Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Encontro de estudos dos votos: castidade, obediência e pobreza, na vida consagrada franciscana

25/03/2021

 

Angelina, ano de 2005

Introdução

O que segue é apenas um material para estudo, para quem quiser mais tarde aprofundar o que nesses dias vamos, aos trancos e barrancos, tentando refletir. O assunto é muito difícil, em parte porque já sabemos demais sobre o tema, e em parte por não termos muito exercício em nos movermos dentro de determinadas dimensões da nossa existência. As explicações não estão adaptadas didaticamente para a compreensão de quem, por um lado, não está muito acostumado a pensar, a ponderar as realidades da nossa existência humana religiosa, e no entanto, por outro lado, está bastante acostumado a adquirir e a receber informações de vários tipos, sem examinar a fundo suas pressuposições. Por isso, de antemão é bom saber que a nossa reflexão sobre os votos não vai ser fácil. Mas, quando uma tarefa é difícil, não vamos nem desanimar, nem exigir que nos seja facilitada, mas ajuntemos todas as nossas capacidades, sem olhar se podemos ou não, para assumir cordial e valentemente a tarefa de um trabalho chamado estudar, refletir e pensar os nossos votos. E isso, sem esmorecermos nesses dias da reflexão. Se cansar muito, vá descansar em particular, para depois de descansar, retomar com valentia maior ainda a tarefa. Mas não tentemos aliviar o trabalho pessoal de usar a si mesmo e de realmente trabalhar, por meio de um método que tenta criar ambiente, usar recursos comuns, coletivos ou de organização para facilitar o trabalho. O porquê dessa recomendação que é um convite, você talvez compreenda no fim da nossa reflexão. Ou melhor, no fim das nossas reflexões, experimente você mesmo dizer por que se colocou no início das reflexões essa recomendação de não recorrer aos recursos que nos possam facilitar a reflexão, a não ser unicamente ao nosso trabalho corpo a corpo com a coisa da reflexão.

Como todos sabem, o nosso encontro é anual. Cada ano, nos encontramos para estudarmos juntos os votos. Vamos fazê-lo também nesse ano de 2005. Fazer é uma ação humana. Por isso esse encontro é uma ação[1]. Mas ação de estudo. Estudo é pois ação de um trabalho humano que pertence à dimensão chamada vida da necessidade livre. Por isso, para que o encontro tenha bons frutos, é necessário que todos nós, i. é, cada um de nós tome desde o início uma postura de quem está na vida da necessidade livre.

Essa ação humana do trabalho na vida da necessidade livre é um encontro. Encontro é uma realidade humana que pertence ao convívio de uma comunidade fraternal. Somos fraternos porque somos unidos por e para uma única causa, através do mesmo sangue, recebido do nosso Pai comum, do Pai de Jesus Cristo, do qual nos vem a nossa vocação, a saber, a vida consagrada franciscana. No convívio de uma comunidade fraternal, chamada vida consagrada franciscana, não há hierarquia de postos, nem de autoridade, nem do saber. Há uma causa sagrada que é o Seguimento de Jesus Cristo no espírito de São Francisco de Assis. Portanto, nesses dias estejamos inteiramente livres, i.é, dispostos, dedicados unicamente ao estudo dos votos, castidade, obediência e pobreza.

A necessidade urgente do estudo dos votos

Em si, é ou parece exagerado insistir a vocês que estão para emitir votos temporários ou perpétuos que é urgente a necessidade de estudar os votos. Talvez seja o tema que mais ouviram durante o tempo da sua formação inicial. Talvez seja o que você de tanto saber, está enjoado de estudar ainda mais. No entanto, os votos, que fizemos ou vão fazer, temporária ou perpetuamente são “coisas” da vida consagrada que mais nos causam problemas no cotidiano do nosso viver. Por que não posso eu escolher, onde quero viver, com quem e como? Por que, se de repente me apaixonar por alguém, no percurso da nossa vida consagrada, não posso namorá-lo e quem sabe contrair matrimônio com ele, e ser feliz? E por que não devo me apropriar das coisas que são minhas, ganhar o meu salário, e usá-lo como qualquer pessoa adulta, para prover as minhas necessidades? Você dirá: mas que coisa, que perguntas e dúvidas! esse nível de colocação, esse nível de questionamento nós já o deixamos para trás: embora noviças, junioristas, não somos mais crianças na vida. Mas certos mestres espirituais acerca dos votos da castidade, obediência e pobreza nos ensinaram que os votos dizem respeito a e tocam nas necessidades dentro de nós muito poderosas, tão poderosas que se nós não as compreendemos e as assimilamos bem, podem ser causa de uma vida insatisfeita, fracassada e infeliz. Essas necessidades fundamentais internas nossas são: necessidade da sexualidade, do poder e da posse. Isso significa que ao emitirmos os votos de castidade, obediência e pobreza não estamos por assim dizer fazendo coisas espirituais, sublimes e belas, mas sim estamos nos metendo num estilo, no modo de pensar, agir, de nos ter e de nos formar, nos metendo numa existência que como profissão e vocação mexe a fundo com essas necessidades fundamentais acima mencionadas. A nossa vida consagrada pertence pois a tipo de existência humana que não vai assim, sem mais nem menos, não se realiza naturalmente, mas requer uma boa compreensão, assumida e querida, e exercitada numa vontade firme e clarividente de nos malharmos na habilitação de nós mesmos para essa existência que escolhemos. Porque a nossa existência consagrada é assim, porque é isso a realidade da vida consagrada, é que se torna urgente, a necessidade de estudar bem os votos, não somente ontem, hoje, mas cada vez para sempre. É dentro dessa seriedade existencial que queremos nesses dias nos concentrar num estudo bem feito dos nossos votos da vida consagrada. Por isso, logo de início, vamos antes de mais nada nos perguntar: a) Temos consciência da urgência da necessidade de estudar e bem assimilar o nosso saber sobre os votos? b) Quais são as dificuldades que temos de sentir e tomar a sério esse tipo de seriedade existencial em referência à nossa vocação e profissão? c) Todo o jovem, toda a jovem, depois de certa idade, principalmente depois que deixou para trás o ninho da vida de convívio da família no lar onde nasceu e cresceu, começa encarar o futuro, e quer entrar no desafio, na ventura e aventura da vida na sociedade, buscando um emprego, uma vocação, digamos, uma vida futura de realização. Você, quando escolheu viver a vida religiosa consagrada, teve essa consciência de uma escolha livre e autônoma, para sair de uma vida que vivia num ambiente de família, para entrar numa nova maneira de viver, para dentro de uma sociedade que não é mais família, mas sim uma existência nova, com sua meta, seu ideal e projeto de vida toda própria, na qual devo estudar, aprender, ser provado, examinado e tornar-me competente na vocação e profissão que escolhi?

A necessidade vital e a necessidade livre

Há duas maneiras de ver e viver a vida humana: a) como necessidade natural; b) como necessidade livre. De que se trata, e como isso tudo tem a ver com os votos e a vida consagrada? É que os votos e a vida consagrada, somente podem ser entendidos, se os considerarmos como pertencentes em cheio à necessidade livre. O seu modo de ser não pode ser assimilado, se eu penso, sinto, compreendo e vivo como se fosse da necessidade natural.

Para compreender bem de que se trata quando se fala da necessidade vital e necessidade livre, vamos dar um exemplo. Definindo assim a modo grosso, a necessidade vital é tudo quanto precisamos naturalmente para a sustentação da nossa vida física. P. ex. a necessidade de comer, de beber, de respirar, de higiene, de dormir, de descansar, de expandir, de se recolher etc. Esse tipo de necessidade é natural, i. é, é nos dada pela natureza, e por isso não a precisamos despertar e cultivar, pois ela aparece espontaneamente, sem esforço, nos exigindo satisfação. E mesmo que tenhamos que nos esforçar muito para satisfazer a essa necessidade, não temos nenhuma dificuldade de sentir, de ter e manter aceso, interessado e exigente a sua exigência e o seu desejo de ser satisfeita. Essa necessidade se nos impõe. Portanto, essa naturalidade, espontaneidade e facilidade da iniciativa imediata nos são dadas como exigência da vida física e da sua sobrevivência. Aqui, na necessidade vital, a força de imposição do desejo e da exigência de ser satisfeita é tão grande que ela nos pode levar a crimes, se não a satisfazemos. P. ex. na fome, posso até matar o outro para tirar dele o alimento e me satisfazer.

