Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Glossário comentado – II

03/03/2021

 

Glossário comentado[1]

  1. Ars, Arte, artesanal; saber poder (Kunst, können)

[Kunst: Arte, (em latim ars, -tis, na acepção do artesanal); können: poder, saber poder].

O adjetivo artesanal diz respeito à habilidade ou ao hábito de uma classe de trabalhadores, denominados artesãos na confecção de um artefato. No pensamento medieval, essa habilidade, no entanto, não se referia, primordialmente, só à produção do objeto arte-fato. Pois, o artefato aqui não era propriamente um objeto fabricado, mas sim uma obra, em cuja elaboração, a própria humanidade do artesão, i.é, o ser do homem, se perfazia, vinha a se tornar cada vez mais ser. A obra não era outra coisa do que o vir à luz, o vir a uma determinada consumação desse perfazer-se do próprio ser humano do artesão. A habilidade do artesão em latim se diz ars, –tis. Trata-se, pois, da competência de um agir todo próprio, cujo modo de ser se caracteriza como um saber que está por dentro de e capta a dinâmica da possibilidade de ser, do poder ser. Esse saber no alemão é Kunst. Kunst vem do verbo können que significa saber poder. Na ars, na Kunst não se trata da potência de uma força natural, mas sim de uma possibilidade da concreção humana na habilitação do seu ser, conquistada a duras penas, a partir de um dom natural, e tornada uma sua segunda natureza, denominada virtude.[2] A tal saber poder se chega através do empenho de busca, no uso da inteligência e vontade, i. é, no exercício da liberdade, em contínuo e bem orientado exercício de aprendizagem. É dom de uma conquista, pois, o surgir, crescer e consumar-se na realização desse perfazer-se não é causado simplesmente pelo arbítrio de quem busca, mas salta da total disponibilidade de dar de si o melhor para acolher a possibilidade finita, bem determinada, concedida gratuitamente de antemão à pessoa, em busca; e de seguir a condução que lhe vem de encontro, do fundo dessa própria possibilidade. É desse encontro do empenho de total doação de si e do dom da possibilidade gratuita que salta a possibilidade do ser inteiramente novo como obra de uma criação, do perfazer-se de si, como obra da perfeição..

  1. Artesanal, Existência artesanal

O adjetivo artesanal indica o modo da ars.-tis, próprio do artesão, no seu agir e criar obra. Esse modo de ser, no entanto, era a manifestação do que constituía o modo de ser e se interpretar do homem medieval, na realização da sua humanidade, como gênese, crescimento e estruturação de um mundo, sob o toque de uma determinada possibilidade de ser. Uma tal abertura da possibilidade de ser se chama existência. Assim, o artesanal no medieval, não é apenas um atributo e qualificação de uma pessoa ou de grupo de pessoas, mas sim o modo de ser, que uma vez susbsumido pelo sentido do ser denominado Filiação divina, se tornou o característico próprio do ser medieval.

Essa existência artesanal subsumida pelo sentido do ser da Filiação divina, nos pode levar a crer que todo o pensamento medieval é unilateralmente teológico. Essa constatação é correta. Mas não no sentido de uma absolutização do teológico, entendido como um ponto de vista parcial, ao lado de outros pontos de vista. O teológico do medieval é antes uma pré-compreensão ontológica, i. é, o sentido do ser da existência medieval, o uni-verso da realização da realidade apriori, toda própria, cuja lógica do seu ser somente se torna acessível e necessária, se nos colocarmos no ponto de salto, a partir e dentro do qual se dá a aberta[3] da eclosão e manifestação do mundo medieval. Nesse sentido a Criação como Filiação divina é algo como condição da possibilidade de ser, agir, e sentir, portanto é o ser do ser-no-mundo medieval, e não um ponto de vista, um aspecto parcial.

  1. Conhecer, viver, ser (Intelligere, vivere, esse)

Nos sermões alemães, Eckhart fala do relacionamento entre os modos de ser, denominados p.ex. no sermão 8, de conhecer (intelligere), viver (viver) e ser (esse). Nessa relação é necessário distinguir ordo in abstracto (ordenação em abstrato) e ordo in concreto (ordenação em concreto).

  1. a) Ordo in abstrato:

Conhecer, viver e ser por serem considerados abstratos, estão no infinitivo. O infinitivo é modo do verbo, no qual se abstrai de suas diferenças modais, para deixar o verbo na sua generalização estática neutra. Verbo é dinâmica, ação. Mas no modo infinitivo a dinâmica da ação é achatada e fixada sob uma classificação generalizante neutra como modos de ser. Aqui o ser dos modos já está fixa num sentido do ser bem determinado, chamado algo como “acidente”, concomitante de uma “substância”, de uma ‘coisa’ subsistente em si. Assim temos: 1. a substância dos entes simplesmente ocorrentes ou não vivos (coisas materiais físicos, p. ex. pedra, metal etc.: = espécie ínfima substância que é também gênero para a espécie superior próxima vivente) e o seu modo: = ser (esse); 2. a substância dos entes vivos (coisas vegetais, p. ex. plantas: = espécie vivente e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próximo animal) e o seu modo: = viver (vivere) Aqui se inclui de algum modo a substância dos entes sensíveis (coisas animais, p. ex. gatos, pássaros = espécie animal e ao mesmo tempo gênero para espécie superior próximo homem) e o seu modo: = viver; 3. a substância dos entes racionais (coisas humanas, p. ex. homens, mulheres, crianças etc. = espécie supremo homem) e o seu modo: = conhecer. Nas três modalidades de ‘ser’ substância: substância 1. = coisal; substância 2.= viva; substância 3. = racional, o termo substância parece ser ‘analógico’ mas se bem examinado é ‘unívoco’, pois sem as diferenças específicas (adjetivos = não-viva; vivente, sensível, racional) não faz surgir diferença e se a diferença ali está como coisa material, vegetal, animal, e racional, subsume a diferença já de ante-mão como modalidades específicas referidas e acrescentadas à substância, entendida na realidade, tendo como o sentido do ser o esse (e não vivere, nem intelligere). Com outras palavras, por viver e conhecer estarem já focalizados a partir de uma prévia pré-compreensão do ‘ser’ (sentido do ser) como a do ser-simplesmente-ocorrente como ‘coisa-físico-material’, o verbo conhecer e viver aparece na neutralidade do infinitivo, como modos, acidentes, atos, certamente diferentes, mas da mesma compreensão da substância. Colocados assim o ser, viver e conhecer aparecem na sua diferença ôntica, mas não na sua diferença ontológica. As diferenças ônticas não são con-cretas, mas abstratas, enquanto são produtos de um enfoque generalizante e naturalizante. Aqui o ontológico é identificado com a compreensão geral, abstrata do ser lógico na sua formalidade neutra. Dentro dessa perspectiva o ser. o esse é primeiro, o básico, comum tanto ao viver como ao conhecer, pois primeiro se é necessário ser, para ser vivo, e racional. Quando, porém, ser, viver e conhecer (esse, vivere, intelligere) vem de encontro a nós como verbo na sua dinâmica própria total, no ser da sua dinâmica cada vez diferente, não como modalidades específicas de um gênero, ou individuais de uma espécie, comum e geral, mas como em sendo todo ele, ele mesmo, portanto no seu ‘ser’, na sua diferença ontológica, então essa dinâmica diferencial da sua identidade aparece na formulação: em conhecendo (intelligens), em vivendo (vivens) e em sendo (ens) e indica a totalidade na sua concreção, portanto é in concreto. Por isso diz Eckhardt: in abstrato, portanto, na ordenação dos modos de ser como esse, vivere e intelligere, esse é perfectius intra tria; vivere nobilius intelligere[4]. Ao passo que in concreto no grau supremo está o intelligens, segue o vivens e na localização a mais baixa está o ens. Repetindo o que já foi mencionado antes, como o fundo dessa dupla ordenação in abstracto e in concreto temos a paisagem da escalação dos entes em esfera ou região dos entes não-vivos (substância como espécie ínfima e gênero próximo ao vivente = mundo material-físico) = esse; região dos entes vivos ou viventes (vivente como espécie e gênero próximo para o animal = mundo vegetal <e animal>) = vivere; “região” dos entes racionais como espécie supremo homem, animal racional). Da espécie ínfima substância-coisa até a espécie suprema substância homem temos uma grande região dos entes chamados substâncias compostas. No homem se dá a passagem da dimensão das esferas dos entes-substâncias compostas para a dimensão das substâncias simples ou espirituais. E enquanto pertencente à dimensão das substâncias simples, embora pertença também à dimensão das substâncias compostas, o homem, o animal ou o ânimo racional no seu vigor essencial vem à presença como ratio, intellectus, spiritus, mens (intensidades da ratio como níveis de pureza da essencialidade = mundo espiritual) = intelligere. E nessa dimensão, a escalação da intensidade de ‘ser’, aqui qualificada como ‘espiritual’ se gradua em diferentes coros dos anjos até culminar na presença do ipsum esse, o ens a se[5], Deus. Mas o termo esse ou ser aqui nessa dimensão das substâncias simples não é o esse do sentido do ser da substância ínfima da dimensão das substâncias compostas, mas a plenitude da dinâmica do ser’ que é designada pelo termo conhecer, intelligere. Resumindo o que dissemos até agora: se tomo o sentido do ser-coisa como medida do ser, e o designo por termo esse, então esse vem por primeiro, é mais ‘excelente’ na sua consistência físico-material do que vivere e intelligere. Se porém entendermos intelligre, vivere e esse in concreto <intelligens, vivens, ens> como concreção do sentido do ser, não mais tendo como núcleo de referência a compreensão coisificada estática do esse, mas sim como a vigência essencial da presença concrescida, como a potencialização da intensidade diferenciada em níveis de dinâmica do ser como em sendo, então o em sendo o mais intenso, mais vasto, mais profundo e originário é a dimensão concreta intelligens, a saber a dimensão que não é mais nem gênero, nem espécie, nem indivíduo, mas sim, o sentido do ser vindo à presença como a dinâmica da liberdade que recebe então o nome de espírito ou dimensão espiritual = mundo humano e sua transcendência = mundo espiritual em direção ao mundo divino. Esse in concreto intelligens, vivens, ens é o que propriamente chamaríamos de ontológico, mas não mais como o conceito geral, formalmente o mais comum, abstraído das especificações e individuações diferenciais dentro do horizonte do sentido do ser dos entes coisas, mas sim como dimensões de totalidade da presença do sentido do ser; como intensidades da concentração na totalidade no uno: universal, a totalidade conversa ao uno: simplex.

  1. Criação e filiação

O sentido do ser dominante no pensamento medieval é expresso em termos como Criação, Criador e Criaturas: em resumo: ens creatum (ente criado). Essa categoria fundamental do pensamento medieval, no entanto, na sua tonância essêncial de fundo, diz: Filiação. Pois é fusão da pré-compreensão do ser da existência artesanal com a pré-compreensão da existência religioso-cristã, onde a última predomina e subsume aquela, transformando-a num sentido do ser todo próprio que se denomina: Filiação divina. Nesta, tudo que pode ser de alguma forma referido ao ente, inclusive o próprio nada é, apenas recepção da doação de comunhão com o Ser, denominado Deus, no qual reside a plenitude do ser, de tal modo que fora Dele não há ser, nem atual, nem possível, e isso tão radicalmente que ser propriamente só é Deus. Por isso o sentido do ser de Deus deve ser entendido, não a partir do sentido do ser de sejam quais forem entes, mas absoluta e exclusivamente a partir Dele mesmo. Por isso o ser de Deus é chamado em Eckhart de Abgeschiedenheit i. é, Desprendimento.

