Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fontes franciscanas e formação

20/04/2021

 

Frei Dorvalino Fassini

Quando em 1958, João XXIII anunciou a celebração de um novo Concílio ecumênico, convocando toda a Igreja a uma profunda renovação através do famoso princípio voltar às origens, todos nós franciscanos, de modo geral, vivíamos profundamente distanciados dos textos originários como a Sagrada Escritura e as Fontes Franciscanas (FF)1.

Só pensar que, na prática, nossa formação cristã e franciscana acontecia sem nenhum contato imediato e direto com esses escritos, hoje, causa perplexidade, ou, no mínimo, estranheza. Imaginar que toda a formação e profissão na Ordem desde, mais ou menos, o fim do século XIV até meados do século passado, processou-se sem jamais nós, os frades, havermos lido uma página sequer dos Escritos de São Francisco ou das FF é estranho e quase inacreditável. Por isso, cabia (cabe) muito bem, também à nossa Ordem, a convocação que João XXIII fazia a toda a Igreja.

A partir de então, começou-se um belo e frutuoso trabalho de tradução, publicação e divulgação dessas Fontes. Aos poucos, tanto na formação cristã em geral, como, também, na formação especificamente franciscana podia-se beber diretamente do espírito originário, seja da Sagrada Escritura, principalmente do Evangelho, bem como das FF, em especial dos Escritos de São Francisco.

Nesse pequeno e simples estudo queremos analisar, ainda que de longe e de forma um tanto caseira, a relação das FF com a formação franciscana, isto é, com a formação daqueles que seguem a Forma de vida que em Francisco ganhou corpo e veio a denominar-se, simplesmente, Vida franciscana.

Embora, hoje ninguém mais duvide de que existe profunda ligação entre ambas pergunta-se: qual é, em que consiste ou como se dá essa relação? O que vem em primeiro lugar: as FF ou a nossa formação? Dá para separar as duas? Caso afirmativo: quem deve servir a quem: as FF à nossa formação ou, vice-versa, essa às FF? Ter as FF como servas de nossa Formação é compreensível, e o fazemos freqüentemente, mas o que seria o inverso: nossa formação servir às FF? E se não for possível separar as duas realidades, como seria ou se dá sua união? Essas questões nos remetem a outras mais fundamentais e primárias: o que são FF, o que é e como efetuar a formação franciscana?

Tentaremos abordar esses questionamentos perguntando, primeiramente, o que são FF, depois sua relação com a formação e, finalmente, qual o caminho natural e próprio para fazer das FF nossa formação.

1. Fontes franciscanas o que são?

1 Nesse artigo entendemos FF os Escritos de São Francisco, Santa Clara e demais textos de autores do século XIII e XIV que testemunham a aventura evangélica desses santos e de companheiros seus e que se encontram, por exemplo, nos volumes Fontes Franciscani, Santa Maria degli Angeli, Assisi, Ed. Porziuncola, 1995, Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis, FFB-Vozes, 2004; Fontes Franciscanas, Santo André, Ed. Mensageiro de Santo Antônio, 2005.

Todos nós, cristãos, religiosos e franciscanos, não temos maiores dificuldades de aceitar a existência de escritos, textos ou livros todo especiais referentes à origem de nossa vida cristã e franciscana que costumamos chamar de textos “religiosos”, “sagrados”, “espirituais”, “inspirados”, “revelados” ou simplesmente, hoje, de Fontes. A dificuldade está na compreensão de seu ser, de sua natureza, e, consequentemente, da maneira justa e adequada de portar-nos com eles.

A compreensão mais usual, hoje, é a que vem da historiografia. A historiografia, graças a seu método crítico de discernir o autêntico do espúrio, tornou-se uma ciência de valor incalculável na busca da verdade histórica dos fatos e ocorrências para toda a humanidade, também para a Igreja, como, também, para a Ordem franciscana. Graças a ela eliminaram-se, por exemplo, entre nós, diversos escritos espúrios, fantasiosos, falsamente atribuídos, muitas vezes, a São Francisco ou a autores estranhos à autenticidade e veracidade das hoje chamadas FF2.

Segundo a historiografia, as FF são os textos que registram e testemunham a história, a vida de São Francisco e dos primeiros franciscanos em sua dimensão factual. Para ela o valor e a importância desses textos residem tão-somente, enquanto e na medida em que estabelecem a verdade histórica de nossa origem franciscana, mas apenas enquanto verificável pelos critérios, meios e recursos das ciências positivas humanas e naturais. Por isso, para a historiografia, textos ou passagens das FF que, por exemplo, não retratam ou contradizem a verdade factual acerca da origem da vida de Francisco ou da Ordem seráfica carecem inteiramente de valor para o estudo do Franciscanismo e de sua espiritualidade. Além disso, e a partir dessa compreensão, todos esses textos, mesmo quando autênticos e verídicos, sob o ponto de vista da historiografia, constituir-se-iam apenas em valioso acervo de dados e informações acerca dos ideais, objetivos e intenções do sujeito Francisco e dos primeiros companheiros. Tudo, enfim, ficaria resumido às pessoas desses nossos fundadores3.

Como veremos mais adiante, nesse artigo, para nós FF são testemunhos escritos acerca de uma nova forma de vida, nascida de uma inspiração inteiramente evangélica e manifestada principalmente em São Francisco e seus primeiros companheiros. Como tais, esses escritos vieram até nós como nascentes ou fontes de um vigor que transcende a história e as pessoas em sua dimensão meramente factual e que, por isso, costumamos chamá-los de inspiração divina. Dessa forma a inspiração divina está na raiz do evento Franciscanismo e de todas as assim chamadas FF. Ela não é apenas anterior a esses testemunhos, mas é, também, sua possibilidade, bem como a possibilidade do sujeito-Francisco, ou do sujeito-grupo denominado Ordem franciscana. Esse vigor, também denominado pela tradição de inspiração franciscana, é anterior e transcende igualmente a subjetividade dos autores desses textos com suas virtudes ou defeitos, intenções honestas ou fraudulentas, objetivos meritórios ou desprezíveis. Pode-se e deve-se, com razão, afirmar que não é Francisco e muito menos seus seguidores que têm o carisma franciscano, mas, antes, esse é quem con-verte, tem, contém, mantém, segura, sustenta, alimenta, forma e in-forma aqueles4.

