Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O que é a coisa ela mesma, na Fenomenologia?

05/02/2021

 

(Introdução à recordação amadora, anotações)

Introdução

O título indica o que a seguinte coleção de reflexões, artigos e observações gostaria de ser, a saber, uma espécie de cadernos de anotações. Daqueles que como estudantes trocamos, para ajuda mútua, recordando o que se ouve nas preleções, seminários e leituras, de autores, professores e especialistas abalizados e que bem ou mal conseguimos assimilar e anotar, dentro das nossas limitações de estudantes amadores. As anotações aqui recebem ocasionalmente forma externa de ensaio, artigo, discurso, apostilha e reflexões avulsas e ocasionais, feitas durante seminários e colóquios. E algumas foram publicadas já há muito tempo ou recentemente, em forma de artigos. Sejam quais forem a forma externa que as anotações assumem, todas elas gostariam de ser lidas como anotações de estudante amador e amante na coisa, i. é, na causa da filosofia, na modalidade aqui denominada de modo bastante vago de fenomenologia. Anotações de um tal caderno só as entende quem as rabiscou, e quem, ao lê-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixão. Complexo e paixão de busca da coisa ela mesma da filosofia e do seu fascínio, sofridos pelo iniciante ou amador. De que complexo e de que paixão se trata, diz o sub-título: Introdução à recordação amadora.

Recordação aqui não tem a ver com memórias do passado longínquo saudoso e/ou traumático de antanho, nem com depósito de lembranças, reminiscências, portanto com arquivo de dados. Antes, tem a ver com latim cor, -dis, com a re-cordação, portanto com retomada e volta ao cerne, coração, ao fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma, o que sempre de novo aparece, dentro, diante e ao redor de nós. Mas então o que é, pois, cerne, coração, o fundo oculto, donde nasce, cresce e se consuma o estudo de um amador na fenomenologia? Por ser o fundo do amador há ali psicologicamente algo como medo de pouco saber, uma espécie de complexo do aprendiz que não é especialista, de ser apenas iniciante e diletante. Mas, ao mesmo tempo, há também ali algo como ímpeto da inocência ingênua de um grande desejo, vontade de adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo que a alma do amador ama, a saber, naquilo que a fenomenologia tem de mais próprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigência de exatidão objetiva e informativa que exigem o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber. E a tudo isso, acrescente-se o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com o saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria com paixão e sentimento. Trata-se de um humor angustiante que toma conta de todo e qualquer estudante de filosofia que ama a filosofia, que se lança a cata de informações, cada vez mais numerosas, asseguradas, que lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante e ao mesmo tempo se sente inquieto, como que tocado por outro hálito de fascínio. Fascínio e prazer de concentração no pouco essencial, de afundamento para a interioridade de uma intuição da verdade originária. Intuição que por um instante aparece como vislumbre de algo como vivência aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimensão inominável. As exposições que se seguem sofrem da ambigüidade desse humor angustiante do amador, que sempre permanece iniciante, jamais iniciado. De estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua ignorância. Por isso, no subtítulo a palavra recordação indica essa perplexidade psicológica, mas ao mesmo tempo esperança de que, mesmo também nessa perplexidade, possa estar atuando, talvez, por menor que seja, um hálito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemáticas tratadas nas reflexões, no desengonço e na imprecisão, característicos de trabalhos de amador.

O interesse[1] dos termos fenomenológico e fenomenologia aqui na nossa exposição se refere à corrente filosófica que historicamente teve início com Edmund Husserl sob a denominação de fenomenologia e se manifestou em diversas escolas e inúmeros movimentos de fenomenologia. Na infindável série de nomes de filósofos e pensadores, de tendências filosófico-fenomenológicas, o nosso inter-esse se limita mais a três, a saber, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Heinrich Rombach, que usualmente são classificados como pertencentes à escola fenomenológica de Freiburg i. Br. No entanto, não se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as reflexões que seguem tratam diversos assuntos de cunho filosófico ou semi-filosófico como que a partir do médium em que se acha essa corrente fenomenológica friburguense, na medida em que, bem ou mal, foi assimilada e compreendia pelas reflexões. Com outras palavras, os pensamentos válidos que ocorrem nas nossas reflexões foram tirados desses autores, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por causa da ignorância ou pouco volume do pensar. Por isso, também o termo introdução não se refere a uma exposição historiográfica acerca dessa escola de filosofia e de apresentação sucinta, na medida do possível sistemática de suas teses, doutrinas e ensinamentos filosóficos, para estudiosos de filosofia, ainda não iniciados nessa corrente filosófica contemporânea. A palavra introdução do subtítulo praticamente não tem nada a ver com esse tipo de introdução. Pois nossas reflexões não conseguem realizar tão difícil tarefa. Para isso, falta-lhes tanto o volume de conhecimentos como o domínio de complexos dados historiográficos e filosóficos, implicados por qualquer introdução desse tipo.

Aqui no subtítulo, a palavra introdução indica tão somente o inter-esse, não propriamente de conduzir os outros para dentro da fenomenologia, mas sim de a própria reflexão, de alguma forma, ser uma tentativa. Tentativa de intuir, i. é, de ir para dentro, mesmo que seja somente num vislumbre passageiro, do fundo incandescente da coisa ela mesma da fenomenologia e ser atingido pela sua faísca, na cintilação do seu aparecer.

Por isso, os pensamentos, informações, referências que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotações, se forem usadas, devem ser controladas em sua exatidão e validade, pois são na sua maioria “chutações” e simplificações de um amador. Se, porém, houver nessas “chutações” do amador e amante da causa da fenomenologia, alguns pensamentos válidos, podem ser quem sabe úteis para os que sofrem das mesmas dificuldades e no entanto querem intuir, portanto ir para dentro daquilo que é do fascínio da fenomenologia. Nessa perspectiva, as reflexões, nos seus dados informativos, limitam ao mínimo a exposição dos conhecimentos e do saber usual acadêmico sobre a fenomenologia, supondo-os como conhecidos de alguma forma.

