no seu modo de ser.

O mundo de algo e algo no mundo é produto de fixação. O que aciona a fixação é um modo de ser de existência. A existência cujo modo de ser é fixação se fixa a si mesma e suas manifestações como algo no mundo. A existência assim fixada como algo no mundo se chama sujeito. Algo que não é sujeito se chama objeto, o conjunto de objetos é o mundo. O mundo, porém, é determinado também em referência a algo como algo; algo como espaço vazio, onde se juntam algos chamados objetos. O sujeito é um desses  algos  chamados objetos; é um caso especial de objeto. O mundo, o  sujeito  e o objeto recebem a determinação do seu ser como algo de um modo de ser da existência. Esse modo de ser é a existência da nossa existência. Ele se chama subjetividade e constitui o enigma da nossa situação historial.

Na  leitura, a partir de dentro da subjetividade que fixamos  na escrita o mundo,  surge o aspecto e o sentido. Assim, a escrita é um algo que indica outro algo, chamado sentido. Este, por sua vez, indica outro algo chamado objeto, ou uma parte do objeto, o aspecto; ou conjunto de objetos, o mundo, a outro objeto chamado sujeito – leitor.  A subjetividade, portanto,  predetermina o âmbito de possibilidades da colheita da leitura, dentro do modo de ser de sua existência. Não deixa o sentido, o aspecto e o mundo ser na sua nascividade.

A subjetividade, no entanto, não consegue apagar por completo, sob o poder de sua fixação, a vigência do mundo na candência do sentido como aspecto. Pois, se o conseguisse, nada compreenderíamos do texto, a não ser uma sucessão indefinida de algo, vazio de diferenças. A vigência do mundo se oculta diante da dominação da subjetividade. Ela, porém, lateja e atua no seu reconhecimento, sob a determinação fixa do ser como algo. É dessa atuação no mundo que o próprio algo recebe a sua significação, embora decline na nascividade do mundo, na fixação.

O declínio é um movimento. Movimento de decadência pelo qual o mundo decai de seu vigor originário, para chegar a uma formação terminal. A escrita é uma forma terminal do movimento decadência do mundo. A decadência a uma forma terminal é escolha de uma possibilidade. Na escolha de uma possibilidade, o mundo, no vigor nascente de sua gênese se oculta como a inesgotável possibilidade das possibilidades. Nas possibilidades determina de uma forma terminal, fazem latentes fios condutores de possibilidades das possibilidades como evocação de uma caminhada de retorno à fonte nasciva da gênese do mundo. A nasciva evocação de retorno de gêneses do mundo e o sentido. A concreção da ressonância  do sentido que se intensifica como o aparecimento do mundo é o aspecto. O aparecimento do mundo no aspecto se dá, porém, com um abismar-se do aparecimento no envio  do retraimento, do nada. É no silêncio do nada que se recolhe  o mundo na sua gênese.

A gênese do mundo é a vida.

Na leitura, a fixação da subjetividade deixa-se colher pelo sentido, para fluir no vigor evocativo da caminhada de retorno à gêneses do mundo. O retorno coagita  a escrita  em representação, dão lugar ao surgimento das possibilidades de evocação. No surgimento das possibilidades de evocação, a coagitação se recolhe aos poucos na acolhida de um fio que nos conduz. O movimento desse fio evocativo, a sua condução é o sentido. A condução do fio evocativo  ajunta as possibilidades de evocação ao redor de um acesso que cresce como a unidade interior do movimento das evocações. O acesso da unidade interior da evocação nos afeta na acolhida de um movimento, que, ao nos evocar, vem ao nosso encontro como aparecimento, não de uma coisa, não de um algo, mas sim de concreção do desenvolvimento. Na concreção do desvelamento se dá o aspecto do mundo o ver a luz, como o ver a fala de um retraimento que, ao se desvelar, se vela no abismo da sua inesgotável interioridade, silenciosa e obscura. É no instante desse movimento do envio do aspecto e do retraimento que se dá o mundo.  No instante da doação do mundo ressoa o silêncio do mistério, como a gêneses de vida na gratuidade do nada e do nada da gratuidade. A leitura é a colheita da gênese  da vida no silêncio da gratuidade.