A inspiração divina franciscana passa a ser, portanto, a realidade verdadeiramente real, a força originária que toca e move o sentir, o pensar, o fazer e o viver dos seus autores. É a força, a fonte originária da qual e para a qual, sempre de novo, Francisco e todos os seus seguidores se voltam a fim de compreender sua (dela) operação e assim sempre mais e melhor a ela dispor sua vontade, seu coração, seu entendimento e todas as suas forças.

Nascidas da inspiração divina, isto é, diretamente do encontro com o Evangelho, com Jesus Cristo, antes do espírito da época ou dos tempos, as FF são devedoras ao espírito do Senhor e seu santo modo de operar5. Por isso, em vez de meras e belas peças de museu a lembrar-nos um passado maravilhoso, mas passado, elas se constituem na inspiração, na forma de vida, sempre atual e atuante para todos quantos, movidos por esse mesmo vigor, decidem-se a seguir os mesmos passos de Francisco. Nelas o modo de expressar-se e de descrever a realidade, a escolha das palavras e dos exemplos, certamente, vêm profundamente marcados com as características da época e até mesmo da boa ou má vontade de seus autores, mas o conteúdo do sentido da vida nelas pulsante procede da fonte que os transcende. Essa última, a inspiração originária, é, pois, o verdadeiro autor, o critério justo, a medida correta para a compreensão desses escritos; jamais as idéias, os sentimentos, os projetos ou pensamentos do sujeito-autor (Francisco e companheiros), e, muito menos, os pensamentos, as aspirações, os costumes sócio-político-econômico-religiosos daquela época, a Idade Média do século XIII.

Vale aqui o que São Paulo diz em suas cartas: Asseguro-vos, irmãos, que o Evangelho pregado por mim não é invenção humana. Não o recebi nem aprendi de ninguém, mas através de uma revelação de Jesus Cristo.

Ajuda-nos a compreender a natureza própria das FF o pensamento de Oscar Wilde acerca da arte: A arte não pode ser submetida ao seu sujeito, pois, neste caso, não é arte, mas biografia, e biografia é a malha pela qual a realidade escapa (Oscar Wilde, pensador e poeta irlandês).

Parafraseando esse pensamento, podemos dizer que as FF não podem ser submetidas ao sujeito São Francisco, muito menos aos seus autores ou a quem quer que seja, pois neste caso tornar-se-iam mera narração de fatos particulares das várias fases da vida de Francisco: uma simples e mera biografia, jamais uma história sagrada7, preparada, conduzida e operada pelo Senhor, como ele mesmo atesta com nitidez e reiteradamente em seu Testamento:

O Senhor me concedeu a mim, frei Francisco começar a fazer penitência assim… o Senhor me deu tal fé nas igrejas… o Senhor me deu e me dá tanta fé nos sacerdotes… o próprio Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho….

É nesses textos, portanto, que os seguidores de Francisco vão encontrar os arcanos de sua identidade, de sua vocação e missão. Pois, é neles que pulsa o vigor da verdade mais real, verdadeira e comum, que vigora, anima e sustenta a caminhada de toda a Ordem através das vicissitudes e relatividades do tempo, lugares e pessoas.

Uma boa explicação dessa realidade originária de todas as FF, e que costumamos chamar de espiritual ou espírito, encontramos no livro Histórias do Rabi, de Martin Buber:

Este livro pretende introduzir o leitor a uma realidade lendária. Devo denominá-la lendária, porque os relatos que chegaram até nós e aos quais me propus dar forma adequada não são, como crônicas, fidedignos. Remontam a pessoas entusiasmadas que, em recordações e apontamentos, preservaram aquilo que seu entusiasmo percebeu ou acreditou ter percebido, isto é, uma porção de coisas que realmente ocorreram, mas que somente o olhar do fervor podia apreender, como também muitas que, da maneira como foram contadas, não aconteceram e nem podiam ter acontecido, mas que a alma entusiástica sentiu como algo manifestamente acontecido, relatando-as, portanto, como tais. É por esta razão que devo chamá-las de realidade: a realidade da experiência de almas ferventes, uma realidade engendrada em total inocência, sem lugar para a invenção ou para o capricho. É que essas almas não informavam de si mesmas, mas daquilo que sobre elas atuava. O que podemos deduzir de seu relato não é, pois, somente um fato da psicologia, mas também da vida. Algo exaltante sucedeu e produziu o efeito que produziu: a tradição, ao transmitir o efeito, testemunha também aquilo que o causou – testemunha o encontro entre homens entusiasmadores e homens entusiasmados, a relação entre estes e aqueles. Isto é lenda verdadeira e tal é a sua realidade.

Em última análise, todas as grandes religiões e movimentos religiosos visam engendrar uma vida em entusiasmo, e precisamente num entusiasmo que nenhuma vivência pode sufocar que, portanto tem sua origem num relacionamento ao eterno, acima e além de toda a vivência individual.

A colocação mais significativa dessa passagem de Buber é que os textos-fonte nasceram de pessoas entusiasmadas e entusiasmadoras, isto é, de pessoas movidas de entusiasmo. Entusiasmo, porém, aqui, nada tem a ver com a força anímica, oriunda da exacerbação subjetiva da pessoa. Tem a ver, sim, com seu significado originário, atestado já no sentido etimológico dessa palavra. De fato, entusiasmo vem da palavra grega én-theos ou én-thous e significa cheio de Deus, ou, talvez, melhor: estar no movimento (no embalo) de Deus10.

