Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Zen e o começo

20/04/2021

 

Eiko Hanaoka (-Kawamura)

Na tentativa de traduzir o termo alemão “Anfang”, começo, para o japonês e consultando um dicionário, encontraremos quatro combinações diferentes de caracteres. Em seu dicionário Jitou, S. Shirakawa explica a etimologia da primeira opção, da seguinte maneira: XXXX é uma combinação de dois caracteres, XXXX (vestimenta) e XXXX (espada). O primeiro denota as regras cerimoniais que estabelecem as indumentárias cerimoniais a serem usadas nas festividades religiosas. Outra combinação de caracteres é XXXX, significando uma invocação ritual, encenada anualmente no começo da estação do plantio, quando se purificam ritualmente os utensílios agrícolas. A terceira opção traz um só caractere, sem nenhuma combinação. Era usado para denotar uma festividade religiosa e significa, literalmente, o pescoço humano. A quarta opção XXXX representa um jorrar e simboliza um começo primal. Essa última opção possui ainda dois outros significados, “primeiro começo” e “causa”. Assim como arche no grego clássico, “começo” significa em japonês o ponto cronológico primal da origem de toda criação e o princípio de sua existência. Num contexto religioso, porém, o termo “começo” é usado para fins purificadores e invocatórios.

A língua alemã usa a palavra “começo” em sentidos que não possuem correspondentes em japonês. O japonês pode, sem dúvida, dizer algo assim como “o primeiro passo é o mais difícil” ou “acaba bem o que começa bem” (que concebe o começo como parte de um todo), como fazem os alemães. Há ainda outros exemplos, que possuem uma qualidade mais polarizante como “ri melhor quem ri por ultimo” ou “quem planeja uma viagem de 100 quilômetros vai sentir que 99 são a metade da distância”. A língua japonesa não conhece, porém, o termo “Anfang” nem no sentido de começo de um único item dentro de uma multidão e nem como o oposto à palavra “fim”. Olhando para começo e fim num nível mais profundo, como veremos a seguir, esses dois termos são na verdade idênticos, não estabelecendo nenhuma diferença superficial.

Seguindo essas reflexões iniciais, farei uma exposição sobre o Zen Budismo e o termo “começo” e veremos que Zen volta-se tanto para o nosso coração e a nossa mente como para a nossa razão e a nossa compreensão.

Tomarei a seguir “Anfang” no sentido do que é originariamente uno e indiviso. Assumirei esse termo também na acepção de origem de todas essas coisas estranhas que se dispersaram do uno. A explicação dessa interpretação baseia-se num texto do século XII, escrito pelo mestre Zen chinês Kakuan. As “Dez pinturas do boi e seu pastor” mostram plenamente como começo e fim são, em princípio, um e uno. Poder-se-ia reformular essa expressão e chamar de começo o que foi originalmente uno; o fim seria então o que se dispersou do uno original. É o detalhe e o todo, é tanto identidade como diferença. O primeiro capítulo vai tratar desses conceitos.

Para dar seguimento a essa exposição, farei um resumo de como essa questão foi tratada numa variedade de textos Zens e, na segunda seção, vou referir-me à expressão “O uno é o múltiplo”. Buscarei depois elucidar nossa questão, usando uma seleção de poesia escrita por monges Zen japoneses. Primeiro vou olhar um poema de Ryokan que surge na virada do século XVIII para o XIX. Apresentarei, por fim, vários haiku de Matsuo Bashô, poeta Zen do século XVII.