I – COISA, FENÔMENO, FENOMENOLOGIA E SEU LÓGOS

O título desse trabalho soa “O que é a coisa ela mesma, na fenomenologia?”. O título parece nos indicar o objeto de nossa investigação: a coisa ela mesma. A coisa aqui se relaciona com o slogan Zur Sache Selbst[2], à coisa ela mesma, sob o qual a fenomenologia ficou conhecida enquanto movimento filosófico. À coisa ela mesma conota retorno, volta. E, a todo o retorno, antecede um afastamento. Isto do que nos afastamos e ao qual a fenomenologia nos convoca ao retorno, se chama a coisa ela mesma. E, usualmente, à primeira vista, o movimento de retorno é simplesmente uma re-vira-volta de 180º, de tal sorte que a direção do retorno é dirigida para o ponto de partida, donde se vinha se afastando. Mas o que é, pois, a coisa ela mesma? De que coisa se trata, quando a coisa ela mesma é o ponto de partida, do qual nos afastamos e ao qual somos convocados a retornar? Essa pergunta, assim formulada, se a observarmos bem, já predeterminou o rumo de nossa investigação em referência ao slogan líder da fenomenologia Zur Sache selbst. Em que sentido? No sentido de a fenomenologia que convoca à coisa ela mesma já ter sido posicionada propriamente como uma logia, como um saber que sabe o que é o seu objeto, a coisa ela mesma, para nos convocar a um retorno a ela. Mas assim impostada, a tonância da convocação, cuja chamada é expressa no slogan Zur Sache selbst! soa um tanto desafinada.  Pois, dito de outro modo, assim, a fenomenologia é um saber, e quiçá uma ciência, que deve possuir conhecimento certo sobre a realidade que é a coisa ela mesma. Como seria se fenomenologia significasse “simplesmente” Zur Sache selbst!? Antes de falar sobre a fenomenologia, vamos nos demorar um pouco nessa implicância criada em nós, ao ouvirmos o slogan Zur Sache selbst: a coisa ela mesma a que tende a fenomenologia é a coisa, i. é, a causa dela mesma; a coisa ela mesma da fenomenologia é a vocação, a chamada: “Zur Sache selbst”. “À coisa ela mesma” é a fenomenologia[3]. Tentemos nos introduzir na captação dessa ambigüidade, refletindo assim, ainda que por cima, acerca das palavras que compõem o título: coisa, fenômeno, fenomenologia.

  1. Coisa e coisalidade

Se perguntarmos O que é a coisa, ela mesma?, de imediato, no cotidiano, respondemos: coisa é isto e aquilo que está ali diante de nós, dado de antemão como objeto, à disposição da ação de visualização e de manipulação. Nessa ação, lidamos com uma porção de ‘coisas’[4]. Os termos afins ao termo coisa, que também indicam uma porção de ‘coisas’, são ente, objeto, algo. Quando dizemos uma porção de coisas, queremos dizer uma infinidade de coisas. Coisa, portanto, indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, sem exceção, na sua totalidade. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação, inclusive o sujeito humano ele mesmo. E até ao nada podemos chamar de coisa, enquanto ele é passível de ser nomeado como coisa. Assim, dizemos: aquela coisa chamada nada não está com nada. Assim, coisa, objeto e ente são usados ordinariamente como sinônimos. Enquanto tais, indicam, ao mesmo temo, o conjunto todo do que é e pode ser, na sua generalidade abstrata e formal e ao mesmo tempo cada ente real e possível, em concreto, aqui e agora. Nesse sentido, coisa, embora indique também a generalidade abstrata e formal, se inclina para a direção de cada coisa, em concreto aqui e agora. Assim, coisa ela mesma nessa inclinação parece dizer: esta realidade concreta e real nada é de abstração, fantasia ou imaginação, de ‘coisa’ que distante do que é de fato. Em português, na gíria do uso popular, em vez de coisa, temos os termos: troço e trem. Nestes, aparece de modo mais palpável a ambiguidade acima conotada pela palavra coisa. Mas quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “perplexo”, pois nos soam tão concretos e vivos, de tal modo que se tem a sensação de ter “a coisa ela mesma” diante da gente. No entanto, quando se pergunta de que se trata, nada dizem a não ser um indeterminado “algo”, indefinido, mas a modo todo e bem concreto, vagamente! Na fenomenologia, usualmente os termos acima mencionados como similares ou iguais à coisa, todos eles de alguma forma, embora cada qual a seu modo diga o que na Filosofia se costuma denominar o ser e o ente, e a questão do sentido do ser e suas implicâncias. Na fenomenologia, pode ser que o slogan Zur Sache selbst, de alguma forma, se refira ao retorno a essa questão, como coisa ou causa da filosofia[5].

1.1. Coisalidade

Entrementes, como dissemos acima, há coisas e coisas, em diferentes modos. A expressão “há coisas e coisas”, no entanto, quer nos dizer que a coisa possui sua coisalidade. Para compreender de que se trata nesse “negócio” de coisa e sua coisalidade, à mão de dois textos, digamos banais, vamos tentar ordenar e fixar melhor que coisas e quantas coisas nos vêm à mente quando falamos de coisa, usualmente.

1.1.1: O primeiro exemplo é uma descrição acerca da pesca, escrita por Tokaishige Sadao, um chargista japonês, hoje bastante conhecido na mídia do seu país. No pequeno livro “Visão nipônica do Sr. Jooji”, na primeira estória, intitulada “Modinha pesqueira do Pacífico” implica ele:

Antigamente, era só sair um “tantinho” fora do subúrbio, havia riacho, lagoa e lago. E uma porção de pequenas lojas de secos e molhados, onde se podiam comprar bem barato, anzóis e varas de pescar e chapéu de palha. A gente se munia desses apetrechos, e um, dois, três!, se abancava à beira do riacho, e, pronto, tinha-se a panca de um pescador. A pesca, hoje em dia, não vai assim tão facilmente. Não dá para ir pescar, assim, sem mais nem menos. É domingo. Você dormiu bem, acorda tarde. O sol está já há tempo a aquecer a varanda. Depois de ter lido o jornal do dia, de repente, dá-lhe a vontade de ir pescar. Ajeita a camisa, desabotoada, enfia os pés num par de velhas sandálias, e lá vai você à loja de materiais de caça e pesca, comprar anzóis, vara e chapéu de palha e pedir conselho do vendedor. E, então, é ali que você sente na carne a vergonha de ter sido tão descuidado, frívolo e superficial nas coisas da vida humana. E vem o interrogatório: “O que o Sr. quer pescar?” “Ora, quero pescar peixes! A pesca não é para pescar peixes?” Com dignidade grave e solene, o vendedor especializado e perito inquire: “Peixe do mar? Peixe do rio? De lagos? E se peixe do mar, numa embarcação grande, ou na canoa, ou simplesmente à margem do lago e do rio? E que espécie de peixes, o Sr. quer pescar, salmão, atum, pescado, enguia?, lambari?”. Você um tanto deprimido sob a pressão de tantas perguntas, envergonhado pela ingenuidade e despreparo na abordagem da pesca, um tanto ferido no seu brio, tenta se salvar, timidamente: “Pois, eu quero só pegar peixes…, pode ser bem pequeninos, pensei só pescar assim, assim … e comprar anzol e vara de pescar…!” O vendedor competente, com rigor e precisão, não me vende nem anzol nem vara, assim sem mais nem menos: “Há anzol e anzol, vara e vara, linha e linha e isca e isca, conforme que peixe o Sr. quer pegar, onde e como quer pescar. Por isso, o Sr. que é o sujeito e agente da pesca, se não determinar com maior precisão e responsabilidade a mira e meta de seus atos e projetos, e não me disser o que, como e onde quer pescar, não lhe posso ajudar em nada, nem sequer vender-lhe os materiais de pesca e seus acessórios. Hoje, não é mais possível, nem é permitido pescar, sim viver a vida, considerando a vida e o mundo assim tão facilitados, numa postura vaga de “quero pescar apenas peixes!”