Isso significa que nesses textos temos a possibilidade de estar diante de uma realidade que não precisa necessariamente ser real como fato e mesmo assim ser verdadeiramente real; uma realidade que é real como experiência humana e, como tal, sumamente universal, comum e própria do humano em todas as suas mais diversas e variadas concreções; uma realidade nada subjetiva, fantasiosa ou particular por situar-se acima e além de toda a vivência individual uma vez que sua origem dá-se num relacionamento que vem do eterno com o homem em forma de visita, encontro ou toque. Mas, por não ser subjetiva não se pode concluir que seja objetiva, no sentido de verificável a modo de objeto fisico-material-biológico.

Aproveitando as colocações de Buber poderíamos dizer que as FF em vez de serem textos históricos, geográficos, econômicos, pastorais, doutrinários etc., são textos pertencentes ao fenômeno religioso. Mas, fenômeno religioso, antes de fato ou ocorrência, indica tarefa, responsabilidade, busca ou questão, como muito bem o diz Frei Hermógenes Harada nessa passagem:

Tarefa de uma questão engajada, sincera e radical, na qual devemos abrir-nos incondicionalmente para uma dimensão inteiramente nova. Dimensão que, à primeira vista, parece-nos vaga, indeterminada, apenas como que indicando uma direção; não porque seja nada, um vazio, ilusão ou opiniões particulares de mil e um diferentes enfoques e pontos de vista, mas sim, porque se trata de uma realidade anterior a nós, abissalmente mais vasta, mais profunda e mais originária do que todas as nossas possibilidades e medidas. Dimensão que não é, portanto, subjetiva, mas que, também, não é objetiva, no sentido de ser passível de nossas objetivações, mesmo que essas objetivações recebam, hoje, a conotação sagrada de cientificidade e logicidade. Uma dimensão que é real, realíssima, mais real do que todas as nossas objetividades e subjetividades, por ser a condição da possibilidade do nosso ser e conhecer11.

Ora, não é essa realidade, que costumamos chamar de espírito, o “real” único e verdadeiro das Fontes Franciscanas?!

2. Fontes franciscanas em ou nossa formação?

Como assinalamos no início desse artigo, a formação que formalmente nós, frades menores, mais antigos, durante séculos fomos recebendo e promovendo até a década de 60 do século passado, nada ou pouco tinha a ver com as FF. Por isso, no dizer de frei Celso Márcio Teixeira, herdamos um franciscanismo ideologizado e híbrido12. Um franciscanismo que proced(e)ia muito mais de outras vertentes, como, por exemplo, do monaquismo, dos planos de evangelização e de pastoral da Cúria romana e das Dioceses, das inúmeras declarações papais, da ascética, da moral, do direito canônico, da teologia comum e usual da Igreja, da filosofia, da sociologia, da psicologia etc., do que, propriamente, da experiência evangélica de Francisco.

Com isso nossa formação foi tornando-se cada vez mais vaga, diluída, ambígua, equivocada, fragmentada, juridicista, moralista, pastoralista etc. Assim, aos poucos e hoje quase não se percebe mais com muita clareza como ou em que nós franciscanos nos diferenciamos dos demais religiosos ou clérigos, e, às vezes, até mesmo dos cristãos seculares. Em muitos casos o frade menor não passa(va) de um monge ou cura de almas, um agente de pastoral ou promotor do bem-estar social e humano, semelhante a qualquer outro sacerdote ou secular.

Poderia arrogar-se o direito, o dever e a missão – como os demais – de “Apóstolo”, isto é, de testemunho de Jesus Cristo crucificado? Como poderia testemunhar alguém que nunca tivesse encontrado?

A própria formação passou a ser compreendida, em muitos casos, mais como habilitação para o simples desempenho de ofícios, deveres e atividades do que como contínua busca e generosa acolhida da inspiração originária de Francisco13. O que mais importava era ter um bom gestor e realizador de tarefas e funções, um bom defensor de conquistas doutrinárias do que propriamente um eterno peregrino do espírito originário franciscano. Em outras palavras, ser frade, segundo essa compreensão, seria mais iniciativa e agenciamento nosso do que operação do Senhor. Por isso, começou-se a falar e pensar que ser franciscano era ingressar ou entrar na Ordem e não, como Francisco, em receber benignamente e sempre de novo esta vida, esta Ordem14.

Nossa sorte é que a Ordem está assentada sobre a rocha firme de um carisma profunda e limpidamente evangélico. Por isso, durante todos esses séculos de esquecimento, continuamos sendo orientados e vivificados pela luz e pelo vigor de sua presença, pulsante e atuante através de muitos outros vestígios ou vertentes, como, por exemplo, o burel, as sandálias, o nome, os lugares “franciscanos”, os monumentos, as artes e pela tradição oral, principalmente, pelos famosos I Fioretti de São Francisco.

Oriunda de muitas outras fontes, nossa formação carece(ia) de um núcleo central, um coração, raiz ou razão que tudo interligue, oriente e vivifique. Por isso, também, tornou-se uma formação frágil e de pouco fôlego, necessitando sempre de “novidades” e experimentos procurados em escolas de outros carismas, outras espiritualidades ou ciências, esquecendo que seguindo muitos caminhos nunca se chega a lugar nenhum, e, jamais, de jeito nenhum, à fonte.

Por isso, o pronome nossa, do título em nossa formação, está se referindo a toda série de fatores, princípios, conceitos e métodos formativos esdrúxulos que, durante séculos, até os dias de hoje, à semelhança de pó, vem se assentando e se agregando à formação originária. A essa não restou outra saída senão retirar-se para as camadas profundas do esquecimento, quando não do menosprezo, por ser considerada antiquada, medieval, obscurantista etc. Assim, o que era nossa formação passou a não ser e o que não era passou a ser.

