Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Homenagem e tributo de um leigo a Hermógenes Harada

22/04/2021

 

Gilvan Fogel

Conheci Hermógenes Harada mais ou menos em 1972. Eu acabara o curso de graduação em filosofia na Universidade Católica de Petrópolis e sabia da existência dele como professor de filosofia dos franciscanos, no Convento Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis, pois entre meus colegas da universidade havia alguns franciscanos, que eram alunos dele.

No começo de 1972 propus-me fazer o mestrado em filosofia, que ora se iniciava no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ. Para ingressar, eu precisava prestar um exame escrito e um oral e, dentre os temas, havia um que eu, então, sequer conseguia articular e pronunciar o nome: fenomenologia. Então, intermediado já não sei mais por qual dos amigos franciscanos, corri para o Harada. Ele conversou um pouco comigo, expôs-me alguma coisa, deu-me alguma dica que fosse útil para a premência da hora e, cheio de discrição, quase se desculpando, passou-me um texto seu, intitulado Fenomenologia do Corpo, no qual eu poderia e deveria aprender algo sobre o método fenomenológico. Isso foi o começo.

Duas semanas depois, prestei o exame, fui bem sucedido e ingressei no curso, começando realmente a estudar a tal fenomenologia – E. Husserl e M. Ponty.

Um ano depois, 1973, fui chamado a dar aulas no próprio Ifcs, substituindo a professora Creusa Capalbo na graduação, pois ela se afastara temporariamente, viajando para a Europa. Era tempo, saudável eco de 1968, que os alunos queriam, exigiam, cursos monográficos e não mais exposições manualescas. Os cursos deixavam de ser meramente informativos e baseados em puros, simples e simplórios manuais. Os alunos, do quarto ano (hoje diríamos: do oitavo período), pediam que eu tomasse para leitura e comentário ou Hegel ou Nietzsche. Eu nada sabia, quer de um, quer de outro. Mas já ouvira um pouco mais de Nietzsche e mesmo já me aventurara um pouco com O nascimento da tragédia. Claro, foi por Nietzsche que me decidi. E, mais uma vez, procurei por Harada, para orientar-me, instruir-me. Falei com ele que pretendia iniciar com a turma uma leitura de O nascimento da tragédia. Ele aprovou, novamente deu-me umas dicas, mas, basicamente, me disse: “Seja lento, vá devagar!” Confesso que isso me ficou para sempre. Até hoje sou lento, devagar.

Este contato foi ocasião e pretexto para que, a meu pedido, iniciássemos um estudo, uma leitura de Nietzsche, que passou a acontecer regularmente à noite, às 19.00h, das quartas-feiras, de quinze em quinze dias, numa das salas junto à portaria do Convento. Começou-se lendo o Zaratustra. Inicialmente alguns tópicos do prólogo. Em seguida, isto é, uns dois semestres depois!, leu-se o primeiro discurso da primeira parte, Das três transformações do espírito. Depois, a meu pedido, passamos para Da redenção, discurso da segunda parte do Zaratustra. Isso estendeu-se pelos anos de 73, 74 e 75. No início de 1976 fui para a Alemanha e meu doutorado, na Universidade de Heidelberg, foi todo ele formulado e escrito a partir de umas dez ou doze páginas resultantes da leitura de Da redenção. Em alguma hora, Harada, durante o seminário de leitura, mandou que eu preparasse por escrito a apresentação da próxima sessão. Nessa ocasião, participava da leitura também frei Sebastião Kremer, então, tal com eu, um jovem estudante e frei Arcângelo Buzzi, tal como Harada, professor no Convento. Sempre um de nós era o responsável por iniciar a sessão, com um esboço do que fora a sessão anterior e uma breve antecipação do que seria o tema do dia. Assim fiz e li, quer dizer, apresentei por escrito, na sessão seguinte. Harada gostou, pediu o texto e na sessão seguinte devolveu-me com alguns comentários no fim. Os comentários eram questões que eu, como dever de casa, tratei de responder igualmente por escrito e, na sessão seguinte, passei para ele. Ele, de novo, leu; de novo formulou questões e eu, de novo, respondi. Mais uma vez ele formulou umas questões e, então, já era o finzinho de 1975. Março de 76 fui para a Alemanha, levando comigo estas notas, as quais ainda guardo comigo até hoje. As observações/questões do Harada eram feitas sempre à mão, no final do meu escrito à máquina.