Nessa descrição da pesca temos o peixe, o anzol, a vara de pescar, o chapéu de palha. Portanto uma porção de coisas. Mas essas coisas para o pescador amador estão diante dele assim de modo geral, embora de modo concreto e vivo, no seu cotidiano como dentro da sua perspectiva, assim mais ou menos, na medida do uso, segundo o escritor, dentro da existência amadora japonesa de antigamente, de tal sorte que perguntado acerca de todas essas coisas, o amador, pescador do fim de semana, não sabe responder com exatidão, o que, como, onde pescar. Pois na paisagem da existência amadora de antigamente, no pescar peixes, com anzol, linha, vara de pescar e com chapéu de palha, todas essas coisas, recebem seu significado óbvio, cada coisa no seu lugar, nesse modo de ser solto, meio espontâneo, mas muito bem adaptado à realidade. O que, porém, não haveria de acontecer, se mesmo na existência japonesa de antigamente, se tratasse de uma pesca profissional, embora por sua vez o caráter profissional de antigamente tivesse o seu modo de ser todo próprio artesanal, cunhado pela existência japonesa de antigamente e bem diferente à da existência cunhada pelo profissionalismo técnico científico, insinuado pela estória de Tadao. Aliás, profissionalismo técnico científico não permite ser solto e descuidado mesmo no amadorismo.

Assim, dizer, por exemplo, como na caracterização da coisa acima, que “coisa é isto que está ali diante de nós, dado de antemão como objeto, à disposição da ação de visualização e de manipulação”, parece se tornar insuficiente, parece não dizer muita coisa, e ao mesmo tempo dizer tudo, mas de um modo assim e assim. O mesmo se pode dizer da outra caracterização acima mencionada da coisa. “Coisa indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, sem exceção, na sua totalidade. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação, inclusive o sujeito humano ele mesmo.” Se observarmos a diferença da impostação diante da coisa chamada pesca e acessórios, entre a mirada do vendedor especializado de hoje e do pescador amador que brinca de pescador, como antigamente, descrita na estória acima, as características dadas por nós acima acerca da coisa parecem muito semelhantes à captação vaga e indeterminada do pescador amador de antigamente. Para que a captação do que seja coisa tenha a precisão e determinação da maneira de captar a pesca e seus acessórios, conforme a do vendedor especialista e competente da estória, é necessário mirar a coisa, enquanto esta coisa e aquela coisa, a partir do ponto de vista, da sua finalidade, da sua utilidade, e a distinguir dentro de determinados padrões de classificação que são derivados segundo o ponto de vista da sua finalidade e utilidade. Entrementes, aqui no que se refere à precisão e determinação a partir da finalidade e utilidade, se necessita de uma especificação mais acurada. Pois o que foi dito da determinação da coisa a partir da finalidade e da utilidade, segundo a descrição feita da pesca por chargista japonês, vale sem dúvida para os materiais de pesca como anzol, linha, vara, isca etc., portanto para as coisas confeccionadas para a pesca, mas não para o peixe propriamente dito. Pois peixe é uma coisa que pertence à natureza e não à cultura ou à técnica. Peixe é peixe, independente de finalizações e miras que lançamos sobre ele. Isto, como já foi mencionado antes, significa que a infinidade de coisas, por diferentes que sejam, podem ser divididas a grosso modo em coisas feitas pelo homem e coisas pertencentes á natureza, portanto coisas culturais e coisas naturais.

Mas que coisa é essa que especifica e determina a coisa, a partir e dentro de uma definida finalidade e utilidade? De repente, nos damos conta de que entre as coisas que acima foram mencionadas, digamos, divididas de modo bem geral em coisas feitas pelo homem e coisas pertencentes à natureza, aparece uma coisa toda estranha, denominada homem e suas ações. E a coisa homem pertence certamente à natureza, mas ao mesmo tempo parece ser de alguma forma produto feito por ele mesmo, portanto coisa que é da cultura. Não é a partir dele, nele e para ele que as coisas são colocadas, nas classificações, conforme o interesse, a determinação específica de suas finalidades e projeções?

1.1.2: O segundo exemplo é um trecho, citado por Foucault e atribuído por ele a Jorge Borges, que fala de “uma certa enciclopédia chinesa”, onde está escrito que

os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, f) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas[6].

Acima, assim de passagem, distinguimos coisas e coisas, classificando as coisas em coisas culturais e coisas naturais, coisas produzidas pela indústria humana e coisas pertencentes à natureza. Tentemos ordenar as coisas chamadas “animais”, classificadas na acima mencionada enciclopédia chinesa, em coisas produzidas pela indústria humana e coisas pertencentes à natureza.

Provisoriamente, à primeira vista, são coisas, produtos da indústria humana: b) animais embalsamados; h) incluídos na presente classificação; k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo.

Pertencem diretamente à natureza: d) leitões; i) animais que se agitam como loucos; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas.

Mas, e os animais, a) pertencentes ao imperador; c) domesticados; f) inumeráveis; l) etcetera? Certamente todas essas coisas são animais, e como tais não foram fabricados pelos homens, mas a referência que eles têm para com o homem, não os tira da região dos animais selvagens, portanto do reino das coisas que surgiram diretamente da natureza ainda não tocada pelos homens? E g) os cães em liberdade? Certamente vivem soltos, na natureza, mas podem ser também cães domésticos que se soltaram e se tornaram selvagens. E mesmo que sejam, desde o início, selvagens, o fato de serem classificados como selvagens, não é porque já são vistos a partir do ponto de vista do homem que divide os animais em domesticados e selvagens?

Mas, e) sereias, f) fabulosos são certamente “animais”, produtos da imaginação humana, portanto fabricados pelo homem?! Mas, mesmo que sejam imaginados, não são imaginados como pertencentes à natureza, e não fabricados pelo homem? Por outro lado, seja como for, seja desse ou daquele jeito, no momento em que se usa o termo animal para indicar todas essas coisas, não se está indicando que ao menos na última instância se está apontando para o bicho no sentido de coisa que não foi fabricado pelo homem mas, que pertence à natureza virgem? Mas que coisa é essa que chamamos de cultura e natureza, coisa fabricada pelo homem e coisa proveniente da natureza, toda essa divisão, classificação, não diz simplesmente referência ao interesse do homem? Tudo isso somente tem o seu sentido, a realidade do seu ser, se de alguma forma está referido ao homem!? É possível ser algo em si, independente da referência ao homem? Se não é propriamente ao homem, mas a um sujeito, seja ele homem, espírito, Deus etc.? A própria coisa em si, independente de toda e qualquer referência ao sujeito, não é uma referência ao sujeito, pois somente nele, a partir dele, com e para ele, a coisa tem sentido, a realidade, chamada independente, em e para si?