Na década de 60, do século passado, esboçou-se o início de uma reação. Movidos pelo espírito renovador do Concílio, os franciscanos não apenas redescobriram as FF, mas também começaram a traduzi-las e usá-las em sua formação. Começou-se a abrir os livros sagrados de nossa vida e nossa história, buscando neles ajuda a fim de melhor conduzir essa que é a primeira e a mais importante de todas as nossas tarefas ou missões: a formação.

Mesmo assim, a nosso ver, todo esse esforço ainda não desfez, nem transformou o caráter híbrido, vago, e diluído de nossa formação com todas aquelas suas e demais características e conseqüências acima mencionadas. A formação do nosso ser franciscano ainda está muito distanciada das FF. Ou seja, de um lado temos a nossa formação e de outro as FF. Quando muito ou apenas nos servimos de algumas de suas passagens, escolhidas a dedo, para ilustrar e comprovar uma formação que concebemos e montamos a partir de outras origens. Não acreditamos no que elas verdadeiramente são: a fonte, a origem de nosso vir-a-ser. Provavelmente uma das causas dessa atitude esteja no medo que se tem hoje de tudo quanto seja medieval. É que, preconceituosamente, sem pouca análise crítica, pensa-se que tudo o que procede da Idade média seja infantil, fantasioso, obscurantista, dogmatizado, fundamentalista, etc.

Esse medo é real, pois sempre estamos correndo o risco de entrar para um modo deficiente de ser franciscano; um caminho eivado de subjetivismos, onde não se segue o rigor e a seriedade da responsabilidade de fazer o que deve ser feito até à consumação de nossa possibilidade finita, para que o salto no desconhecido não seja facilitado e banalizado pela ausência de conhecimento e saber bem fundamentados.

Tentemos compreender melhor essa questão passando a ver a relação FF-formação no início da Ordem, isto é, como ela se dava em Francisco e companheiros.

Primeiramente devemos considerar que Francisco nunca ousou ter outro formador senão a inspiração originária que se engendrava em seu coração, se aclarava em sua mente, se fortalecia, florescia e amadurecia em suas atitudes temperadas sempre com firmes propósitos de fidelidade aos inúmeros toques vindos daquela realidade que o encantava e atropelava cada vez mais na busca de seus ideais de grandeza humana. Já no processo de sua conversão a ninguém revelava seu segredo nem buscava conselho de ninguém nesse assunto, a não ser só a Deus, que começara a dirigir seu caminho16. Ao Papa, que receava aprovar-lhe a Regra, por considerá-la demasiadamente rigorosa, e queria propor-lhe outras formas de vida, responde-lhe que não se deve temer que morram de fome os filhos e reis do Rei eterno que, nascidos, segundo a imagem de Cristo Rei, de uma mãe pobre, pela virtude do Espírito Santo, devem ser gerados pelo espírito da pobreza numa Religião paupérrima.

Sem deter-nos em outras considerações acerca dessa passagem, notemos, porém, a insistência de Francisco acerca do princípio originário de todo processo formador franciscano: o frade menor é filho e rei do Rei eterno, que nasce, segundo a imagem de Cristo Rei, pela virtude do Espírito Santo e que, por conseguinte, deve gerar-se pelo espírito da pobreza.

Ora, rei e filho do rei regem-se por nenhuma outra regência senão pela luz e pela orientação de sua índole régia; do contrário, se devessem orientar seus passos e tomar suas decisões através de outros princípios ou príncipes não seriam reis e muito menos filhos de reis.

Mas, a relação FF-formação em Francisco vem magistralmente descrita naquela passagem, talvez a mais significativa de todas, que revela o primeiro encontro explícito de Francisco com o Crucificado de São Damião, onde o autor conclui dizendo que

desde aquela hora, seu coração de tal modo ficou ferido e derretido ante a memória da Paixão do Senhor, que sempre, enquanto viveu, levou em seu coração os estigmas do Senhor Jesus, como posteriormente apareceu claramente pela renovação dos mesmos no seu corpo, admiravelmente realizados e clarissimamente demonstrados.

Francisco cresceu tanto na disposição de bem acolher essa forma (formação) de vida que, segundo São Boaventura, o verdadeiro amor de Cristo havia-o transformado de tal maneira em sua própria imagem que trazia consigo a imagem do crucificado19.

Através desses dois testemunhos não é difícil de perceber aquele princípio ou método originário de formação seguido por Nosso Senhor, nosso verdadeiro e único mestre e a Virgem Maria, sua e nossa mãe.

De Cristo atestam os evangelistas que, desde que entrou nesse mundo até seu último suspiro, nenhuma outra coisa procurava senão conhecer e cumprir a vontade do Pai; de sua e nossa mãe também se assinala que vivia ruminando em seu coração todas as coisas que diziam respeito ao Menino20. Assim, tornou-se inevitável que também Francisco, por haver seguido à risca esse mesmo caminho, viesse a constituir-se para todos os frades a Forma minorum o Espelho da perfeição21. Assim, era através dele e somente nele que os primeiros frades buscavam o fogo que lhes aquecesse a mente, a luz que lhes iluminasse a alma e a estrela que lhes orientasse os passos que deviam seguir no percurso da nova vida.

Após a morte do santo pai, os capítulos e os ministros gerais trataram de impedir que a imagem viva do espírito evangélico, a Forma minorum, resplandecente e atuante em seu primeiro e verdadeiro formador, se apagasse de suas mentes. Cuidaram, por isso, de assegurá-la para as gerações futuras pedindo e ordenando que todos os Irmãos recolhessem e redigissem os prodígios, os milagres bem como os fatos insignes que revelavam a inspiração originária dessa nova Forma de vida evangélica22. Assim, continuaria ele vivo, através de seus escritos e das assim hoje conhecidas e denominadas FF. Por isso, seus autores insistem que todas essas coisas foram escritas a fim de edificar os que querem imitar seus passos e manter sempre viva para os pósteros a memória23 de tão importante, preciosa e fundamental aventura evangélica. São Boaventura, por sua vez, assegura que, entre os diversos objetivos de sua obra, está o de fazer com que os verdadeiros amigos da santa Pobreza sejam instruídos, pelo seu exemplo, a viver de acordo com Jesus Cristo e a sentir, com insaciável desejo, a sede da feliz esperança24.