No ser humano, no entanto, juntamente com essa necessidade, existe outro tipo de necessidade que recebeu o nome de necessidade livre. A expressão, à primeira vista, nos parece contraditória. Se, é necessário, não pode ser livre. Tentemos, portanto, estudar bem o que essa expressão quer nos indicar, e tentar ver de que se trata. Um animal, quando sente a necessidade vital de fome, lança-se sobre a comida, para satisfazer a sua necessidade. Pode até atacar seus companheiros, para lhes tirar o alimento. Mas uma vez satisfeito, se aquieta, a sua necessidade, a sua carência foi preenchida, está cheia. O homem não. Mesmo satisfeito, procura modos para aumentar a satisfação. Ele quer ser mais do que natural, quer transcender-se no gozo. E usa todas as suas potencialidades, p. ex. a inteligência e vontade para aumentar cada vez mais quantitativa e qualitativamente o gozo da satisfação. Assim, tem a tendência de exacerbar, de potencializar, de levar à sofreguidão a sua necessidade natural e vital. E transforma o que é natural ao animal, o que é natural à sua necessidade vital, em vícios e perversidades. Para permanecer na satisfação natural da sua necessidade vital, ele deve usar a sua capacidade de compreender e de querer, portanto, a sua liberdade, para se conter dentro dos limites naturais da sua necessidade vital. Aqui, agora, nesse item, fiquemos de olho, bem atento no seguinte ponto: não é a necessidade vital que quer sempre mais, quer exacerbar-se e ir para além do seu estado natural, pois como natural, uma vez satisfeita ela se aquieta, permanece naturalmente no seu limite. O que exacerba a necessidade vital e a transforma em vício e perversidade é uma outra necessidade existente no ser humano que se chama a necessidade livre, i. é, o impulso, o vigor, a vigência de uma força de transcendência.  Essa força quer mais, quer o melhor, quer a excelência, seja do que for. Essa força de transcendência não é natural como o é a necessidade vital, não é espontânea, não nasce, cresce e se consuma por si, instintivamente. A impressão que ela seja espontaneamente fortíssima, a tal ponto de tomar conta de nós, vem de uma falsa interpretação que fazemos da sua atuação, quando a necessidade vital, recebe a influência da necessidade livre e é exacerbada e potencializada por ela na exigência e na cobiça e no desejo do gozo e da satisfação da necessidade natural,  a ponto de todo o ser do homem se torna impregnado da exigência cada vez mais desmedida de sofreguidão, transcendendo-se sempre mais a cobiça da satisfação das suas necessidades vitais. Haja vista p. ex. aqui, o sacrifício imenso de empenho, trabalho e risco que se corre, para tomar droga. Essa simbiose da necessidade vital com a necessidade livre num exercício viciado da necessidade livre, nos engana a respeito também da necessidade livre, dando-nos a impressão de que a necessidade livre tem o mesmo modo de espontaneidade e ímpeto natural a modo da necessidade vital. A necessidade livre é o que usualmente chamamos de necessidade espiritual. O modo de ser da necessidade livre é diferente ao da necessidade vital. Ela não é natural, espontânea, instintiva e impetuosa, mas é livre, i. é, deve ser feito, atuado livremente no conhecer e querer. P. ex. num naufrágio, no bote salva-vidas resta ainda um único lugar. Pela necessidade vital, teria o direito e a possibilidade de pular para dentro do bote, pois estou bem próximo dele. Mas movido pela necessidade livre, cedo o lugar para outra pessoa e morro congelado no mar. Essa atuação, essa mobilização da necessidade livre não acontece espontânea e “necessária” como no caso da necessidade vital. Eu devo saber de que se trata e querer fazer o ato livremente. E isso aqui contra a tendência e o impulso vital de salvar a minha pele, custe o que custar. Mas para que numa tal situação, eu possa querer livremente e realmente agir, devo estar me exercitando nesse modo de ser da liberdade já há um longo tempo. E não somente estar-me exercitando, mas devo ter como convicção de que ser humano, a vida humana, a existência humana não consiste somente em satisfazer as exigências da necessidade vital, mas que para dessa necessidade vital, nós participamos da realidade usualmente denominada de espiritual, para a qual nos transcendemos nas nossas próprias necessidades vitais, dando a elas um sentido mais profundamente humano do nosso viver. Aqui, por não se tratar de algo espontâneo e natural, algo instintivo, eu necessito de empenho, trabalho para me perfazer e tornar-me capaz de agir na necessidade livre.

Uma pessoa que vive num ambiente, onde o satisfazer a necessidade vital é único ou principal valor do existir, e além disso exacerba o gozo e a satisfação de plenificá-la na sofreguidão, atuada pelo mau uso da liberdade humana, é penoso, difícil, sim quase impossível achar que a necessidade livre é uma força, uma necessidade muito maior do que a própria necessidade vital. Assim, considera o exercício e a efetivação da necessidade livre como algo irreal, inútil, ou muito empenhativo e trabalhoso, de tal modo que não sente nenhum gosto nem necessidade de despertar para ela, de a cultivar e se perfazer nela. E, no entanto, é a necessidade livre que faz do ser humano o que ele é, i.é, a transcendência, o ser que sempre de novo se supera a si mesmo, para se expor cada vez novo e livre para a creatividade de ser. Repetindo, o que no Ocidente se denominou desde a antiguidade de espírito e o espiritual pertence totalmente à necessidade livre. O mesmo se pode dizer do que hoje denominamos éthos e ética. Assim, a nossa vida religiosa e tudo que a ela pertence, portanto também o nosso encontro e o nosso trabalho para tentar ver de que se trata, quando falamos dos nossos votos da vida consagrada, está dentro do que denominamos acima necessidade livre. A seguir, em vez de necessidade livre usemos a palavra espirito e espiritual que nos é mais familiar, na vida religiosa. Ou melhor, usemos a expressão  necessidade livre como sinônimo do espírito ou do espiritual.

Na nossa época, temos uma grande dificuldade de entender, gostar e assumir o espírito, o espiritual, o éthos e o ético. Por isso no trabalho do espírito, e da ética, quase sempre estamos subdesenvolvidos. Vivemos a exacerbação da satisfação e o gozo da necessidade vital. É o que chamamos de consumismo, hedonismo. Por isso, ao sentirmos a dificuldade de perseverar no trabalho do espírito, ao sentirmos pouco para não dizer nenhum gosto de nos empenharmos livremente com ânimo nas coisas do espírito, nos surge a pergunta decisiva: como fazer para que tenhamos mais interesse, ânimo, gosto e entusiasmo para as coisas do espírito e as coisas da ética, e que não as consideremos como um trabalho penoso, seco, duro, digamos contra a nossa natureza espontânea e vital.

Essa questão nos pega como que de surpresa, já tarde. É como se, depois de ter negligenciado muito tempo em fazer exercícios de musculação, depois que estou sem nenhum tônus muscular, me perguntasse, como faço para eu gostar de fazer os exercícios de musculação, de eu me entusiasmar por isso e de perseverar nos exercícios? A resposta direta e simples nesse caso é: jamais deixar chegar a tal ponto que não tenha mais nenhum tônus muscular. Dito com outras palavras cuidar desde o início do espirito, do espiritual, do éthos e do ético.

Aqui, teoreticamente, devemos nos livrar de um preconceito, ou melhor, de uma compreensão defasada da necessidade vital humana. É que, quando falamos da necessidade vital, pensamos que a criança, até certa idade vive, apenas ou inteiramente em satisfazer a necessidade vital. Haja vista p. ex. nos bebés. E pensamos que o ser humano, até certa idade tem o modo de ser de um animal, tudo nele é instinto. E aplicamos essa maneira de pensar também, mutatis mutandis, para a idade posterior, a infância. E pensamos, a criança infante é ainda uma espécie de bichinho, é instinto, espontaneidade, não compreende o modo de ser do espírito, do espiritual. Por isso, nada de empenho e trabalho, mas tudo gozo, satisfação, imaginação, brincadeira etc. E não perguntamos por que, nem estranhamos que a criança, quando gosta e se entusiasma por uma coisa, se lança toda inteira sobre ela. E é capaz de ficar ali horas a fio. Confira p. ex. nos jogos, na brincadeira, nos games do computador etc. E não percebemos que esse modo de gostar, esse modo de a criança estar toda inteira na coisa e ali permanecer não é outra coisa do que o próprio modo de ser do espírito e da ética! Mas no espiritual, na ética, não é assim que não se deve assumir um trabalho, pelo gosto e não gosto; só no espontâneo, mas é necessário enfrentar o árduo, o duro, e exercitar-se tenazmente no compreender e querer na conquista do espiritual e do ético? Esse modo de pensar não vem da própria intuição do fenômeno, da coisa ela mesma, mas sim da experiência do modo de ser da necessidade livre, portanto do espírito e da ética, que já está defasada no seu ser, por não ter sido cultivado desde o início, na infância. Dito com outras palavras, a necessidade livre, o espírito e o ético no ser humano, está presente em cheio desde a infância, na criança. E o modo de ser da criança, quando gosta, quer satisfação da sua necessidade, não é instinto, não é sem espírito, mas sim é um modo de ser humano ainda intato, onde o espírito atua e aparece inteira e integramente, e quiçá na sua excelência como disposição, cordialidade, sim como a boa vontade, ou melhor, vontade boa. Por isso é que no Evangelho, o modo de ser da criança é indicado por Jesus como o modo de ser de como entrar no reino dos céus. Vamos chamar esse entusiasmo, esse gostar, esse se engajar da criança de afeição primeira. É o que chamamos de primeiro amor ou afeição, amor do início.