A série começa com “a busca do boi”. Vemos um menino pastor entre árvores e rochedos e montanhas ao longe: o menino está olhando para o boi. Embora desconhecido para si mesmo, o menino já está olhando para o seu verdadeiro si-mesmo. Na segunda pintura, intitulada “Vendo as pegadas”, o menino descobre e traça as pegadas do boi. Tais traços simbolizam, no Budismo, os sutras e, no Cristianismo, a Bíblia. A terceira pintura mostra a visão do boi. Vemos somente a parte de trás do animal enquanto este se afasta do menino que, por sua vez, continua a sua busca, sem dela desistir. Nessa terceira pintura, o menino, simbolizado pelo boi, descobriu seu verdadeiro si-mesmo e começa a compreender a verdade. A quarta pintura chama-se “Agarrando o boi”. Vemos aqui todo o animal e não apenas a sua parte traseira. Uma corda reúne o menino e o boi de maneira bem tensa como se o boi pudesse a qualquer momento romper a corda e o menino não parasse de lutar para segurá-lo. Na quinta pintura, “domesticando o boi”, vemos o boi seguindo obedientemente atrás do menino a caminho. A corda os une sem tensão. Mas eles ainda não se tornaram um só. O menino e seu verdadeiro si-mesmo ainda estão separados. A sexta pintura é o “voltar para casa no lombo do boi”: o menino relaxa e toca flauta no lombo do boi, que vai seguindo placidamente. Está a caminho de casa. Poderíamos dizer que está indo de volta para o seu próprio começo. A sétima pintura é chamada “O boi esquecido, o menino pastor permanece”. Na verdade, tudo o que vemos nessa pintura é o menino: ele aparece ali de joelhos, rezando para a lua, um símbolo da iluminação. Esse é o momento em que os espíritos se elevam e o praticante está inteiramente ciente de uma realização definida não obstante o real perigo de tornar-se arrogante ou indiferente. Pois é agora que ele tem de dar um passo ainda mais decisivo. Para esse passo, é necessário deixar passar todas as conquistas conseguidas até agora, abandonar tudo para o que vinha trabalhando até então e o que conquistou mediante a experiência religiosa. Fazendo isso, ou bem se morre a “grande morte” ou bem se cai no abismo. Toda a caminhada só poderá continuar quando ele der esse passo decisivo. A oitava pintura é “esquecendo boi e pastor”. Kakuan simboliza essa etapa do processo de realização com o desenho de um círculo vazio. Essa pintura mostra outra coisa. Nenhuma árvore, nenhuma rocha, nenhum boi, nenhum menino, não obstante todos eles “estejam aí”. Mostrando justamente esse único símbolo do círculo quer-se simbolizar o habitar do si-mesmo, depois da “grande morte”, na esfera do nada absoluto. Depois da “grande morte”, tudo se repete de novo e de novo, na abertura absolutamente infinita – e é o si-mesmo que realiza isso ao tornar-se o seu verdadeiro si-mesmo. Duas pinturas da série simbolizam esse processo de “repetição”. A nona pintura é assim chamada “voltando à fonte e ao começo”. Kakuan usa a natureza para simbolizar essa etapa do processo. A décima pintura é “chegando ao mercado com mãos abertas de alegria”. Kakuan simboliza as condições da liberdade, mostrando o menino – ou melhor o menino tornado velho – numa outra jornada, com uma trouxa sobre os seus ombros. Existem várias interpretações visuais da estória de Kakuan e os detalhes podem variar um pouco. Por exemplo, nessa versão da décima pintura, vemos um ancião, andando ao lado do menino, ambos carregando pertences. Mas eles são uma e mesma pessoa. Aqui, várias idades do menino aparecem simultaneamente.

O mais importante dessa narrativa é que, em qualquer uma das pinturas, seja a décima, a quarta ou a primeira, em todas elas encontra-se a natureza do Buddha. Essa parábola elucida meus delineamentos acima, dos sentidos da palavra “Anfang”: alguém, no ponto de partida de uma prática religiosa ou de uma caminhada. No começo, o si-mesmo está quase desperto (o si-mesmo como equivalente ao si-mesmo do nada) e, assim, todos os estágios da caminhada contém esse “si-mesmo”. Nesse modo, cada pintura, cada parte dessa parábola contém todas as outras.

Agora, se, enquanto princípio, o “Anfang” está contido em cada pintura, então o mesmo deve ser verdadeiro para o “agora da eternidade”. Pois no Zen, o “começo” é considerado um despertar religioso com vistas à verdadeira existência, e esse despertar religioso, denominado “coração – Buddha” (bodhicitta) é uma expressão do “agora da eternidade”. Tomado como “agora da eternidade”, o “começo” permanece invisível no mundo dos fenômenos, e, não obstante, permanece resguardado em cada uma das dez pinturas. As primeiras sete pinturas mostram o praticante à caminho de seu verdadeiro si-mesmo nos símbolos do boi e da natureza (mesmo que o boi não apareça mais na sétima pintura). A oitava pintura mostra um círculo simbolizando iluminação. O “começo” do praticante religioso no começo de sua prática, a figura do praticante, o boi e a natureza – todos eles tornam-se aqui, originariamente, um só. Na nona pintura, aparece o começo do despertar religioso no modo da natureza e na décima pintura no modo do menino e do ancião, cada um respectivamente com seu verdadeiro si-mesmo.