Um parêntese para uma nota. Uma tarde, creio mais ou menos pelo ano de 72, já não sei mais a propósito de quê exatamente, fui ao Convento do Sagrado Coração pegar algum livro com Harada e com ele brevemente conversar sobre algum tema, alguma tarefa da hora. Comigo foi um amigo, até hoje grande amigo, Antônio Pedro, pintor, e também colega de turma na filosofia da UCP. Em alguma hora fomos convidados por Harada para ir até sua cela, justo pegar, escolher, talvez o tal livro. Ao chegarmos, nos deparamos, sim, com uma cela. Um pequeno cômodo, uns nove metros quadrados, piso de cimento liso, boa janela, proporcionando um ambiente ventilado, arejado e muito bem iluminado; um banco baixinho (um mocho), quase rente ao chão e uma estante com livros, não muitos. O resto vazio. Paredes nuas. Nem mesa, nem cama. Antônio, sempre muito direto, expansivo, meio irreverente, perguntou: “Você dorme aqui?” “Sim”, respondeu Harada. “Mas onde?”, perguntou Antônio, já que não havia cama ou algo parecido. “Ali”, disse Harada, apontando para cima, em direção ao meio da estante de livros. “Ali, onde?”, insistiu o Antônio, pois de fato não se podia ver onde e nem como. Então, Harada, no meio da estante, ativou uma geringonça que se abriu. Era a “cama”. Na verdade, uma tábua lisa e nada mais que uma outra prateleira da estante. Antônio, surpreso, meio estupefato, disse: ”Pô, ali, na prateleira?! Você dorme na prateleira?!” Ele riu, era. O Harada dormia na prateleira, lia, estudava e escrevia sentado ao rés do chão e tinha o piso de cimento liso como mesa.

Pelos começos de 1981 voltei da Alemanha, retomei meu trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), da UFRJ, e, morando em Petrópolis, logo reiniciei um estudo periódico com Harada, de novo, de quinze em quinze dias. Reuníamo-nos à tarde e líamos textos escolhidos do livro III da Vontade de Poder, de Nietzsche. Textos que, em geral, versavam sobre crítica ao eu, ao sujeito, à substância, à causalidade. Participavam também, com certa assiduidade, frei Gilberto Garcia, então estudante, frei Arcângelo Buzzi e frei Gamaliel, professores. As leituras iam sempre muito lentas, os textos, anotações de Nietzsche, muito curtos. Certa vez, ao retomar a leitura, no início de uma sessão, vimos que não sabíamos mais onde tínhamos parado na vez anterior. Na dúvida, Harada propôs que se começasse de novo. Assim fizemos. E lemos muito menos, isto é, avançamos muito menos que na vez anterior. Ao final da sessão, quando isso foi verificado, Harada comentou: “Estamos melhorando”.

Isso durou pelos anos de 81 e 82. Em 83, creio, Harada deixou Petrópolis, indo para Rondinha, no Paraná. Ali estabelecia-se uma nova escola franciscana à qual ele muito se dedicava, muito se empenhava e trabalhava pela sua fundação. Daí por diante nossos contatos ficaram mais raros, ainda que esporadicamente acontecendo. Isso, porém, jamais arrefeceu a força e a presença do Harada no meu trabalho, na minha vida de ensino e na minha lida intelectual. Pelo contrário, muito pelo contrário.

Em 1986, quando do nascimento de meu primeiro filho Pedro, Harada estava de passagem por Petrópolis, algo num centro, creio Cefepal, onde estava hospedado. Fui procurá-lo. Primeiro para revê-lo e, segundo, queria ver se haveria ocasião para ele batizar Pedro. Isso não foi possível, pois estava muito em cima da hora e ele já estava de volta marcada, talvez para ao dia seguinte. Mas tive, então, uma tarde de longa e agradável conversa com ele. Sempre se falava de alguma coisa de filosofia. Mas, nesse dia, ele contou-me, também entusiasmado, como iam as coisas no seminário de Rondinha, seus planos de trabalho e de ensino na formação dos jovens. Sobretudo, acentuava, atividades que não eram só de estudo, mas também de trabalho, trabalho duro, com braços e mãos e tudo isso bem pensado como parte do planejamento pedagógico, para que não se “debilitassem” só com livros, com coisas livrescas e intelectualescas. Falou-me do projeto, da necessidade de restaurar esta força, esta vitalidade simples e de encaminhar os estudantes também para estas atividades físicas e das ou com as mãos. E ele saiu-se com esta expressão, com esta formulação: “Gilvan, quero acabar com a viadagem no clero”… A única vez que ouvi da boca do Harada uma palavra que poderia se dizer: um palavrão.