A leitura requer a audiência. Audiência, em cujo toque inicial somos feridos pelo tacto da afeição que nos faz perceber na fixação do algo, algo mais do que a fixação. Dessa afeição surge o fio da evocação. A audiência requer obediência em e a cada passo de sua audiência. Pois, a dominação da sua subjetividade pesa sobre a audiência com continua tentativa de fixar como algo o movimento de crescimento e da audiência, reduzindo o modo de ser da audiência ao modo de ser do objeto. A tentativa de objetivar como algo o movimento de crescimento da evocação na audiência se chama representação. A obediência a audiência, porém, não se dá como uma negação da representação objetivante. De representação em representação, a obediência deixa-se tocar pela afeição da evocação, recolhe-se com vigor e precisão na ausculta do fio ressonante na condução da evocação,   deixa-se guiar na acolhida do sentido; e a partir dessa acolhida recolhe as representações para dentro do vigor da interioridade do aspecto, isto é, na concreção do aparecimento do mundo.

Esse percurso de audiência obediente é a poiseis, o fazer da leitura.

A poiseis não é fazer da espontaneidade irracional. É antes um perfazer-se do trabalho artesanal, cujo vigor, cuja sensibilidade da precisão vão muito além da exatidão da lógica. A audiência da poiseis não pode firmar-se de antemão numa posição, a partir da qual se possa reduzir medir e ordenar  tudo a seu ponto de vista. No entanto, não divaga na espontaneidade arbitrária e desenfreada da vivência, sem limites e sem consistência. A poises  insiste no recolhimento e na precisão  de uma situação. Nada elimina. De nada se subtrai. Nada deixa vago. Tudo acolhe, tudo perfaz, tudo precisa em mínimos detalhes, as limitações, as posições, as fixações, as imperfeições. Tudo conduz para dentro do rigor nadificante da obediência à inspiração do mistério. E, a partir dessa obediência, ouvindo colado à ressonância da evocação do acesso, cuida diligentemente da letra, pesa, talha, lima, bate-lhe o corpo da escrita, para afiná-lo à sintonia do sentido.

É no convívio da cura, do vigor desse trabalho artesanal da posição, que o leitor habita com o autor o lugar de afeição da autoridade, isto é, do aumento do sentido, no diálogo  obediente à colheita crescente de alétheia da obra.

A insistência na leitura é existência. Existimos na medida em que lemos. Lemos na medida em que obedecemos. Obedecemos na medida em que somos afetados pelo rigor da evocação do sentido. Na medida em que somos afetados pelo rigor da evocação do sentido, somos verdadeiros. E na medida em que somos verdadeiros, compreendemos a verdade da obra, como apelo simples e uno da vida. Da vida que no seu retraimento atinge a cada um de nós, leitor e autor, na concreção da obra no silêncio do mistério.

Diz a antiga escritura aceita da obra no silêncio do mistério: o mundo é atinência: a época da penitência do Tao: a escritura. A  escritura não ultrapassa. A fala é vigor da penitência. A fala é atinência: a época da penitência. O sentido. O sentido é vigor da época da obediência. O sentido é atinência: a época da obediência, sem discurso, sem pronúncia. E o mundo afunda como valor de discurso e de pronúncia, a escrita. Embora o mundo se  atenha em valor, colhe-me a perplexidade: não tomo pé em valor. A atinência em valor apaga a penitência. A mira antiga: o olhar concorde: a forma e convívio de cor. A afeição da ausculta: o ouvir concorde: o nome e a ressonância de voz. Oh! Dor: o homem do mundo é a partir de forma, cor, nome, voz. Toma pé, só a começo, da posse da cobiça do eu. Forma, cor, nome, voz! O fruto, o perfeito se ergue da raiz, do mais profundo do que de  posse da cobiça do eu. Aceno. Quem é do discurso: não sabor. Que é do sabor: não discurso. Como pode o mundo compreender? (Chuang-tzu, cap. XIII, livro 11).

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