Lin-chi, um mestre Zen chinês do século IX e conhecido no Japão como Gigen Rinzai, comentou o tema do despertar religioso, aqui indicado, num escrito chamado, “à caminho da iluminação, estando, ao mesmo tempo, na iluminação”. “Não estando na iluminação”, ele disse, “e, ao mesmo tempo, não estando de modo algum a caminho da iluminação”.

O começo do despertar religioso não foi pintado na nossa série de forma alguma numa maneira realista. Podemos, no entanto, dizer que esse começo é tanto o “coração” (citta) como o lado interior do praticante. Esse começo é também o “coração” como tal, o centro da abertura absolutamente infinita, que se entreabre por todos os seus lados. E não obstante bodhicitta permaneça invisível, está sempre presente enquanto continuar o exercício religioso. Somente os seus modos, as suas aparências é que variam. Cada estágio do exercício religioso é, ele mesmo e simultaneamente, um começo.

Se agora o processo do exercício religioso é, em cada etapa do desenvolvimento e progresso, idêntico ao começo, tanto no princípio como no tempo, então também essas dez pinturas – não obstante suas diferenças superficiais – são em princípio o mesmo. Por isso, poderíamos dizer que a experiência do instante e da iluminação singular, bem como outros modos de iluminação, são o resultado de uma prática ao longo de toda uma vida. Esses dois modos são o mesmo enquanto a realização se realiza, no perdurar de seu em realizando-se. O mesmo é verdadeiro para o Cristianismo.

Para esclarecer isso, permitam-me trazer uma citação do Zazenshin, uma parte do texto do mestre Zen Dogen Kigen, do século XIII:

As águas são tão claras que se pode ver o fundo. Um peixe nada ali como um peixe. O céu é tão claro que Um pássaro voa ali como um pássaro.

Dogen fala de um peixe que nada como um peixe e de um pássaro que voa como um pássaro. Essa condição dos dois animais é conhecida, em sânscrito, como tathata, significando “sendo como o ser-tal”, o modo como as coisas são. Nessa condição, o que é e o que deveria ser estão unidos, numa abertura absoluta. Depois de abandonar o ego, na “grande morte”, o verdadeiro si-mesmo do homem encontra-se nessa mesma condição. Poderíamos então dizer que o começo , ou seja, o fundamento existencial de cada si-mesmo, é como esse peixe nadando no rio, nadando em tathata, nadando no “sendo como ser-tal” e que o começo de cada si-mesmo é como o pássaro voando nos céus, em tathata, voando no “sendo como ser-tal”. Isso equivale, no pensamento europeu ocidental, à idéia de que seres vivos existem tanto ingênua e naturalmente como reflexivamente.

“O uno é o múltiplo” como expresso no Zen

Dissemos que o despertar religioso, bodhicitta, e que cada estágio do exercício religioso são idênticos um ao outro. Isso significa ainda que a natureza é idêntica tanto ao começo como ao processo do exercício. Esse fato aponta, porém, para a relação entre o uno originário e as realidades que dele se dispersaram ou, em outras palavras, aponta para a questão do uno e do múltiplo. Essa é uma das questões filosóficas mais importantes. Na Europa antiga, encontramos essa questão tratada por Heráclito, na Idade Média, por Nicolau de Cusa. Vou discutir essa questão usando a expressão “o uno e o múltiplo”.