Voltamos a ter encontros, esporádicos, sim, em Rondinha, umas duas vezes, e no Rio, no Convento de Santo Antônio e, uma vez, no Ifcs. E sempre, pelo menos para manter a forma, se conversava, se discutia – e eu ouvia, ouvia e ouvia! – algum tema, algum assunto, alguma coisa de filosofia.

Pelo começo de 2004, escrevi a Harada pedindo-lhe um texto, algo em torno de mito e arte, para publicar na revista Sofia, da Universidade Federal do Espírito Santo, por solicitação de meu amigo e editor da revista, prof. Fernando M. Pessoa. Em setembro, Harada enviou-me o texto, acompanhado de um “bilhete”, no qual fazia recomendações a propósito do escrito: eliminar o que não prestasse (!), cortar o que estivesse muito extenso; sequer publicar, caso sentisse que estava ruim!! E tudo isso sem consultá-lo, sem comunicá-lo. Então, segue-se este parágrafo: “Aqui estamos numa labuta um tanto missão impossível. A gente não é lá muito filósofo, mas mesmo assim, a gente sente claramente que o clero é uma raça, na qual filosofia não entra mesmo. Se a resistência dentro da cabeça do clero viesse da teologia, cujo núcleo fosse mais granítico, a gente estaria salvo. Mas acho que atrás da mitra só há algodão. O pior é que eu também sou clérigo. Mas tudo isso não tem, penso eu, nada a ver com cristidade.” E ele conclui este bilhete do seguinte modo: “Ênio me disse que talvez em novembro (é por ali) vamos nos reunir para o encontro daquela coleção dos pensadores, ali no Rio de Janeiro; e então vamos matar saudade filosófica e tirar a barriga filosófica da miséria, conversando muito. Em todo caso, se um dia vier por essas bandas, é sempre bem vindo. Embora hoje não tenhamos mais tanto torresmo como antigamente lá no convento. É que a turma está politicamente correta diante do colesterol e da pressão alta.” É, desconfio que o Harada, talvez, andou abusando um pouco do torresmo e até do amendoim torrado nestes últimos tempos…

Recentemente, em dezembro de 2008, fui homenageado no Ifcs, por alunos e alguns professores, a propósito de uma data redonda, recém acontecida: meus 60 anos. Houve uma sessão solene, com apresentação de um livro em minha homenagem, O presente do filósofo, no qual muitos escreveram. Tudo me comoveu muito e a todos muito agradeci. Mas nada me comoveu tanto quando, ao abrir-se da sessão, recebi de novo um “bilhete” do Harada, referindo-se à ocasião e, ao abrir o livro, constatei que o primeiro texto era, é um escrito do Harada, intitulado Econômico e caseiro, o estudo da filosofia? (Uma parábola chamada paciência). À noite, em casa, sozinho no canto, li com muita atenção e emoção o “bilhete” que me foi por ele enviado e que começava com um “Estimado Gilvan” e que me cumprimentava e saudava pelo “trabalho de professor universitário”. Ele fala da natureza desse trabalho e da nobreza de seu cultivo e, sobretudo, quando ele se faz uma vida e um destino – silencioso, discreto, muito só e próprio. Guardo ciosamente comigo esta página pessoal, gentil, carinhosa, intensa.