Todas essas expressões, como fazer a memória, cuidar da edificação dos irmãos etc. nada tem a ver com moralização ou doutrinação, muito menos com a busca de uma formação piegas ou meramente formalista. Tem a ver, sim, antes e acima de tudo, com a dinâmica própria do humano, entendida, no caso, como um contínuo vir-a-ser da existência franciscana, ou seja, nossa formação.

Assim, os escritos do próprio seráfico pai, juntamente com as ricas e variadas legendas (FF), constituíam-se nos primórdios da Ordem no mais significativo, senão único, manual que regia e edificava os Irmãos. Consequentemente não havia entre eles o binômio formador x formando, mestre x discípulo uma vez que todos tinham-se, pura e simplesmente, como aprendizes e discípulos do único mestre e senhor: o espírito originário da Ordem.

As Legendas ou Vidas de São Francisco com seus Escritos, principalmente a Regra, foram se constituindo em verdadeiros anúncios e testemunhos daquela Forma de vida para a qual Francisco entregara todo seu ser, do começo até o fim de sua conversão. A Forma minorum, a Regra viva que antes ganhara corpo e forma em Francisco agora podia ser vista, admirada, contemplada, abraçada, recebida e seguida através desses escritos.

Infelizmente, como vimos, todo esse fervor por parte das primeiras gerações de Frades para manter a memória da Ordem e uma formação originada pelo confronto imediato e direto, corpo a corpo, com nossa Forma de Vida, pulsante nesses textos, durou pouco. À medida que a Regra e as Legendas iam sendo esquecidas e cedendo lugar a outras formas de vida, vindas de fontes estranhas ao nosso gênero de vida, a Forma minorum passou a constituir-se em mero efeito lingüístico e cultural. Não se constituía mais em razão, nascedouro ou fonte da formação dos Irmãos. Francisco de forma passou a ser a gloria minorum. Agora ao invés da busca e do estudo do seguimento do espírito de sua experiência evangélica importava tê-lo como santo da Ordem e honra dos Frades. Em vez de olhar para Francisco, os frades olham para a Igreja, com suas cada vez mais complexas e numerosas interpretações, para as inúmeras e cada vez mais numerosas ciências humanas, como a teologia, a filosofia, a psicologia, a sociologia etc. etc.

Agora, talvez, o leitor possa entender o título da segunda parte dessas reflexões. A maneira como vem formulado pretende indicar duas formas ou possibilidades diferentes de compreender e realizar a relação entre as FF e a formação. A primeira – FF em “nossa” formação – vê e elabora uma formação que traça seus princípios, conceitos, conteúdos, metodologias etc. a partir de inúmeras procedências, distanciada ou alheia às FF. Essas existiriam apenas para servir, ajudar, ilustrar e orientar a formação que nós elaboramos. E, certamente, essa foi uma das melhores conquistas que se fez e está se fazendo nessa caminhada de quase cinqüenta anos de renovação conciliar.

Quando hoje se fala em formação franciscana, tanto inicial como permanente, é quase inconcebível entendê-la sem o uso das FF e sem uma escolha “criteriosa” de passagens que venham exemplificar e comprovar a formação que concebemos e empregamos. Assim, por exemplo, é difícil que um franciscano faça seu retiro sem nada ler ou usar das FF.

Por isso não dá para dizer que nossa formação seja basicamente uma formação franciscana. Trata-se, antes, de uma formação de franciscanos ou seja, uma formação franciscana pela metade. E, segundo um educador cristão do século XIX, em se tratando de formação evangélica, uma formação pela metade é pior do que nenhuma26. Exemplificando: para um homem é melhor permanecer solteiro do que casar e viver em contínuas infidelidades matrimoniais.

Por isso o título da segunda parte desse estudo, em forma de pergunta, pretende lançar uma dúvida ou questão: se essa maneira de conceber e processar a formação, colocando as FF ao serviço dessa nossa formação, é justa, correta, saudável e adequada? Para uma formação realmente originária basta que se tenha as FF apenas como meio, recurso, subsídio e sustentáculo para outra formação, oriunda de outras origens? Não vale aqui o mesmo princípio que se costuma aplicar ao Evangelho? Ou seja: São as FF que devem se adaptar à nossa formação ou, antes, não é essa que deveria adaptar-se àquelas? Quem deve inspirar quem? Por isso, a segunda parte desse subtítulo: As FF, nossa formação.

Aproveitamos, aqui, para ilustrar nossa reflexão, o que dizia um frade holandês que trabalhou muitos anos na formação:

Muitos, em vez de seguir o santo, atrelam-no atrás de sua carroça, querendo que ele lhes traga vantagem nas suas lutas, propagandas e ideologias. Em vez de proclamar Francisco seu condutor, invertem os papéis: “São Francisco pensa como eu”; em lugar de “eu devo pensar como Francisco” colocam o seu “eu” no lugar do mestre. Nesse caso não temos verdadeiro amor a São Francisco, mas um egoísmo interesseiro.

Tentemos ver essa diferença com alguns exemplos. Uma coisa é o médico dizer: “A medicina em minha vida” e outra, bem diferente: “A medicina, minha vida”; uma coisa é o esposo dizer: “Maria em minha vida” e outra: “Maria, minha vida”; uma coisa é dizer: “Jesus Cristo, Evangelho, São Francisco em minha vida” e outra dizer: “Jesus Cristo, Evangelho, São Francisco, minha vida”.