Assim, a palavra coisa é habitada por uma chusma de entes, a palavra coisa se entoa cada vez e se repercute numa celeuma de significados.

1.2. Coisa e coisalidade, uma estranha implicância entre coisa e homem

Assim, se os escutarmos bem, coisa e todos os termos similares acima mencionados insinuam nuances de diferença. Desse modo, distinguimos coisa e coisa, ou melhor, coisa e sua coisalidade. Tentemos, pois, enumerar as coisas que já se desfilaram, p. ex., na estória da pesca, diante de nossos olhos, nas diferenças de sua coisalidade. Coisas naturais: peixe, minhoca, o homem pescador, o bambu, o rio, o barranco, vento, o céu aberto, as árvores à margem do rio, o sol causticante, etc. etc.; coisas que eram naturais mas entraram na perspectiva do uso: bambu®vara de pesca; pedra®banco para se sentar; árvore e sua sombra®proteção contra o raio do sol; minhoca®isca; sol®secador da camisa molhada; o homem®pescador®fornecedor e fornecimento de peixe para a cozinha da mulher, na preparação do jantar etc.; coisas feitas pelo homem: anzol, vara de pesca, chapéu, vestimentas para a pesca, óculos escuros etc.; e são também coisas, p. ex., os pensamentos que ocorrem dentro da cabeça do pescador?; seus sentimentos, vivências, os números, através dos quais conta quantos peixes pescou, quantas minhocas ainda restam como iscas?; a beleza da paisagem bucólica; a chateação diante do pedantismo técnico do vendedor de anzol, linha e vara; o sistema sofisticado da pesca e a indústria dos instrumentos de pesca e seus acessórios; a civilização tecnológica que domina o Japão e a sua cultura antiga, que aos poucos desaparece etc.?; a morte dos peixes que pesca, a qual o pescador associa à sua própria morte vindoura; a concepção budista da vida e da morte, da natureza, da civilização etc. que de alguma forma move o pescador, quando se deprime ao comparar o Japão de hoje, ao de ontem?; essa própria comparação que ele faz de hoje com ontem, o tempo, ontem, hoje e futuro etc., etc.? Em todas essas coisas, e suas coisalidades, no nosso uso da palavra coisa, coisa, geralmente indica objeto. Podemos talvez, “grosso modo” e à primeira vista, dizer que coisa, como objeto, está referida ao projeto da produção do homem[7]. Objeto é a coisa produzida pela ação da indústria humana. Ao passo que coisa se usa de preferência para indicar mais um fato da natureza virgem, ainda intacta da indústria humana. Portanto coisa da e produzida pela natureza. E quando queremos indicar indistintamente tudo que é e pode ser, seja no sentido do objeto como também no da coisa, seja se é produto do homem, seja se é produto da natureza, usamos o termo inteiramente geral algo. A coisa-objeto e a coisa-coisa, a saber, o fato natural, e a coisa-algo, o que é? Há algo anterior à coisa-objeto (produto do homem) e à coisa-coisa, ao fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas?[8] E onde se localizam todas aquelas coisas que acima enumeramos que não se encaixam com tamanha facilidade, nem à classe das coisas da natureza, nem à das coisas da cultura ou feitas pelo homem? Mas sejam como forem, todas essas coisas, e suas coisalidades, se acham numa ordenação classificatória da mais geral para a específica, e desta para a individual: p. ex. peixe, lambari, este lambari etc. O nosso interesse a seguir seria o de observar que aqui se dá uma pequena distinção, a saber: usualmente nós pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. E a coisalidade de cada coisa como que indica a classificação específica e geral que subsume sob sua classificação as coisas individuais. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisa a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. Isto significa que se dá aqui uma espécie de coisalidade das coisalidades das coisas. Assim, com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação” contém sob a extensão do seu modo de referência como “ser-algo” todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo homem”. À coisalidade da classe “coisa”, pertencem primeiramente as “coisas produzidas pela natureza, mas também os objetos produzidos pelo homem. Nessa última acepção coisa exerce a mesma função de algo. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou inteiramente vazios de conteúdo ou prenhes de possibilidades concretas de conteúdo.

Em alemão, como acima mencionamos na nota, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Por enquanto, provisoriamente sem muita precisão nem certeza, talvez possamos dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisalidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de obra artesanal, feita à “mão”; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse como “a coisa ela mesma”. Sache possui o mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heróica, mito, indicando a “coisa” toda própria, referida à tradição antiga, primitiva e originária no início da história.

Repetindo, observemos aqui que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que poderíamos chamar de entidade das coisalidades das coisas. São, portanto, cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não é muito preciso a gente chamar esses termos de classificatórios. Pois classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo” plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa e, no entanto, não se iguala a ela. Por isso, aqui, em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua entidade. Mas então, o que é horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado, talvez possamos dizer: Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm de encontro a nós, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinação de ser. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. É o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache, há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicâncias”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicâncias, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber, como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicâncias de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa auto-identidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa único singular perfilação do abismo insondável de ser. A referência do termo coisalidade ao horizonte e muito mais ao mundo, portanto, a coisalidade como horizontalidade ou como mundidade começa a mostrar uma implicação muito estranha na coisa, junto da coisa, tenha ela a acepção que tiver, seja qual for a sua significação dentre as acima mencionadas. Em que sentido?

De tudo isso que até agora, como que provisoriamente, refletimos da complexa acepção da palavra coisa, talvez possamos acentuar a observação de que o exame da coisalidade é de decidida importância para determinar melhor o que é a coisa ela mesma. E que o exame da coisalidade, i. é, do caráter do ser da coisa, nele mesmo, está intimamente ligado com o exame da sua referência ao interesse, a partir e dentro da qual, está implicada com o ponto de vista ora como classificação generalizante ou espaço vazio, aberto, ora como horizonte ou mundidade, que está intimamente ligada ao ser do homem. Ao homem a quem a coisa aparece ora como isso, ora como aquilo no modo de ser da sua presença como coisa.