A esse modo de ser que precisamente não é mais modo, mas simplesmente ser, ou ser como plenitude ab-soluta, a Tradição do Cristianismo chamou de Deus, quaod se[6] ou vida interior ou vida íntima de Deus, formulada como Mistério da Santíssima Trindade. E os termos da compreensão dessa vida que é o próprio Deus ou o próprio seu, são o uno ou um e o três como pessoa (Pai-Filho-Espírito como dinâmica da gênese da vida divina, resumida nos termos geração e processão ou filiação). O apriori desse sentido do ser, ab-soluto, livre e solto em (in) e a partir de si (a se), portanto, do Desprendimento (Abgeschiedenheit) assume o sentido do ente no seu todo como o da existência artesanal medieval, e faz com que a própria compreensão da Criação e das criaturas, não mais opere a partir e dentro nem do ser da causação, nem do ser da criação artesanal, mas sim a partir e dentro da expansão, da difusão da dinâmica da geração da vida interna de Deus. Essa difusão da dinâmica da Filiação se expressa como o Mistério da Encarnação. A Causação e a Criação são no fundo como que repercussão da percussão inicial da Filiação divina, repercussão, na qual o tom fundamental está sempre ressonante, a se espraiar como eco longínquo da sua dinâmica. Todos os entes referidos à dinâmica da Causação e da Criação recebem a dinâmica da Filiação divina da intimidade da vida interna de Deus na ternura e no vigor da sua Abgeschiedenheit.

  1. Criação e panteísmo

O sentido do ser do mundo medieval se chama Filiação divina. Em sua estruturação ontológica, se dá a subsunção do ser da existência artesanal medieval pelo sentido do ser da dinâmica Filiação divina. Se evitarmos rigorosamente de entender os termos constitutivos dessa dinâmica como p. ex., pessoa, geração ou filiação e tudo que diz respeito à vida íntima de Deus, portanto à Abgeschiedenheit, a partir e dentro da compreensão que não venha a não ser dela mesma, e se tentarmos entender todas outras compreensões do ser, a partir da Abgeschiedenheit, então o fantasma do panteísmo se esvai. E aparece a sonoridade de fundo, a partir e dentro do qual devemos ouvir a toada universal da presença operativa, i. é, do wirken, do Werk e da Wirklicheit da bondade difusiva do Pai-Filho-Espírito em todos os entes, desde os mais sublimes até aos mais insignificantes, como imenso, profundo e originário abismo do encontro no Amor que nos amou e gerou primeiro.

A atuação de Deus, denominada Criação e considerada apenas, ou preferencialmente a partir e dentro do sentido do ser da existência artesanal tem o correlativo agente dessa ação que se denomina Deus Criador. Essa consideração, cuja perspectiva não leva em conta a subsunção e transformação desse ser da existência artesanal pelo sentido do ser da Filiação, denomina uma tal ação de atuação ad extra (para fora) de Deus, e aqui Deus é considerado quoad nos (referido a nós). Como o sentido do ser operante em uma tal Criação e correspondentemente em seu agente, a saber no Criador e no seu efeito Criatura é o sentido do ser do ente simplesmente dado como “coisa”, todo o cuidado a ser tomado é para que a aproximação e o contato Deus-Criatura não nos leve a um panteísmo. No momento em que se leva em conta que com a subsunção e transformação desse sentido do ser da existência artesanal através do sentido do ser da Filiação, tudo muda, de tal forma que aqui a possibilidade de um panteísmo só surge se não se guardar com precisão o sentido do ser operante nessa nova concepção de Deus – Abgeschiedenheit e na dinâmica da Filiação que de lá eflui. Na leitura dos sermões de Eckhart é necessário guardar a precisão da ambiguidade, onipresente nos seus textos, proveniente dessa subsunção “ontológica” realizada pelo sentido do ser da Abgeschiedenheit, do sentido do ser da Criação e da Causação.

  1. Deidade, Deus (Gottheit, Deitas, Gott)

[Gottheit: deitas (em latim), deidade]

Na consideração de Deus como Abgeschiedenheit, distinguimos Deus e Deidade. Portanto Divindade e Deidade. Divindade é a qualidade de ser Deus. Deidade é, porém, o ser de Deus, o próprio seu, digamos a sua “quinta essência”, ele, ele mesmo nele mesmo, na sua aseidade e inseidade, solto, desprendido de tudo que não é ele mesmo, pura e simplesmente, portanto Deus-Abgeschiedenheit.

Costumamos explicar essa duplicidade do conceito eckhartiano de Deus com o binômio: Deus quoad nos e quoad se, i. é, Deus referido a nós criaturas, e Deus, referido a si mesmo. Muitas vezes essa dupla referência é interpretada como o modo de conhecer de nós, criaturas, e o modo de conhecer de Deus, referidos a Deus ele mesmo. Nesse sentido a Deus quoad se nos é inacessível. Tudo que Dele podemos conhecer quoad nos, é o que Ele não é. Daí, Eckhart seria um dos grandes representantes da assim chamada teologia negativa. Outras vezes, a dupla referência é formulada como Deus virado para fora dele mesmo, na perspectiva do seu relacionar-se para com as suas obras ad extra; e Deus virado para dentro dele mesmo, na perspectiva do seu relacionar-se com a sua vida interior, com a sua intimidade ad intra. Tanto a primeira maneira de considerar a questão como a segunda, no fundo, parece não fazer jus à “idéia” da Abgeschiedenheit. Pois ambas operam com a pré-ocupação da adequação com o objeto do conhecimento, cujo sentido do ser é a da coisalidade física e de sua adequação. Talvez o inter-esse de Eckhart não está primeira e acentuadamente nas questões da teoria do conhecimento de Deus, mas sim da experiência de identificação com o ser de Deus, i. é, da Abgeschiedenheit no mistério da Filiação divina. Trata-se portanto não propriamente de conhecimento de um objeto chamado Deus, mas sim do conascimento de Deus na alma e da alma em Deus, dito de outro modo, do toque de Deus na união de encontro Dele conosco, e assim da realidade do conascimento com o Filho unigênito do Pai, na recepção da sua Filiação. E isto de tal maneira que esse interesse não é propriamente o aspecto místico-moral-espiritual do ensinamento de Eckhart, místico e pastoralista, em diferenciação ao aspecto especulativo-teórico de Eckhat teólogo e filósofo, mas sim, a fonte e a plenitude dentro da qual ele se acha, portanto, é a dimensão do seu ser, saber, querer, sentir enquanto realização da realidade chamada mundo da Revelação cristã. Isto significa que para entendermos bem, de que se trata quando se distingue Deus e Deidade, é necessário aprofundar a compreensão da Abgeschiedenheit enquanto a dinâmica do Mistério da Santíssima Trindade. Esse aprofundamento, porém, não pode ficar no nível de classificação da Revelação cristã como o ponto de vista subjetivo particular religioso, ascético-moral, ou místico-espiritualista ao lado de outros pontos de vista, como p.ex. filosófico,[7] mas deve levar em conta o ser, o sentido do ser, a essência da existência cristã, a partir e dentro da qual fala Eckhart, i. é, considerar o ser da Revelação cristã como o ontologicum[8] da fala de Eckhart.

  1. Deidade. A absoluta liberdade de a plenitude ser

Para Eckhart, o ser, desprendido, solto, na sua ab-soluta liberdade, é direta e imediatamente a Plenitude simplesmente. A expressão medieval: Deus est ipsum esse[9] diz o ser como Plenitude e quer acenar para o sentido da definição dada por próprio Deus a Moisés na sarça ardente: Sou quem sou.[10] Trata-se da absoluta plenitude de ser, na vigência da total soltura da liberdade na inesgotável e insondável abismo da sua gratuidade, como que a tinir na superabundância da sua identidade difusiva. Por isso, se transborda como movimento da dinâmica interna, a partir e para dentro da sua, a mais abissal intimidade como vida trinitária. E então a partir dessa erupção trinitária, através do Filho que se encarna e é Jesus Cristo, se difunde como cuidado e disponibilidade da presença generosa da sua doação cordial, gerando e sustentando toda a Criação, na presença do seu amor. Por isso o Deus da Abgeschiedenheit jamais é um ente supremo na exclusividade da alteridade, isolado e ensimesmado na preciosidade da sua transcendência neutra, meta-física. Um deus assim, exclusivo e isolado um (nº 1), seria apenas um ente gigantesco a modo do “ser-coisa”, jamais um Deus vivo. Na interpretação do Deus da Abgeschiedenheit podem surgir duas modalidades que não fazem jus ao que nos dizem os sermões alemães de Eckhart acerca do Deus-Desprendimento. Uma é entender a Abgeschiedenheit como uma radical acentuação da alteridade de Deus, para evitar o panteísmo, de tal sorte que dessa radicalização pode se chegar por fim à conclusão de que de Deus nada podemos saber. Eckhart seria nesse caso um agnóstico! A outra é entender a Abgeschiedeneheit como a incondicional afirmação de que Deus é ab-soluto, solto, ele mesmo como o ente supremo e transcendente, na posse exclusiva do ser. Assim fora dele não há propriamente nenhum ser, a não ser nada, de tal sorte que se algo é, esse algo é prolongamento-pedaço ou parte, é modalidade, é manifestação do próprio Deus. Eckhart seria nesse caso um panteísta. É de grande importância para uma compreensão mais própria dos sermões alemães de Eckhart, observar que essas duas tendências de interpretação, operam a partir e dentro do horizonte de um sentido do ser, inteiramente inadequado para compreender a dimensão a partir e dentro da qual, os sermões estão falando. Sem podermos entrar mais em detalhes nessa questão do sentido do ser, assinalemos apenas que as interpretações acima mencionadas e similares, entendem por ser entidade e entificação a partir e dentro do sentido do ser da coisalidade físico-material, quantitativo. A suspeita do panteísmo e do agnosoticismo no fundo vem, não tanto do que Eckhart diz, mas sim do ser da coisalidade fisico-material, quantitativo projetado para dentro e sobre o ser de uma fala, cuja tonância e ressonância é de origem e pertença inteiramente diferentes. O cuidado do pensamento medieval atuante na mística de alguém como Eckhart, que aparece de um lado como preocupação de distanciar Deus das criaturas e ao mesmo tempo por outro lado, de impregnar as criaturas com a presença real de Deus não era o receio do panteísmo nem preocupações “epistemológicas” da teoria de conhecimento acerca de Deus, mas sim de abordar com finura e fidelidade Deus e as criaturas a partir e dentro do sentido do ser, cuja dominância e sonoridade fundamental é da Minne.

Deus de Eckhart, cuja deidade se chama vida trinitária é Vida no seu sentido o mais pleno, e é denominado por Eckhart de Minne. Portanto, para Eckhart ser é plenitude da vida e Vida plena é Minne.

  1. Desprendimento, desprendido (Abgeschiedenheit, abgeschieden)

[Abgeschiedenheit: desprendimento, retraimento, aseidade; abgeschieden: desprendido, livre solto, à vontade no próprio seu].