O terceiro patriarca, Sousan Kyochi (morto 606) escreveu em seu Shinjin-mei: “O uno é o múltiplo e o múltiplo uno”. Para o patriarca essa era a verdade eterna (tathata). Contudo, a compreensão do uno e do múltiplo não estava definida uniformemente. Ao contrário, haviam diferentes interpretações, até mesmo contrárias a essa acima citada, e o trabalho de interpretação continua até hoje. Vou referir-me a apenas dois intérpretes; Sonin Kajitani (1914-1995) considerava que o uno era cada coisa singular e, simultaneamente, cada coisa singular, era também o múltiplo. Sogen Omori (nascido em 1904), declarou que os aspectos da diferença eram simultaneamente uno e compreendeu o uno como o múltiplo, contendo dentro de si mesmo todos os diferentes aspectos da diversidade. Um comentador posterior desse sutra, Taka Nakagawa interpretou a expressão “o uno é o múltiplo” seguindo o sutra Hui-neng do século VI (conhecido no Japão como Eno Roshi). Seguindo Hui-neng, Nakagawa escreveu que o múltiplo é subitamente uno consigo mesmo e que o si-mesmo opera subitamente com o múltiplo. Nesses exemplos, o uno ou é qualquer coisa dada (e por isso um individual) ou, ao contrário, é o múltiplo complexo, contendo toda diversidade, ou ainda o uno é visto como o si-mesmo individual e o todo e, portanto, tanto como item singular como o todo da criação.

A Escola Kegon, Hua-yen em Chinês, na sua obra “Cinco modos de ensinar segundo a classificação da escola Hua-yen” vê o uno como o si-mesmo unificado em si mesmo e o universo como o inesgotável.

Essas várias interpretações do termo “o uno” resultam em dois modos possíveis de observação: de acordo com o primeiro modo de interpretação, o uno é a unidade de todo e cada individual ou o si-mesmo (o mestre zen Sonin Kajitani e Taka Nakagawa favoreceram essa visão); na segunda possível interpretação, uno está para o um originário. Antes de começar a praticar o Zen, pensava que o uno de “o uno é o múltiplo” significasse o singular individual. Contudo, ao me tornar praticante, comecei a compreender que o singular individual é simultaneamente o uno. Percebi ademais que, enquanto começo, o coração inteiro (bodhicitta) era também o múltiplo de todas as coisas. O uno originário (ou o coração inteiro) – visto como começo equivalente à origem – é idêntico ao todo da criação. Ademais, o uno originário e todo o mundo não se relacionam entre si nem como opostos e nem como polaridades, mas como mutuamente idênticos. Sem dúvida, essa não é uma resposta suficiente à questão do que verdadeiramente é, pois o uno originário e o mundo da multiplicidade são apenas o dentro e o fora da mesma realidade. Olhando essa realidade apenas desde o aspecto ou lado do mundo dos fenômenos, onde sujeito e objeto estão separados um do outro, percebemos o mundo do múltiplo como o mundo dos fenômenos. Contudo, fazendo a experiência do mundo num modo completamente diferente, ou seja, como abertura infinita, pode-se fazer de todo o coração ou de todos os fenômenos de si mesmo o uno.

A humanidade vive na abertura absolutamente infinita, no modo como o mestre Zen Gigen Rinzai descreveu no século IX. A humanidade está ou bem sempre a caminho, sem sequer ter deixado sua casa, ou bem deixou a sua casa sem contudo nunca estar a caminho. Na experiência da vida quotidiana, encontramo-nos, porém, no ponto em que esses dois modos se interseccionam, no ponto onde a dimensão vertical da identidade original e a dimensão horizontal dos fenômenos múltiplos conectam-se uma com a outra em todas as áreas. É nesse ponto que a abertura absolutamente infinita se entreabre. Aí, o uno originário e todo o múltiplo do mundo dos fenômenos são um só.

Aí eles são idênticos um com o outro mesmo que, para uma observação superficial, pareçam opostos, tal como vimos no caso das dez pinturas do pastor e o boi. Dentro desse mundo em que sujeito e objeto estão separados um do outro, o maior problema é a sua diferença. Já no mundo em que a separação ainda não teve lugar, a principal área de realização é o uno das coisas, ou seja, a unidade. Não importa se o uno originário era constituído pelo singular ou pelo todo e não importa qual desses dois é o múltiplo; tanto o uno como o múltiplo são sempre interdependentes, pois eles se interseccionam por toda parte. No modo da abertura absolutamente infinita, não muda nada se a unidade é constituída pelo uno ou pelo múltiplo. No mundo da separação entre sujeito e objeto, o termo uno (na expressão uno e múltiplo) significa coração inteiro ou o uno completo face à multiplicidade das coisas singulares. Abertura absolutamente infinita de “tudo é um” refere-se àquele uno que abriga o múltiplo em si mesmo.