Depois desses arrazoados bastante enrolados, fixemos ainda que provisoriamente a seguinte observação: à primeira vista, quando falamos de coisa ela mesma, da coisa e da sua coisalidade, tudo isso se localiza diante, ao lado, ao redor de nós, como a realidade em si, independente, sem referência imediata a mim ou a nós como sujeitos. E assim nós nos achamos usualmente, de “imediato”, virados para as coisas, com elas nos relacionamos como a objetos, i. é, a entes colocados diante de nós. E somente nos apercebemos a nós mesmos, enquanto também nos colocamos diante de nós mesmos como “objetos” da nossa captação. E quando me pergunto: quem capta a mim mesmo, quando me coloco diante de mim como objeto, o sujeito ele mesmo da captação de mim mesmo como objeto, como sujeito objetivado, se retrai, e não o capto enquanto sujeito, mas sempre de alguma forma como objeto. Assim, surge um estranho estado de coisas onde temos “diante” de nós coisas-objetos e coisas-sujeitos, dentro da totalidade que abrange esses dois tipos de coisas, como seu horizonte. E, no entanto, isso que aqui aparece como horizonte, como totalidade, como mundo, pode ser que não seja outra coisa do que a projeção do sujeito enquanto sujeito no seu ser que se retrai, objetivando-se como o espaço a partir e dentro do qual nos vêm ao encontro os objetos. Seria possível aqui suspeitar que toda e qualquer presença totalizante como horizonte, mundo, abrangência, imensidão, profundidade, e mesmo classe, setor etc. são projeções a modo de tematização do sujeito operativo que no retrair-se constitui a estruturação da unidade da “realidade” que vem ao nosso encontro como “objeto”? E usualmente, em nosso cotidiano banal, esse estado de coisas é colocado dentro do esquema de relacionamento sujeito e objeto, a modo de relacionamento entre coisa e coisa, embora coisas diferentes. Esse estado de coisa, que aparece na sua coisalidade, no e a partir do inter-esse, da referência ao homem, visto na sua dinâmica concreta, se chama fenômeno. Assim, a coisa e sua coisalidade, intimamente implicada com o interesse, com o ponto de vista, ora como horizonte, ora como mundo, tenha talvez muito a ver com fenômeno e sua fenomenalidade, na fenomenologia. É interessante observar que para os gregos, na antiga Grécia, donde provém a filosofia, a palavra variante para a coisa que é o ente (ón, –tis), se referia à mesma coisa a que se referia a palavra fenômeno (phainómenon).

  1. Fenômeno e sua implicação

Usualmente entendemos por fenômeno algo ou alguém, cujo ser ou atuação aparece num aspecto extraordinário. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantástico[9].  Nas palavras fenômeno e fantástico aparece o verbo grego phainésthai, que significa aparecer. Aparecer é mostrar-se, vir à luz.

2.1. Fenômeno

É comum representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido, atrás ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.

O aparecer do fenômeno, no entanto, não diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrás dela. Refere-se antes à autoapresentação ou autopresentação ou à intensificação de uma presença. Nesse sentido é algo como luzir, incandescer. É tomar corpo, crescer no sentido da expressão cresça e apareça. É, pois, surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presença. Para podermos ver melhor de que se trata quando falamos do fenômeno como autopresença ou intensificação de uma presença, examinemos brevemente o que Ser e Tempo nos diz da expressão grega phainómenon:

“A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim, phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha– como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com  ta ónta (o ente)”[10].

O verbo do qual deriva a expressão fenômeno é medial. Como em português não há a forma medial; phainómenon é traduzido ou no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ação do verbo medial não é nem ativo nem passivo. Não seria, porém, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinâmica toda própria, um médium atuante, anterior à divisão em disjunção ativa e passiva. Usualmente, quando falamos de ação e atuação, representamos alguém ou algo causando uma força sobre um alguém ou um algo. Assim quem causa uma ação e a própria força atuante são ativas; quem ou o que recebe, padece ou sofre a ação é passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se dá o reflexivo: o agente é ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo não coincidem. Aqui o ser da iteração entre ativo e passivo e reflexivo é de tal feitio que é sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ação do verbo medial não pode ser captado, reduzindo-o à unidirecionalidade de flecha na iteração ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato é o que está dito na expressão: fenômeno, i. é, o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato são: em vindo ao dia, à luz, em colocando-se às claras, em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se[11]. O abuso do gerúndio, na forma em <…>ndo, aqui, é de propósito. Tenta insistir na consideração de que é necessário captar esse modo de ser da ação medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ação medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato por ser simples. Só que o imediato e o simples não pode ser percebidos no seu ser, a não ser que a percepção, ou melhor, a recepção seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ação pede a captação imediata da realidade, antes da sua divisão e classificação em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo, de tal sorte que a ação ou ato é ‘anterior’ ao sujeito e objeto, é a dinâmica do todo, em sendo[12]. Ademais, aqui, o que nos pode dificultar a perceber de que se trata, é a conotação que todas essas expressões trazem consigo de visualização[13]. Aparecer, mostrar-se à luz, vir à claridade do dia, no entanto, não tem primariamente muito a ver com visualização. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepção do que é em se mostrando a ele mesmo, é anterior a toda e qualquer visualização. Visualização é a maneira projetiva da objetivação interpelativa, pela qual colocamos o fenômeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.

Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivação interpelativa, não percebemos que o que nos vem ao encontro como objeto, coisa ‘em si’, ‘real’, não coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas é algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivação interpelativa é uma das modalidades da objetivação. Aqui, para percebermos de que se trata, quando falamos do fenômeno como o que se mostra, a ele mesmo, anteriormente a toda e qualquer visualização da objetivação interpelativa, hodierna, reflitamos um texto acerca do que seja objetivação.

2.2. Excurso: Objetivação

O que é objetivação, objetivar? A esse respeito responde Heidegger numa carta de 11.03.1964, endereçada aos participantes de um diálogo teológico sobre O problema de um pensar e falar não objetivantes na teologia, hoje[14]: Objetivar

“é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar. E o que significa objeto? Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro, em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum  significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas[15]. A significação das palavras subiectum e obiectum é em comparação com a nossa usual hoje, justamente a inversa: subiectum é o para si (objetivamente) existente, obiectum, o apenas (subjetivamente) representado”.

“Em conseqüência da transformação do conceito de subiectum por Descartes (cf. Holzwege, p. 98ss), também o conceito de objeto veio a se transformar. Para Kant, objeto significa: o contra-posto[16] existente da experiência das ciências naturais. Cada objeto é o contra-posto, mas nem todo contra-posto (p. ex. a coisa em si) é um possível objeto. O imperativo categórico, o ter que ser ético, o dever não são objetos da experiência das ciências naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles não se tornam por isso objetivados.”

Mas o que é, pois, o acima mencionado contra-posto que não é objeto das ciências naturais? Diz Heidegger:

“A experiência cotidiana das coisas no sentido lato não é nem objetivante nem é uma contra-postatização[17]. Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contraposto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.

A seguir dá uma outra ilustração: “Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá, como um objeto das ciências naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus ”.