Ab-geschieden-heit vem do verbo abscheiden. Este é composto de ab que significa de (ab, em latim; ἀπό, em grego), afastando-se de; e scheiden, separar, cujo particípio passivo é geschieden, separado de. Daí: Ab-geschieden + heit. E -heit é um sufixo para indicar a formalidade abstrato-essencial. Abschied é despedida, i. é, deixar ser a remissão de cada coisa na unicidade da sua identidade. A tradução portuguesa de Abgeschiedenheit ficou desprendimento, acentuando a conotação de não estar preso a nada, a não ser a si mesmo; livre e solto, na ab-soluta identidade diferencial de si, a partir e em si, portanto na aseidade e inseidade da plena satisfação e fruição de si mesmo. Essa mesmidade se chama para Eckhart Deus, uno e trino. Deus é pura e limpidamente ele mesmo, separado de tudo quanto não é ele mesmo. Uma separação de tudo quanto não é si mesmo, a in-sistência na ab-soluta identidade para dentro do abismo da solidão de si mesmo é a separação, cuja despedida (Abschied) remete a Deus, à unicidade decisiva de si mesmo, livre da contração a si, como diferença do e contra outro. É unicidade solta, à vontade como identidade como tudo, na união com outro, na intimidade abissal de identificação com todos os entes no encontro. Essa unicidade da liberdade, fonte donde salta o ser com e o ser do e para outro recebe no pensamento do cristianismo medieval o nome de pessoa, e perfaz o núcleo da dinâmica do mistério da Santíssima Trindade, um Deus em três pessoas, Pai Filho e Espírito Santo. A dinâmica do relacionamento Pai-Filho-Espírito Santo como absoluta soltura da liberdade do mesmo, como Abgeschiedenheit se chama geração e processão ou geração, da qual surge o relacionamento de Deus com os seres humanos como o da geração ou melhor Filiação divina, de tal sorte que a criatura-homem é filho de Deus no Filho Unigênito do Pai, no Espírito Santo. E então através do homem, tudo que é e não é, tudo que pode ser, tudo quanto possa surgir dentro de um determinado possível sentido do ser, portanto a imensidão, profundidade e vitalidade criativa do abismo da possibilidade de ser se torna também recepção da Filiação divina, de tal sorte que Criação, o seu Universo no seu ser, repercute em mil e mil modulações e variações o tonus e a tonância do sentido de ser da Filiação divina. Nesse sentido ser humano é abgeschieden, ele mesmo, na finitude, i. é, bem concreto e definido da sua singularidade única, ab-soluta e livre, pessoa como cada um, filho único e singular na intimidade do ser com e do ser para do Deus Uno e trino. E todos os entes do universo não-humano recebem o ser e o sentido do seu ser, a partir e dentro da sonoridade da Filiação divina, como caixa de ressonância na recepção da mesmidade dessa imensa sinfonia do encontro do amor de Deus. Essa visão de Deus, o único ser simpliciter, e a pregnância da sua presença como Universo-Criação no fluxo da dinâmica da Filiação divina, fazem duplicar o conceito de Deus em: Deus e Deitas, Deus e Deidade, que na Tradição teológica medieval, recebeu a formulação: Deus, quoad nos e Deus, quoad se.

  1. Desprendimento, renúncia, desapego

Traduzir Abgeschiedenheit por Desprendimento pode nos levar a entender desprendimento na acepção de renúncia, desapego e abnegação. Como usualmente esses termos são ouvidos na acepção ascético-moral, o desprendimento, principalmente quando aplicado às criaturas, pode ser também interpretado a partir e dentro do sentido ascético-moral. Em Eckhart Desprendimento diz a essência, o ser de Deus, portanto, tem um sentido ontológico. Não se trata aqui, nem em Deus nem na criatura, de renúncia, desapego e abnegação como privar-se de algo, carecer, mas sim da plenitude do ser da liberdade, da plena soltura de ser. A partir e na dimensão dessa plenitude livre de ser é que deveríamos tentar interpretar as categorias ascético-morais de termos como renúncia, abnegação, desapego, limite, finitude, como possibilidade livre da disposição de ser, onde não há a ideia de privação como falta, lacuna, como vazio, mas há simplesmente plenitude concreta, bem determinada. É a limpidez da nitidez pura, livre e “despojada” de tudo que não é ela mesma.

  1. Imagem, figura, forma (Bild, bilden)

[Bild: imagem, figura, forma]

Nos sermões alemães de Eckhart ocorrem frequentes vezes a palavra Bild e bilden nos seus variantes abbilden e erbilden.

Bild significa quadro, imagem, figura, configuração, forma. E bilden, configurar, formar imagem, figura, tomar forma. Abbilden, copiar, erbilden, reproduzir a si mesmo, configurando-se a partir do seu próprio originário. Esses termos todos, no entanto, devem ser entendidos na tonância do sentido do ser a partir e dentro da criatividade da existência artesanal, mas subsumida pelo sentido do ser da Filiação divina. Como tais devem ser sempre considerados, não como configuração que fixa e encaixa, como fôrma que delimita a modo de cerca, encaixe, moldura, mas sim como plenitude da dinâmica do crescimento, como pique, auge de um empenho, como o concreto, i. é, concrescido, remate de um agir que toma corpo como uma obra. E em todo esse nascer, crescer e se consumar de uma obra, esta aparece como vir à fala do próprio criador da obra como seu prolongamento, sua reduplicação, como o seu perfazer-se. Não se trata, pois, nem da figura, nem da configuração de uma coisa, nem de si como retrato externo, mas sim da sua ‘cria’, da sua reprodução, seu fruto; e isso muito mais e de modo qualitativamente mais rico e único, quando se trata de Filiação, de geração.

  1. Intelecto, Razão, conhecer, conhecimento (Vernünfticheit (=Vernunft), Verstandnisse (das Erkennen), Intellekt, Erkenntnis)

Todos esses termos em Eckhart se orientam para a estruturação da Filiação e a dinâmica da sua difusão no mistério da Encarnação, na qual o homem enquanto filho no Filho se torna a aberta, a clareira na e através da qual, todos os entes do universo na sua ordenação co-participam do destinar-se da humanidade, como diferentes modulações e repercussões da Vida divina no universo. Vernünticheit, Vernunft, se refere ao ser do homem, enquanto dynamis, potência de recepção (vernhemen) dessa sorte de ser-com e ser-para a liberdade da Deidade e ser como que pura passagem dessa gratuidade jovial da criatividade da Deidade, que se espraia por sobre toda a Criação. É dentro dessa perspectiva que todos esses termos indicativos da faculdade de conhecimento, do intelecto querem ser entendidos.

Traduzimos as palavras Vernünfticheit, Vernunft (que vem de vernehmen) e que no latim corresponde a mens, por Intelecto e Verstandnisse que foi vertido várias vezes em alemão moderno como (das) Erkennen, Erkenntnis, Vernunft por o conhecer, conhecimento, e também intelecto. O uso das palavras mens, intellectus eratio, no pensamento medieval não corresponde sem mais ao uso que fazemos das palavras intelecto, intelectual e razão, racional… Para nós hoje esses termos são praticamente sinônimos, um ao lado do outro. Ao passo que no pensamento medieval mens indica o que é o mais próprio do homem, o ápice do ser do homem, onde se dá o toque de contacto com deidade. Cfr. intinerarium mentis in Deum de São Boaventura. Intellectus e ratio devem ser então entendidos a partir da mens como uma presença de variação da ‘intensidade’ de ser mens como ser do homem, na sua participação do ser de Deus. Hoje, em português intelecto, mental não possui mais o vigor originário do latim mens, pois no uso atual conota algo como alienado, subjetivo, irreal. Assim, na nossa tradução, conforme o contexto, para Vernünticheit, Vernunft, Verstadnisse usamos intelecto (intelectual), e conhecer, conhecimento, deixando aberta a necessidade de cada vez, examinar o que intelecto ou intelectual, conhecer e conhecimento quer assinalar.

É também dentro dessa perspectiva que o seguinte glossário comentado quer se colocar.

Intelecto, razão, entendimento, o conhecer e o conhecimento não se referem primeiramente à faculdade do sujeito homem e seus atos correspondentes. Por isso, não devemos entender esses termos em Eckhart a partir do que comumente entendemos por esses termos no nosso uso cotidiano, mas antes entender a nossa compreensão usual do que seja intelecto e conhecimento, a partir e dentro do que conotam esses termos dentro da perspectiva do sentido do ser do pensamento eckhartiano. Para isso é necessário primeiro explicar que aqui nesse glossário, quando usamos a expressão, sentido do ser, não estamos falando da significação do ser, conceito do ser, adequação do nosso saber ao objeto, representação dentro de nós, a saber, na nossa mente, do objeto, diante, ao redor, fora de nós. O ser entendido como verbo, dinamicamente, sugere de imediato e originariamente viger, viver, animar-se, perfazer-se, surgir-crescer-consumar-se, liberar-se, desprender-se, soltar-se nasciva, espontânea e livremente no que é o seu próprio. E isto apesar de no nosso cotidiano, domine o uso do verbo ser, na significação de estar ali como algo ocorrente diante de mim à mão, ali parado, estático, à disposição do uso, ou como objeto-bloco permanente em si, do qual tenho da minha parte subjetiva impressões, sensações, representações etc. A dinâmica da espontaneidade da liberdade do próprio de si mesmo, portanto, o ser é expresso também por a presença, o vir à fala, o vir à luz, o manifestar-se. Trata-se, pois de um movimento, no qual há e do qual vem uma condução, um ductus, um fio condutor, qual subtil tração do sabor e gosto, da graça e beleza, portanto do fascínio da coisa ela mesma, ou melhor, da causa da propriedade de ser. Esse ductus que nos toca, vindo de e nos induzindo para a dinâmica do ser, se chama sentido do ser.

A essência do homem, no pensamento medieval é definida como animal racional (homo est animal rationale). Essa definição é tradução latina da determinação do ser do homem que nos gregos soava: τὸ ζόων λόγον ἔχον (vivente ou ânimo atinente a lógos, i. é, à colheita do sentido do ser). Essa acepção originariamente grega do ser do homem, como acolhida do ductus que o toca, vindo de e o induzindo para a dinâmica da manifestação do ser, silenciada na sua tradução latina animale rationale vem à fala, quando o medieval dentro da esfera da ordenação do ser que representa a dimensão humana, distingue e escalona o modo de ser da diferença específica do homem como ratio, intellectus, spiritus, e como que se adentrando para dentro do ser de Deus, mens. Nessa escalação quanto mais o homem se torna ele mesmo, como filho de Deus, tanto mais se torna in-sistência receptiva, i.é, a pura, límpida e simplesmente recepção livre e grata da doação da Abgeschiedenheit, i. é, da soltura livre do Um da igualdade na Filiação divinaEssa ab-soluta receptibilidade, o ser puro nada do desprendimento na correspondência ao ab-soluto Desprendimento da pura doação da Deidade recebe nos sermões alemães de Eckhart o nome de Vernünfticheit, Vernunft, no qual está o verbo vernhemen que conota as signficações de receber, aperceber, acolher, colher, captar. Receber em alemão se diz empfangen, mas empfangen, significa também conceber, e Empfängnis significa conceição ou concepção. E a palavra conceito tem a ver com concepção. Isto significa: tudo isso que pensamos ser uma ‘imagem’, uma representação, ou ‘idéia’ reprodutiva do objeto real, dentro da ‘cabeça’ do sujeito-homem, e nesse sentido também o conhecimento, e o conhecer como ato do homem, colocado como sujeito e agente da faculdade chamada razão, intelecto ou mente, se o intuirmos a partir e dentro da dinâmica da sua gênese, i. é, antes de se ter fixado e encaixado dentro do sentido do ser entificante da coisalidade físico-material, nos acenam para uma referência direta à essência, ou ao ser do homem, a partir e dentro do ontologicum “Filiação divina”, no qual, recebe a possibilidade de ser filho de Deus no Filho Unigênito do Pai, caracterizado na dinâmica da vida íntima trinitária como Intelecto.

Assim considerados, termos como intelecto, intelectual, razão, racional, mente, mental, em Eckhart, não devem ser entendidas primeiramente como designações de uma das faculdades do sujeito-homem, chamada intelecto, razão, mente em diferenciação com vontade e sentimento. Indicam antes o grau de intensidade e qualificação do ser-homem enquanto este é existência humana. Assim intelecto ou razão não exclui, mas inclui vontade, sentimento e inteligência num grau de intensidade e qualificação, o mais excelente do ser da existência-humana.