Agora, em janeiro de 2009, mais precisamente, no dia 30, estava eu em Curitiba por conta de um curso, o qual fui convidado a dar. Sabia que Harada sofrera um infarto e que se encontrava internado, à espera da cirurgia a que ia se submeter, dois ou três dias depois. Acertei previamente a visita e, pelo final da tarde, lá fui. Ansioso, seja pelo seu estado, principalmente, seja porque, há pelo menos três anos, não nos víamos. Bati à porta do quarto e fiquei à espera. Para grande surpresa e alegria minha, veio o próprio Harada abrir a porta. Um grande sorriso irradiou e iluminou, parece que não só seu rosto, mas todo ele. Ele estava muito bem. Vivo, aceso, lépido, sentado a uma mesinha, escrevia num lap-top. Ali falamos, conversamos. Ele sempre muito presente, irradiante, lúcido. Não sei como, quando me dei conta, falávamos, ele falava, sobre a importância de se ser burro! Com muita disciplina, muita aplicação, isso pode render espírito…! Eu lembrei, e junto procurávamos comentar, Cézanne, que dizia de si: “Sou lento, pesado e burro”. Ele falou-me, parece, de algum franciscano, desses medievais estranhos, meio loucos, que era tão burro, mas tão burro, que não conseguia realizar seu grande desejo, seu maior desejo, que era tornar-se padre, pois não conseguia aprender latim. E isso era condição absoluta. Mas então, para satisfazer este desejo maior de sua vida, foi estudar latim, aplicou-se muito, muito e, de tanto empenhar-se, junto com o latim veio a espantosa aprendizagem de ler almas! Sim, ele aprendeu a ler almas – via alma, via e sabia almas…

Ali ficamos, mais ou menos, uma hora e meia em conversa séria e jocosa. Era hora, despedi-me, ele levou-me até à porta e, sempre sorridente e irradiante, desejou-me boa sorte e eu a ele, dizendo-lhe que fazia votos de longa e boa vida, apesar de que ele, rindo gostosamente, me dissera que conversara com o médico e este lhe prometera pelo menos mais dez anos. Ele disse: “Ora, pra quê?! Já estou com 80, e com 90 não se faz mais nada, não se presta pra mais nada! Basta só mais cinco. Só mais cinco de validade e já é demais!”

Para mim, também e sobretudo como ensinamento do mestre, fica sempre a lembrança de seu sorriso limpo, límpido, grande, sereno e suave. Muitas vezes, nas horas grandes sempre, uma fisionomia séria, um rosto fechado, duro, recolhido. Mas, de repente, podia abrir-se todo num riso, que não era só sorriso, mas até boa gargalhada, não só de boca, de olhos, de face, mas, como ele às vezes gostava de dizer, de barriga, do fundo da barriga, e que transbordava pela boca afora…

Nisso tudo, nada falei do ensinamento do Harada. A impressão que tenho é que com Harada aprendi tudo que podia, tudo que devia aprender. Tudo que tenho de essencial na filosofia (que presumo ter!) devo a ele. Porque com ele, sobretudo com ele, aprendi a aprender. Este aprender a aprender fala de um processo, de um modo de ser que se ganha ou se conquista (e ele, Harada, sempre apontou para isso, sempre insinuou isso), no qual, pela via da experiência, se entra ou se é jogado, no qual assim começa-se a participar do próprio fazer-se e crescer (aparecer) da própria coisa. Nisso, nesta participação, dá-se toda uma iluminação, cresce e aparece toda uma evidência. Tudo, sim, vai ganhando vida, à medida que vai brotando, se irradiando, “fazendo-se visível”, para usar uma expressão de Klee. Harada, tal como todo mestre, todo grande mestre, nunca ensinou nada, nunca deu coisa nenhuma, quer dizer, nunca transmitiu doutrina, norma, padrão, clichê ou cacoete de algum autor ou de corrente, de escola. Jamais alguma moda ou refrão.