O que denominamos de vigor do espírito nasce, cresce e se consuma e se firma a partir e dentro desse primeiro amor. A criança, quando é bem orientada e conduzida, seja em que vocação e em que profissão for, a partir dessa primeira afeição, cresce, se realiza e se perfaz naquilo que ela ama. E não considera o empenho, o esforço, o “sacrifício” exigido sempre mais, na transcendência da necessidade livre como algo imposto, algo injusto, algo desumano, mas como pertencente à satisfação, ao gozo da realização no espírito, no ético.

Por isso na nossa vocação, na nossa profissão, se a coisa não anda, devemos voltar ao primeiro amor, à primeira afeição e examinar, se no início da nossa vocação e da profissão, realmente tivemos a primeira afeição, o primeiro amor, ou tudo isso realmente não existiu ou nos iludimos acerca dele.

Problema todo, porém, é que nós, mesmo fazendo essa sondagem do nosso passado, ou nada descobrimos, não nos lembramos de nada, ou mesmo descobrindo que tínhamos tido o primeiro amor, agora não sentimos nada de tudo isso e temos dificuldades enorme de cordial e decididamente continuar o nosso caminho. Seria, portanto, muito útil, você nesse encontro de estudos dos votos, examinar esse ponto nevrálgico da nossa caminhada humana vocacional. Só que você já examinou tudo isso, e é por isso que está aqui para fazer votos ou renová-los. Então para o nosso encontro, não há problema. Mas se você jamais faz ou fez esse tipo de sondagem de si mesmo, pode ser que você fique angustiado, pois agora, decidir que não vai fazer votos, tendo já tudo marcado, é tarde de mais. É bom lembrar que ninguém de nós aqui, vai fazer os votos perpétuos. Ou já os fizeram ou ainda vão examinar bem se vão fazer os votos perpetuamente, durante todo esse tempo da formação inicial. Por isso, se alguém está na perplexidade de estar assim vago, e não muito decidido, vamos nos decidir de meter a cara em entrar de sola na formação inicial, para depois de um ano, e sair dessa perplexidade, seja para continuar, ou seja, para deixar a vida religiosa. Do contrário eu estou perdendo tempo na minha formação[2].

Acima dissemos: o que denominamos de vigor do espírito nasce, cresce e se consuma e se firma a partir e dentro desse primeiro amor. Aqui, nesses dias de encontro do estudo dos votos, vamos contemplar, i. é, ver bem, sem preconceitos ou traumas, de que se trata, nos votos, no seu modo próprio e único, como eles vieram ou vêm de encontro no momento em que estávamos ou estamos ou estaremos no elã do primeiro amor. Mas isto é utópico? Não, é tópico, i.é, a única maneira de colocar os votos no seu lugar próprio, pois os votos são somente assim como os vê o nosso primeiro amor.

III. Votos não são outra coisa do que sim à vocação de seguimento

Vocação não é nem talento, nem inclinação, nem dom, mas simplesmente e no duro chamamento. Chamamento, que vem de Jesus Cristo e me atropela dizendo: Vem, segue-me! Por isso Jesus Cristo na nossa vocação da vida consagrada é tudo. Sem um relacionamento da afeição, do primeiro amor com Jesus Cristo não há nossa vocação. Por mais valiosa, profunda, sublime, útil que seja a nossa vida nessa vocação, sem esse relacionamento da afeição, do primeiro amor com Jesus Cristo, a vida consagrada é uma outra coisa. Talvez humanamente maior, melhor, mas sempre outra coisa. Aqui, em concreto tudo fica muito difícil de entender. Pois não conhecemos Jesus Cristo em carne e osso; a primeira afeição com Jesus Cristo, foi talvez na nossa infância, digamos no tempo da primeira comunhão, onde ele aparece sob a figura daqueles quadros melosos, quitch, do estilo barato nazareno; ou a minha experiência de Jesus Cristo é de uma conversão, depois de adulto etc. etc. Como ter certeza, como garantir a objetividade do meu primeiro encontro com Jesus Cristo? Essa pergunta não tem resposta. Pois é uma pergunta que não se percebe no seu perguntar. Mais ou menos como alguém que se pergunta se realmente está respirando, ou como alguém que se pergunta, como seria eu se eu não existisse. É uma pergunta que pergunta como se o eu que pergunta fosse o chão a partir e dentro do qual lança a pergunta. Com outras palavras, é uma pergunta que pergunta como se estivesse fora da sua própria história, como se fosse um ponto absoluto, sem mediação. Por isso, se pergunto: como tenho certeza, como garantir a objetividade do meu primeiro encontro com Jesus Cristo, eu não devo perguntar assim formal e abstratamente, como que numa posição fora da paisagem, pairando acima dela, numa vista panorâmico-historiográfica, nem em relação a sua própria vida, nem em relação à própria História, mas como alguém que está até ao pescoço dentro da paisagem, e sonda, sente, analisa os fatos da sua facticidade, como quem ausculta a história de amor na sua vida com Jesus Cristo. Isto significa: o relacionamento seu com Jesus Cristo deve ser examinado no seu viver a partir da sua estadia e inserção na vida consagrada, dentro dessa congregação ou ordem, remontando à origem da história da sua vida, e perguntar onde aparece algo como encontro com Jesus Cristo. E ali dentro perguntar se tem ou não tem a primeira afeição, o primeiro amor a Jesus Cristo, seja ele como ou o que for objetivamente. Se você ainda não fez esse tipo de exame, vai ter que fazer para o futuro, se quiser viver a vida consagrada como realização e com sentido próprio.

A nossa vocação como sim ao Seguimento de Jesus Cristo pode aparecer na nossa vida, desta ou daquela maneira, mas no momento que isso tudo entra dentro da afeição primeiro ou do primeiro amor, o meu modo de ser deve ter o característico de enamoramento. Enamoramento, que se fosse no casamento cristão, nos levaria a unir-se com outra pessoa, (masculino-feminino, feminino-masculino) como marido e mulher, como mulher e marido na doação de corpo e alma a(o) outra(o), em todas as vicissitudes da existência, até que a morte nos separe, no caso do matrimônio, e no caso da vida consagrada, por toda a eternidade, de tal sorte que nem a morte nos separe, mas nos una cada vez mais. Por isso a vida consagrada foi na Grande Tradição do Ocidente sempre explicada a modo de um relacionamento de intimidade esponsal (mística esponsal). Por isso, no direito canônico, quando a Igreja fala da vida consagrada, o primeiro voto que é examinado é a castidade, ou numa outra formulação talvez mais adequada a virgindade consagrada.

Castidade – O celibato ou o não-matrimônio por causa do reino dos céus

A leitura desse trabalho será um tanto árdua, porque o pensamento descreve grandes arcos e a expressão dos pensamentos se tornou bastante desajeitada. Talvez fosse inconveniente gastar tanto papel para dizer uma realidade muito simplex, mas essas reflexões talvez digam alguma coisa a alguém que tem problemas de ordem “intelectual” em ver o sentido do celibato ou da castidade consagrada. Para quem não precisa de “compreensão” para viver, as reflexões são completamente inúteis, acadêmicas.

Como a palavra “celibato”, hoje tem uma conotação um tanto pejorativo do celibatário, em conexão com a Sagrada Escritura, intitulemos essas reflexões: Reflexões sobre “o não-matrimônio por causa do Reino dos céus”, tirado de um livro do teólogo holandês, chamado Schillebekx  (die Ehe-losigkeit um Himmelreiches willen). A palavra celibato no entanto é uma palavra muito antiga. Vem do hindu antigo e significa: plenitude da vida.

Reino dos céus aqui não significa o além-mundo como o local de felicidade em oposição ao inferno. Não vamos aqui pensar nas categorias da mentalidade de uma compreensão tradicionalista, por sua vez mal-entendida de “Salva a tua alma!”, pois tal mentalidade falseia o sentido originário da Boa-nova de Cristo. Ela nos faz incapazes de compreender a sua grandeza, o seu alcance.

Se o Reino dos céus deve significar o feliz além-mundo, então a exigência de não contrair o matrimônio não tem muito sentido, pois os casados, exatamente como nós, alcançam a vida eterna, se viverem bem.