  1. Intelecto, vontade, coração, problema da prioridade

Nos manuais da História da Filosofia Medieval há controvérsia sobre a prioridade entre as três faculdades da alma, na realização do contacto do homem com Deus. Há ali diferença entre a escola tomista (prioridade do Intelecto) e a escola franciscana boaventuriana (prioridade do sentimento-coração) e escotista (prioridade da vontade). Pelos textos dos sermões alemães de Eckhart, no entanto, se torna um tanto questionável se esse tipo de abordagem das “questões medievais” a partir de uma tal classificação, faz jus ao ‘inter-esse’ e a busca toda própria de Mestre Eckhart. Pois uma tal classificação parte da pressuposição de que intelecto, vontade e coração significam simplesmente as faculdades do homem de conhecer, querer e sentir, seja na acepção psicológica, seja na ‘gnoseológica’, mormente quando se fala do intelecto ou conhecimento. Aqui em Eckhart, os termos como intelecto (Vernunft, Vernünfticheit), razão (Verstand), intelectual, racional, conhecer, conhecimento, indicam primeira e principalmente o ser-recepção da Filiação divina na identificação com o Filho: conhecer é conascer filho no e com o Filho Unigênito do Pai. Portanto aqui receber é ser. Nesse ser há infinitamente mais ação, mais “vontade”, mais “amor” e mais “intimidade” do que um conhecer, um saber ‘epistemológico” que é um captar representativo de uma realidade, sem participar no seu ser, ou um ‘amar’ psicológico que é uma espécie de ação pela qual eu seguindo uma representação minha da realidade (aqui Deus) entro para dentro dessa ‘realidade’ digamos virtual segundo a minha imagem e semelhança. Uma tal operar e um tal devir, provavelmente para Eckhart é como operar e devir de madeira ensopada na água que ao ser atingida pelo fogo da divina paixão, se satisfaz com fumaças e vapores levantados pela rejeição do fogo, por não ser igual ao fogo (cf. Sermão).

Eckhart p.ex. no sermão 26, fala do Intelecto como a mais alta realização das forças pertencentes à parte suprema da alma, a saber, vontade e intelcto. Vontade e intelecto (vernünfticheit), como forças efluentes da parte suprema da alma, não têm muito a ver com a nossa maneira usual psicológico-antropológica de entender vontade e intelecto. Por isso, nadiscussão tomistas versus escotistas (intelecto versus vontade), tomistas versus boaventurianos (cabeça versus coração) como nós muitas vezes abordamos numa compreensão superficial a questão, possui um nível de penetração da questão pouco adequado. Em Eckhart é necessário sempre de novo observar que a questão de intelecto e vontade diz respeito à suprema parte da alma, à centelha, à luz divina na sua “estruturação” interna. Como os termos como razão, intelecto para nós hodiernos já estão contaminados pela compreensão usual psico-antropológica, traduzir a vernünfticheit ou mesmo vernunft é difícil. No latim haveria o termo mens (cf. itinerarium mentis in Deum de S. Boaventura) para indicar o intelecto enquanto força que emana da centelha, como a força ‘superior’ na estruturação interna da dinâmica da própria centelha. Mas em português mente e mental implica no mesmo problema da perda do sentido mais vigorosamente especulativo desses termos. Na orientação dessa questão da prioridade entre intelecto >< vontade, é necessário com precisão guardar a diferença de acuidade de observação que a reflexão especulativa de Eckhart mantém, quando fala do relacionamento de intelecto e vontade como de momentos constitutivos estruturais da centelha, portanto quando fala de intelecto e vontade e de seu relacionamento mútuo, referidos à face superior da alma; e quando fala do relacionamento de intelecto e vontade e de seu relacionamento mútuo, referidos à face inferior da alma. Se agora tomo o termo intelecto referido à face inferior da alma que olha um tanto para baixo e dirige os sentidos e identifico sem mais com intelecto referido à face superior da alma que contempla todo o tempo a Deus, e ainda por cima dessa generalização neutra dos termos, introduzo a questão do relacionamento intelecto versus vontade ou sentimento, de nível dos problemas psico-antropológicos, então se torna muito difícil entender a Eckhardt quando ele fala de prioridade do intelecto sobre a vontade.

  1. Minne (Charitas, Dilectio, ἀγάπη) [Caridade, amor]

Seguindo a grande Tradição cristã, Eckhart define a essência., o âmago visceral de Deus, a deidade, como amor (Jo… ). Ο termo usado no alemão medieval de Eckhart para Liebe (amor) é Minne. A palavra Minne possui parentesco com grego μένος (= sentido), μιμνέσκειν(recordar-se), com latim memini (lembrar-se), mens (mente), monere (admoestar). A raiz indogermânica men que está em todas essas palavras significa pensar.Pensar, aqui, é estar suspenso, solto-disposto na espera, de vivo coração. Nessa acepção do termo pensar como a liberdade de disposição da cordial jovialidade, Minne conota o ter presente viva e amorosamente na mente[11], sem cessar, recordar, i. é, avivar de novo no e do âmago do ser a cordialidade amorosa. Ceia íntima, recordando e comemorando um encontro amoroso se diz em alemão Minne trinken (beber a Minne).[12] Originariamente, Minne designava amor misericordioso, de diligente cuidado, i. é, o amor de predileção e benevolência interpessoal de tu para tu. Assim Minne era uma palavra boa para indicar a intimidade do nobre enamoramento em total doação ardente de corpo e alma no encontro entre Homem e Mulher: o amor esponsal. E dali Minne começou a ser usada na “mística” dos cavaleiros medievais do século12/13, para indicar o protótipo da paixão nobre de dedicação no amor de um cavaleiro para com a mulher amada, a sua dama. Era o mais intenso móvel de busca para um cavaleiro medieval a incentivá-lo a realizar atos heróicos a serviço e para a honra da sua senhora, a quem doava a vida e o ser como à sua Rainha e Senhora.[13] A partir dessa acepção cavalheiresca do amor, a palavra Minne entra no uso da Mística medieval cristã, numa acepção ainda mais radicalizada de doação, nobreza, intimidade e paixão e finura como Gottesminne[14] e se tornou a tonância de fundo da assim chamada Brautmystik (a mística esponsal).[15]

  1. Minne como ato puro: [16]o ontologium[17] do mundo medieval

A grande dificuldade de entender o próprio de Deus em Eckhart como Abgeschiedenheit e isso como Minne é ater-se limpidamente na evidência de que Minne não é isto ou aquilo, não é nem atividade de uma faculdade chamada vontade, intelecto ou sentimento, mas ser, tout court, como tal, simplesmente ato puro, cuja vigência dá, mantem e consuma o sentido do ser de todo e qualquer ente, possível e atual. Com outras palavras Minne é a presença de pura e límpida atuação da livre doação de si, como condição da possibilidade de ente ser. Minne é, pois, o ontologicum do ente na sua totalidade. O que significa, porém, mais em detalhes: Minne é como ato puro, como a plenitude de ser, o ontologicum do ente na sua totalidade? A presença da pura e límpida doação total da Minne no todo, na totalidade do ente, do que é e pode ser, atua como imensidão, como profundidade, e como origineariedade. Como imensidão Minne abraça e assume todos os entes, desde os supremos até aos ínfimos, não deixando de fora nenhum ente, nem sequer o próprio nada. É a largueza da generosidade. Como profundidade, atravessa e impregna de cima a baixo todas as dimensões e ordenações do ente, de tal sorte que desce do céu até ao inferno, subsume, suporta, faz seus todos os altos e todos os abismos, todas as positividades e todas as negatividades do ente, penetra nos seus mais obscuros e ocultos recantos da maldade, para ali buscar por mínimos que sejam vestígios de igualdade com o seu ser-Minne, nos fundos de mais variegados níveis da intensidade de ser. Como originariedade, Minne é como que o in-stante do ponto de salto de todo o ente, i. é, de cada ente, cada vez na novidade da primeira e última chance da possibilidade da acolhida do ser, se oferecendo sempre nova e de novo, como fonte, livre e solta na gratuidade da geração do ente, fazendo-o sua cria, seu filho, como a refundação de si, sem mais nem menos, na igualdade de condição.

Tal sentido do ser, viva e livre, não pode mais ser percebido a partir e dentro do sentido do ser atuante no uso corrente das palavras como ser (ocorrência), energia, impulso, força, vigor, vida, vitalidade, ânimo, espírito, ou melhor, não pode ser nem dito, nem pensado nem percebido por nada que de algum modo atribuímos ao ente. Mas precisamente, para dizer que não pode ser dito, pensado e percebido pelo sentido do ser no qual estamos em uso, Eckhart emprega palavras como Minne, deitas, Abgeschiedenheit. Daí, ele é considerado como representante típico da assim chamada teologia negativa.

  1. Minne e a teologia negativa

O Desprendimento (Abgeschiedenheit) afirma a identidade de Deus (Uno e Trino) como a ab-soluta Plenitude de ser, de tal modo absoluto que fora dele não há nenhum ente atual e possível a que se possa atribuir com propriedade a possibilidade de ser. Deus é Tudo, e o resto é nada, tão na da que só há Deus. Disto se tira conclusão: tudo que se sabe, se pode, se tem, se é Dele, não é ele, e por conseguinte, Dele nada sabemos a não ser que se sabe que Dele nada se sabe, se pode, se tem e se é, a não ser o que ele não é. E como ele é a absoluta plenitude do ser, o nosso saber, poder, querer, ter e ser é nada. Nesse caso, essa compreensão negativa de Deus é o apriori ab-soluto, a partir e dentro do qual toda a nossa referência a Deus recebe o seu sentido.

Talvez aqui, deixamos escapara importância decisiva da diferença desse nada ‘medieval’ em referência ao nosso nada usual . Este, como o costumamos entender, não nos conduz a mais nada, nem a si no que ele oculta. Pois, marca passo na reedição inócua de um ‘vazio’ prefixado como frustrada lacuna de privação do ser, cujo sentido do ser já está também prefixado como algo formal. Talvez esse nada nosso, usual deve ser libertado dessa prefixação do sentido do ser do algo formal, de tal sorte que nada, não mais ou nem sequer, seja representado como ausência de algo, para que se desprenda, solte, se livre o que se oculta no seu bojo. Na realização da realidade, para Eckhart, nada não é nada da negação lógica de algo lógico formal, não é nada de objetivo do ato do conhecer subjetivo da existência lógico-trascendental, mas recepção viva, na plena disposição da graça do toque da liberdade desprendida, a modo da plenitude do ser da Liberdade-Minne. Assim esse nada ‘medieval’ eckhartiano diz bem, em alto som: Dele nada sabemos, nada podemos, nada temos e somos, a não ser Ele mesmo, a saber, a Plenitude, solta, desprendida, na ab-soluta gratuidade da sua Liberdade. Isto equivale a dizer: a Plenitude de ser, o Ser é Minne na sua acepção a mais ab-soluta da doação de si no ‘ato puro’, i. é, na gratuidade da sua difusão. É por não encontrarmos uma palavra adequada que dissesse de uma vez esse ‘modo de ser’ todo próprio que não é nenhum modo, mas o próprio ser, simplesmente, usamos várias palavras como Ser, Deus, Desprendimento, Amor, Liberdade, Minne, Encontro, Pessoa. Só que essa tentativa de ‘dizer e entender’, não seria fazer um ato do sujeito conhecedor, ao lado e juntamente com ato de vontade e de coração-sentimento, mas – sem ou com todas as inumeráveis notificações que possuímos sobre o Homem, já estabelecidas como sujeito e suas faculdades mentais, volitivas e sentimentais  – des-prendidos, i. é, soltos, de ‘corpo e alma’, ser o que somos na nascividade, a ab-soluta recepção grata da sorte, do destinar-se, da História, do Evento denominado por Eckhart nascimento do Filho na alma e da alma no Filho, a partir e dentro de cuja Filiação, somos, existência humana e nela, todos os entes não-humanos, filhos no Filho Unigênito do Pai. Tal recepção é ser na igualdade Dele com Ele: é o Um na Liberdade, na ‘Gottesminne’. Esse ser de corpo e alma a absoluta, desprendida recepção da Filiação é como repercussão de um toque, é como cintilar de uma faísca[18], é o in-stante, o ‘piscar’ de olhos da mira no encontro do Pai no Filho e Filho no Pai. Ser continuamente, sempre de novo esse cintilar é a Existência cristã, não no sentido confessional ou religioso, mas sim no sentido do ser desprendido no Desprendimento da Deidade. Nessa existência Ser e Pensar, Ser e Querer, Ser e Amar, é o mesmo. E essa mesmidade é algo como a pura e límpida transparência da disposição grata e obediente da liberdade de ser como Deus na recepção. Essa transparência da recepção na Filiação é o Intelecto, o Conhecimento, o Conascimento. A expressão teologia negativa não seria a pura positividade de tal conhecimento, em sendo, a especulação mística?