Nesse texto, o que corresponderia ao fenômeno, o manifesto, o em se mostrando a ele mesmo, o ‘aparecido em aparecendo’, no sentido medial? A tentação é de responder: o que está além ou aquém de toda e qualquer objetivação. Seriam então: o ser rubro da rosa? O Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus? ‘Isto’, esse ‘algo’, que não é nem isto nem aquilo, isto que não é, e nem está em nenhum algo, a saber, nem no jardim, nem na rosa que balança de lá para cá e de cá para lá, nem na estátua de mármore, é isto a manifestação, o aparecer, a mira, a maravilha, o transluzir, que está insinuado, quando Heidegger formula o aparecer do Apolo, o fenômeno Apolo, dizendo: como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus? Mas em que sentido insinuado? É que a palavra alemã para expressar a beleza é Schönheit. Schönheit vem do verbo scheinen. Scheinen significa parecer. Mas essa acepção já é algo derivado[18]. Originalmente significa luzir, esplender, brilhar. Por isso,  phaínesthai é dito como trazer ao dia, vir à luz, colocar-se às claras. Daí a referência do fenômeno à claridade, à luz. Só que essa referência à luz e à claridade deve ser captada de modo todo próprio e não a grosso modo ou ao modo de “de-mostração berrante”, extrovertida da exibição à luz néon, fria, branca, escancarada, sem nuances de sombra. Não se trata também de uma iluminação, feita de fora sobre uma coisa. O modo de mostração do scheinen é algo como transluzir a modo de incandescência. É uma aclaração, o tomar corpo como claridade[19]. É o modo de aparecer do luar. Mas não no sentido de a lua como uma lâmpada a brilhar aparecer, saindo de trás de um monte e iluminar. Antes, como clarear. Para ver o clarear como transluzir, como incandescência, é necessário, por assim dizer, suspender a tendência do nosso saber de tudo enfocar a partir e dentro de uma explicação causal. Nessa última perspectiva da explicação, a lua, o satélite do planeta terra, ao refletir a luz do sol, é causa de iluminação de uma área escura da terra. Em vez desse modo de ver, ‘real e objetivo’, tentemos ver de imediato, digamos ingenuamente, atentos ao crescer da claridade de toda a paisagem enluarada, a que chamaremos de luar. Reina escuridão. A escuridão antes do luar a clarear, p. ex. numa floresta, não é simplesmente o fato de tudo estar preto; não é apenas ocorrência da falta de luz!… Ela é uma paisagem. Sim um país, um reino, prenhe de perspectivas, planos de presenças de fundo e de superfície, nuances da intensidade e das modalidades de escuridão. A nossa representação da escuridão achata essa paisagem de implicações da multidiversidade da escuridão numa chapa preta homogênea sem nuance e diferenciação ou como superfície de cor preta ou simples ausência da luz. Assim, a nossa representação da escuridão é como a primeira impressão de alguém que entra de dia, numa sala de cinema, e capta o choque da ausência da luz, de sorte que vê tudo preto. Na medida em que o nosso olho vai se adaptando à escuridão, começam a surgir e nos vir de encontro perspectivas, profundidades, silhuetas, perfis, assombreamentos, constelações de diversas pessoas e coisas, enfim toda uma paisagem. Se permanecermos na fixação da representação, por mais que multipliquemos as representações na sua diversidade, jamais percebemos o surgir, crescer e se firmar na dinâmica do todo de tal paisagem da escuridão. No aclarar do luar, o modo de ser e a lógica de sua estruturação são os desse surgir, crescer e consumar-se. Nesse sentido, toda a paisagem que se torna cada vez mais clara emerge da escuridão, que por sua vez possui a sua emergência a partir e dentro da sua própria paisagem da escuridão como acima foi insinuado. Esse movimento do vir a si e o tomar corpo desse e nesse crescimento ou aumento é o fenômeno, o aparecer, o se mostrar ele mesmo.  A dinâmica desse aparecer, o tomar corpo do aumento desse crescer se diz em latim através do verbo latino evideri. Do qual deriva a palavra evidentia, a evidência. O fenômeno é o que se evidencia, a partir de si, a ele mesmo.

Depois dessa descrição do que seja fenômeno, aparecimento, perguntemos: o que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?

2.2.1. Fenômeno e objeto

Acima, à mão do texto de Heidegger, ao falarmos da objetivação e do objeto, distinguimos suas diferentes significações e percebemos diferentes níveis de colocação da questão. Aqui em 2.3, aprofundemos a nossa compreensão do que seja coisa e coisalidade, retomando diferenças de significação sugeridas pelas diferentes palavras tomadas da língua alemã em referência à coisa. E, nessa retomada da nossa busca pela compreensão do que seja coisa, tentemos responder à pergunta acima colocada: o que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno. Antes, porém, observemos e comentemos no texto acima citado de Heidegger alguns pontos de importância para o prosseguimento da nossa reflexão.

Repetindo: “Na Idade Média, afirma ele, em contraste com isso, subiectum  significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas. Aqui, Heidegger usa o termo latino obiectum.  E usa a palavra latina subiectum para dizer o grego hipokeímenon, o qual caracteriza como o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar) o presente, p. ex., as coisas[20]. Essa compreensão é medieval. Na seqüência do texto, ao caracterizar a compreensão do objeto na nossa época moderna, Heidegger afirma que ela é determinada pela transformação da compreensão do subiectum através de Descartes. Aqui, obiectum significa o contra-posto existente da experiência das ciências naturais. A esse tipo de contra-posto, se dá o nome de Objekt em alemão. E o distingue do outro tipo de contra-posto, em alemão Gegenstand. Este é caracterizado como um algo tematicamente representado.

Depois dessas observações, voltemos ao texto onde Heidegger caracteriza o obiectum medieval em contraposição ao subiectum, enquanto tradução do hipokeímenon, portanto, da substância, no sentido medieval. Que coisa é essa?

Na Idade Média, obiectum significa o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar.

Na Idade Moderna, Objekt é o contra-posto como tema do enfoque das ciências naturais. E Gegenstand é algo tematicamente representado (Vollgestellte). Haveria uma diferença decisiva entre “o contra-posto tematicamente representado” e “o lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?

Usualmente não vemos nenhuma diferença essencial entre esses dois tipos de contra-postos. Isso porque entendemos a contrapostatização (Vergegenständlichunmg) num sentido geral de oposição entre Sujeito-Objeto, no esquema do juízo S – P da Teoria do conhecimento. Segundo Heidegger, no entanto, a grande diferença que advém à compreensão do que seja obiectum, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, é causada pela transformação operada na época moderna (Descartes) na compreensão do que seja subiectum. Subiectum na Idade Média é substância. Subiectum na Idade Moderna é sujeito. O que significa tudo isso? Tudo isso, de que se trata?

Em vez de tentar logo responder a essa pergunta, diferenciemos mais ainda a colocação, observando o que diz Heidegger a mais acerca dessa questão da objetivação e do objeto na experiência cotidiana. Repitamos na íntegra o que ele diz:

“A experiência cotidiana das coisas no sentido lato não é nem objetivante nem é uma contra-postatização[21]. Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.