Também não se deve pensar que o não-matrimônio nos outorgue uma posição mais alta, mais sublime no céu ou uma bem-aventurança maior. Tal pensamento é fruto de uma supervalorização ingênua, falsa e infantil do não-matrimônio. O não-matrimônio não nos dá o direito para o título de nobreza no céu. A medida da perfeição é o Amor. Não, o não-matrimônio.

A nossa primeira questão, aqui no voto da castidade ou da virgindade consagrada é o que significa esse não-matrimônio e que função exerce na explicação do sentido do ser da vida consagrada cristã. E segundo a formulação, feita por Schillebekx, poderíamos antes de tentar responder a pergunta, acentuar que não-matrimônio deve ser aqui entendido dentro do que segue, i. é, por causa do reino dos céus. E colocar essa questão em paralelo à formulação que referido ao matrimônio cristão, deveria ser segundo a lógica da formulação de Schillebekx: o sim-matrimônio, por causa do reino does seus. Isto significa que há o não-matrimônio e o sim-matrimônio por causa dos reino dos céus?  Na nossa reflexão seguimos a tese de que há o sim e o não matrimônio, ambos por causa do reino dos céus. E que esses dois modos de ser do por causa do reino dos céus não são dois, mas um, num sentido todo próprio que devemos aprofundar. Mas essa unidade, não é nem de um ao lado do outro, nem de complementaridade, nem de oposição, nem de fundamentação, mas sim de explicação diferencial de uma única implicação, na qual a nitidez da diferença das duas possibilidades, mostra a seriedade diferencial da identidade, na identidade da compreensão do que significa ser ab-soluto na finitude historial de cada identidade. Essa formulação abstrata e formal nos jargões filosóficos deve ser no decorrer da nossa reflexão ser concretizada, de modo que possamos entender de que se trata, onde está o pivô de tudo isso. Por isso, aqui não vamos falar propriamente dos argumentos a favor ou contra a virgindade consagrada, argumentos que sabemos de cor, e que se encontram em diversos tratados e artigos sobre o celibato, sejam modernos ou antigos, sejam tradicionalistas ou progressistas. Mas para não deixar de discutir sobre esses argumentos prós e contra, o faremos assim informalmente, na medida em que vêm objeções, dúvidas a respeito desses argumentos que provavelmente perfazem o que sabemos sobre o celibato[3].

Se a virgindade consagrada é não-matrimônio por causa do reino dos céus, esse não está referido ao matrimônio. Mas o matrimônio cristão é sim-matrimônio por causa do reino dos céus. Por isso, se queremos investigar de que se trata, quando se diz não-matrimônio, devemos primeiro examinar em que consiste o sim-matrimônio.

Costumamos definir o matrimônio, mais ou menos assim: é união de corpo, alma e espírito, no amor do encontro entre dois seres humanos, entre homem e mulher, de cuja união podem e devem nascer e renascer três novos seres humanos, a saber pai, mãe e filho enquanto vida humana a partir e dentro da existência cristã. Trata-se, portanto de uma totalidade toda própria, com sua lógica própria, ou com a sua razão de ser, cuja imensidão, profundidade e originariedade abrange, toca e atinge o âmago da profundidade a mais íntima do ser humano, à pessoa[4]. Quando na virgindade consagrada dizemos não-matrimônio, dizemos não a esse modo de ser do relacionamento todo próprio chamado matrimônio, no seu todo. Por isso, não se está dizendo não somente à união do corpo no sentido genital, e tudo que de alguma forma concorre para essa união genital, como p. ex. sensualismo, erotismo etc. Nesse sentido, um religioso ou uma religiosa não pode substituir o marido ou a mulher casados, na experiência de uma união íntima e profunda no nível anímico-espiritual, enviando inteiramente o contato genital e tudo que concorre para essa união. Por isso a nossa consagração virginal não é um matrimônio místico entre duas pessoas, masculino e feminino. Pensar assim o relacionamento varão – mulher, é confundir o matrimônio com amizade ou com o matrimônio não consumado perpetuamente…  E entender a amizade no sentido geral, sem levar em conta o que uma das forças elementares, mais decisivos no matrimônio é a união dos corpos. Aqui o nosso modo geral espiritualista de analisar esses fenômenos é bastante descomprometido, superficial e confuso. Nessa época moderna, na qual campeia a imoralidade, o hedonismo, a sensualidade e o erotismo, de tal sorte que a união genital cada vez mais exacerbada e sofisticada é tido como o ideal e a meta do relacionamento entre homem e mulher, é necessário acentuar que nós seres humanos essencialmente somos alma e espírito. Por isso lá onde a dimensão genital não é informada pela alma e pelo espírito, a união matrimonial vira um ato animal (cfr. a expressão ficar, comer). As variações desse modo espiritualista de entender o matrimônio, embora no que diz respeito à uma reação contra o materialismo e hedonismo na compreensão do amor entre homem e mulher, tenham suas razões de ser na pastoral, a compreensão que está no fundo de todo esse espiritualismo pode não ajudar na compreensão mais verdadeira do que seja a essência do matrimônio cristão e por consequência do não matrimônio da vida consagrada. É que esse modo de espiritualizar, representa a dimensão anímica e o espiritual de modo abstrato e digamos minimalista, como essas dimensões da alma e do espírito fossem reino etéreo, angelical, sublimado e diáfano de um espírito desencarnado, uma espécie de fantasma errante, sem corpo e sem sangue. Na realidade deveríamos compreender a dimensão alma e espirito, como uma força elementar mil vezes mais intenso, forte, viva, cuja exigência é inexorável, como descreve o Cântico dos cânticos, 8, 6-7, na boca da amada: “Grava-me, como um selo em teu coração, como um selo em teu braço; pois o amor é forte, é como a morte! Inexorável como o abismo é a paixão; suas chamas são chamas do fogo incendiário, uma faísca de Iahweh! As águas torrenciais jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor… Seria tratado com desprezo”. Imagine como seria alguém como Santa Clara, se estivesse casada e se relacionasse com o seu marido, como se relacionou com Jesus Cristo? De uma tal paixão jamais resultaria um relacionamento masculino feminino à maneira do amor platônico, nem à la romance do casal de pombinhos, volatilizando, espiritualizando o elementar força da vida. O espírito, a alma, quando aparece no corpo, como amor de matrimônio, longe de apagar, sublimar o corpo, a genitalidade, a transforma agora sim numa realidade elementar, impregnada de paixão verdadeiro, e não apenas de uma satisfação narcisista, egocêntrico-estética ou num desenfreado excitação frenética de um instinto coisal, quase um ímpeto físico-sensorial.

Tudo isto significa que o enamoramento, a paixão, a busca da união e a própria união no matrimônio, de corpo, alma e espirito flui do esposo à esposa, da esposa ao esposo direta, imediata, corpo a corpo de tal modo que os dois se tornem uma só carne. É nesse modo de ser de tornar-se uma só carne que os cônjuges devem experimentar a presença do amor de Deus, não como espiritualização, não como fuga e afastamento da materialidade corpo a corpo de tal união de sexos diferentes no amor físico, anímico-espiritual, mas sim como sua intensificação, radicalização. Denominemos, embora de modo inadequado esse modo de se relacionar do homem e mulher no matrimônio de bilateral-horizontal, no sentido de a direção da busca se dá entre dois, de modo direto, corpo a corpo, um mirando o outro como meta, em cuja concreção se intensifica o relacionamento e então nesse amálgama começa a  surgir uma experiência da transcende de Deus como imanência, foco, interioridade, resguardo do amor matrimonial, e não como volatilização etérea espiritualista do amor sem carne e osso[5].

No não-matrimônio na virgindade consagrada dizemos não radical e absoluto a esse modo de ser e a essa orientação da intencionalidade a modo bilateral-horizontal. Por isso o nosso relacionamento inter-subjetivo, seja com masculino como com feminino não é nem de matrimônio, nem de amizade propriamente dito, mas sim de fraternismo[6]. Somos sócios, companheiros da mesma busca, e a intensidade da paixão de enamoramento no corpo, na alma e no espírito se dirige agora não para o outro masculino, ou ao outro feminino, mas direto, corpo a corpo, simplesmente a Jesus Cristo, o Crucificado. Assim, esse relacionamento se caracteriza, não como horizontal, bilateral, mas sim como vertical, singular, único e absoluto. Como entender tudo isso?