  1. Nada (Nichts)

[Nichts: nada, o não ser, a privação, a finitude]

Dizemos que nada é privação do ser. Como tal, nada nem sequer é oposto ao ser. Não há simplesmente. Talvez, ens rationis, ente lógico, se é que não é “fantasma da mente”. Se no pensamento medieval, Deus é o ser propriamente dito, todo o ser, o ser em plenitude, e assim, fora de Deus nada é ou é nada, pode haver no pensamento medieval algo que não seja Deus? Não ser Deus significa, portanto, não ser? E se atribuímos aos “algos” que não são Deus o “qualificativo” de ente ou ser, Deus não pode ser algo no sentido da entidade num tal modo. Assim, Deus não é ente, pois o ser de Deus tem sentido do ser totalmente diferente ao da entidade algo. Em Deus não sendo, i. é, não ente, podemos dizer que Deus é nada. Numa tal sequência de raciocínio que dá voltas a partir e dentro de um sentido do ser abstrato lógico, de imediato se percebe que nada assim empostado não faz jus à causa ela mesma da fala do nada, dentro do pensamento medieval. Para que aqui, de alguma forma, poder mover-nos com maior aderência ao pensamento medieval, é necessário colocar a fala acerca do nada, na ambiência do início da Criação. Ali, se diz: Deus criou o universo, ex nihilo sui et subiecti (do nada de si e do substrato prejacente). Essa niilidade não se refere, portanto, ao ente prejacente “objetivo”, nem ente préviamente “existente” enquanto ente sujeito e agente de uma ação eficiente, na pçrodução artesanal de confecção de uma obra a partir de uma dada matéria em vista de um determinado fim (portanto, causa eficiente, final, material e formal), mas sim, diz respeito a quê? Podemos dizer: da niilidade do Desprendimento, da Abgeschiedenheit? Com outras palavras: a Criação não é outra coisa do que (cfr. Nicolau de Cues, o non aliud), o vir à fala do Deus da Abgeschiedenheit, desprendido, ab-soluto, no que há de mais próprio dele mesmo: a pura liberdade da Gratuidade, a Cordialidade, tomando corpo no mistério da Encarnação. Criação é a bela graça do esplendor do Corpo de Deus: Pai, Filho Unigênito, no Espírito Santo, na sua unicidade absoluta, feito Homem, em Jesus Cristo, e o Homem, com toda a sua circunstância, feito filho no Filho, na Liberdade dos filhos de Deus. Se isto for de alguma forma viável na interpretação do mundo medieval, então o nada não é privação do ser, não é a possibilidade de não contradição do ser do lógico-matemático-formal, mas sim a presença entranhada da dinâmica intra-trinitária, a vida íntima da Deidade, como cintilações (scintilla) da sua benignidade, na Filiação divina, como o mistério da Encarnação. Nada então pode significar de um lado a liberdade, o desprendimento, a soltura ab-soluta do sim da doação cordial da deidade, de si mesma na jovialidade decidida da sua liberdade, o deixar-ser, o estar à vontade da sua gratuidade. E o ente criado, é também nada, não enquanto privação ou negação da entidade, mas é o em sendo concreto, de-finido, portanto bem decidido da grata receptividade, portanto também desprendida, solta, ab-soluta, partícipe, prenhe da gratuidade desse Deus, cujo ser, cuja Deidade se chama o Um, o “Uno” desprendido da dinâmica da “geração e processão” trinitária.

Quando se esquece de que no pensamento medieval da Criação, tudo que a ela se refere, em parte e em todo, foi subsumido pelo ontologicum da Filiação divina, na dinâmica da vida intratrinitária, e que o “horizonte” a partir e dentro do qual pronuncia a fala medieval, se dá a queda de nível na manutenção da limpidez dimensional de interpretação, e surgem problemas como o do panteísmo, dualismo, maniqueismo, do realismo, conceptualismo, idealismo da teoria de conhecimento, projetados para dentro do pensamento medieval, todos eles de alguma forma provenientes da dominação operativa de um determinado sentido do ser, talvez até certo ponto adequado para explicitação do “mundo” de entidades do tipo físico-material, mas insuficiente para o aclaramento da realidade viva, no vigor e na ternura da liberdade.

O medieval denominava, ao falar da Criação, de matéria prima, o nada que no horizonte do ser da Criação subsumido pelo ontologicum da Filiação divina, é expressa na formulação ex nihilo sui et subiecti que por sua vez foi chamado de potentia oboedientialis. Se entendermos a palavra potentia não como possibilidade vazia da não contradição lógica do ens rationis, mas sim como a vigência, o vigor do gosto e da satisfação da acolhida, da receptibilidade da liberdade geradora de Deus, receptibilidade essa por sua vez que ela mesma como e na criatura já é o dom de Deus, cuja intimidade da interioridade é denominada de Um, a se abismar, a se perder de vista para dentro da geração e processão trinitária, i. é, para dentro da sua Abgeschiedenheit, então o nada, o nihil sui et subiecti, a matéria prima é propriamente a liberdade, o nada ser, nada ter, nada poder, nada querer, nada saber a não ser toda e inteiramente ser apenas a disponibilidade de e para a liberdade dos filhos de Deus. Em Eckhart nada é a graça de ser.

Eckhart fala da criatura como nada num outro sentido, quando diz: “As criaturas têm tudo em tudo e mancham, pois são feitas de nada” (Sermão 5). Tudo em tudo, all in all aqui soa estranho. Com o risco de ser totalmente errado e diletante, não poderia all in all estar insinuando o avesso do modo de ser de Deus? Ele é tudo em todas as coisas como plenitude da presença, como o ser como tal (ipsum esse) e que sustenta o ser de todas criaturas no seu todo e na concreção de cada ente; ao passo que as criaturas, esquecidas de sua identidade agraciada são all in all na sua nihilidade. As criaturas só são enquanto suspensas em Deus, sustentadas por Ele, i. é, sem Ele são nada. E enquanto nada, as criaturas são uma presença na totalidade das criaturas, no seu todo e na concreção de cada ente, um não a modo de tudo em tudo. As criaturas enquanto no fluxo e na cordialidade difusiva da plenitude do ens a se são na alegre positividade da dependência de Deus como filhos de Deus. Aqui não se trata de carência nem da privação, mas absoluta afirmação da Bondade do Pai. No momento em que se esquece dessa natureza, ou melhor, essa nascividade própria do ser criatura, começa-se a se enfocar como nada privativo, carente do infinito, começa-se a rejeitar a propriedade toda positiva de poder ser cada vez na finitude, i. é, na definição concreta de ser algo na doação do próprio Deus e começa a contaminar todas as coisas com o ressentimento de ser imperfeito e privado da infinitude, e assim contamina tudo em toda a parte como tudo em tudo do ente ressentido da sua nihilidade. Ao passo que em sendo nada agraciado na plenitude do ser do Filho, gerado do Pai que é tudo em tudo de todas as coisas criadas, estas deveriam ser a plena de-finição, i. é, finitude de gratidão e louvor à gratuidade do ser

  1. Nascimento (Geburt) [Geburt, nascimento, geração, filiação].

Nascimento, geração é diferente da causação, da efetivação, da produção e da criação de uma obra. Em Eckhart nascer, gerar se refere primeira e primariamente à geração e processão dentro da Santíssima Trindade, ao surgimento do Filho, do Pai no Espírito Santo e à união que se dá “entre Deus e alma” enquanto nascimento de Deus na alma e nascimento da alma em Deus, a modo de vigor e ternura da intimidade unitiva do Pai na geração e no nascimento do Filho no Espírito Santo. O ponto de contato da alma com Deus é o Filho, no qual, pelo qual e através do qual o homem é filho no Filho. E no homem, pelo homem e através do homem todos os entes criados e criáveis, portanto o universo inteiro, atual e possível, se torna também “filhos” de Deus.

A dinâmica da geração e processão. Pai e Filho no Espírito Santo não pode ser pensada como relacionamento de três substâncias, primeiro, existentes em si, para então se relacionarem entre si mutuamente. O que há ali nasciva e fontalmente é a ação do gerar e ser gerado, e tanto Pai como Filho como Espírito Santo são concreções ex-plicantes de como é essa ação. Essa ação é abgeschieden, i. é, desprendida de toda e qualquer mediação que não seja o mediar-se dela mesma, nela mesma, a partir e dentro dela mesma. É pois nesse sentido, solto, à vontade, livre, na pura dinâmica do seu ser. que devemos cada vez de novo ler as mútuas implicâncias do Pai no Filho e do Filho no Pai, no Espírito Santo, em recebendo e no receber, dando, a si no, pelo e através do outro como outro no outro, como o mesmo no outro, como que num movimento centripetal e centrifugal simultâneo de um espiral a partir e para dentro da profundidade abissal, em cujo ponto de fuga, qual no olho de furacão, vislumbramos por instante um abismo de unidade, de unicidade, única que recebe o nome de Um. A condução para dentro desse movimento, na dinâmica da turbilhão trino de ser com e ser em mutuamente na força unitiva e gerativa do Um não é especulação, um saber sobre uma realidade em si, mas sim a própria intensidade e vitalidade de participação do ser com e ser em do âmago de nós mesmos denominado alma na realização da realidade explicitada na cristidade como a vida íntima de amor gerativa chamado Pai e Filho no amor unitivo chamado Espírito Santo dentro do Mistério do Deus uno e trino. Esse movimento é como percussão de origem que repercute como cadências em diferentes níveis da intensidade de ser, criando diferentes ordenações da totalidade dos entes do uni-verso, em suas dimensões, mais ou menos na seguinte escalação da intensidade do ser: dimensão Deus, dimensão espírito ou anjo (em nove coros), dimensão homem, animal, vegetal, e dimensão substância material- inanimada. Em cada uma dessas dimensões, de modos diferenciados, cada vez conforme a intensidade de ser das dimensões se constituem milhares de entidades em variegadas modulações. Todas essas entidades são como que repetições de cintilação em diferentes níveis e intensidades do esplendor que salta de e em Deus, como deslanche e eclosão do ser, como que vindo do abismo do seu interior, o mais íntimo e oculto, naquela dinâmica de geração e processão trinitária, que por sua vez se perde para dentro da profundidade unitiva do Um, como foi acima insinuado. Isto significa que a percussão da assim chamada vida íntima do amor trinitária na força da geração, é repetida em milhões e milhões de variações, em cadências e toadas de ecos e repercussões, formando as entidades do universo na sua totalidade como Criação. É de grande importância para o pensamento medieval observar que o homem, ou melhor, a alma como o núcleo do ser humano, no seu fundo o mais profundo, é o lugar do toque da percussão da vida íntima do amor trinitário, onde se dá o nascimento de Deus na alma e o nascimento da alma em Deus, gerada como filho no Filho Unigênito do Pai, Deus que se incarna como Jesus Cristo, Deus feito Homem. E através do Homem feito Deus, e todos os homens nele nascidos como filhos de Deus, todos os entes não humanos participam dessa filiação, de tal maneira que a deidade, o próprio de Deus na sua absoluta Abgeschiedenheit, na mais pura soltura da sua liberdade, se torna como que também o fundo abgeschieden, de todos os entes no seu núcleo, na jovialidade da liberdade dos filhos de Deus.

Essa onipresença da deidade como Abgeschiedenheit em todos os momentos da cadência, da escalação, da cascata das entificações constitutivas dos entes do universo, as hierarquias dos entes, as diferenças de superioridade e inferioridade, os degraus e as intensidades do ser, não são valorações diferenciais de dominação e poder, mas sim riquezas de prodigalidade e generosidade da doação e recepção da iniciada e sempre de novo retornada de-finição do encontro como concreção da filiação divina. O Um como o mistério do retraimento da Abgeschiedenheit, a deidade, assim se torna como que a condição da possibilidade de todas as coisas, sem jamais aparecer, sem jamais se mostrar, sempre oculto, retraído na humildade e pudor da sua doação incondicional e ilimitada. Esse ser, ou melhor, sentido do se é o ontologicum do pensamento de fundo dos sermões de Eckhadt.

