Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Leitura espiritual – II

22/04/2021

 

(12.02.08)

  1. Leitura espiritual é uma das atividades recomendadas para o fomento da vida espiritual.

Trata-se na leitura espiritual primeiramente de leitura; que tem o caráter de ser espiritual.

  1. Leitura é uma das atividades, exercidas e exercitadas pelo ser humano como manifestação do seu espírito. Usualmente o que lemos recebe o nome, mutatis mutandis, de livro.
  2. Na era da computação, fala-se muito de que o livro tem vida já contada, pois vai ser substituído pelo computador. Independente de se isso vai acontecer ou não, é de inter-esse observar que o modo de ser do livro e da sua leitura, tem propriedade específica dele, de tal sorte que, quem consegue ver essa especificidade sempre apreciará a leitura do livro e embora seja inteiramente afeiçoado à técnica da computação, não substitui simplesmente como se fosse coisas iguais a experiência da leitura de um livro com “leitura” de um “texto” do computador.
  3. Pela leitura, lemos livros escritos sobre uma porção de coisas.

Escrever ou falar sobre uma coisa, e correspondentemente ler ou ouvir sobre, tem um modo de ser todo próprio que é diferente do modo de ser do escrever, falar, ler ou ouvir a partir de uma coisa.

  1. No primeiro caso, do escrever ou falar, ler ou ouvir sobre não se tem propriamente o modo de ser do encontro, mas sim de colocar a coisa sob o ponto de vista do projeto do meu interesse. Por isso a primeira coisa que se nos antepõe à nossa mira é horizonte, é a perspectiva a partir e dentro da qual olhamos para uma coisa, sobre uma coisa, ordenando-a, ajeitando-a, submetendo-a ao meu ponto de vista. Esse modo de ordenar, de encaixar a realidade à perspectiva do ponto de vista, se chama na lógica de juízo, de julgar, de ajuizar.
  2. No segundo caso do escrever ou falar, do ler ou ouvir a partir de, é como se a própria coisa escrevesse, falasse, lesse ou ouvisse acerca de si mesma a partir de si. E isso com suas próprias palavras, sem querer se encaixar a nenhum ponto de vista que não seja a própria coisa ela mesma. Aqui toda a atenção e todo o cuidado devem estar concentrados em deixar ser, dar espaço livre para que a coisa ela mesma apareça a partir dela, nela mesma, à vontade. Aqui o eu que escreve, fala, lê ou ouve não é sujeito e agente de uma ação interpretativa, projetiva, impositiva de condição para a coisa aparecer (cf. o primeiro modo de escrever, falar, ler e ouvir sobre), mas é pura e límpida abertura de recepção cordial e afinada ao surgir, crescer e se consumar da coisa ela mesma, é ser como que caixa de ressonância da coisa ela mesma (cf. O segundo modo de escrever, falar, ler e ouvir a partir de).

Esse modo de ser do espaço aberto à ressonância da coisa ela mesma é o que se denomina muitas vezes de ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro. Mas como na nossa maneira usual de entender fixamos o ver como julgar ou lançar perspectivas, em vez de ver fosse talvez melhor dizer, auscultar, ouvir atentamente, esperar o inesperado. Esse ver simples e imediato, esse auscultar, esse ouvir não é passividade. Pelo contrário, trata-se da máxima atenção plena de acolhimento, é o grau mais alto e denso do conhecimento, entendido como conascimento (em francês conhecer é con-naître, conascer). Esse modo de ser de acolhimento se diz em grego antigo légein, donde vem a palavra Logos, que se traduz geral e usualmente por conversa, discurso, pensamento, espírito,  razão, mas cuja tradução mais originária seria talvez acolhida, colheita. Por isso os gregos antigos definiam o ser humano como sendo o vivente, o ânimo, como coragem de ser atinente e pertencente ao Logos. (Tò zôon lógon écchon)  E essa definição foi então traduzida para a língua latina e ficou animale rationale que em português é: homem é animal racional. Mas essa definição é entendida de modo inteiramente inadequada, quando se interpreta a palavra animal como bicho, bruto e racional como racionalista, cerebral. Animal na definição clássica do homem significa coragem criativa de ser, o ânimo vivo; racional, referido ao Logos, à plena atenção de colheita do ser, de acolhida da coisa ela mesma.