2.2.2. Fenômeno e o representar

Heidegger, no texto acima mencionado, diz do Gegenstand  que ele é “o contra-posto tematicamente representado”. E, ao falar do obiectum no sentido medieval, diz que é: “o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar”. E perguntamos acima se há diferença, e, se houver, qual seria, entre “o contra-posto tematicamente representado”  e “o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?” Essa pergunta, no fundo,  pressupõe na sua pergunta que representar (vorstellen) é um ato semelhante ao aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar. Só que em alemão a palavra vorstellen pode ser lida como indicando um dos atos, ao lado deles, denominado representar, mas também na sua acepção literal de vor + stellen, sugerindo todo um modo de ser. Mas em que sentido? Vorstellen, literalmente, não significa propriamente re-presentar, mas antes uma modalidade toda própria de “contra-pôr”. É que vor significa diante, em frente de, para frente, avançando para frente. E stellen  pôr, colocar na acepção da expressão: “pôr na parede”, “interpelar”, “colocar alguém debaixo de uma exigência”, “intimar a alguém a um interrogatório”. É nesse sentido do stellen que se diz: o policial colocou o criminoso diante de si, na parede, em nome da lei, é o intimou: estás preso!” É o que assim aparece diante de nós, o contra-posto, o Vor-gestellte. É o que poderíamos denominar de ação da pro-ducção interpelativa, entendendo-se a produção como trazer, conduzir para frente, pro-ducere: projetar. E objetivar no sentido da pro-ducção do Objekt tem o modo de ser do vor-stellen todo próprio das ciências naturais, físico-matemáticas. Haveria aqui um vor-stellen, cuja projeção poderia ser chamada de Vergegenständlichung, a saber, uma objetivação cuja pro-dução não é propriamente Objekt, mas sim Gegenstand? P. ex. objeto das ciências humanas, cujo caráter não possui o modo de interpelação produtiva das ciências naturais? Ou toda e qualquer ciência no sentido moderno, seja natural, seja humana, de alguma forma, possui o modo de ser da interpelação produtiva, própria das ciências naturais? E que na Idade Média, seja como for o objeto, jamais teria o caráter de Objekt, mas sempre de Gegenstand, mas em que sentido? Num sentido geral, ou todo próprio, caracterizado pelo sentido do ser que marca a diferença da epocalidade medieval?

E em que consiste a realidade da dimensão da experiência cotidiana mencionada por Heidegger “das coisas no sentido lato” que “não é nem objetivante, nem é uma contra-postatização (Vergegenständlichung)?. Como entender em concreto a descrição:    Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”. Aqui a “rosa a florir sem porque[22] não é Objekt, nem Gegenstand, mas que tipo de coisa é? Ou aqui não se pode mais falar de tipo, mas apenas de coisa ela mesma? Mas em que sentido?

2.3. O que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?

Depois dessas anotações interrogativas do excurso, à mão do acima citado texto de Heidegger sobre a objetivação, observamos a diferença de impostação na compreensão da realidade entre a Idade Média e Idade Moderna. A diferença provinha da realização da realidade, a partir, dentro e através da pré-compreensão do que seja o ente na sua totalidade, ou melhor, o ente no seu ser, fundamentada na categoria de fundo chamado substância (originariamente, i. é, em grego, hypokeímenon) na Idade Média e a sua substituição, ou melhor, transmutação dessa categoria de fundo-substância em sujeito da subjetividade, cuja objetividade produz o objeto. Essa nova realização da realidade, essa nova pré-compreensão do ente na sua totalidade, abriu a possibilidade da exigência de colocar a pergunta acerca da coisa e sua coisalidade, portanto, da questão da coisa ela mesma dentro de uma nova perspectiva, na qual a coisa na sua coisalidade é entendida dentro da objetivação e sua objetividade, como coisa, i. é, causa da produção da “realidade”, enquanto objeto, i. é, enquanto o que vem de encontro como resultado do lance do projeto do homem, sujeito e agente e medida de todas as coisas. Nesse sentido hoje, quando usamos o termo coisa e seus similares como algo, objeto, ente, ser, em alemão Gegenstand, Ding, Sache, de imediato e na maioria dos casos, pensamos objeto, segundo o projeto da interpelação produtiva impregnada da dinâmica das ciências naturais sob o poder da tecnologia, portanto pensamos Objekt, e a partir dali nos indagamos: como é, o que é, a realização da realidade p. ex. dos medievais, onde a realitas significava substância e seus acidentes, em cuja coisalidade ainda podemos ouvir a tonância do hypokeímenon da antiga Grécia, cuja percussão originária tenha sido talvez bem diferente da que ouvimos hoje na repercussão medieval e repercussão dessa  na nossa modernidade na perspepctiva da objetividade do “Objekt” da Subjetividade científico-tecnológico. Essa questão então no texto de Heidegger aparece formulada no aceno, através do qual nos surgem as perguntas: em que consiste a realização da realidade, que é anterior a todas essas objetivações epocais? Como se deve entender essa anterioridade e a sua temporalidade, se o tempo da história dessa transmutação da causa da coisa ela mesma é medida e é produzida pela interpelação produtiva presente de modo quase totalitário na impostação da predominância das ciências e tecnologias historiográficas, produtos da mesma interpelação produtiva acima mencionada, como objetos do projeto da subjetividade moderna?

2.4. Emaranhados na questão chamada coisa da fenomenologia

Repetindo resumidamente o que dissemos da coisa como do objeto, temos: 1. obiectum e subiectum da Idade Média; 2. a transformação do conceito subiectum, enquanto substância, para sujeito; 3. Objekt; e 4. Gegenstand como contra-posto de tipos diferentes tematicamente, do representar, em alemão, do Vorstellen; 5. coisas, cujo ser não é nem a modo de Objekt nem a de Gegenstand, mas do aparecer, do se mostrar, do fenômeno. Se, agora, ligarmos os itens acima resumidos do que foi rapidamente dito acerca da objetivação e suas implicações, de repente, ou aos poucos, surge uma suspeita: quando a esse conjunto de anotações demos o título À coisa ela mesma, fenomenologia? Mencionamos a palavra coisa, cujos termos afins são objeto, ente, algo, em alemão, Objekt, Geegenstand, Ding, Sache, das Seiende, etwas, não estávamos a  adentrar as implicações complexas de uma questão filosófica, cuja busca é o inter-esse e a paixão do modo de ser e pensar denominado fenomenológico? Surge assim a pergunta O que é a fenomenologia.