Quando o uno da fórmula “o uno é o múltiplo” é entendido em sua simultaneidade, aquele que o compreende existe dentro da abertura absolutamente infinita entreaberta na intersecção das dimensões horizontais e verticais. O uno e o múltiplo são idênticos um ao outro em cada intersecção dessas dimensões. Em outras palavras, enquanto arche, o uno originário e o múltiplo, enquanto processo de vir a ser que se realiza dentro dos fenômenos, são na sua base mutuamente idênticos, não obstante a sua oposição superficial. É que, nessa instância, o começo e o processo não constituem uma oposição polar. Cada um singular do mundo dos fenômenos veio a ser desde o começo da identidade originária. Cronológica e fundamentalmente, é o começo que define toda criação singular.

O uno do ser do que existe e do próprio ser pode ser visto como o operar da natureza na criação. Esse uno originário do velado e do revelado no operar da natureza corresponde ao uno originário acima discutido, o uno entre o começo e o todo da criação nesse mundo, sendo possível apenas na abertura absolutamente ilimitada, que aparece em cada experiência singular de cada e todo indivíduo. Podemos apropriar-nos desse uno originário do começo e seu espraiar-se no mundo do devir, em nossa experiência original, ou seja, no ponto em que si-mesmo e natureza são um com a dimensão transcendental do passado eterno e do futuro eterno. Esse fato aparece não apenas nas palavras faladas do Zen Budismo mas também em sua literatura. O uno do uno e múltiplo ou do começo enquanto bodhicitta e realidade nesse mundo, encontra sua expressão nos termos – um pouco abstratos – zen-budistas como “um é tudo”. Nesses termos, o processo de meditação Zen encontra variadas expressões, cada uma de acordo com o sentimento do praticante. Na literatura Zen, porém, essa identidade exprime-se em termos menos abstratos. Esses testemunhos literários expressam o uno entre o si mesmo e os fenômenos não apenas no modo do sentimento pessoal do praticante mas também o uno do mundo ou da natureza. É muito mais fácil e vivo exprimir desse modo e também de nos tornarmos parte do uno. Sutras e textos Zen budistas surgem como se do intelecto, do sentimento e da volição do praticante. Mas igualmente resguardado nesses textos literários encontra-se o coração ou o espírito do homem que, valendo-se dessa caneta, encontrou a si mesmo no uno com toda a criação, de maneira que esses textos colocam-se em palavras a partir dos sentimentos do autor.

Diferença e identidade do começo e de toda a criação

A relação entre o começo e toda a criação no mundo dos fenômenos encontra-se mencionada no poema do monge zen Ryokan (1758-1831):

Ao longo da água corrente do riacho da montanha, eu procurava a sua fonte. E quanto pareceu-me que a tinha encontrado, vi-me perdido. Percebi, pela primeira vez, que um tal começo é inalcançável. Águas límpidas jorravam por toda parte e por todo lugar que encavava com meu bastão.

Esse poema nos fala de um homem buscando a fonte de um córrego da montanha. Justo quando acreditara ter finalmente localizado a fonte, vê-se tomado por um grande desapontamento. É que se descobriu compreendendo que tal fonte não existe. Por onde fosse que tocasse com seu bastão, água fresca jorrava de todo lugar. O poema refere-se ao começo do despertar religioso e o processo do seu exercício e prática. O poema nos mostra que, embora não haja um começo especial ou um ponto fixo para o começo, insiste-se sempre ainda e com empenho em buscar um ponto inicial. O correr da água aparece por toda parte onde corre o riacho da montanha. No Zen Budismo, esse jorrar significa o despertar religioso como bodhicitta. O jorrar simboliza ademais a iluminação. Iluminação não é, portanto, uma meta alcançada após se ter cumprido a última etapa. É bem mais a meta velada e resguardada dentro de cada uma das etapas do processo que, assim como o começo, igualmente velado e abrigado em cada uma das etapas do processo, pode ser uma espécie de iluminação capaz de servir como meta da etapa em questão.