Importante aqui é de deixar intacta a intensidade, o corpo a corpo, o engajamento imediato de pessoa para pessoa, portanto a intensidade existencial do relacionamento tu a tu, explicitado no matrimônio cristão. Essa intensidade e concretude do amor de paixão, enamoramento e união é o mesmo entre o matrimônio cristão e a virgindade consagrada. Só que a direção da intencionalidade que no matrimônio é entre marido e mulher, na virgindade consagrada é entre corpo, alma e espírito de uma pessoa (seja da pessoa masculina ou feminina) e pessoa Jesus Cristo, Crucificado.[7] O que a essa altura, porém devemos com muita precisão e cuidado evitar é tirar uma conclusão superficial e não pensado e dizer: eu substituo o matrimônio com uma pessoa em carne e osso com um casamento com Jesus Cristo, Crucificado! Aqui, não se trata de substituição, nem de sublimação, nem de espiritualização, nem de matrimônio místico!  Mas, então trata-se de que? Trata-se de uma realidade realíssima, crua e elementar, de algo todo único, singular e próprio denominado Seguimento de Jesus Cristo, Crucificado. Mas, então de que se trata? De que se trata está expresso nos votos de castidade, obediência e de pobreza como nos emitimos ao entrarmos na vida consagrada, pois esses três votos dizem unicamente uma só coisa: o Seguimento de Jesus Cristo, Crucificado. Dito com outras palavras: aqui, de que se tata, somente pode ser captado a partir e dentro do Seguimento, e o Seguimento somente pode ser entendido a partir de Jesus Cristo, Crucificado. Por isso o nosso caminho, o nosso engajamento se chama vocação, i. é, a chamada que vem de Jesus Cristo, Crucificado ele mesmo: Vem, segue-me!

Tudo isso nos leva a uma grande perplexidade[8].  Pois, conforme como estamos acostumados nas nossas compreensões, tal exigência de tal atropelamento, vindo assim de Jesus Cristo, Crucificado é abstrata, incompreensível, sim irracional, sem elementos práticos e sem orientação.  Jesus Cristo Crucificado é uma realidade historicamente passada. Ela não está diante de mim como essa ou aquela pessoa. Como distinguir e separar essa realidade objetiva e real do passado, Jesus Cristo das inúmeras interpretações subjetivas particulares e grupais? Ou não é assim que nos falta a intensidade da facticidade real desse encontro, a ponto de pensarmos que a realidade real e objetiva reside no fato da existência passada de um sujeito denominado Jesus Cristo, e que o que hoje acontece, o que hoje nos atinge, é algo subjetivo, coisa de interpretação ou de afeição do nosso psiquismo e suas vivências subjetivas? Em todo o caso, usualmente, essa pergunta não tem resposta, dentro do modo de ser da pergunta que é o modo de ser do saber e certeza. Aqui é necessário recordar, que nós, desde o início, ao falarmos de vida consagrada em sendo consagrados, estamos até ao pescoço implicados com um conhecimento (leia-se conascimento), ou melhor uma evidência chamado fé cristã e mergulhados nela… Esse conascimento ou essa evidência chamada fé cristã não é um saber, não é uma doutrina, não é uma crença, não nos facilita o saber, mas sim é o toque do a priori de um encontro que já nos abordou de antemão e nos sustenta, nos ilumina a nos dispomos a doar-nos a esse toque de corpo e alma, incondicionalmente. O nosso empenho não é conquistar ou adquirir saber. É reexaminar, se em tendo sido tocados por abismo da possibilidade de conascimento, i. é, do conhecimento, e isto já há muito tempo, estamos realmente nos deixando iluminar por essa luz ou não a estamos substituindo por doutrinas, saberes e conhecimentos de outras origens. Por isso, a primeira condição imediata para avivar a nossa compreensão de que se trata, quando falamos da virgindade consagrada, é despertar para o que já nos atingiu de antemão a fé em Jesus Cristo, Crucificado. Essa absoluta disponibilidade para a doação à  pessoa que nos chamou primeiro, a Jesus Cristo Crucificado, de corpo, alma e espírito, numa afeição, no enamoramento e na paixão de intensidade total de busca e entrega, como ela aparece no matrimônio cristão, faz com que o nosso caminho é renúncia e abnegação, é desprendimento de tudo que não é direta e concretamente, imediatamente Jesus Cristo Crucificado. Nesse sentido é que toda a nossa vida é uma luta contínua contra o eu, não no sentido de autoaniquilação, autodestruição, mas sim no sentido de aqui nessa doação, o eu deve se transformar em , i. é, ser cosepultado com Cristo. Pois esse singular caminho de união é de identificar-se de tal modo com o amado, como diz São Paulo em Gal, 2, 19-20: “Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, eu vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim”. Seria interessante, se nós conversássemos no painel, como ficaria nosso modo de ser, digamos psicológico, numa tal impostação da vida. Pois, a maneira como nós costumamos entender a renúncia e a abnegação do eu não está afinada com essa realidade da graça da doação absoluta, mas sim estruturada a seu modo dentro do projeto do interesse do eu que é normal, se permanecermos enfocados dentro da própria perspectiva. Só que, essa perspectiva desconhece todo um mundo de realidade chamada fé cristã.

Obediência – Ser obediente como Cristo, que foi obediente ao Pai até na morte da cruz

Quando falamos da obediência, na vida religiosa, usualmente estamos falando de obediência doméstica que se refere à função de coordenação de um grupo humano, onde para a eficiência da funcionalidade de um corpo social que tem por fim um determinado objetivo, se tornam úteis, sim necessários comando e execução de uma ordenação. Chama-se doméstica essa obediência, pois diz respeito à casa paterna, i. é, domus, que por sua vez indica a boa gestão de uma comunidade, ao habitar, ao organizar a vida na terra dos homens. Conforme a autointerpretação que o grupo humano se dá de si mesmo e conforme como organiza o seu modo de viver em grupo, o modo de ser da obediência recebe o sei feitio. P. ex. a obediência pode ser escrava, pode ser livre e responsável e aqui, na obediência livre tomar estilo como democrático, hierárquico, aristocrático etc. Em geral, sob o título da obediência da vida consagrada, discutimos a obediência no nível da obediência doméstica. E quase sempre, nem sequer temos noção de que se trata, quando falamos da obediência evangélica que não é outra coisa do que assumir como o tesouro e a tarefa da própria realização da existência humana o modo de ser do primeiro passo inicial para e do Seguimento de Jesus Cristo.

Como Seguimento de Jesus Cristo, obediência se refere à prontidão, à agilização do eu em dar o primeiro passo, na resposta ao chamamento: Vem, segue-me. É, portanto, o primeiro sim, do eu, que salta do toque da graça do chamamento, recebido na fé. Trata-se pois de um passo que ocasiona o salto. Salto que desencadeia o aparecer e o modo de assumir todo o trecho da caminhada da vida consagrada, de início no início, no meio e no fim. Esse sim, é antes de tudo percepção nítida do que é um salto. O primeiro passo do eu, sob o toque da fé, nós achamos que é irracional e cego. Na realidade, nada tem a ver com cegueira e com o irracional. É que ele é antes de tudo uma audição. Por isso, o termo soa ob-audiência (oboedire Þ ob-audire Þ ob = a aberta; audire = ouvir Þ ausculta, captação da plena atenção à compreensão de que se trata quando se exige a disponibilidade pura na espera do inesperado Þ a disposição de ser todo ouvido a). Esse modo de ouvir, de estar à disposição da ausculta, a Grande Tradição do cristianismo expressou numa fórmula, muito mal compreendida, a saber: em tudo fazer a vontade de Deus. Uma certa compreensão um tanto defasada do ser cristão, entendeu essa fórmula como sacrificação do eu, submissão resignada ao comando e à vontade, ao arbítrio de um ser supremo. Essa defasagem da compreensão, não nos permite de escutar outra tonância nesse “fazer em tudo a vontade de Deus, mesmo até a morte, e morte na cruz”. Ouçamos outra tonância que é bem diferente à do usual, e que nos transmite o próprio do voto, i. é, do devotamento do Seguimento chamado voto de obediência. Em Hb 10, 5 diz Cristo ao Pai: “Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, – no rolo do livro está escrito a meu respeito – eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade”.

Acima dissemos: “Como seguimento de Jesus Cristo, obediência se refere à prontidão, à agilização do eu em dar o primeiro passo, na resposta ao chamamento: Vem, segue-me. É portanto, o primeiro sim, do eu, que salta do toque da graça do chamamento, recebido na fé. Trata-se pois de um salto”. Obediência é o momento do salto, referido a ele, dentro dele, como primeiro passo do eu no Seguimento. Esse passo ainda não é propriamente o Seguimento. Mas sim uma disposição receptiva chamada ausculta ou audição já sob o toque da pro-vocação do chamamento.

