QUE OS IRMÃOS NÃO ENTREM EM MOSTEIROS DE FREIRAS
QUOD FRATRES NON IGREDIANTUR MONASTERIA MONACHARUM
Praecipio fratribus universis, ne habeant suspecta consortia vel concilia mulierum, et ne ingrediantur monasteria monacharum praterea illos, quibus a sede apostólica concessa est licentia specialis; nec fiant compatres virorum vel mulierum nec hac ocasione inter fratres vel de fratribus scandalum oriatur.
Ordeno severamente a todos os meus irmãos que não tenha familiaridade ou relações suspeitas com mulheres, nem entrem em mosteiros de freiras, exceto aqueles a quem foi dada licença especial da santa Sé Apostólica; nem se façam compadres de homens ou mulheres, para que daí não resultem escândalos entre os irmãos ou por causa dos irmãos.
RNB: Onde quer que estiverem e aonde quer que forem, abstenham-se todos os irmãos de maus olhares e da frequentação de mulheres; e nenhum com elas se aconselhe ou ande sozinho com elas ou coma em companhia delas, os sacerdotes usem de reserva na conversa com elas ao lhes imporem a penitência ou ao darem algum conselho espiritual. Nenhuma mulher preste voto de obediência a algum irmão, mas, recebido o conselho espiritual, faça ela a penitência onde quiser. E acautelemo-nos todos nós e conservemos puros todos os nossos membros, pois diz o Senhor:
Todo homem que olha uma mulher desejando-a já adulterou com ela em seu coração” (Mt 5,28). Se algum irmão, por instigação do demônio, cometer pecado de impureza, seja privado do hábito da Ordem, que ele já perdeu por sua torpe iniquidade, e por isso o deponha definitivamente, e seja demitido de nossa Ordem. E em seguida faça penitência de seus pecados (cf. lCor 5,45).
Ordeno severamente. Seguem novamente alguns avisos práticos, em linguagem menos solene, dirigidos à vida quotidiana dos irmãos itinerantes. O texto-conteúdo deste trecho é comum a várias regras monacais escritas no pontificado de Inocêncio III. Para entender bem o contexto, tem que se lembrar a presença de mulheres nos movimentos heréticos de então. Delas advinha intensa demanda de participação religiosa; acompanhavam os pregadores itinerantes; os abusos eram frequentes. Quando uns destes grupos voltaram ao seio da Igreja, era estipulada legislação muito severa. Da demanda religiosa vinda das mulheres, decorria um perigo real para o franciscanismo das origens. Por isso a atitude atenta e severa de São Francisco. É um texto “religioso” dirigido a pessoas que estão na decisão de levar uma vida religiosa. Não são textos originados por “fobias” de qualquer espécie.
A “castidade” não se refere principalmente e só à sexualidade; é um modo de ser que engloba o todo da existência. Não há setores separados no humano. A castidade é a transparência para ver a Deus. Essa transparência se chama espirito! É uma miopia e decadência espiritual discutir a castidade a partir de integridade biológica física ou de “proibições afetivas”.
Não tenham familiaridade ou relações suspeitas com mulheres. Esse texto é válido ainda hoje? São Francisco é rigoroso no relacionamento com a mulher. Por quê? Nunca a mulher foi tanto idealizada como na idade média, mas na prática nunca foi tão judiada! São Francisco fala da castidade sem paternalismo, mas levando em conta a fraqueza humana. O homem nunca é parcial: se tem um olhar de cobiça ou de admiração, tem um “corpo”, uma existência de cobiça ou admiração. O texto parece querer polir o olhar para tornar possível o olhar da “forma evangélica”. Sem o trabalho de polir pode estar em perigo o teor, a evidência do frade menor. São Francisco não é ingênuo; sabe que o modo usual de viver o masculino e o feminino não é originário. Ele tem mais experiência do mal do que nos! Nós somos mais simplórios na percepção do mal possível; não percebemos o perigo e quando percebemos, já andamos tanto que não dá mais para voltar atrás. Enquanto nós usualmente afirmamos a necessidade de “experimentar”, o método de SF é “fugir”!