Este aprender a aprender aconteceu sempre com, a partir da leitura de algum texto – sempre um texto. Isso evita divagação, distração, dispersão. Para mim, sempre foi um grande acontecimento e uma hora maior e de encantamento ler um texto filosófico com Harada. Texto sempre curto, breve. Aí, no texto, ele pegava, ele pinçava a passagem, a frase essencial, fundamental – a geratriz e condutora. E nessa frase, o termo, a noção, o conceito central, base. Às vezes, muitas vezes, começava pelo título. Isso que acima chamei a frase ou a noção central, na verdade, só se mostra, só se mostrava ser a central depois da leitura, do comentário do Harada. Essa leitura, esse comentário, sempre, foi marcado(a) e caracterizado(a) por insinuação, aceno e, então, de repente, tudo começa a se abrir. Na frase, na noção eleita para comentar, interpretar, jamais é a erudição o que decide, o que manda e comanda. Com Harada, erudição, enquanto mera informação e, então, saber chocho, balofo (a cultura), jamais foi argumento. Isso não quer dizer que ele não tenha erudição, grande erudição, à medida que a entendamos como saber vasto, sim, mas assentado; conhecimento sólido da tradição filosófica, lastro, bom lastro. Mas o ponto de partida sempre foi, sempre é o ou um fenômeno, a ou uma experiência. Ele mostra, ele insiste em apontar e mostrar que no texto filosófico, no autor ou pensador, o que realmente está em questão é um fenômeno, uma experiência e não um mero diletantismo intelectual, intelectualismo. Experiência sempre foi, sempre é o acontecimento-chave, o ponto de partida (e também de chegada) no ensinamento, na aula, na leitura-comentário do Harada. Assim, a partir do fenômeno e de sua descrição-análise genética ou genealógica, a partir da experiência, de repente, tudo começa a se iluminar. Um texto inteiro, uma concepção inteira, começa a ganhar evidência, a partir dessa análise concreta, fenomenal e fenomenológica, que desce às raízes, à gênese do fenômeno, desconstruindo-o para assim torná-lo visível na sua força realizadora, na sua essência ou gênese. Sim, realmente, tudo começa a se revelar, a aparecer ou fazer-se visível a partir da própria coisa. Genuína fenomenologia. A experiência, no sentido de toque, afeto, pathos (não o mero empírico ou impressão sensível), se faz evidência, critério e medida de realização de realidade, critério e medida de verdade. Mais do que nunca, foi, para mim, a partir do trabalho com Harada que experiência se revelou ser o lugar e a hora de evidência. Na verdade, uma única e mesma coisa. Isso sempre me encantou e seduziu. Experiência, experiência descrita, exposta, comentada-interpretada in statu nascendi – é isso mesmo evidência, iluminação de realidade em sua própria gênese.

Nada abstrato, no sentido do formalista, do intelectualista, do erudito confuso e obscuro (profundo!) que, na verdade, usa desta via para esconder, para escamotear o que não vê, o que não sabe, ou seja, recurso, evasiva para dissimular uma alienação, um desenraizamento, uma desorientação. Com Harada jamais alguém se torna ou vira um erudito, um intelectual formalista e abstrato – eunuco. Assim, desde fenômeno ou experiência, Harada sempre foi agudo, intenso, econômico (principalmente econômico!), punçante nas observações, penetrante no intelecto e no espírito. Sim, por essa via, sobretudo por essa via, aprende-se, eu aprendi, a aprender. Nos seus textos, nos seus escritos, vê-se, lê-se isso e assim.

Com Harada tem-se sempre só o mínimo necessário. Sempre só o que é preciso, o que é suficiente. Jamais esbanjamento, jamais o esparramado ou o derramado. Seco. Alma seca. Seu pensamento, seus ensinamentos, seu modo de ser é arcaico, e l e m e n t a r – no sentido de ser o próprio elemento. Quanto a isso, que se leia seu Em comentando I Fioretti; que se leia Coisas, velhas e novas; que se leia, p. ex., sua apostila Verdade e liberdade, que é um comentário/interpretação de Da essência da verdade, de Martin Heidegger – verdadeira homenagem à clareza, à lucidez; que se leia sua apostila De Como estudar, um texto dirigido aos garotos, aos calouros, à meninada noviça; que se leia, enfim, seus textos religiosos – aliás, t o d o s o são, s ó são. Nisso tudo, e não só nisso tudo, está todo o Harada. Um espírito grande. Uma alma grande. Simples, grande, intensa – pobre, parca, econômica. E farta, e transbordante, superabundante. Sempre só o suficiente, sempre só o necessário. Tudo no Harada sempre foi claro, simples, lúcido. Sobretudo isso: claro, simples, lúcido – cartesiano. Franco, direto e limpo. Harada é um padre limpo. Isso é coisa rara, difícil. Eu disse claro, direto, simples, lúcido, cartesiano – mas não nos enganemos. Nada de faustiano. Nada de luz derramada, nada de transparências apressadas, de evidências fáceis e falsas, do tipo dialéticas, lógico-formais. Sempre a clareza do escuro, a lucidez do mistério, a profundeza da superfície. Jamais a vontade, o ímpeto de iluminar o escuro. A não ser que seja iluminá-lo, sim, mas não para extingui-lo, porém para torná-lo mais escuro e mais evidente como escuro. Sim, o escuro fica mais escuro e, então, o mistério, o divino, o sagrado, a transcendência se iluminam com o brilho contido, fosco, “de pérola”, ele disse, uma vez. Sempre claro, evidente, até onde pode e deve. Sempre lúcido, porém, até e principalmente no escuro, no não saber e no não poder. No Harada, com Harada, o limite ganha uma extraordinária força reveladora. É o poder – poder de mostração, de revelação. O poder do não-poder. Genuína pobreza franciscana.