Para entendermos de que se trata, vamos a seguir usar um exemplo. Imagine a você mesmo, vivendo na Palestina no tempo de Jesus. Coloque-se numa situação parecida a de Mateus. Ele estava trabalhando. Passa Jesus e lhe diz: Vem, segue-me. Diz o Evangelho: Mateus levantou-se, e foi atrás. Esse exercício de se colocar numa situação semelhante a de Mateus, eu devo fazê-lo de modo bem concreto, vivo e materialmente. Assim, da seguinte maneira: Reassumo tudo que sou aqui agora. Jovem, de meia idade, na terceira idade, mulher, varão, preto, amarelo, misturado, branco, com esta nacionalidade, formação que tive ou não tive, com todas minhas heranças genéticas, defeitos ou virtudes adquiridos, com todas as minhas dificuldades, facilidades etc. Um dia qualquer, Jesus cruza o meu caminho. Olha menos olhos e me chama: Vem, segue-me! O que faço? Certamente, esse chamado pode me interessar ou não. Se interessa, como é e até que ponto é real esse interesse? Se vou atrás dele, é porque temo a consequência, a saber, se não o “obedecer”, sou castigado? Tal móvel é muito vago e fraco. Portanto, se o sigo, deve ser: é porque gosto dele, quero caminhar com ele, quero tomar o mesmo rumo dele. Pode ser que não o conheça bem; o que sei dele é mais o que ouvi falar dele pelos terceiros; eu mesmo não averiguei pessoalmente como ele é; talvez conheça bem a ele, certamente a partir de mim. Talvez estou entusiasmado por ele, sem porém, saber se o que sinto por ele e sei dele é realmente válido, objetivo, real ou é uma espécie de fantasia minha ou uma espécie de projeção dos meus desejos e anelos, dos meus sonhos em cima dele. Pode ser que já senti no passado e sinto agora, um chamado muito mais claro, concreto, ao qual agora estou disposto a responder realmente, de fato. Pode ser que você é alguém impetuoso, instintivamente. Logo que sinto entusiasmo, eu me lanço a realizar. Talvez eu seja o contrário do impulsivo. Talvez seja calculista. Quero primeiro saber de que se trata, com quem estou lidando etc. etc. Você pode ser tudo isso e muito mais, ou muito menos. Mas seja como for, seja qual for o jeito que entendeu o convite “vem, segue-me”; seja qual for o grau de garantia que você possa ter, se tem ou não tem vocação ou melhor se foi realmente chamado ou não, uma coisa é clara, inexoravelmente certa: Você tem que se levantar e ir atrás. Se não o quiser, tudo bem, não há mais problema. Mas se você quer, ou diz que quer, é necessário chegar à compreensão real e urgente, a saber: faça o que fizer, seja quem for, entenda aminha situação como entender, chega-me o momento, depois de tudo isso, depois de ter examinado, duvidado, titubeado, momento, no qual eu vou ter que compreender que devo querer ou não querer, que devo eu, custe o que custar dar o primeiro passo. E que esse primeiro passo deve ser dado, querendo sim, mas sabendo o que quer. Mas agora muita atenção: o que quer dizer aqui querendo, e sabendo o que quer? Aqui, esse querendo e sabendo o que quer deve saber que Jesus Cristo Crucificado, é uma pessoa, não é objeto do meu saber e do meu querer, portanto ele não pode se manifestar no seu próprio, ele mesmo no seu ser, nem ao saber nem ao querer de quem quer que seja. Quem é ele, no seu próprio, no seu ser somente pode ser sabido e querido por mim, somente se sou tocado pelo chamamento, e no chamamento receber juntamente com o toque a possiblidade de o meu saber e o meu querer adivinhar como deve ser a atitude de receber, de ser tocado por uma pessoa como Jesus Cristo. Assim, no chamamento, somos expostos a essa situação toda própria e única de estarmos diante de uma realidade-pessoa da qual nada sabemos, a qual não podemos querer, ter, desejar em nada, por sermos de todo impossibilitados de ter-lhe acesso a partir do que quer que seja nosso: portanto, se o queremos, se o desejamos, se o buscamos, tudo isso só nos é possibilitado porque Ele, Jesus Cristo nos escolheu, nos chamou, nos manifestou e assim despertou em nós a possibilidade de lhe dizer sim, levantar-nos e o seguir. Esse primeiro momento do encontro é o que acontece como o nosso querer, o nosso saber, portanto o saber e o querer do eu sob o toque da vocação? Longe de, como costumamos representar, ficarmos aniquilados no querer e saber, longe de nos tornarmos indiferentes e vazios no querer e saber, somos no nosso eu o mais íntimo atingidos por uma tomada de consciência nítida e de um querer decidido de que é necessário pular e dizer sim incondicional e absoluto na acolhida dessa situação. Esse salto vem do nada, nada do eu, nada do condicionamento, nada do meu querer e do meu saber, mas inteiramente decidido por mim sob a minha responsabilidade, de tal modo que se dá certo ou se fracasso, se me enganei ao pensar que tivesse sido chamado, tudo isso vai na conta da responsabilidade do meu querer e meu saber. Isto significa com outras palavras: levanto-me e o sigo, não porque sei que fui chamado, mas para saber se fui chamado ou não. Assim, vem o chamado: Vem, segue-me. Levanto e vou correndo, ultrapasso a Jesus, o cerco para lhe perguntar: Senhor, me chamaste? Essa disposição do primeiro passo do eu sob o toque do chamamento é a essência da obediência. Esse modo de ser pronto e decidido está ilustrado na Sagrada Escritura no episódio do menino Samuel. Conta a Bíblia:

“O menino Samuel servia, pois a Iahwe na presença de Eli; naquele tempo, raramente Iahwe falava, e as visões não eram frequentes. Ora um dia Eli estava deitado no seu quarto (…) e Samuel estava deitado no santuário de Iahwe, no lugar onde se encontrava a Arca de Deus. Iahwe chamou: “Samuel, Samuel! Ele respondeu: “Eis me aqui!”, e correu para onde estava Eli, e disse: “Eis-me aqui, porque me chamaste?” – “Não te chamei”, disse Eli; “volta a deitar-te”. Ele foi deitar-se. Iahwe chamou novamente: “Samuel, Samuel!” Levantou-se e foi ter com Eli, dizendo: “Tu me chamaste: aqui estou” – “Eu não te chamei, filho meu”, disse Eli; “vai deitar-te”. Samuel não conhecia a Iahwe, e a palavra de Iahwe não lhe tinha sido ainda revelada. Iahwe voltou a chamar Samuel pela terceira vez. Ele se levantou, aproximou-se de Eli e disse: “Aqui estou, porque me chamaste”. Então Eli compreendeu que era Iahwe que chamava o menino e disse a Samuel: “Vai deitar-te e, se te chamar de novo, dirás: ‘Fala, Iahwe, que o teu servo ouve’ ”, e Samuel foi se deitar no seu lugar. Veio Iahwe e ficou ali presente. Chamou, como das outras vezes: “Samuel, Samuel!”, e Samuel respondeu: “Fala, que teu serve ouve”.

Ouvir aqui conota seguir com a prontidão como sempre de novo Samuel se levantava e corria a Eli. Essa ausculta, como o primeiro passo do eu sob o toque do chamamento, sabe de antemão que aconteça o que acontecer, venha de encontro o que vier, tudo deve ser acolhido como chamamento na disposição do “eis-me aqui, porque me chamaste”.  Este é o voto, o devotamento pelo Seguimento, que recebeu o nome de obediência e que na formulação usual soa: seguir a Jesus Cristo que em tudo fez a vontade do Pai, até a morte na cruz. Esse modo de relacionamento que é tu a tu com Jesus Cristo Crucificado, na identificação total com ele, na sua intimidade a mais radical, não possui o colorido de um encontro bilateral-horizontal a formar um ninho da mútua mescla na dor e na alegria, no prazer e no desprazer, na luta e na vitória a modo esponsal; mas sim de uma doação total e absoluta de um servo inútil, cujo amor-paixão de encontro e intimidade é ser igual a Ele na doação incondicional que Ele tem para com cada um de nós, na disponibilidade de servir, de obedecer em tudo, mesmo aceitando, ou melhor querendo até a morte como a da cruz, para estar-lhe à disposição, sem nada querendo de si, e para si, mas inteiramente ser a sua propriedade, sua vontade, seu amor, i.é ao seu servir[9]. Esse modo do amor-paixão que na Cavalaria medieval do tempo de São Francisco se denominava Minne (Gottesminne), não busca em Jesus Cristo nem consolo, nem apoio, nem proteção, mas se expõe de todo, direta, inteira e totalmente a servi-lo, servindo a toda a humana criatura, como Ele serviu, e assim nesse Seguimento unir-se a ele numa intimidade, cujo segredo é só Dele.[10] Isso tudo faz com que a castidade e a obediência venham acompanhadas do voto da pobreza que na expressão de São Francisco de Assis na sua Regra Não-bulada se diz: sine próprio, i.é, sem nada de próprio, e toma forma da Senhora Pobreza.