O cerne do texto está no cavalheirismo. SF parece estar com medo de perder algo precioso. A compreensão que há por trás é importante: o cavaleiro coloca a mulher acima do homem; o homem é servo da dama; a mulher é arquétipo. SF está com medo que caia essa visão. A atitude de São Francisco com a mulher é do cavaleiro, servo de sua dama. Nós consideramos esse relacionamento superficial e incompleto, por faltar o relacionamento afetivo. SF nesse capítulo, busca manter no ponto o estilo de vida que ele escolheu para si: o viver religioso pobre. Há de fato por parte de SF uma atitude de pobreza também nisso: parece um relacionamento insosso, sem gosto, sem chance de uma “realização afetiva’, como nós a entendemos. Mas para São Francisco essa pobreza é o início da afetividade. Santa Clara se juntou a ele no ideal (Fioretto n° 15). Nossa experiência diz que “estar junto num ideal” não basta, que isso é espiritualismo, amor platônico; que isso não realiza o homem. Se gosto de uma pessoa e ela está de passagem e não me visita, me chateio… Não será que há um outro nível, onde o “outro basta”, sem sinais sensíveis como visitas, cartas.., e o relacionamento ao invés de se esfriar, se esquenta? Quando falamos de amigo, não entendemos amigo de busca, isso nos parece abstrato. Porém a experiência diz que, buscando intensamente o viver religioso, a amizade fica forte, sem queimar; vai em profundidade, sem decadência.
Na questão da afetividade usamos de muita camuflagem. Se num encontro de religiosos/assas disséssemos: “Não vamos comer juntos, nem confraternizar, só estudar juntos”, diríamos que isso não é humano! Mas não é maximamente humano refletir juntos? Onde somos um, onde nos encontramos, a identidade, isso é maximamente humano: quanto mais nos trabalharmos nessa direção mais somos. O perigo da amizade está em gastar pouco tempo nisso, e cair no envolvimento, na vivência…
Seria interessante desenvolver uma teoria psico-afetiva não baseada no matrimônio, como a usual, pois a partir desse pressuposto o não-matrimônio é sempre carência. É por causa deste pressuposto que em referência à afetividade temos a tendência de generalizar a questão e tomá-la tão vasta que fica difícil de ser resolvida. Arrolamos motivos de formação, de caráter, de nossa história, de recalques, traumas, neuroses. Mas isso tudo no fundo não passa de racionalização e auto-justificação. Assim, numa crise afetiva, deveríamos ficar na essência da questão: “Estou gamado por fulana! Devo fazer nova opção de vida”. Dizer: “Sou religioso, mas nunca fiz a experiência do namoro; quero experimentar para ver se tenho vocação”, é ilusório; pior ainda, é engano, porque assim não se faz experiência da vocação religiosa, mas do namoro! E a experiência do namoro em nada esclarece sobre a vocação religiosa. Para esclarecer a vocação religiosa, o jeito é fazer a experiência dela! Numa crise afetiva a primeira coisa a fazer é experimentar 100% aquilo em que se está: somente depois se pode dizer: isso não serve para mim.
Nem entrem em mosteiro de freiras. O movimento apostólica da época tinha alcançado também o mundo feminino. Em toda parte mulheres juntavam-se para viver em comum, segundo os ideais de vida apostólica. Procuravam filiar-se a uma Ordem masculina, antiga ou cuja assistência lhes garantisse a manutenção da vida corporal e espiritual. São exemplo disso os premostratenses de São Norberto. Vendo a grande afluência de mulheres ao seu ideal religioso, resolveram instalar conventos geminados, em que homens e mulheres, em prédios diferentes, viviam sob direção centralizada e segundo os mesmos estatutos. Pelo ano 1150 contavam em suas fileiras umas dez mil mulheres. Mas já antes de 1141 a Ordem resolvera suprimir os conventos geminados. Também os hereges da época admitiam mulheres em suas comunidades e andavam com elas na itinerança. Os meios eclesiásticos viam nisso algo altamente problemático que levava a abusos bem desagradáveis.
São Francisco tinha prometido a Santa Clara de “ter sempre um cuidado carinhoso e especial solicitude” com São Damião. Mas, crescendo o número de mosteiros que procuravam filiar-se à ordem, Francisco se opôs a que isso acontecesse, para que não resultassem obrigações de direção e cura de almas para a Ordem. São Francisco teve, certamente, que curvar-se à vontade da Igreja, quando esta submeteu, já naquela época vários mosteiros femininos à direção da Ordem.
Nem se façam compadres. Os frades não criem ligações de parentesco com famílias sob o pretexto de serem padrinhos. Pode parecer estranha a ligação desta proibição com as demais capítulo. É que pelo compadrio nasce o parentesco espiritual cujas obrigações o religioso dificilmente conseguiria cumprir. mas ao que parece havia também um outro motivo. A julgar por antigos decretos conciliares e por outras regras monásticas, proibia-se o compadrio para evitar o beijo entre padrinho e madrinha, tradicional naquela época. Sem dúvida era esta a intenção de São Francisco, conforme a cláusula seguinte: “para que dai não resulte ocasião de escândalo entre os irmãos ou a propósito de irmãos”.