É, sem dúvida, um fato que a mesmidade originária do começo e da iluminação tornou-se evidente ao longo de cada etapa do exercício religioso na vida quotidiana e que isso significa também o eterno agora, manifesto em cada momento da vida. Olhando dessa maneira para o nosso problema, tempo e eternidade são basicamente um só. A unidade de tempo e eternidade aparece somente quando a humanidade vive na unidade com toda a criação, vivendo-a com todo o seu coração e toda a sua alma. Permitam-me citar ainda uma vez o mestre Zen Dogen.

As águas são tão claras que se pode ver o fundo. Aqui, um peixe nada como um peixe. O céu é tão vasto e claro. Aqui, um pássaro voa como um pássaro.

Estamos lidando aqui com os animais em geral e com peixes e pássaros em particular. Mas eles são um só com os seus arredores e ambientes. Cumprem o seu destino como peixe e como pássaro. O peixe pode nadar para onde a imaginação o conduz. Para onde for, o peixe nadará como peixe. O mesmo vale para o pássaro, enquanto um pássaro que voa como um pássaro, indistinto de seu elemento.

Ao que nos concerne, a unidade de tempo e eternidade na abertura absolutamente infinita aponta, por um lado, em direção a nossa existência individual e, por outro, em direção ao nosso ser parte da humanidade – numa unidade harmoniosa com o nosso entorno. Um haiku de Matsuo Bashô, poeta Zen do século XVII, esclarece isso de maneira bem precisa.

Silenciosamente, a cigarra canta entre os rochedos.

A inspiração para esse poema provém de uma visita de Bashô a um templo na montanha em maio de 1689. Lá ele ouviu o canto claro e gritante da cigarra. Nesse poema, encontramos não apenas a imagem profunda e silenciosa do chão do tempo. Remoto, encontramos também o coração quieto do próprio Bashô. É como se esse coração cantasse em uníssono com a voz clara e sem pressa da cigarra, removido da azáfama e alarido do mundo das ocupações. O começo se entreabre como uma abertura absolutamente infinita. E o coração de quem lê essas linhas, de início, apenas escuta. Escuta simplesmente a unidade do canto da cigarra e do próprio Bashô. Depois, porém, o coração do leitor começa a cantar com eles.

Nas primeiras páginas do célebre diário de viagem de Bashô Oku no hosomichi (A estreita estrada para o norte distante), encontramos a seguinte passagem, muito conhecida no Japão.

O tempo é um andarilho peregrino na eternidade. Aqueles que caminham indo e vindo são também andarilhos. Os que vivem em navios e os que envelhecem polindo o distante, todos eles estão diariamente a caminho. Vivem na casa da viagem. Os mais velhos costumam morrer nesse estar a caminho. Há um tempo atrás, fui também convidado pelo vento, que movimenta as nuvens, a ir-me. Fiquei vagando para lá e para cá e, enquanto derivava ao longo da costa, acabei, no outono passado e logo após o ano ter dado a sua volta, voltando sozinho para casa a fim de limpar as teias de aranha de minha casa à beira do rio. Havia planejado ultrapassar a barreira em Shirakawa, sob um céu nebuloso, enlouquecido, possuído por um deus que transforma os corações humanos em joguetes com a nossa própria vontade e convidado pelo Deus das flechas. Por isso, encontrava-me impotente. Enxuguei as lágrimas na minha roupa, amarrei a corda do meu chapéu de bambu, coloquei mocha nos meus pés… e, durante todo o tempo gasto nesses afazeres, ficava pensando como seria a lua lá em Matsushima e como colocaria a casa nas mãos de quem a cuidasse e me mudaria para a casa de campo em Sanpu.

Essa passagem provém da descrição feita por Bashô de uma de suas viagens que o levou para Michinoku, situado no norte das ilhas do Japão. Essa viagem durou dois anos e meio. Bashô descreve esse período como “uma jornada da eternidade para a eternidade”. De seus companheiros de viagem conta que alguns dos que conduziam os barcos ou cavalos passavam a sua vida em rota e muitos morriam ao longo dela. Bashô também nos narra sobre si mesmo, sobre seus sentimentos e sobre o tempo de andança como também sobre seus planos para voltar ao rio Sumidagawa. Conta ainda de uma correnteza fresca, movida por poderes além dele mesmo.

