O primeiro elemento constitutivo da nossa Ordem é a Conventualidade. Assim reza as nossas Constituições ao número 1, parágrafo 1: A Ordem dos Frades Menores Conventuais é uma religião fundada por São Francisco de Assis sob o nome de Frades Menores. A este nome, quase desde o começo, foi acrescentado o título de CONVENTUAIS. Os membros da Ordem são chamados Frades Menores Conventuais. Como entender a Conventualidade?
Os historiadores franciscanos, ao falarem da Conventualidade, usualmente, o fazem a partir de conceitos como ‘evolução’, ‘mitigação’, ‘privilégios legitimamente conseguidos’, ‘acomodação ao espírito da época’, ‘eficiência pastoral’, quando não a partir de apreciações negativas como ‘decadência’, ‘relaxamento’, ‘afastamento das origens’, ‘abandono do espírito franciscano’… , ficando presos àquela ‘redução’ costumeira que resume toda a experiência franciscana dos primeiros séculos à questão da ‘observância’ da pobreza material e da pobreza ‘administrativa’.
É um fato que o processo de conventualização da Ordem se chocou com a questão da pobreza material. No entanto, trata-se de uma ‘redução’ que não faz juz ao ‘acontecer franciscano’ dos primeiros séculos. Se o fizesse, como explicar o fato, constantemente repetido, que as ‘reformas’ – que questionavam ou rejeitavam explicitamente o processo de conventualização – elas próprias se encaminharam, e logo, para o mesmo processo, e às vezes não menos intensamente?
A Conventualidade é antes de tudo um fenômeno altamente positivo que dinamizou o carisma de São Francisco para dentro da Igreja e da sociedade de então e o dinamiza até hoje. É uma experiência essencial feita pelos frades das primeiras gerações; há nessa experiência o eclodir do vigor comunitário originário. Este vigor se estruturou, se materializou, criou objetivações que eram com-crescimento desse vigor. Entre essas concreções estavam os ‘conventos’, donde o nome de Conventualidade. Conventualidade, portanto, significa a essência, o vigor que inspirou, moveu os frades para construir todo um mundo de objetivações chamado ‘convento’ como expressão e realização desse vigor. Convento não significa conventos em geral, pois havia conventos dominicamos, carmelitas…em toda parte; convento se refere antes e especificamente às atitudes resumidas depois na palavra Conventualidade. Colocada assim, a questão da Conventualidade torna-se uma sondagem nova, concreta e profunda: aquilo que aos olhos de alguns era decadência, mitigação, adaptação… era na realidade o dinamismo, a coragem de assumir o carisma franciscano como vigor de transformação através das vicissitudes e desafios da história. O dinamismo do Espírito Franciscano de ver no carisma de Francisco não somente a inspiração pessoal, de santidade e mística, mas sim a presença do Vigor do Espírito Santo que cria Novo Céu e Nova Terra e que, portanto, deve imiscuir-se, inserir-se nas vicissitudes, nas lutas e conquistas da Terra do Homem, para ali frutificar e dar frutos. Com outras palavras, a Conventualidade é a dinâmica do Espírito franciscano que dever ser o móvel forte do ‘progresso’ e da ‘inserção’.
Assim, a Conventualidade pode e deve dinamizar, hoje, o carisma franciscano ao se inserir concretamente e finitamente nas vicissitudes e desafios, nas lutas e conquistas do nosso tempo. Por sua experiência tão vasta, tão penetrante, o essencial humano e neste o social, o econômico e o político, o franciscano conventual é convocado a tematizar criticamente mais e melhor o nosso tempo. Mas, só conseguirá isso se mais e melhor mastigar a experiência originária que Francisco é.
O grande desafio que a Vida religiosa franciscana tem hoje, no mundo, é encarar as situações sócio-econômico-político, assumi-las e colocar-se nelas com urgência de atuação libertadora. A tudo isso chamamos de inserção. Pela palavra ‘inserção’ entendemos as atividades de fronteira, extremamente desafiadoras e exigentes. Nelas não podemos usar um ‘instrumental burguês’ como a busca da auto-realização, o cultivo do que agrada e gratifica, o achar que haverá sempre nova possibilidade, que o ambiente é determinante, que a liberdade consiste em escolher, que o que é espontâneo no homem é a componente mais verdadeira de cada pessoa, que disciplina e imposição no prestam… Se usarmos este instrumental não vai dar inserção, mas sim caricatura da inserção.