RNB: Maus olhares. Perguntamos: por que SF fala tão duro assim? Não há certa incongruência entre a visão do profundo relacionamento fraternal dos capítulos anteriores e a rigidez do presente texto? No fundo, SF está dizendo: “Acautelemo-nos!” Acautelar-se não só por prudência, mas como chamada de atenção para não esquecermos que nossa carne, e nossa vocação também, são fracas. Daí a necessidade de evitar os maus olhares.
O que é mau olhar e por que não presta? Certamente cada um teve a experiência de mau olhar. É necessário refletir a partir dessa experiência. Mau olhar é aquele que adultera o coração, tira o coração da dimensão originária do outro para apoderar-se de um aspecto. E isso não é verdadeiro relacionamento masculino-feminino. Por isso, diz o texto, evitem todo relacionamento que não seja de profundidade, que leva ao não-reconhecimento do Mistério.
RNB: Os sacerdotes falem honestamente. Honesto vem de honra, honor, isto é, reconhecimento, fama, beleza, ornato. Honrar o outro é respeitá-lo, é deixá-lo no seu ornato, no seu vigor fundamental. Por isso, falar honestamente é guardar o outro na sua diferença. Os padres, que são os pastores e vigias do Mistério de Deus, falem honestamente com as mulheres, libertando-se e libertando-as para chegar ao vigor fundamental. Fazer isso é dar “conselhos espirituais”.
RNB: Nenhuma mulher preste obediência a algum irmão. Na origem da Ordem, por causa da itinerança, os irmãos não eram recebidos “ao convento”, como os monges, que eram recebidos ao mosteiro”, mas eram “recebidos à obediência”. Havia o perigo de que mulheres fossem recebidas à obediência” de frades. Com esta proibição se queria evitar que mulheres se colocassem individualmente, segundo o costume de então, num relacionamento de obediência a um frade menor.
O texto no fundo quer impedir o “paternalismo” na direção espiritual. Na vida espiritual é necessário livrar-se do paternalismo e livrar os outros também, para torná-los mais maduros frente ao Mistério. A repugnância que às vezes se sente diante da direção espiritual será que é herança de São Francisco? Andar com as próprias pernas é tipicamente franciscano!
Para ser modernos, na questão do masculino e do feminino, mas também em todas as outras questões, temos que pensar muito; não basta seguir o que todo mundo diz: é necessário ter capacidade de penetrar no destino do ser humano. Para o religioso, ser moderno, viver no mundo de hoje, é importante, mas se quisermos ser efetivamente religiosos hoje, não basta ficarmos “hoje” na superfície, é necessário ser “hoje” na profundidade, e para isso é de suma importância convencer-se de que não existe nenhum revolucionário que de alguma maneira não esteja enraizado no passado. O que atualmente, na publicidade é tido como moderno, no fundo é superficial, desgastado e obsoleto por ter perdido o contato com a força real humana com o passado, com a fonte originária.
Nós, franciscanos na espiritualidade, não damos muita atenção à questão do “hoje”; sempre fazemos ligação com São Francisco, sempre de novo tentando captar a fonte originária que vem do passado. Por causa disso, apesar de tudo, temos muito faro para coisas essenciais, e a partir desse faro pensamos e repensamos as questões que o “hoje” nos põe. Há quem diz que o passado é obsoleto: nós, porém, nunca negamos a nossa raiz como se fosse seca: cremos que e a raiz que tem força de renovar. Por isso é muito importante lermos e estudarmos sempre os textos, mas pra valer mesmo!
Os temos franciscanos não colocam explicitamente a questão do masculino-feminino, mas a resolvem muito bem! As compreensões que subjazem à questão do masculino e feminino e que os colocam melhor do que nos diante desta questão, são os seguintes:
O medieval quando fala de “homem” entende “género humano”; ao dizer gênero humano, pensa no que é nascivo, no “profundo humano”, no que está em cada um, como núcleo de nós mesmos. E ao dizer ‘humanidade’ não pensa na soma de todos os homens, mas no que é essencial a cada um. Portanto para o medieval ser masculino e ser feminino é humanidade!
Masculino e feminino são “diferentes”. Na afirmação desta diferença nós embananamos os níveis, tão bem distintos pelos medievais. Por onde anda a diferença? Só pode ser diferente o que tem medida comum. Cada vez que encontrar algo diferente, é importante descobrir a medida comum que mede.