Eckhart em referência ao Nascimento do Filho, do Pai e Nascimento do filho (nós) no Filho, i. é, nascimento do Filho na alma e da alma no Filho usa a expressão sun nâch der ungebornheit (Sohn gemäss der Ungeborenhei = Filho segundo Não-nascimento). Ungeborenheit se refere certamente à diferença existente entre o ser incriado e ser incriável. Ser incriado se refere a Deus enquanto ainda considerado a partir e dentro do sentido do ser da Criação, para não dizer Causação, (embora já subsumido pelo sentido do ser da Filiação, mas dele esquecido) portanto se refere a deus, e não a Deidade. O ser incriável se refere à Deidade, ao Um.

Mas aqui há certa ambigüidade: a filiação divina, o ser em Deus, parece não somente significar que é Filho unigênito de Deus na participação da filiação divina, entendendo a Deus como deus, portanto filiação enquanto referida à participação na Criação, no ser continuamente engendrado eviternamente de deus criador, mas também ser igual ao Filho Unigênito do Pai no mistério da Trindade, participação essa possibilitada pela Encarnação. Somos filho no Filho. Mas há ainda um ser “igual” a Deus, digamos mais radicalmente, inteiramente desprendido, livre e solto, no sentido de, em sendo filho no Filho, ser igual a Ele na recepção de ser Filho como quando deus ainda não era, i. é, repousar na Deidade, no Um, no abismo do Um unitivo, antes de tudo, como quando ainda não éramos, nem criaturas, nem filhos, nem filhos no Filho, mas Filho Unigênito no Pai.. Como tudo isso, toda essa igualdade é a atuação da própria deidade, e atuação na deidade é ser, o verbo ser sempre adquire duplo sentido de ser e não ser. Daí a resposta de Eckhart: é filho e não é filho.

  1. Nesciência (Unwissenheit)

Trata-se não somente da ausência do saber que pode ser eliminada com um saber posterior, mas sim uma espécie de impossibilidade de saber no sentido de total cegueira em referência a certas dimensões. Por tanto, trevas. Para saber, aqui devemos ser tocados pela coisa ela mesma. Assim, saber é sabor. Conhecer é receber.

  1. Operar, atuar; obra; realidade (Wirken, Werk, Wirklichkeit)

[Wirken: causar, atuar, efetuar, efetivar, realizar, operar,[19] agir, fazer, fazer ação, fazer uma obra, pôr em obra; Der Werk: a obra; die Wirklichkeit: a realidade, a atuação do realizar-se].

O verbo wirken significa atuar, efetuar, efetivar, realizar: mas em todas essas significações conta a ação de fazer obra, i. é, produzir[20] a partir e dentro da existência artesanal[21].Trata-se, pois, do agir no modo de ser do trabalho, atitude e do perfazer-se humano na criatividade da existência, na qual sob o toque de uma dimensão anterior e maior do que a ele, o homem se coloca na total disponibilidade de estar a serviço do vir à fala de uma realização criativa como obra, na dinâmica de gênese, crescimento e consumação de uma determinada concreção da possibilidade de ser, oferecida como inspiração. Aqui o homem se perfaz e se consuma como a clareira do surgimento de uma ordenação criativa que se abre como mundo. Existência aqui é entendida como a aberta, a partir e dentro da qual o medieval realiza o sentido do ser da realidade, do ser do ente na sua totalidade[22]. Isto significa que as palavras fundamentais do mundo medieval como p. ex. ser, coisa, substância, causa, matéria-forma; causa-final, causa eficiente, de imediato ressoam na sonoridade do sentido do ser, próprio da experiência do fazer e perfazer-se do fundo, artesanal, herdado da ontologia substancialista dos gregos[23]. Por isso, a relação Criador-criatura não pode ser simplesmente reduzida a Causa e efeito e Criação à Causação. Essa realização medieval artesanal da realidade é, por sua vez, subsumida por uma pré-compressão do ser, proveniente da experiência religioso-cristã, que recebe o nome da Filiação divina.

  1. Por causa de Deus: (Um Gotteswillen)

Costuma-se traduzir a expressão alemã um Gottes willen com por causa de Deus. Usualmente entendemos esse um-willen como causa final a modo de uma meta. Em latim dizemos: propter Deum. Aqui a palavra propter significa propriamente prope, i. é, perto, na cercania, na proximidade, junto a, ao lado de. Se entendemos ‘propter Deum’ como por causa de Deus como causa final, colocamos Deus diante de nós como ponto de referência ‘ideal’ e meta do homem enquanto eu-sujeito. Se o entendermos como junto, na cercania, ao lado parece que o todo da situação se transforma. Deus não está diante de nós, como meta, fim a ser alcançado como ‘utopia’ ou ‘ideal’, mas sim atrás atrás de minhas costas como ‘condição da possibilidade do meu agir e do meu buscar’, portanto, como apoio, como fundamento, a partir e sobre o qual sou e ajo; ou melhor eu, no ser e agir, estou no médium da plenitude do ser de Deus, de modo que nessa união Dele comigo, é Ele que é e age em mim. Para indicar que é Dele, da sua proximidade e do perto Dele que recebemos a força e possibilidade de tender a Ele traduzimos um Gottes willen: por e para Deus.

  1. Reto, Retidão, Justiça: (recht, Gerechtigkeit)

[recht: reto, justo, exato; Gerechtigkeit: retidão, justiça]

Justiça, Gerechtigkeit diz respeito à retidão, pois, contém a palavra recht que significa reto, direito, no sentido de ereto. Portanto, sem curvas, torturas e torneios, sem desvios, sem senões e titubeios, de alguém que está aberto na fidelidade da sua identidade ao que é da identidade do outro. O justo é quem sabe corresponder à identidade do outro, plenamente, deixando-o ser. Essa conotação da precisão na fidelidade da identidade sua e do outro, faz nos entender o reto como justo, afeito à precisão da medida própria de cada ente. Ser reto, ereto conota o estar de pé, cabeça erguida, não na empáfia da pretensão orgulhosa, mas no erguer-se, no identificar-se com, no levantar-se a partir da sua nascividade, da sua natureza. Quem é natural assim, é o filho, livre, com o direito à herança, que se move no clã como quem está em casa, e não como escravo, encurvado debaixo de um poder a ele inadequado, imposto de fora. O homem justo, i. é, reto, ereto, está na medida verdadeira, i. é, ajustada na identidade do seu ser. E o ser do Homem, na sua essência é igualdade com Deus, ser filho no Filho de Deus, na Filiação divina. Estar solto, livre, sem nada, nada tendo nem acima, nem abaixo, nem à direita, nem à esquerda, estar assim à vontade, em casa no ser filho de Deus é a liberdade. Esse modo de ser livre é a retidão, a Gerechtigkeit, a justiça.

  1. UM, Uno, Unitivo; igual, igualar-se, Igualdade, comparação: ((Das) Eins, (das) Eine, (das) Einige; gleich, gleichen, Gleichheit, Gleichnis)

[Das Ein(s): o um; das Eine: o uno; das Einige: o unitivo; gleich: igual, gleichen: igualar, die Gleichheit: igualdade; das Gleichnis: a equação ou a comparação].

Nos sermões alemães de Eckhart, os termos um, uno, unitivo, igual, igualar-se, a igualdade são usados frequentes vezes, quando se fala da geração e processão e da filiação, dentro do mistério da Santíssima Trindade, portanto do “relacionamento” “entre” as pessoas intra-trinitárias, Pai, Filho e Espírito Santo; mas também quando se trata da união da alma com Deus. Em referência a esses termos, também aqui, devemos observar o que dissemos da Abgeschiedenheit, a saber, eles devem ser entendidos neles mesmos, não a partir e dentro da acepção do que usualmente entendemos por um, uno, igual, mas a partir e dentro do que se sucede na dinâmica da geração e processão das pessoas da Santíssima Trindade e, então a partir dali compreender o que usualmente entendemos por um, uno e igual.

Usualmente um ou indica o número 1 ou o demonstrativo indefinido. Uno diz o todo do conjunto de elementos, unificados sob um denominador comum; igual dizemos de duas ou mais coisas que coincidem, ora sob um determinado, ou todos os aspectos, exceto no seu existir ocorrente. Igualdade pode ser de atribuição de um determinado aspecto (este lápis é igualmente azul como aquele lápis) ou de proporção (2 + 2 = 4; 1/2 = 2/4; [2+3] = [10-5]). Aqui numa tal igualdade, uma coisa jamais se torna outra, jamais é a mesma; cada qual guarda a sua individualidade numérica como este um e aquele um. Nesse sentido, nessa acepção usual da igualdade de duas coisas ocorrentes como entes físicos, se representamos a Deus como uma entidade e as criaturas como outras entidades, jamais se dá a fusão de mesmidade Deus-criaturas, de sorte que por mais que se queira fundir esses diferentes entes, disso nunca resultaria o panteísmo. Se aqui nesse modo de entender a igualdade, observarmos bem o sentido do ser ali operante, haveremos de perceber que ele se refere aos entes físicos materiais e diz respeito ao seu aspecto quantitativo. O aspecto do todo muda completamente, quando estamos diante de uma sentença como essa: “Eu e Pai somos um”, “todos unidos num único coração”; “Deus uno e trino”. Aqui Eu, Pai, todos, coração, Deus não são entes de coisalidade físico-quantitativa. São pessoas, cuja coisalidade (leia-se causalidade; causa é o âmago, o coração do que me toca, me atinge) é a realidade denominada liberdade. Aqui nessa realidade, toda e qualquer realização requer mais, muito mais e qualitativamente mais do que a equiparação igualitária de “igualação” em aspectos ou em atributos ou em proporcionalidade. União, ser um, ser uno, portanto ser igual significa aqui ser total, inteiramente, absolutamente outro num “modo de ser todo próprio”, de intensidade e comprometimento radical que na falta de recurso de linguagem denominamos de identificação. Portanto, o igual no sentido usual, jamais é o mesmo; igualdade, jamais mesmidade, identidade; igualar-se, jamais identificar-se.

No entanto, se dissemos: “A criatura humana é igual a Deus”, nesse uso corrente do termo igual, ouvimos de imediato uma identificação total com Deus, de tal modo que aqui não mais existem dois entes, mas um único ente, se dá uma fusão de dois num só ente, como ente criatura e ente Deus fossem dois pedaços de ferro que se fundem num. Essa é a representação que opera no panteísmo. Nesse caso e em casos similares, o medo do panteísmo faz com que evitemos os termos igual e igualdade, para substituí-los por mesmo, e mesmidade, ou identidade. Com isso guardamos a diferença entre o ente-Deus e o ente-criatura, e conservamos o relacionamento de união entre dois entes. E, no entanto, não percebemos que aqui igual e igualdade, corresponde a uma relação do tipo entre um ente e outro cujo sentido do ser se refere a uma comparação entre uma coisa material física e outra coisa também material física, vista a partir de fora, por um observador que as enfoca sob um determinado aspecto comum de dois. E esse aspecto comum é sempre de algum modo quantitativo. Nesse nível da realização da realidade, não há união, não á propriamente relacionamento, sim nem se quer relação entre uma “coisa” e “outra”, pois o que chamamos aqui de relação é produto da comparação do sujeito observador que se relaciona com objetos, no interesse de medição sob uma determinada medida pré-moldada. Relacionar-se, unir-se, identificar-se, o contato, o toque, tornar-se outro, somente é possível a partir e dentro do sentido do ser da dimensão pessoa. O problema do uso dos termos igual, igualdade, igualar-se, que pode insinuar o panteísmo não está no fato de eles fundirem Deus e criatura numa só coisa e confundirem a diferença de Deus e a da criatura, mas sim de operar no sentido do ser que coloca tanto a Deus como a criatura como dois objetos entes, cujo modo de ser é o de coisa físico-material, de tal modo que aqui o sentido do ser operante, na qualificação e na intensidade da realização da realidade, está abaixo do exigido pela realidade como a que é tratada nos sermões e nos tratados de Eckhart.

