Frei Hermógenes Harada
Nossa leitura pode ser chamada de “leitura espiritual”. Difere, porém, da costumeira leitura espiritual do tipo “edificante”, muito apreciada na espiritualidade da vida religiosa tradicionalista. Trata-se de leitura dos textos “clássicos” da espiritualidade cristã franciscana, tentando colher e recolher o espírito ali pulsante. Por isso, leitura espiritual. Mas como a nossa atual compreensão do espírito (espiritual), leitura (ler) e livro (obra e o seu autor) já está preestabelecida em determinadas pressuposições obviamente aceitas como fatos, tenhamos talvez dificuldades de ler espiritualmente a modo da leitura espiritual, que tentamos fazer nesses dias. Por isso, vamos explicitar um dos pontos que aqui na nossa leitura espiritual pode estar subentendido como uma tarefa de longa e paciente aprendizagem.
Examinemos a situação. Temos um livro aberto, Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros, com o texto escrito preto sobre o branco. Eu estou aqui sentado, lendo esse texto. O texto foi escrito na Idade Média, por um ou mais autores. Foi escrito na Europa, na Itália. Há uma distância de tempo de mais ou menos 6 séculos entre mim e o(s) autor(es) desse livro etc. Todos esses fatos são fatos reais.
Se, porém, eu me examino a mim mesmo no próprio ato, na própria vivência do ler, concreta, imediata, corpo a corpo, eu não encontro como experiência real nenhum desses fatos acima mencionados. Onde está ali a Idade Média? A distância de 6 séculos? O(s) autor(es) do livro? O eu cá no século XXI e o autor lá no século XIII? Eu aqui no Embú e a autoria do livro na Itália? O que é essa presença, o ato de ler o livro de Atos?
Se encontrasse o livro de Atos na rua, levantando-o do chão, o abrisse e estivesse lendo um dos seus textos, nada desses fatos acima mencionados teria eu presente. O fato de saber que todas aquelas coisas acima mencionadas são fatos, eu o sei pela informação de um saber dominante hoje, do saber das ciências historiográficas. Surge uma pergunta: posso ler um livro como o de Atos, imediatamente, corpo a corpo, assim de cara? Certamente que posso! Mas, dizemos nós, a compreensão que teremos do texto e de seu conteúdo é muito pouco real-objetiva, o que daí sai não passa de impressões e opiniões subjetivas minhas. Por isso, se aqui estou vindo de longe, e pego do livro para estudá-lo, gastando para isso de 4 a 5 dias, é porque tenho já muitas informações sobre o livro e sei de muitos fatos… Certamente tudo isso parece ser muito real, objetivo e fatual.
Mas, se de novo observamos a vivência do ato de pegar do livro, percebemos que o real mesmo e o imediato é esse pegar, me assentar aqui, ficar horas a fio debruçado sobre o livro. Esse ato concreto e material implica em si um inter-esse. E se observarmos em que consiste esse interesse, veremos ser ele uma presença, um estar ali aberto para compreender, sentir e querer, amar o que vamos entendendo e tentar buscar a ser cada vez mais o que colhemos ali de precioso. Essa presença viva, aberta e disposta, porém, não é apenas uma espécie de buraco vazio abstrato, mas sim ela está povoada, habitada, cheia de conhecimentos, informações, fantasias, imaginações, representações, recordações, sentimentos, anelos, preconceitos, conceitos, idéias etc. etc. É pois um imenso conjunto de redes de precompreensões, variegadas e multiformes. É dentro dessa abertura que nos vem ao encontro o livro de Atos do Bem-aventurado Francisco e dos seus companheiros. E uma das redes dentro dessa complexa abertura está formada de dados provenientes das ciências historiográficas.
Usualmente nós, em concreto como essa abertura de precompreensão, conseguimos ter apenas uma pequena parcela do todo desse imenso conjunto. Essa parcela é o que chamamos de saber consciente. Este, porém, oculta um abismo de precompreensões de diferentes níveis e dimensões de profundidade.
O que acontece quando um livro como Atos entra no âmbito da abertura de precompreensão que somos nós mesmos? Nós tentamos assimilá-lo para dentro da rede de nossas compreensões. O que no texto facilmente compreendemos é o que está dentro da rede da compreensão usual nossa, no igual nível e na igual dimensão da nossa consciência.
O que estranhamos já nos escapa da rede usual de compreensão e exige que nos abramos para dentro de nós mesmos, aos níveis e às dimensões que correspondem melhor à exigência dessa manifestação estranha. O que absolutamente não compreendemos, provavelmente, está numa dimensão de vastidão, profundidade e originalidade tal que nos exige muita disposição de trabalho todo próprio para deixarmos ser em nós níveis e dimensões de mostração adequada ao que assim se oculta.
Isto significa que ler livro é confronto, no qual por tabela somos convidados a dialogar conosco mesmos, em nos abrindo, em sondando as nossas dimensões próprias de interioridade constitutiva do nosso ser, e as acolhendo em as deixando ser. Esse abrir-se e seguir o ductus das dimensões ocultas de profundidade do ser humano é ler. E é na medida em que assim, por tabela, de encontro ao texto do livro formos nos desvelando, que esses textos se nos abrem, mostrando o que eles escondem em seu bojo.
Tudo quanto nos vem à fala nesse movimento de aparecimento do que ali está implícito como ser da existência humana é o espiritual. Esse modo todo próprio de o homem ser e se desvelar é o espírito. O autor e o leitor do livro, enquanto fluindo nesse movimento de aparecer do espírito, não são sujeitos nem agentes do livro, mas sim abertura de acolhimento e de colheita do espírito. Daí a leitura espiritual.