No primeiro caso medicina, Maria, Jesus Cristo, Evangelho e São Francisco estão em nossas mãos e ao nosso serviço, assim como o empregado ou a enxada está nas mãos e ao serviço de seu patrão ou do agricultor. Assim, apesar da muita boa vontade em querer dar um fundamento franciscano e seguro à nossa formação, através desses exemplos, percebe-se que as FF viraram objeto da ação de nossa subjetividade. Já no segundo caso dá-se o contrário: o médico, o esposo, nós é que nos colocamos nas mãos e à disposição da medicina, de Maria, de Jesus Cristo, do Evangelho, de São Francisco e, no caso, das FF. Elas, como foram nos primórdios da Ordem, voltariam a ser o que são: nosso primeiro e único formador.

3. Leitura espiritual, caminho da formação franciscana

Mas, como, ou o que fazer para que as FF sejam, de novo, nossa formação? Qual o caminho que devemos seguir para que nossa formação, nossa existência franciscana, à semelhança da água que borbulha da fonte, profluam, de novo, do sopro vital e originário do Franciscanismo, pulsante e atuante nos textos de nossa Forma de vida?

Para responder a essa questão, precisamos, antes, recordar mais uma vez a natureza e a atuação própria das FF.

Todos esses escritos, por conterem e re-velarem a inspiração originária da Vida franciscana, conduzem seu leitor para a proximidade mais intensa da profundidade do Mistério divino, fonte e origem da Vida franciscana. São textos dos quais borbulha e nos quais atua a realidade mais profunda e radical que está para além, ou, melhor, para aquém de toda e qualquer realidade proveniente da subjetividade do leitor, da subjetividade de quem os escreveu ou de quem quer que seja. Por serem fontes, são o princípio, a paisagem da qual brota nosso vir-a-ser franciscano e, consequentemente, toda a nossa formação e não meros meios, recursos para qualquer outra formação, por mais substanciosa ou profícua que pareça.

Por isso, a natureza desses escritos dita também o caminho de sua leitura e estudo. Pois, como diz um grande mestre:

Compreende melhor a Escritura, aquele que, despojado de todo espírito, procura o sentido e a verdade da Escritura nela mesma, isto é, no espírito em que foi escrita e pronunciada: no Espírito de Deus… E São Paulo diz: Ninguém pode conhecer e saber o que há no homem senão o espírito que está no homem, e ninguém pode saber o que é o Espírito de Deus e o que há em Deus, senão o Espírito que é de Deus e é Deus (1Cor 2,11). Por isso um escrito, ou uma glosa, diz muito acertadamente que ninguém é capaz de compreender ou de ensinar o que São Paulo escreve, se não tiver o espírito em que São Paulo falou e escreveu28.

Formar-se partindo das FF, portanto, não é outra coisa senão despojar-se de seu (nosso) próprio espírito e de todos os outros espíritos, venham de onde vierem, para tão só e unicamente dispor-se ao espírito que vige e atua nas próprias Fontes. Esse empenho, trabalho ou exercício a tradição cristã e da Ordem denominou de leitura espiritual.

O caminho da leitura espiritual pode ser vislumbrado na sétima admoestação de São Francisco:

Diz o Apóstolo: A letra mata, mas o espírito vivifica. 2São mortos pela letra os que cobiçam saber só as palavras, a fim de serem tidos mais sábios entre os outros e poderem adquirir grandes riquezas, para dá-las aos parentes e amigos. 3E são mortos pela letra aqueles religiosos que não querem seguir o espírito da letra divina, mas só cobiçam saber mais palavras e interpretá-las para os outros. 4E são vivificados pelo espírito da letra divina os que não atribuem a si toda a letra que sabem e cobiçam saber. Mas, pela palavra e pelo exemplo, devolvem-na ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo o bem.

Segundo essa admoestação, Leitura espiritual, portanto, não se identifica em apenas e simplesmente ler textos “espirituais”, “religiosos” ou “sagrados”. Na leitura espiritual o acento não está na “coisa” que se lê, mas no modo, na postura ou conduta, isto é, no espírito do leitor. Pois, como diz a Admoestação, pode-se estar na leitura procurando seguir não o espírito da letra divina, mas tão somente a si, seus interesses, seus (pre)conceitos e saberes.

O próprio da leitura espiritual, o que faz uma leitura ser espiritual, ou seja, o que conduz e orienta o leitor na leitura espiritual é a dinâmica do toque e da nobreza nascida do vigor do encontro. Por isso, na leitura espiritual o leitor, partindo de sua total e absoluta pobreza (sine proprio), lê mais ouvindo do que projetando, mais interrogando do que afirmando, definindo ou formalizando, mais considerando e admirando tudo sem nada menosprezar, mesmo que algo pareça ridículo, impossível, antiquado ou absurdo; nessa leitura tudo se pondera e se reflete na tentativa de intuir e acolher entre as palavras, as frases e os períodos o espírito do Senhor e seu santo modo de operar evangélico-franciscano. Trata-se, pois, de uma leitura que se faz a partir do “dentro”, do coração do próprio texto, participando do espírito que o move e o per-faz. Em verdade, na leitura espiritual em vez de esforçar-se para colher e ou definir o sentido da existência franciscana, como se fosse um algo ou mesmo um ideal, a exemplo do próprio Senhor, que em tudo seguiu a vontade do Pai; a exemplo de Nossa Senhora que passou a vida toda ruminando as coisas referentes ao Filho; a exemplo de nosso seráfico pai que desde o encontro com o Crucificado até o fim viveu carregando em sua alma os estigmas da Paixão do Senhor, o leitor esforça-se para deixar-se colher e tomar pela origem e pelo fundamento da Ordem30. Enfim, em vez de agente ou sujeito da leitura faz-se seu paciente, isto é, aquele que, a exemplo do artista, sofre e padece o agir e o atuar da inspiração originária.