Eckhart, em tudo que ele fala, diz a partir e dentro do sentido do ser próprio da dimensão pessoa, pois o seu inter-esse é dizer a dinâmica da presença do Deus no seu ser e na sua atuação na humanidade e através dela em todo o universo como é proposta pela cristidade no assim chamado mistério da Encarnação, onde não se trata de equiparação, de divinização, mas sim de geração, de filiação, na qual o homem, é realmente filho de Deus no Filho Unigênito do Pai, na identificação e união tão profunda, intensa e íntima que igualação a modo panteísta sabe à palha, insípida, neutra e coisal, diante da paixão de união e de identificação que se dá numa tal realidade do que, na falta de outra palavra, chamamos de encontro. Como Eckhart fala a partir e dentro da dimensão pessoa e do encontro, usa a palavra igual, igualar-se, igualdade, para indicar o ser um, o ser uno, na união identificadora do encontro, face à face, mano a mano, tu a tu, pois se se permanecer limpidamente na lógica dessa dimensão, o fantasma do panteísmo se esvai como ilusão de uma inadequada colocação do sentido do ser, alheia e deficiente para a realização da realidade Deus e ser-humano. Portanto, o sentido do ser da unidade, do um, do uno e do igual, do igualar-se e da igualdade deve ser rastreado, interrogando-se os entes, constituídos a partir e dentro da dimensão pessoa e do encontro, no seu ser, evitando-se ter como o interrogado, o ente, cujo sentido do ser é da coisalidade físico-material, alheia à vida e liberdade. Nesse sentido, quando nos sermões se fala ora de igualdade ora de ser Um, se entendo igualdade, igual como semelhança de equiparação comparativa, então igualdade não é ser-Um. Nesse caso é possível dizer que unidade, união, identificação exclui a igualdade. É de interesse, precisar que a exclusão aqui se dá não por medo de na igualdade misturar panteisticamente Deus e criatura, mas porque tal igualdade é de uma realidade e intensidade inadequada, indigna, sim ‘coisal’ demais para satisfazer e honrar o grande desejo Pai de ser-um com a alma e a alma um com Pai no Um abissal silenciado como em doação absoluta da Deidade-Minne. Se, porém, ‘intuirmos’ a igualdade,seja ela em que nível for, mesmo no nível ‘deficiente’ da igualdade coisal, a partir do Desprendimento da doação absoluta da Deidade-Minne como Um, a unidade não exclui, mas inclui a igualdade.

  1. Ser Um, Uno e Trino, e a multiplicidade dos entes

Para o pensamento medieval o único ente que é ser propriamente (Deus) é a onipresença. A saber, está presente em todos os entes, sem se imiscuir nem fundir-se com eles, guardando intacta o seu absoluto e infinito Desprendimento, portanto sem jamais diminuir na sua identidade, mas ao mesmo tempo sem liquidar a realidade dos entes, sem reduzi-los a pura ilusão da entificação mental, a ens rationis. Nessa questão encontramos nos sermões alemães de Eckhart um duplo aspecto. O relacionamento de Deus (Criador) para com suas criaturas e a referência do Um (a liberdade desprendida da Deidade na dinâmica Una e trina) ao conjunto Deus Criador e suas criaturas.

Essa questão é usualmente abordada, distinguindo-se em Deus um duplo aspecto: Deus, ad intra (referido para dentro) ou quoad se (enquanto, a si ele mesmo) e Deus, ad extra (referido para fora) ou Deus, quoad nos (enquanto a nós), Deus sob o aspecto referido a ele mesmo, i. é, enquanto a vida interior una e trina e Deus sob o aspecto de relacionamento para conosco, criaturas, i. é, Deus para fora. Dentro dessa esquematização formal, a tentação é de dizer que a Deidade em Eckhart se refere ao 1° aspecto, ao passo que Deus diz respeito ao 2° aspecto. E sentido, a unidade na dinâmica trina da geração ou processão inter-pessoal da Vida Interna (quoad se, ad intra) de Deus possui a sua unidade própria que não coincide tout court com a unidade do Deus quoad nos, na sua ação ad extra na Criação e manutenção do Universo. Portanto, em Eckhart, há algo assinalado por ele com o termo Um, para além dentro, como que se adentrando a própria dinâmica da processão, não propriamente como uma substância ou natureza una, ‘responsável’ pela ação ad extra como Creador, como causador da Criação, mas ‘algo’ como uma presença que vem à fala no movimento de inter-processão trina das três pessoas, como que se expandindo na dinâmica centrifugal de doação total e ao mesmo tempo como que se recolhendo, na dinâmica centripetal, num retraimento abissal de contínuo desprendimento de si, como que a desaparecer na modéstia e na humildade do seu ocultamento. Portanto UmNada onipresente, como que a envolver tudo e cada coisa com cuidado infinito, tão cuidadoso a ponto de não marcar a presença com importância, mas como que a se manter na discrição de um pudor, cheio de benevolência e disponibilidade. Não poderia ser que a divisão Deus quoad se e Deus quoad nos, no fundo cria essa perspectiva, pela pré-ocupação de explicar a natureza, i. é, a substância divina, Deus como único ser (lê se quase sempre: substância!), presente em cada ente criado, sem que o ser dos entes criados seja confundido com o ser de Deus, de cuja con-fusão resultaria o panteísmo? E que esta pré-ocupação está ao mesmo tempo imbricada com o problema do conhecimento real de Deus, que pergunta como o Infinito, inacessível ao nosso limitado intelecto humano, finito, pode ser realmente conhecido por nós? Não seria possível experimentar uma hipótese, na qual se tentasse entender a diferença eckhartiana entre Deus e Deidade, não como uma insistência na inacessibilidade do Desprendimento, como se Desprendimento conotasse o afastamento de Deus do ente criado, mas como afirmação livre, desimpedido de que ser não é outra coisa do que Gottesminne na plenitude da doação de si, na liberdade absoluta da sua identidade, que inunda como o abismo do mar, na sua imensidão, profundidade e criatividade, todos os entes possíveis e atuais, desde os mais sublimes até aos mais insignificantes, nada excluindo, cada vez como presença única, nova, no frescor nasciva de ser, recolhido, cada vez todo inteiro no singular retraimento e pudor, digamos, um nada de importância, mas se faz junto aos entes, com entes, silenciosamente absolutamente, humilde e modesto, sempre ali disposto na doação. Essa mesmidade é Um.

  1. Universal, Comum, Geral: (Allgemein)

[allgemein: comum, geral, universal; gênero e espécie].

Allgemein, se traduziu quase sempre por universal. Em Eckhart parece ser mais preciso entender o universal, não a partir do usual comum, geral, mas entender o usual comum e o geral como uni-versal (em latim: universalis,-e). Geralmente estamos no uso dos termos comum e geral para indicar classificação, sempre mais abrangente extensionalmente e sempre mais abstrata ou vazia de conteúdo e concreção. Trata-se pois de uma classificação lógico-generalizante dos indivíduos, dos particulares. No pensamento medieval, no seu modo mais originário, universal indica essência, portanto species (espécie) e genus (gênero). Como hoje usamos os termos espécie e gênero como classificação lógico-generalizante, temos dificuldade de entender o universal medieval e também a species e o genus como intensidade do ser, portanto, como consumação optimal, como excelência do conteúdo e contenção no ser. A intensificação do e no ser chamamos de essencialização. O universal medieval como essencialização aparece, quando escutamos o termo species como graça e beleza que esplende na face de uma pessoa, como aspecto; e genus referido à geração, ao nascimento, à nascividade do surgir e assentar-se da vida. Trata-se da intensidade da presença, sui generis, na sua manifestação, cada vez no frescor nascivo da gênese, coesa, sem fragmentação nem parcialização. É o todo vivo, a totalidade dinâmica, cada vez uno, na plenitude do ser: é obra, que se se perfaz como universo. Nessa tendência interpretativa, o termo universal significa literalmente vertido, virado ao uno. Essa uni-versalidade não significa tanto o caráter de ser centrado num ponto-algo, cuja identificação se faz enumerando 1+1+1 etc., mas designa antes o ser da presença cada vez, virada, voltada, em voltas com, a partir, dentro de e para o uno. O uno se diz em latim simplex (simples) e significa: uma dobra, ou melhor, sem dobras, inteiriço, intacto, pura e inteiramente ele mesmo, nada de alheio a ele mesmo, i. é, solto e livremente ele mesmo em ab-soluto, portanto abgeschieden, desprendido. Se aqui entendermos o uno como o Um, segundo o que foi sugerido nesse glossário, podemos intuir que o problema dos universais no fundo do pensamento medieval, não se refere em primeiro lugar nem substancialmente aos temas da disciplina chamada Teoria do Conhecimento, mas sim à questão ontológica da estruturação interna do ente na sua totalidade, vislumbrada a partir e dentro do que na interpretação do pensamento medieval, aparece em Eckhart como Desprendimento, i. é, Abgeschiedenheit da Deidade. Aqui quanto mais próximo, quanto mais às voltas com e na cercania do Um, tanto mais ser e quanto mais longe dele, tanto menos ser. O que significa pois aqui menos ser, se como foi sugerido no nosso glossário o Um é onipresente em toda a parte, como percussão primeira do ser do ente, como condição da possibilidade do ente ser?

No universal falar de menos e mais não é adequado, pois uma tal fala conota quantidade dentro do sentido do ser na entificação da coisalidade-material físico-corporal. Na escalação da ordenação do pensamento medieval esse “nível” constitui a esfera de pouca intensidade universal. É nesse nível

que se dá o uso do termo universal, na nossa acepção corrente, onde o binômio particulargeral (ou individual-comum) opera no sentido do ser da classificação lógico-formal. Aqui indivíduo indica o elemento indiviso, numericamente 1, que serve como átomo, que entra na conjuntura de classificação segundo maior ou menor nível de quantificação. Se projetamos essa acepção da generalização como medida inicial e fundamental das ordenações do ser do mundo medieval, desfocamos e neutralizamos inteiramente a complexidade e riqueza dimensional das outras esferas ou ordens da escalação do sentido do ser do universo medieval, nominadamente dimensão-vida (mundo vegetal), dimensão-sensibilidade ou ânimo sensível (mundo animal), dimensão-humana (animal – ou “ânimo e ânima”, i. é, “alma”- racional) na escalação de pontencialização da intensidade do ser, principalmente no nível qualificado de humano-espiritual : portanto dos níveis ratio (razão), intellectus (intelecto ou inteligência), spiritus (espírito) e mens (mente), este último se adentrando para dentro da “dimensão” Deus; e dimensão-espíritos puros (anjos em diferentes níveis como coros de anjos).

Essa escalação da intensidade de ser é como escada de Jacó. É um único movimento simultaneamente descendente e ascendente, no qual os anjos, mensageiros portadores da vida divina, descem e sobem, formando a dinâmica do encontro do céu e da terra. Em mantendo a simultaneidade do movimento descendente e ascendente, é útil para melhor compreensão, tematizar o movimento na intensidade de ser, como descendente. No movimento de descida dessa intensidade descendente, não se deve deixar conduzir pelo aspecto da diminuição da intensidade, mas sim pela jovialidade do derrame da doação pródiga de si, do ser pela excelência, do ser ab-solutamente simples, do único ser, portanto de Deus, no qual o ser é todo o ser, plena e inteiramente. A descida, o movimento descendente significa pois primeiramente intensidade da alegria e do gosto de ser derramado numa cascata de difusão, constituindo de modo diferente, cada vez próprio as acima mencionadas dimensões de ser e seus níveis e seus entes, como comunicação da prodigalidade de doação de si, atuante no seio do ser de Deus, e que como fonte da possibilidade de ser, insondável e inesgotável, brota do abismo da vida íntima trinitária da sua deidade[24]. Essa comunicação de Deus aparece ao mesmo tempo como participação ou melhor recepção do ser de Deus, da Deidade, do ser único e propriamente ser, pelos entes na sua ascensão entificante, cada vez na sua dimensionalidade própria, como alegria e gosto do retorno à sua origem. Na dinâmica desse retorno, quanto mais o ente está às voltas na cercania da origem, tanto mais universal, simples, total na imensidão e profundidade como na nascividade de ser, e quanto mais universal, tanto mais partícipe do ser-pessoa, à imagem e semelhança da plena liberdade de ser de Deus na união íntima com a vida inter-personal trinitária. Aqui, portanto, o ser-pessoa ou pessoal, não deve jamais ser entendido como referido ao sujeito ou ao subjetivo, humano. Refere-se estritamente à realidade realíssima, toda própria, do sentido do ser, próprio da Deidade do Deus uno e trino, denominada por Eckhart de Desprendimento, de Abgeschiedenheit.