  1. Quando usamos a expressão leitura espiritual, posso entender o adjetivo espiritual de diversos modos.

Posso entender o espiritual como indicando o objeto da leitura. P. ex. posso classificar um objeto como pertencente à classe dos objetos do espírito, p.ex. votos religiosos, virtudes, Deus, anjos, alma, encontro, amor; à classe dos objetos físico-naturais (da natureza), p. ex., pedra, animais, plantas; dos objetos  da cultura, p. ex., obras de arte, monumentos etc.

  1. Quando a leitura é classificada conforme o seu objeto, então, temos o modo de ler, descrito lá em cima como leitura sobre. E assim podemos denominar esse tipo de leitura sobre de leitura historiográfica, leitura psicológica, leitura sociológica, leitura prática, técnica, leitura literária, estética, religiosa, moralizante, fundamentalista, espiritual, espiritualista etc.
  2. Mas na expressão leitura espiritual o adjetivo espiritual pode não estar se referindo ao objeto, mas à leitura. Nesse caso leitura espiritual significa ler espiritualmente. E se a gente pergunta: qual é exatamente esse modo todo próprio de ler espiritualmente, a gente agora pode responder: é exatamente aquele modo de ler, de colher, de receber, vivo e cordial, grande e profundo, infinitesimalmente diferenciado, que Pascal chamou de espírito de finura, na explicação feita no início desta nossa reflexão de leitura a partir da coisa ela mesma.
  3. É de grande e decisiva importância compreender essas duas modalidades de leitura que p. ex., em Pascal recebeu nome de espírito de geometria e espírito de finura.
  4. O que se chama em Pascal espírito de geometria e espírito de finura é de grande importância para a nossa compreensão da espiritualidade. Pois enquanto não captamos a diferença entre esses dois modos de espírito e ao mesmo tempo a sua identidade, toda a nossa vida espiritual cristã fica a meio-caminho e jamais vislumbra a grandeza do que significa espírito, espiritual no sentido cristão. Em geral nos nossos exercícios espirituais o que com tamanha facilidade chamamos de espiritual não chega a ser espiritual nesse sentido real e bom. Permanece na equivocação de vivências, onde no binômio do contrário, só capta as diferenças, sem perceber a fundo a identidade da diferença e a diferença da identidade. O fenômeno de fundo que contém em si o grande segredo da identidade na diferença e diferença na identidade se chama encontro. Na nossa hodierna situação não é possível se realizar na vida religiosa consagrada enquanto não compreender bem a fundo e radicalmente de que se trata, quando falamos de encontro. Nas nossas buscas na vida as nossas tentativas ficam todas elas a meio caminho, enquanto não nos dispormos com muito maior generosidade e coragem a aprofundar e aclarar para valer esse ponto.
  5. Por fim, o que denominamos no n. 6 de ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro não deve ser confundido com o olhar sem mais nem menos imediatista conforme o uso padronizado dos nossos ajuizados, pré-conceitos ou opiniões. O ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro é a evidência que se dá no fundo de nossa alma, e na maioria dos casos está entulhada por outros tipos de saber que não possuem esse caráter de limpidez e imediatez do ânimo e da prontidão pura, de sorte que deve-se trabalhar duramente para que esse entulho seja afastado e que apareça com todo o esplendor e pureza a clarividência de fundo da alma.
  6. Essa nossa reunião se chama encontro e não tanto curso. Isso porque no curso se acumulam informações e saberes sobre objetos do tema das nossas reflexões. Chama-se encontro, pois em tudo que fazemos na reunião não fazemos outra coisa do que nos exercitarmos o ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro. Em nos exercitando longa, tenaz e cordialmente nessa disposição, aos poucos nos vamos abrindo para a recepção agraciada do que a grande tradição do cristianismo chamou de Espírito do Evangelho. E o espírito do Evangelho é o sopro vital da espiritualidade cristã, a vida espiritual.
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