A outra leitura, descrita pela admoestação como letra que mata, poderíamos chamá-la de leitura objetiva, isto é, uma leitura que se faz “de fora”, “de longe”, “sobre”, a modo de jornalista ou de quem fica sobrevoando e descrevendo a partir de sua visão, de seus recursos e objetivos pessoais.

Essa última leitura, diz Francisco, mata. Mata porque impede que o princípio originário do texto nos visite e faça sua habitação em nós, que é a dinâmica e a essência de todo encontro. Ou, como diz a própria Admoestação, porque só cobiça mais palavras para interpretá-las para os outros. Seria semelhante a alguém que casasse com uma bela e nobre senhora somente para proveito próprio, como, por exemplo, para subir de status e poder exibir-se perante os outros. Nesse caso estaria “matando” a jovial alegria da gratuidade do encontro, descrito pelo Senhor como entrar no Reino dos céus.

Leitura espiritual é, pois, exercício ou “coisa” do espírito. E espírito, para nós cristãos, é sempre, sem mais e nem menos, eco, ressonância ou ato e atuação do ser de Deus; a pura doação que Ele faz de si mesmo, na soltura, total, cordial e generosa da efusão do seu ser, criando todas as criaturas, em graus de intensidade diferentes e diferenciados, participantes de seu ser31. Nesse sentido, leitura espiritual – formação – é, sem mais e nem menos, empenho em ou para vir-a-ser o que já somos por graça: filhos queridos de Deus, o Pai do céu, como Francisco gostava de proclamar32 .

Textos espirituais, portanto, só se compreendem quando lidos na dinâmica do interesse. Não interesse no sentido usual da busca de vantagens, lucros e favores pessoais, como quando, por exemplo, se pergunta: qual seu interesse nessa viagem?

Belo exemplo dessa mútua e recíproca leitura (formação) vemos na vocação de Frei Bernardo, primeiro companheiro de Francisco. Levado pelo estranhamento, durante quase dois anos esteve lendo e querendo descobrir o “segredo” da “nova vida” de Francisco. E, na medida em que ia lendo, era “lido”, colhido e acolhido pela inspiração originária. Por isso, quando diz a Francisco que quer viver como ele, Francisco, estava vivendo, o faz já movido por “esse” espírito. Por outro lado, também Francisco, por estar no movimento dessa mesma inspiração, sente a necessidade de ler de novo e melhor ainda, agora na pessoa de Bernardo, a forma de vida que recebera do Senhor. Por isso, em vez de dar ou ensinar a Bernardo uma resposta, propõe irem até a igrejinha da Poriciúncola a fim de lerem juntos, e de novo, o Evangelho da Pobreza de Cristo e dos Apóstolos que ele, Francisco, já ouvira e recebera anteriormente na missa de São Matias, na mencionada igrejinha (Cf. LTC 25-29).

Aqui se trata do interesse no sentido mais originário, que significa ir para dentro da coisa, ela mesma, assim como se expressa o latim com as palavrinhas: inter (para dentro) e esse (ser). Textos espirituais, portanto só se compreendem se e quando o leitor se dispuser a ir para dentro do mistério do encontro que conduz e perfaz o texto. É como nos vitrais de uma igreja. De fora, por cima ou de longe, nada se percebe ou se pode captar, nada encanta ou arrebata. É preciso tirar as sandálias, despojar-se de si mesmo e entrar na catedral do mistério que conduz e perfaz o texto; mistério que, no decorrer dos séculos, vem conduzindo, orientando, formando e in-formando a Ordem e todos os vocacionados a essa Forma de vida. Só assim, o leitor poderá ser tomado e arrebatado pelo encantamento do encontro com o vigor de suas imagens, figuras e apresentações. Enfim, leitura espiritual – formação franciscana – a partir das fontes é, sem mais e nem menos, exercitar o ver e o sentir simples e imediato na disposição de abertura ao encontro daquela realidade, força ou espírito que um dia nos encantou ou atropelou, como encantou e atropelou Francisco, Clara e tantos outros.

Por isso, o caminho formativo, indicado pela segunda parte do título do segundo capítulo desse estudo Fontes Franciscanas, nossa Formação, situa-se dentro da dinâmica do sine próprio, expresso em nossa Regra33 e ardorosamente defendido por Francisco até o fim de sua vida, principalmente em seu Testamento. Tal caminho nada tem de pronto, definido e conhecido. Tudo – conceitos, princípios, conteúdos, metodologia etc. – está por ser considerado, refletido, procurado e elaborado, sempre novo e de novo por cada leitor e cada época. Assim, todo aquele que – com ou sem letras, com cursos ou sem cursos, jovem ou velho – tocado ou iluminado por algum raio dessa Forma de vida, se dispuser a bem ouvir, bem ler e bem acolher, ao longo dos anos de sua vida, devota e benignamente, esses Escritos, não há dúvida que verá um dia desabrochar e florescer também nele o corpo, o ser da existência evangélica denominada franciscana. Ora, isso, sem mais e nem menos, pura e simplesmente, sem nada pôr e nem tirar, não é, por acaso, Formação?!

Não há dúvida de que esse seja realmente o caminho por excelência da Formação franciscana. Pois, se alguém quisesse conhecer profundamente o pensamento de Platão, por exemplo, ou, melhor ainda, quisesse conhecer e viver o próprio Evangelho, o que seria melhor: ler, estudar, pesquisar tudo o que outros estudaram, pesquisaram e proclamam ou, pura e simplesmente, mergulhar por anos a fio, diretamente e corpo a corpo, nos textos do próprio Platão ou do Evangelho? Evidentemente, o segundo é o melhor, senão o único e verdadeiro caminho para se chegar ao pensamento de Platão e ao coração da boa-nova de Jesus Cristo34.