Pobreza – Sem nada de próprio

Há o perigo de entendermos o voto da pobreza como a virtude chamada parcimônia e sobriedade caseira, i.é, economia, ou melhor, oikonomia, que em grego significa boa administração da casa, cuidado da ordenação da casa. Nesse sentido, pobreza é não gastar à toa, não ter o supérfluo, ser simples no uso das coisas e na habitação. Podemos também identificar o ser pobre com solidarizar-se com os pobres, participar dos seus anseios, sofrer com eles, assumir sua causa. Podemos também, por fim, entender o ser pobre como ser livre, desprendido de tudo para poder estar total e inteiramente disponível para Deus ou sentir-se inteiramente carente de tudo, e dependente em tudo de Deus e nessa dependência confiar totalmente em Deus e na sua divina Providência. Todos esses elementos que acima mencionamos podem pertencer à pobreza no sentido do voto da pobreza, de algum modo, digamos como efeitos colaterais. Mas o pivô do âmago da pobreza na vida consagrada como Seguimento de Jesus Cristo parece estar em seguir a Jesus pobre e humilde e compreender de que se trata e querer, quando dizemos Jesus pobre e humilde e identificar-se com Ele e ser pobre e humilde como foi Jesus Cristo. E considerar esse ser pobre e humilde como Jesus o foi, i. é, considerar a Pobreza de Jesus Cristo como o tesouro supremo do meu viver, como a riqueza essencial, a única e absoluta propriedade do nosso ser. Pobreza assim entendida, recebe a sua gestaltização na figura singular que representa para São Francisco de Assis a Jesus Cristo, Crucificado, denominado sob essa figura com o título de Senhora Pobreza. Senhora Pobreza é o próprio Deus, vivido e anunciado por Jesus Cristo, Crucificado, como Deus Encarnado, Deus feito Homem, que por amor de cada um de nós se fez como nós e se nos doou na paixão do amor esponsal de tu a tu, a tal ponto que nele nada há de divino, poderoso, onipotente, onisciente, nada do infinito, mas se tornou absoluta e radicalmente de todo finitude, para se nos manifestar límpida e puramente apenas na ab-soluta doação, pobre de tudo quanto não é apenas essa auto-doação, humilde, i. é, nos esmolando, pedindo que nós o aceitemos, apenas por aquilo que ele quer ser, a saber, Jesus Cristo, o Crucificado, Deus humanado, tão humanado que é no amor, na obediência e na pobreza, que ele se devota a cada um de nós, como se nós, i. é, cada um de nós lhe fosse ab-soluto, tudo. Nessa absoluta entrega e na entrega, nesse pedido esmoler de que sejamos como ele, identificados com ele e apenas nesse modo de amar, é a divindade, a deidade do Deus anunciado como boa-nova por Ele mesmo em e como Jesus Cristo, Crucificado, o Deus cristão. E essa divindade, essa deidade não é um ente, não é uma doutrina, não é um ideal, mas simplesmente, inexoravelmente o mandato da nova humanidade, do novo céu e da nova terra, dito na palavra de Jesus Cristo Crucificado: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Conclusão

Resumindo numa frase tudo que tentamos refletir e entender como sendo os votos, i. é, como o devotamento, como a doação da nossa existência e do seu projeto de vida, possamos talvez dizer: os votos de castidade, obediência e pobreza não são outra coisa do que a decisão, manifestada publicamente diante da comunidade cristã com juramento, de  prometer e sempre de novo retomar essa decisão de dispor-se com todo o coração e alma,  com toda a mente, seguir a Jesus Cristo para amar tudo, a cada ente, a cada pessoa, como ele amou, ama e amara para sempre.

Finalizando, ouçamos a palavra de um dos seguidores, o mais próximo de São Francisco de Assis, a saber, da Santa Clara acerca da excelência da nossa vocação:

Em nome do Senhor. Amém. Entre outros benefícios que do grande doador nosso, do Pai das misericórdias, temos recebido; e a cada dia recebemos, e por isso devemos dar mais e mais a ele mesmo, ao Pai glorioso, ações de graça, está o da nossa vocação, que quanto mais perfeito e maior mais a ele devemos. Assim, diz o Apóstolo: Conheça a tua vocação! O Filho de Deus nos foi feito via, a qual mostrou por palavras e por exemplo e nos ensinou o beatíssimo nosso pai Francisco, o verdadeiro amante e imitador dele”.

Apêndice-texto

Escolher cada dia da reflexão os textos das fontes franciscanas que possam ilustrar o que foi dito acima e indicar aos cursistas como leitura particular. E se surgir a objeção de que tudo que foi dito dos votos como amor de intimidade esponsal singular-vertical é algo que na vida religiosa consagrada poucas pessoas chegam a compreender e viver a vida consagrada nessa dimensão, portanto que tudo isso é hoje impraticável, ler e discutir a seguinte reflexão metodológica.

Um problema da abordagem dos temas espirituais

O que foi colocado de modo imperfeito e sem muito jeito acerca dos votos é um a priori. A priori significa a partir do anterior, de antemão, a partir e dentro de uma dimensão na qual sempre já estamos de antemão. O oposto do a priori é a posteriori. Significa a partir do posterior, depois de experimentar, experimentalmente, assim como a coisa se apresenta sem nenhuma posição prefixada, depois de um contato empírico com a coisa. Muitos chamam o a priori de especulativo, entendendo o especulativo como ato de quem voa pelos ares sem pôr os pés na realidade empírica, assim fantasiando, inventando só com a cabeça. Assim, uma reflexão como a nossa, hoje – assim se costuma dizer- principalmente para os jovens, não tem nenhum sentido. O que hoje queremos é o real, e não o especulativo, utópico que jamais acontece na terra dos homens. E dizemos: certamente, pode servir como utopia, isto é um ideal, diante de nós, lá longe, aonde jamais chegaremos, mas sempre de novo nos pode provocar, se é que antes não nos desanima, pois se colocamos a uva tão alto que não a conseguimos alcançar, que sentido tem tal especulação?

Perguntemos: Será que não é esse modo de pensar a realidade e a nossa busca de realização dentro da perspectiva de tal olhar empirista que está criando na vida consagrada um marasmo estranho de desânimo, depressão, incapacidade de perseverar no trabalho e na luta de uma árdua conquista, do vício de fogo de palha, do imediatismo etc. etc. e de sermos tão pouco entusiasmados, cordiais e estudiosos da/por nossa causa? Não é essa perspectiva empirista que está criando uma enorme confusão na compreensão do que seja a essência da vida consagrada e de todas as coisas que a ela pertencem? O que usualmente chamamos de a priori, sem pensar, degradando-o a algo como a imposição do autoritarismo, a estreiteza de um bitolamento fundamentalista, como abstrato-formal de neutralidade geométrica etc. etc. é na realidade uma miopia nefasta que se introduziu na nossa compreensão da realidade. É que o a posteriori, o empírico, o “concreto” aqui agora diante de mim, palpável, mensurável não existe em si, mas é sempre e cada vez um etapa, uma determinada concreção de toda uma caminhada já feita, a partir e no aprofundamento da qual podemos começar a vislumbrar, em que consiste a força, a realidade que está pulsando como vigor da raiz do que estamos vendo diante de nós como “realidade”. A essa realidade sub-terrânea, donde brota o vigor do empírico, cujo desconhecimento é fatal para a vigência atual e futura deste e aquele a posteriori, a Grande Tradição do Ocidente chamou de dimensão espiritual, ou numa linguagem mais atual: condição da possibilidade de. Esse a priori longe de ser bitolado, doutrinário, fixo e endurecido, é como que dimensão a partir e dentro da qual nasce, cresce, floresce, frutifica e se consuma a realidade humana. Essa dimensão não está, portanto, diante de nós, lá longe, na u-topia, i.é, fora do lugar, de modo que a alcançaremos talvez um dia, no futuro, mas ela está atrás de nós, ou melhor, debaixo de nós como fundamento, como base, sobre a qual podemos construir um edifício sólido e bem ajeitado. Portanto, o a priori não é o que ainda vamos ter; é antes o que nos tem, é terra sobre qual estamos de pé, bem assentados.