Costuma-se dizer que a mulher e mais fraca, por isso o homem a domina; neste raciocínio o que mede o traço e o tom é o físico-corporal. A alguém que quisesse ser forte físico-corporalmente, o medieval diria: “Tu es burro!!! Tu só conheces o nível mais baixo da força. Não sabes o que é ser forte no sentido mais profundo!” O que no físico-corporal é mais fraco, no nível superior, corporal-vital-vegetativo, pode ser mais forte. Homem e mulher tem fisiologia diferente, mas na força de assimilação da vida a mulher tem mais resistência, mais capacidade vital porque tem que gerar a vida. Tem diferença, mas essa diferença não diz que um é superior ao outro; dizer que um é superior ao outro é depender do ponto de vista físico-corporal a partir de onde mede: e esse ponto de vista pode ser altamente primitivo, idiota e sem compreensão mais profunda do humano. Também no nível vital-animal não tem superioridade ou inferioridade; tem sim diferença. Estes três níveis correspondem à área do visível, sensível, mensurável; correspondem à herança que recebemos quando nascemos; são três etapas de diferentes riquezas, em que, porém, não há nem superior e nem inferior.
Nos níveis “humanos”, alma, razão, intelecto, mente, o medieval diz que não há diferença. E cita: diante de Deus não há nem homem nem mulher! Nós modernos dizemos que isso é abstrato; que não é verdade, porque feminino e masculino são muito diferentes no psiquismo, no modo de pensar, no modo de amar; e citamos uma porção de fenômenos. O medieval diria: “Você está confundindo os níveis; estas diferenças pertencem aos três níveis primeiros”; ao dizer que diante de Deus não há homem, nem mulher, não se diz que não há diferença! Se diz que “alma’ não é coisa dentro do corpo. Mas uma atitude humana, um nível de engajamento; que “intelecto” não é algo como um “corpo espiritual” dentro da pessoa, mas uma atitude humana, um nível de engajamento.
Os níveis de engajamento de busca de realização do humano podem ser esquematizados assim:
HUMANIDADE-GÊNERO HUMANO – O originário humano que está em todo homem.
São Francisco e Santa Clara, por exemplo, tanto estão na mesma altura, numa espécie de comunhão, e tão naturalmente, que nenhum dos dois precisa dos “direitos afetivos” do masculino e feminino; não precisam, não porque estão alienados desse problema, por ser a concepção medieval de dominação do homem sobre a mulher, como muitos dizem por ai; não falam porque não tem o problema! Isso não significa que na sociedade medieval não houvesse terríveis abusos, como hoje, lá onde se fala de democracia, há terríveis abusos em nome da democracia.
RNB: Seja privado do hábito da ordem. Este é um texto duro de se assimilar. Nosso entendimento é que esta atitude é para castigar ou para não infeccionar os outros. São Francisco não diria isso para um pecado “ocasional”. Um frade pode ter um deslize, uma fase de cansaço, um momento de indefinição, fraqueza, mas estar de fato na busca: este frade São Francisco não cortaria, pois ainda está no time! Há aqui uma situação diante da qual São
Francisco diz: “Isso não dá; está claramente fora do nosso ideal”. Sua atitude neste momento chega a ser radical. Quais evidências há por trás de tamanha nitidez diante de certas faltas? Não é São Francisco que expulsa, mas é a expulsão que se impõe por ser a confirmação de algo que já se deu: a auto-exclusão do vigor que ajunta o grupo, pois quando alguém perdeu o teor, a evidência da comunidade, já está fora. Por isso São Francisco expulsa mesmo, mas para a salvação daquele que pecou. Ele tem a nítida percepção de que aquele corte não mata, mas salva. Pois a Vida Religiosa tem seu estilo; e o pior que pode acontecer é nem estar nela nem fora dela; SF então corta, porque a expulsão é inicio de salvação. A dureza de São Francisco vem de sua nitidez de identidade e fidelidade de busca. A intervenção dura faz o outro acordar para a mesma nitidez.
A experiência religiosa é uma dimensão que engloba a vida toda. É um modo de ser, o único capaz de desmascarar concepções perversas que impedem de alcançar a significação humana de certos atos, como quando o esposo que traiu diz à sua esposa: “Que há de errado nisso? Foi só um fato físico”; ou o burguês que ilude e se aproveita de uma moça do interior só para satisfazer seu instinto, estragando-lhe a vida; ou o seminarista que afirma de ter direito a se realizar afetivameme e namora, não achando nada de mal nisso. Em tudo isso há uma concepção, cuja perversidade consiste em se mascarar atrás de autojustificativas, camufladas de verdades ‘humanas’ ou ‘científicas’, que impedem de ver a insuficiência da própria postura. O corte de SF não é moralista; ele o faz a partir de sua experiência religiosa que lhe dá nitidez. E corta porque há perversidade. É o impor-se espontâneo e inocente de uma nitidez, feita provocação para o outro (e nisso há o aspecto salvífico do cortar – 1Cor). É a austeridade e o rigor de SF consigo que se extravasa salvificamente.