Francisco ao longo do processo de conversão e durante toda a vida, assumiu atitude nitidamente crítica diante das dinâmicas que mais tarde foram personificadas pela burguesia capitalista e por esta introjetadas na cultura popular massificada contemporânea. Alguns tópicos desse posicionamento crítico: * o afastar-se da opinião pública dominante acerca dos valores da vida para cultivar uma afeição ‘revelada’, identificada com o Jesus Cristo crucificado, pobre e humilde.* A superação do sentido de vida como ‘auto-realização’, para entregar-se a uma realização de ‘obediência’ que surge do Encontro com Jesus Cristo Crucificado e por Ele e n’Ele e com ele com o Pai. * A acolhida constante, como ‘urgência e necessidade’, do ‘magistério’ de Deus e, todas as suas manifestações, negativas e positivas, em oposição à atitude de auto-suficiência reivindicativa do ‘positivo’. * Renúncia, como ‘voluntário’ da pobreza, aos bens, inclusive os de parentesco; diante de uma busca exasperada do poder econômico, político, publicitário Francisco se entrega ao cuidado com a vida em sujas manifestações de finitude. * Diante da tendência de impor aos outros as próprias medidas todo poderosas, com o conseqüente surgimento dos ‘oprimidos’, Francisco e os primeiros companheiros se definem para serem servos de toda humana criatura, e ‘irmãos’ ao redor de uma busca que faz surgir o novo parentesco ‘espiritual’ que emerge da ‘com-munus’, a tarefa comum de fazer a vontade do Pai: fraternidade. *Consequentemente colocam em comum os ‘bens’ conseguidos pela mendicância, esquecidos de toda acumulação individual e de classe. * Diante do espiritualismo genérico, desencarnado e subjetivista Francisco acolhe a ‘finitude’ da Igreja Romana como concreção em que pulsa a memória de Jesus Cristo, tesouro inalienável da existência religiosa cristã. * Surge entre os companheiros a democracia participativa pelos Capítulos, fugindo de toda tentação autoritária, oligárquica, classista ou assemblearista. * Vencedores de si, Francisco e companheiros promovem com seu trabalho ‘bens’ que não são de sua pertença: a paz, o perdão, as virtudes, a misericórdia, isso diante da tendência de se apossar dos valores e promovê-los como próprios e em nome deles julgar e condenar os que não estão no mesmo estilo de vida. O posicionamento límpido de Francisco de Assis na questão humana é para todo franciscano a chance de contribuir significativamente para uma evolução verdadeiramente humanizante das situações de carência e opressão de nível sócio-econômico-político, desde que seja fiel à esta herança.
Diante de outras instâncias que tem a tarefa de transformar a ‘sociedade’, como os partidos, os sindicatos, os movimentos populares de diversas matizes, o específico do desafio e do risco da Vida Religiosa Consagrada Franciscana está no como fazer a inserção, mantendo o que lhe é característico, aquilo que constitui o ‘unicum’ de sua contribuição, isto é, que seja o ‘agente libertador’ seja o ‘oprimido’ realizem a experiência do Encontro com Deus a partir de toda e qualquer realidade, permanecendo engajado num esforço de mudança desta mesma realidade. O cuidado comunitário corajosamente crítico diante das possíveis ‘quedas de tensão ideal’ e o cultivo do carisma originário, como único capaz de revigorar o viver religioso franciscano, é a grande força da Conventualidade quando bem vivida, diante do risco que qualquer inserção traz consigo. Este risco pode ser definido como: perda da nitidez acerca do ‘a partir donde’, do ‘como’, e do ‘para que’; compactuação desapercebida com os fenômenos que a inserção quer combater; impaciência e desânimo diante das dificuldades e dos tempos longos, fatores estruturais da ‘libertação’, pois há tarefas que vão além do arco de uma existência.
A fraternidade franciscana entendida como tarefa de ser, individual e comunitária, isto é, a Conventualidade, é a postura adequada, cultivada por séculos pela nossa família franciscana, para enfrentar o desafio e os riscos da inserção.
Pois, com o seu modo de ser a Conventualidade convida a ‘convir’ numa ‘morada’ comum, isto é, convir a uma definição pessoal e comunitária de busca da experiência religiosa de Seguimento de Jesus Cristo, conformando-se à experiência de São Francisco e a partir deste ‘convir’ articular o viver pessoal e comunitário pelo cultivo da memória de nosso Pai São Francisco e de sua experiência religiosa. Francisco foi amado e estudado ao longo dos séculos; a Conventualidade tem a capacidade de continuar a amá-lo e buscá-lo e a partir dele se posicionar criticamente diante das decadências essenciais e periféricas de hoje da América Latina.
Pelo Capítulo (Cf. abaixo, ‘O Capítulo, o momento da graça no discipulado’) e pelos outros encontros formais e informais que a Conventualidade proporciona como exercícios concretos de busca da ‘luz’ (o como) da inserção, a Conventualidade se propõe de ser ‘fórum’ de escuta, busca, análise, identificação e decisão acerca das situações desafiadoras e das posturas necessárias e oportunas que surgem desta ‘escuta’ da realidade, para nelas descobrir a ‘presença graciosa’ do Deus de Jesus Cristo e nelas atuar e frutificar como Reino dos Céus.
Como Missão e Evangelização (Cf. abaixo, V. Apostolado), a Conventualidade impulsiona a ter a coragem de se engajar e enfrentar o risco de assumir o carisma franciscano como vigor de transformação, comprometidos com o Reino do Céu que cria Novo Céu e Nova Terra; fazendo eco à experiência de São Francisco, a Conventualidade cultivou intensamente sua pertença à Igreja e a serviu até quando isso entrava em tensão com o estilo franciscano de viver; hoje o cultivo da pertença à Igreja está ao alcance do viver fraterno conventual, como referencial diante dos equívocos e desacertos sempre possíveis da inserção.
Na Conventualidade a formação (Cf. acima, os artigos da II parte) dinamiza o Carisma Franciscano como possibilidade assumida da existência humana no cultivo pessoal e comunitário da memória da experiência originária de São Francisco, buscando perpetuá-la.
Enfim, a Conventualidade habilita pelo estudo a buscar competência diante dos desafios, sempre tão diversos e tão iguais, das épocas e das culturas, mantendo nítida postura de seguidores de Jesus Cristo; a Conventualidade pode nos colocar com competência diante dos desafios sociais, econômicos, políticos e culturais de nossa época, se conseguirmos despertar em nós além da paixão pastoral, uma enorme afeição pelos estudos seja teológicos seja profanos, iluminados por uma nítida postura religiosa.