Quatro dias antes da sua morte, ele escreveu o seguinte haiku:

À caminho, tomado pela doença – sonhos de viajante por entre campos secos.

Esses haikus nos mostram tanto o mundo dos fenômenos (o âmbito da viagem) como o começo enquanto abertura absolutamente infinita, aberta para a unidade em cada passo que ele dá. Quando esquecemos de nos ocuparmos de nós mesmos, quando nossos corações se tornam um com toda a criação, o mundo da abertura entreabre-se para nós e a situação de vida caracterizada por “O uno é o múltiplo” aparece, tornando-se uma presença em nossos corações. Um outro haiku de Bashô demonstra vivamente a unidade do seu coração com a natureza e a criação.

No ramo murcho – um corvo à luz do outono, à caminho da noite.

Bashô escreveu esse haiku aos 36 anos. Fez algumas modificações dez anos depois e o publicou finalmente nessa forma, cinco anos antes da sua morte. Ele nos descreve uma paisagem outonal, um corvo pousado num galho murcho, cercado de escuridão. Não se trata, todavia, apenas de uma imagem de solidão resignada e emoldurada por coisas cíclicas fenecendo, chegando a um fim e redescobrindo novos começos. [Essas palavras são] também ele mesmo Bashô, sua própria forma no anoitecer da sua vida. Ele escolhe justamente um corvo, mesmo sem saber de sua dissolução num futuro não tão distante. Para nós, esse haiku separa claramente as imagens da natureza e a imagem do poeta idoso. Contudo, ambas as imagens nos tocam por causa de sua unidade. Quando o coração do haiku toca as cordas de nossos corações e os deixa ressoar no som, então a forma do corvo no galho seco descreve nossas próprias formas, nós mesmos. Nesse haiku, o corvo é, sem dúvida, um corvo, e Bashô é, sem dúvida, Bashô, assim como o leitor dessas linhas é, indubitavelmente, o leitor. Nós, leitores, nós, os que falam e escutam, sabemos muito bem que esses três encontram-se numa unidade. Como esse haiku toca o leitor em sua parte mais interior, a abertura absolutamente infinita haverá de entreabrir-se justamente aí.

Com esse haiku, sabemos que a abertura absolutamente infinita se abre – simplesmente porque um corvo é um corvo e, não obstante, o corvo é também a forma de Bashô e, igualmente, a forma de cada um que lê esse haiku. Somente quando os três corações – do corvo, do Bashô, do leitor encontram-se mutuamente independentes e não obstante simultaneamente unos é que a abertura absolutamente infinita tornar-se-á aparente, sendo o coração uno de todas as coisas e, ao mesmo tempo, o seu começo.

Conclusão

Vimos o problema do Zen Budismo e o termo “começo” a partir de vários ângulos. Vimos como o mestre Zen Kakuan tratou esse problema, na sua série “Dez pinturas do Boi e seu Pastor”. Vimos depois o mesmo problema num poema de Ryokan e em vários haikus de Matsuo Bashô. Desses exemplos ficou claro que o começo desenvolve-se dentro de si mesmo, seguindo a sabedoria do tempo e do princípio e, inversamente, que cada fenômeno desse mundo carrega dentro de si o começo. Hoje em dia, esquecemos o sentido de nossas ações e isso independentemente de qualquer tipo de ação. Todas as ações provêm do começo e tornam-se aparentes no mundo dos fenômenos através de disseminação, separação e do uno. Cada passo de nossas realidades é basicamente idêntico ao uno originário, a esse tipo de unidade que é simultaneamente o começo e o fim cronológico de todos os seres e igualmente o princípio de sua existência. Se fôssemos capazes de perceber em detalhe as estruturas desse mundo, ou seja, o modo em que esse mundo se revela e se vela, e se fôssemos capazes de viver no “aqui e agora”, no “uno é o múltiplo”, seria bem mais fácil encontrar nortes para a solução dos problemas do mundo em que vivemos.

Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback

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