Essa escada de Jacó no seu simultâneo descenso e ascenso está indicada no binômio usado por Eckhart inwendic (voltado para dentro ou esotérico) e ûzwendic (voltado para fora ou exotérico). Aqui dentro e fora não se referem à interioridade ou exterioridade a modo do binômio subjetividade-objetividade, aplicado ao homem nem a Deus, mas sim à vigência da imanência da limpidez (Lauterkeit)[25] sempre una e cada vez nova da percussão dia-ferente[26] da Deidade-Minne, na jovialidade da sua Liberdade.

  1. Vazio, solto, livre (Leer, ledig, frei) [leer: vazio; ledig: solteiro;].

A palavra ledig, freqüente nos sermões de Eckhart, significa vazio. Só que para nós hoje vazio conota privação, carência. Como tal, não entoa com precisão a sonoridade em que vibra a palavra ledig como quando é usada nos sermões de Eckhart. Aqui ledig não indica em primeiro lugar lacuna, algo como buraco vazio, onde somente há o vácuo, onde não há nada. Diz antes o espaço livre a modo de uma vasilha pronta para receber o líquido. Refere-se, pois, ao modo de ser, todo próprio, ‘positivo’, digamos, solto, na dinâmica de relaxe, portanto, livre, sem obstáculos, à vontade, espontâneo. É o modo de ser des-prendido, isento de impedimentos, sem pré-ocupação. Daí, ledig conota também a acepção de ocioso[27]. Hoje, no uso cotidiano do alemão moderno ledig significa antes de tudo solteiro, portanto livre de compromisso e amarração do casamento. Parece ser de importância decisiva para compreender o pensamento de Eckhart, precisar esse modo de ser ledig, i. é, do des-prendimento, numa ‘positividade’ toda própria, bem destacada na sua dinâmica. Aqui, como também nas palavras Abgeschiedenheit, abgeschieden (desprendimento, desprendido), traduzidas muitas vezes em referência à renúncia, abnegação, pode-se deformar o sentido próprio desses termos, se de antemão são colocados no médium da espiritualidade de privação, de sacrificação. O que sói usualmente acontecer, quando traduzimos ledig por vazio, livre de impedimentos, pois com isso já entendemos a soltura da plenitude da identidade, nela mesma a partir do que a prende. Na nossa tradução, por falta de recurso, traduzimos ledig como solto, mas conforme o contexto como vazio, livre, desprendido, isento, e muitas vezes como virgem, virginal. O disposto, a disposição e disponibilidade, vistos como fenômenos vivos, nos fazem ouvir o termo ledig na sonoridade da pura e límpida disponibilidade e dis-posição cordial da existência humana, na doação e recepção no amor. É a partir dali que p. ex. o vazio de um cálice afeito a receber o precioso vinho da hospitalidade pode nos acenar para o que é a afeição pura da cordial recepção grata do ser humano no seu ser todo próprio da existência, sempre na soltura dela mesma, i. é, a ser, cada vez, livre.

  1. Virgem, Moça, Mulher, Serva (Jungfrau, Weib, Magd)

[Jungfrau: moça, virgem; Weib: mulher; Magd: serva]

Em alemão Jungfrau significa literalmente jovem (Jung) mulher (Frau), portanto, moça. Significa também pessoa, tanto masculina como feminina, tanto jovem como velha, que por opção religiosa, fazem os votos da virgindade[28]. Weib significa mulher e designa mulher de mais idade, de maior experiência da vida, calejada nas vicissitudes da vida. Designa, embora não exclusivamente, mulher casada. Palavra alemã para dizer menina é Mädchen. Surgiu nos meados do século 17 da palavra Mägdchen. Mägd-chen é diminutivo de Magd. E Magd significa criada, a servente, a serviçal. A criadinha é pois Mägdchen, Mädchen, i. é: menina ou menininha serviçal. Mägdlich significaria, portanto serviçal a modo da menina, disposta no serviço. Indica, pois, a disposição dócil e generosa, o frescor de boa vontade, em se doar ao serviço, diligente e aplicadamente livre, solta, na jovialidade da virgem, i. é, da jovem mulher, ledig, ‘solteira’: límpida e pura liberdade de ser intacta como fonte da vida, sempre prestes a ser doação-mãe. Tudo isso pode estar associado à Maria, virgem e mãe, a serva do Senhor. Esse modo de ser desprendido como virgem, mãe e serva tinha muito ou tudo a ver com a compreensão de Deus como Minne, cuja doação difusiva de si também como a de virgem, mãe e serva constituía a Senhoria, o Poder e Domínio da sua atuação.

 [1] O que segue com o título glossário comentado, não é propriamente glossário, nem comentário no sentido próprio. Chama-se glossário por apresentar verbetes relacionados, direta ou indiretamente com os sermões alemães de Eckhart. Chama-se comentário, embora não seja um comentário propriamente dito, com esclarecimento historiográfico, cultural e científico dos textos de Eckhart, porque apresenta de modo bastante avulso reflexões não objetivas, mas subjetivo-mentais, digamos diletantes, acerca dos pensamentos expostos nos sermões alemães de Eckhart. Diletantes, porque as reflexões não provem de um saber competente e abalizado-especialista de um conhecedor de Eckhart e suas obras, mas apenas de um amador, embora muito amante do que Eckhart diz para nós hoje, a partir e dentro de um tempo,diferente ao do nosso. O objetivo de um tal glossário-comentado seria o de alguma forma começar, digamos de qualquer jeito, a despertar o gosto e o interesse de ler e entender os textos de Eckhart, cada qual ao seu modo. Por isso, não é prudente ouvir as afirmações desse glossário-comentário, mesmo quando assevera “o medieval ou o pensamento medieval diz ou pensa isso ou aquilo”, como informações, mas apenas considerá-las como hipóteses para um convite à reflexão.

Os verbetes em português seguem ordem alfabética e são enumerados. Em baixo dos respectivos verbetes em português, colocamos os termos alemães usados por Eckhart e ocasionalmente em latim e debaixo desses, entre parênteses, termos afins e possibilidade de suas traduções.


[2]Em latim, virtus,  i.é, vigor do varão.
[3]Aqui na significação de clareira, abertura; nesga do céu que as nuvens, abrindo-se por instante deixam ver, através da qual vislumbramos a imensidão do céu aberto.
[4] O ser é mais perfeito entre os três; viver, mais nobre do que ‘compreender’.
[5] O ser ele mesmo, o ser a partir de si.
[6] Deus enquanto referido a si.
[7] Se o filosófico na sua essência não é outra coisa do que questão,i.é, busca de evidenciação do sentido do ser, então uma colocação que não leva a sério de que o ser da existência cristã é o ontoligicum do pensamento de Eckhart parece não ser suficientemente filosófico. Toda a questão aqui é como pensar a ‘relação’ entre a totalidade constituída por um determinado sentido do ser e a outra totalidade, constituída por um outro sentido do ser. Por ser cada vez totalidade, não pode haver uma totalidade das totalidades como se fosse gênero, para duas espécies ou comum de dois.
[8] Cf. nota 17.
[9] A essa plenitude ab-soluta Eckhart dá o nome de Istikeit. ou Isticheit. Em Istikeit está isti (=é); keit ou cheit (=dade). Quint transcreveuo alemão medieval Istikeit para o alemão atual Ur-Sein, i. é, Ser-Originário. Poder-se-ia talvez dizer que Istikeit é a ab-soluta concentração do ser na plenitude encarnada como totalidade bem definida na sua concreção como coincidência do máximo universal com o singular. Um outro termo para dizer Istikeit é Wesenheit (essencialidade) e Seinheit (= Ser)
[10] .
[11] mens, -tis; νοῦς, mente é o nível de liberdade, o mais alto no ser humano, o seu ápice, no e atraves do qual o ser humano é tocado por Deus e penetra para dentro de Deus. Cfr. Itinerarium mentis in Deum, São Boaventura.
[12] Em grego é ἀγάπη, a ceia do encontro de amor, termo assumido por cristianismo para indicar o amor de doação livre e cheio de bem-querença de si de Deus; em latim charitase dilectio e lembra a última ceia de Jesus no NT, na qual lavou os pés dos apóstolos.
[13] As gestas e as canções da gesta.
[14] Gottesminne, o Amor de Deus, primeiramente no sentido do genitivo subjetivo e depois no do genitivo objetivo, i. é, amor que Deus tem para conosco e do amor que nós temos, tendo como ‘objeto’ a Deus.
[15] Cf. São Francisco de Assis e o seu esponsal com a Senhora Pobreza; cfr. São Bernardo de Claraval.
[16] Actus purus, ato puro, é a pura e plena dinâmica de ser (verbo) na absoluta plenitude da liberdade no seu límpido desprendimento.
[17] Todo e qualquer ente, ao ser cada vez interrogado no seu ser, nos traz à fala, um aceno do sentido do ser ali operante. Sentido do ser que assim de modo oblíquo, indiretamente se nos manifesta como a tonância de fundo de um mundo constituído do ente, se chama ontologicum. Como em Eckhart o ontologicum aparece na tonância teológica, poderíamos chamar esse ontologicum de teo-ontológico.
[18] Eckhart usa palavra Fünklein der Seele (faiscazinha da alma), scintilla (centelha) e Burg, Bürglein der Seele (burgo, castelo, cidade, cidadela, castelinho da alma)
[19] Em latim é operari. O modo passivo, nos recorda o modo medial que indica uma ação reduplicativa, a saber, em agindo uma obra, a ação nãose esvai no produto, mas redunda no crescimento do agente, que se perfaz.
[20] O verbo produzir diz pro-ducir, i. é, em latim pro-ducere, a saberconduzir e ser conduzido sob o toque de um determinado sentido do ser a possibilidade de ser, para que este apareça como fruto diante de quem se perfaz como obra .
[21] Cf. 1.1..
[22] Deus, Homem e Universo, enquanto regiões da totalidade do mundo medieval.
[23] ποῖειν, πράττειν, πράγμα = ὄν, -τος = ente
[24] A vida da Deidade na intimidade trinitária que por assim dizer se abisma a perder-se no seu retraimento é denominado por Eckhart de Um, e acena para o pudor, a modéstia, a humildade dessa extrema doação que não se faz senhor e dominador, mas sempre de novo Minne, “virgem”, “mãe”e “serva”.
[25] A palavra lauter significa puro, mero. Conota, porém, a limpidez sonora do clangor de um instrumento de metálico de sopro..
[26] Recurso, academicamente inválido e até errôneo, de insinuar que diferença pode ser escutado como composto de — diá+ferente – (diá +através; ferente = de ferre = carregar). Tudo isso para insinuar que diferença dos entes, não consiste em cada ente ser isto e aquilo como bloco á-tomo de puntualização coisificante, mas sim de variações cada vez originárias das repercussões da uma-mesma percussão que atravessa de início ao fim a totalidade synfônica.
[27] Ocioso aqui não significa preguiçoso, inerte, mas referido a otium no sentido de não estar preso a negócio (nec-otium), portanto a disposição de uma ação livre, que tem o móvel de sua ação a partir e dentro de si mesma.
[28] É uso, na mundividência cristão-católica, pensar assim de ‘imediato’, quando se usa a palavra virgem nas religiosas (vulgo, freiras). A isso se associa logo a castidade e muitas vezes a assim chamada super-valorização da castidade física pela mentalidade clerical etc. Em Eckhart os termos como Jungfrau, jungfräulich, virgem, virginal diz primária e essencialmente ao modo de ser da alma na dinâmica e na lógica do Desprendimento.
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