Um franciscano. Um religioso. Um homem que um dia, num determinado contexto, me disse: “Só não me matei porque sou cristão”. Harada – um padre, um franciscano, um cristão. Um homem de fé. De fé e de espírito. Alma grande – grande, aqui, está falando de essencial, de radical. Mais uma vez: elementar. Um franciscano e um samurai. Sua apostila De Como Estudar, e todo ele e tudo nele, mostra uma alma brônzea e pétrea, alma de um samurai no, do Espírito. Samurai, franciscano, descalço. Sentado, lendo, estudando e escrevendo no chão daquela cela, nua, de cimento liso. Dormindo na prateleira. “Hermógenes – Hermógenes faz ou tem mudança a fazer?!” Foi isso que exclamou em resposta para mim Frei Godofredo, um velho franciscano, alemão, na portaria do Convento do Sagrado, em Petrópolis, quando, um dia, perguntei a ele se o Harada já havia feito sua mudança para Rondinha, se já havia levado suas coisas, em 1983. “Hermógenes mudar, fazer mudança?! Levar o quê, carregar o quê?! Ele joga um saco nas costas e tem tudo!” De vez em quando, para desfazer-se de fardos e pesos, cangalhas, para desentulhar, ele dava os livros que tinha. Era uma limpeza na mesa, na estante, na cela… na alma. Livros, muitos livros… ?!… Certa vez, há pouco tempo atrás, sob risco de perder a visão, por um cochilo ao cuidar de uma catarata, ele comentou, meio irônico, meio brincalhão, mas, no fundo, bastante sério: “Sabe, isso, para o pensamento, pode até ser bom! Olho às vezes atrapalha!”

Harada – para mim sempre “o Harada” e não “Hermógenes” ou “frei Hermógenes” – enfim, Harada, claro, não foi, não é santo. Harada foi, é samurai. Um samurai franciscano. Um franciscano samurai. Descalço. Alma seca – a maior, a mais nobre, já disseram. “César com alma de Cristo” – também já disseram. Seco, duro – e terno, muito terno. Meigo. Um nobre – descalço, cheio de, todo misericórdia. Japonês – um coração bambu… Alma autenticamente franciscana. Grande, grande alma; mestre, grande mestre. Generoso, magnânimo. Imagino, creio, que a Ordem Franciscana não pode, não poderá esquecê-lo. Ela vive, ela precisa viver dessas almas irmãs e consangu íneas de São Francisco de Assis, o mentecapto, o grande e perfeito mentecapto e, por isso, santo. Harada não é, não foi santo. Claro, lúcido; demasiado claro, demasiado lúcido para tal. Sempre uma lucidez cortante, punçante, mortal. Simples, muito simples. Algo meridiano. Alciônico. Um fio de navalha. Bonito, muito bonito.

Aí fica, aí vai, pois, minha gratidão, minha homenagem, meu tributo. Um óbolo. E, sim, é verdade, lembrando nosso Guimarães Rosa, Harada não morre, fica encantado. E encanta.

Petrópolis, 16 de março de 2009.

Scintilla Revista de filosofia e mística medieval, vol. 6.2, jul.-dez. 2009

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