Acerca do modo próprio de se fazer leitura espiritual, o leitor encontrará diversas orientações no livro Leitura espiritual e formação franciscana, de nossa autoria, Vozes, 1996. Mesmo assim, vale registrar, aqui, como foi que Francisco começou a “ler” a realidade, o espírito que começara a persegui-lo. Logo após a visita do Senhor em forma de sonho, no caminho de Espoleto, ele retorna a Assis, isto é, para sua origem, a fim de ler e interpretar de novo e de outra forma o sonho que tivera. Isso porque da primeira vez o fizera de modo carnal, isto é, a partir de sua visão e de seus parâmetros. A partir de então começa a pensar diligentemente sobre a visão que tivera; começa, também, a recolher-se em si mesmo, considerando e admirando sua força com tanta diligência que, naquela noite, nem mais quis dormir (Cf. LTC 6).

Mas, para retomar esse caminho originário da formação franciscana é preciso recordar que nas FF, seguindo o Evangelho, o conceito de formação, sua metodologia, sua prática etc. pouco ou nada têm a ver com a busca de informações, saberes, dados, conteúdos ou doutrinas, muito menos com adestramentos ou de modelos prefixados. Tem a ver, antes, com o processo de transformação ou conversão que nasce, cresce e amadurece a partir do vigor do encontro, da Fé, da Entrega e do Amor. Encontro cuja dinâmica leva e conduz o vocacionado para dentro da atmosfera da audiência diligente e da obediência única e exclusiva àquela dimensão que o toca, visita e convoca; àquela dimensão (que para nós franciscanos brilha de modo pleno e consumado na pessoa de Jesus Cristo, pobre e crucificado) para a qual se dispôs seguir como seu único caminho, sua única verdade, sua única vida, e que, por isso, à semelhança do casamento, jamais admitirá presença e interferência de terceiros35.

Concluímos, enfim, com um exemplo em forma de pergunta. Alguém que, diária e continuamente, se expusesse ao sol não viria, por acaso, a se aquecer e a se iluminar com o calor e a luz de seus raios? E, para que se processe tal transformação, por acaso a pessoa precisaria saber e conhecer o que vem a ser o sol, sua história, natureza e propriedades? O mesmo não aconteceria com o seguidor de Francisco que se colocasse à disposição do calor e da luz dos raios iluminadores de seu espírito ressoante nas Fontes Franciscanas? Com o tempo não veria florescer também nele, como outrora em Francisco, aquela Forma de vida evangélica que o transformou de filho de Pedro de Bernardone em filho do Pai nosso que está no céu?

Conclusão

As FF constituem-se no mais explícito e significativo testemunho da forma, da Regra, do espelho da vida evangélica franciscana originária. Nelas, por elas e com elas pode-se ouvir ressoar o ato da paixão de Jesus Cristo que comoveu Francisco, Clara e toda aquela primeira geração de franciscanos; nelas, por elas e com elas pode-se respirar e transpirar aquele sopro evangélico que transformou e conduziu Francisco e todos os seus seguidores de todos os tempos. Nem sempre, porém, nós, seus seguidores, fomos fiéis à sua fidelidade. Vejamos, em forma de resumo, como através dos tempos veio se dando nossa (in)fidelidade.

– Primeiramente a forma, a Regra de vida, o Espelho da perfeição evangélica transpiravam tão forte e originariamente em Francisco que, enquanto ele viveu, era nele que todos os frades encontravam sua formação. Francisco era a forma minorum.

– Logo após a morte de São Francisco os frades continuaram a pôr-se à disposição da forma de vida evangélica de Francisco, agora através da leitura ou da escuta, principalmente da Regra, do Testamento, mas, também dos demais textos, hoje denominados de Fontes Franciscanas.

– Essa fidelidade, porém, não durou muito tempo. A partir, mais ou menos, do século 15 até meados do século passado os frades foram esquecendo e ignorando quase que completamente as FF no processo de sua formação. Essa passou a beber água de outras fontes e a orientar-se com a luz de outras inspirações.

– A partir do Vaticano segundo, celebrado em meados do século passado, inaugurou-se um tempo de reaproximação do processo formador dos frades com as FF. Os frades começa(ra)m a utilizar-se das FF para subsidiar e comprovar “sua” formação.

– Enfim, espera-se que surja um novo tempo segundo o qual, atendendo os novos sinais do Reino dos céus, as FF sejam retomadas, novamente, como nosso primeiro senão único formador, como Cristo e seu Evangelho eram o único formador dos Apóstolos e Francisco o único formador de seus Irmãos. Tempo em que a atual crise da Formação nos leve a vislumbrar a necessidade de uma viragem – conversão – no que diz respeito à essência de todo o processo formador: passar do empenho de nossa formação para torná-la, cada vez mais e melhor e tão somente, um puro corpo de recepção devota, diligente, benigna, humilde e atenta do espírito originário franciscano e de seu santo modo de operar36.

Finalmente, concluímos com uma citação de Frei Marcos Aurélio. Comentando a passagem de 2C 191-192, onde Francisco através de uma parábola exorta os Irmãos à unidade originária, uma unidade que deve dar-se entre frades letrados e iletrados, homens de ciência e os que sabem agradar a Deus sem a ciência, diz Frei Marcos:

Não se pode concluir que Francisco tenha aceitado a ciência como meio para a ação franciscana, mas a conclusão mais provável seria aquela de que o letrado, ao entrar no movimento franciscano tinha que se converter ele mesmo à forma de vida minorítica e à sua simplicidade. Os novos membros da Ordem deviam se formar seguindo a forma de vida da Ordem e não transformar a Ordem ao seu modo de vida. Os sábios e os letrados não deviam ter outra meta e outro método do que o de serem simples e ignorantes37. O sábio que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele convocava a renunciar, não apenas aos bens materiais, mas também, de certa maneira, à ciência, para que, desapegado de tudo, se oferecesse nu aos braços do Crucificado e chorasse seus pecados38 na solidão e no silêncio

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