Hoje, nas coisas da espiritualidade dentro da vida consagrada, na mania de sermos empiristas, fazemos mais ou menos como galhos de uma árvore, que querem crescer cada vez mais para cima, cujo olhar é olhar de cheira nuvem, só vê galhos, só olha para cima, e pensa que a realidade em si, concreta e real são os galhos e seu conjunto. Na situação em que os galhos começam a secar e se tornam quebradiços, e as folhas amarelam, como os galhos não se enxergam a não ser como galhos, começam a considerar como alienados da realidade, como utópicos, abstratos, especulativos, fantasiosos, e idealistas irreais  os galhos que olham para dentro de si dinamicamente, e sentem lá em baixo e sabem que antes deles, portanto a priori há troncos, raízes que se perdem na profundidade da terra, donde tiram a força e a vida que transmitem para os galhos. Tal mania empirista é algo como cortar o tronco, em cujo galho se está sentado. Portanto, se o a priori é lá a partir do qual e dentro do qual surgimos, nos firmamos e nos vamos transcender mais e mais, por que não o estudar, não o profundar antes de tudo, antes que nós comecemos a definhar na nossa compreensão e na nossa realização no que temos de mais real e necessário: no vigor da nossa existência vocacional como vida consagrada? Assim, por falta de uma compreensão adequada do ser da realidade humana como existência, a nossa prática concreta da formação não passa de aplicação abstrata de uma teoria muito ruim da prática na realidade humana. Nesse sentido, o que hoje necessitamos não é tanto a prática, mas sim a práxis de uma teoria mais adequada da prática real do humano. Se confundimos e igualamos os galhos com as raízes, tudo na árvore dá só galho. O a priori, a terra, onde estamos assentados, não é necessário ir buscá-la, subindo cada vez mais para além de nós mesmos, mas sim a aperceber no fundo de nós mesmos e deixar que ela nos tome conta e assim dar lugar a evidência da explicitação do que sempre já fomos, mas que não sabíamos que algo assim era real.


[1] Sofremos um insidioso vício mental de pensarmos que estudar, pensar é oposto ao agir, à ação. Essa falha mental, faz com que nós, os religiosos, sejamos muito pouco exercitados no agir, na ação, chamada reflexão, estudo, exercício espiritual. Temos dificuldade de nos concentrar, de gastar horas a fio, buscando uma compreensão mais essencial. Com isso a nossa própria ação, a capacidade de agir é defasada. Pois p.ex. identificamos o agir, a ação com fazer coisas palpáveis, visíveis. E assim, quando fazemos coisas palpáveis, visíveis achamos que estamos fazendo alguma coisa, que somos ativos. Quando devemos fazer coisas espirituais, pensamos que não estamos agindo, mas apenas pensando, sentindo, refletido, portanto fazendo coisas mais leves, fáceis, sem nenhuma exigência de empenho e zelo, apenas castelos no ar. E isso que achamos fácil, sem realidade como p.ex. pensar  nós não fazemos muito, pois isso todo mundo  pode fazer sem mais, por ser uma realidade menos real.
[2]  E essa altura da reflexão, vamos aqui numa nota, precisar um ponto que na nossa reflexão deixamos um tanto impreciso. Esse ponto é na realidade é nevrálgico e se o deixamos teoreticamente na imprecisão, mais tarde pode nos trazer uma dificuldade prática. É que a nossa explicação feita no texto opera num dualismo, a saber: necessidade vital e necessidade livre como se fossem duas camadas do nosso ser: a camada física e a camada anímico-espiritual.  Essa pressuposição dualista na realidade é fruto de uma pré-compreensão antropológica “substancalista” do homem. O ser-humano, porém, não pode vir à sua evidência como ele mesmo se o enfocarmos a partir dessa antropologia substancialista, pois nessa antropologia ficou ao menos para nós hoje uma interpretação não analisada e dogmatizada do sentido do ser que é adequada para coisa, mas não para o homem cujo ser, hoje denominamos existência. É desse termo no seu uso novo existência que vem o adjetivo existencial. (fazer aqui um excurso para deixar claro, na medida do possível, o que se deve entender por existência nesse sentido novo do termo e mostrar a sua consequência na nossa compreensão do fenômeno humano. Na existência não há nenhum momento, seja corporal, anímico ou espiritual que não tenha o modo de ser da existência. É por isso que no ser humano, no fundo, a necessidade que acima denominamos de vital já é existencial, nela mesa. Mesmo aqui no natural e espontâneo, e instintivo devo assumir a tarefa de trabalhar e exercitar-se na necessidade livre.
[3] Interessante observar que a virgindade consagrada cristã é chamado de conselho evangélico, ao passo que o matrimônio cristão é sacramento. Assim sendo, por enquanto, juridicamente é muito mais fácil, receber a dispensa do voto de castidade na vida consagrada (para quem não é sacerdote) do que do vínculo do matrimônio. Aliás aqui não há propriamente uma dispensa, mas sim pode haver a anulação, i.é, declaração de que o matrimônio não foi válido. Quando, São Paulo na epístola 2Cor 11, 2ss. diz: “Experimento por vós um zelo semelhante ao de Deus. Desposei-vos a um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura. Receio, porém, que como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade devida a Cristo”, ele fala tanto aos casados como aos não casados, portanto fala da seriedade existencial existente no relacionamento entre o fiel e Cristo. E é de interesse nosso, observar e guardar bem que aqui, essa seriedade é a do matrimônio! Isto significa que tanto a existencialidade da  virgindade consagrada como a do matrimônio cristão é a mesma, i. é, encontro com Cristo tout court, mas realizada na concreção diferencial que é essencial tanto a uma como a outra.
[4] Pessoa é uma palavra-chave da experiência cristã. Não confundir, porém, aqui o conceito de sujeito com a pessoa. Pessoa só se torna compreensível na experiência do que na mundividência cristão, nem sempre muito transparente para dentro de si mesma até o fundo, é chamado de encontro de amor. De aqui entendido tanto como genitivo subjetivo como objetivo. Cf. O mistério da Santíssima Trindade: uma natureza em três pessoas.
[5] Se aqui usarmos o termo existencial no sentido explicitado na nota 2, na matrimônio cristão não podemos examinar o que usualmente chamamos de genital e do sexual, e afetividade de modo geral, como se tudo isso existisse (leia-se ocorresse, como necessidade vital ocorrente em si) em si independente da existência  (leia-se vida própria do ser humano como existência) matrimonial cristã. Essa singularização, esse modo de ser único e exclusivo não entra dentro da categoria binômia particular-geral) mas é cada vez único-singular-uni-versal. É por isso que no matrimônio cristão o próprio  momento da “genitalidade” é indissolúvel e única e nesse sentido exclusiva entre os nubentes. Aqui o uso da genitalidade é singular, única e é da necessidade livre existencial, portanto dever, tarefa, compromisso; como o é o não uso no celibato da vida consagrada. Cf. a estrutura existencial que está sempre atrás do não. Atrás de um não sempre está antes um Sim de toda uma existência.
[6]  Não sei se essa suspeita não é infundada e fruto de um desconhecimento da realidade fraternal entre nós. Mas de um tempo para cá, sob o tríplice slogan: fraternismo, minorismo e pobreza, tentou-se entender o relacionamento fraternal entre nós a partir e na perspectiva de amizade, intimidade etc. que em muitos casos se transformou na substituição do modo de ser da família. Assim, o fraternismo não foi tematizado como ser-fraterno no toque e na busca da mesma vocação e mesma missão. Cf. crescente tendência de buscar na vida comunitária religiosa, não tanto confronto, busca, estudo da causa comum, referida à nossa vocação, mas sim ambiência de confraternização, a modo de busca do conforto, intimidade, prazer do convívio agradável. Portanto o relacionamento a modo bilateral-horizontal, que no matrimônio cristão tem a seriedade existencial de um assumir o outro como sua própria carne.
[7] Não se trata no sentido geral de relacionamento com Deus, mas sim com Deus encarnado como Jesus Cristo, Crucificado (Cf. O esponsal de São Francisco com a Senhora Pobreza = Jesus Cristo, Crucificado).
[8] Não confundir perplexidade com confusão. Confusão vem da falta de pensar realmente o que sabemos, do que estamos informados. Perplexidade vem quando começamos a pensar as pressuposições prefixadas do nosso saber usual e começamos a buscar mais distinção e nitidez na compreensão.
[9] Em português a palavra servir é ambígua: significa estar a serviço de e dar no couro. Este último significado não quer dizer: sou competente, poderoso, habilitado, mas sim: quero me dis-pôr, trabalhar sempre de novo e cada vez mais para dar no couro.
[10] Aqui nesse Gottesminne o ser do servo ou o ser da serva não conota o relacionamento neutro, onde não entra a intimidade da união esponsal bilateral-horizontal. Conota sim uma intimidade inefável, onde a intimidade da união esponsal bilateral-horizontal, recebe um característico todo próprio e decisivo de uma intimidade que unicamente pode ser captado, em ouvindo a delicadeza, o pudor de uma total dedicação de vida e morte, de entrega do servo de Jahwe, que vibra quase imperceptível aos nossos ouvidos grosseiros no termo vocativo, usado na Sagrada Escritura, principalmente no Novo Testamento, onde chamamos ao Deus de Jesus Cristo de “Meu Senhor”. É nessa vibração contida do pudor de uma intimidade inefável que devemos ouvir o grito da paixão de todos que seguiram a Jesus Cristo: “Eis aqui a serva do Senhor” e “maranatha, vem Senhor Jesus!”
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