  1. Fenomenologia, logos e -logia, suas traduções

3.1. O que quer dizer logos?

O título Fenomenologia se compõe de duas palavras fenômeno e logia. Esta vem da palavra grega lógos. Mencionemos brevemente o que e como se deve entender por logia, da palavra fenomenologia, segundo o que Heidegger expõe. Resumamos assim o § 7. B (O conceito de Logos) do Ser e Tempo, p. 32-34:

2.1. O que quer dizer logos?

O conceito de logos é múltiplo, no qual as diversas significações parecem tender para diversas direções sem congruência, enquanto não conseguirmos captar de modo próprio o seu sentido fundamental, uno no seu conteúdo primário, originário grego. É usual dizer que logos significa fala. Essa tradução é somente válida na medida em que, nessa tradução literal, a nossa compreensão atual consiga ouvir e entoar a tonância disso que logos ele mesmo como fala propriamente quer dizer. As múltiplas e arbitrárias traduções provenientes de uma interpretação das filosofias posteriores entulham e encobrem o sentido próprio do que seja a fala, que nos gregos está à luz do dia, simples e claramente. Essas traduções defasadas e impróprias seriam p.ex., razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação. Traduz-se logos também como sentença, enunciação, discurso. Mas se entendermos todos esses termos como juízo, e o juízo como ligação (entre S e P ou S e O) ou tomada de posição (o reconhecer e o rejeitar da ligação), tudo isso dentro da assim chamada “teoria do juízo” na teoria de conhecimento, falseamos o sentido próprio e fundamental da palavra logos.

Assim, segundo Heidegger, lógos como fala diz antes de tudo delõun, fazer patente, isto do qual na fala “vem à fala”. Aristóteles explicitou essa função da fala com maior acuidade como apophaínesthai[23]. Logos deixa ver (phaínesthai) algo, a saber, isto, sobre o qual é a fala e quiçá para o falante (Médium), respectivamente, para os falantes uns com outros mutuamente. A fala “deixa ver apò… a partir disso mesmo, do qual é a fala.  Na fala (apóphansis), na medida em que ela é autêntica, isto que é falado deve ser exaurido, a partir disso sobre o qual é falado, de tal modo que  a transmissão falante no seu falado, faz patente isso, sobre o qual fala e assim o faz acessível ao outro. Esta é a estrutura do logos como apóphansis. Não se apropria a cada “fala” esse modo do fazer patente no sentido do deixar ver manifestante. O pedido (euché) p. ex. faz também patente, mas num outro modo”.

Na sua realização concreta esse deixar ver acontece como sonorização em palavras. Assim, logos é “phonè metà phantasie”, i. é, sonorização vocal, na qual cada vez algo se mostra. É essa função de apóphansis, o logos que faz com que ele tenha a estrutura de sýnthesis. Síntese não tem aqui o significado de ligar e atar representações, lidar com ocorrências psíquicas, fazer com que haja concordância da vivência psíquica interna com o seu corresponde exterior etc. “O syn aqui tem a significação apophântica e quer dizer: deixar ver algo no seu ser-junto-com algo como algo”. Como deixar-ver, logos pode ser verdadeiro ou falso, não porém, na acepção da verdade como adequação, concordância, do juízo como o lugar da verdade. A definição da verdade como adaequatio rei et intellectus não nos conduz à intuição originária da captação do que seja primariamente a verdade, que em grego se diz alétheia.

O “ser verdadeiro” do logos como aletheúein diz: recolher do seu velamento o ente, do qual é a fala, no légein como apophaínesthai e deixá-lo ver como desvelado (alethés), descobrir”. “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos, é a aísthesis, o singelo colher sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver às cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido ”verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”.

E explicando porque dessa compreensão direta e simples do logos, surgiram traduções de logos como mente (Vernunft), ratio (razão), fundamento, relação, Heidegger conclui a sua exposição, dizendo: “E porque a função do logos está no singelo deixar ver de algo, no deixar colher (Vernehmen) do ente, logos pode significar mente (Vernunft). E porque de novo logos é usado não somente na significação de légein, mas ao mesmo tempo na do legómenon, a saber, o mostrado como tal, e porque este não é outra coisa do que o hypokeímenon, a saber o que jaz no fundo ocorrendo para toda abordagem e toda consideração, logos enquanto legómenon diz também fundo, fundamento, ratio. E finalmente, porque logos enquanto legómenon pode significar: isto que como algo abordado se tornou visível na sua relação para com outro, no seu ser “relacionado” logos recebe a significação de Relação e referência”.

Não vamos agora comentar nem analisar mais a fundo esse texto acima exposto. Tudo isso o faremos no decorrer das seguintes anotações, mais indiretamente do que tematicamente, embora examinemos também tematicamente o texto em questão.

2.2. Logos e aisthesis: a Wahrnehmung

Aqui, por enquanto, apenas destaquemos um ponto que será de importância para mais tarde. O ponto a ser destacado se resume na seguinte frase acima citada: “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos é a aísthesis, o recolher e acolher singelo sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver às cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido” verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”. A importância desse texto destacado para a nossa compreensão da fenomenologia é que nesse texto breve está dito o que e como devemos entender aquilo que constitui a essência da mostração, o ser da presença corpo a corpo da coisa ela mesma, da evidência do ser que recebeu o nome de “Wahr-nehmung”, e que muitas vezes em certas exposições ligeiras da fenomenologia é de alguma forma identificada com a apreensão sensível dentro do esquema de oposição, tradicional: mundo sensível e mundo inteligível. O nosso inter-esse jaz na identificação que é insinuada no texto acima mencionado entre aisthesis, lógos e nõus como o límpido, puro  deixar ver, como o colhimento do alethéuein.

Resumamos brevemente os vários momentos de nossa reflexão até agora. Seguindo a seqüência das palavras que constituem o título do trabalho “O que é a coisa ela mesma, na fenomenologia” tateamos, num modo bastante provisório: 1. várias significações da palavra coisa e similares, tentando observar que elas apresentam variações e diferenças de nuance no modo de ser da intensidade do horizonte ou de mundidade, a partir e dentro da qual faz aparecer o ente no seu ser; 2. a significação do que seja fenômeno, seguindo as insinuações da palavra fenômeno, em grego phainómenonphaínesthai como o mostrar-se de algo ele mesmo como autopresentificação; 3. e mencionamos algumas implicações da terminação logia, da palavra fenomenologia, citando a breve exposição de Heidegger acerca de logos, na sua interpretação toda própria.

2.3. Fenomenologia

Depois de tudo isso, concluamos essas anotações, citando, como uma compreensão ainda provisória, o significado da fenomenologia no Ser e Tempo: “Tornando concretamente presente o que resultou da interpretação de ‘fenômeno’ e ‘logos’, salta aos olhos uma referência interna entre o que é pensado com essas palavras. A expressão Fenomenologia deixa-se formular gregamente: légein ta phainómena; légein diz, porém apophaínesthai. Assim Fenomenologia diz: apophaínesthai tà phainómena: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo. Este é o sentido formal da pesquisa, que se dá a si mesma o nome de fenomenologia. Com isso, porém, é expressa nada mais que a máxima acima formulado como: Zur Sache selbst, i. é, “À coisa ela mesma”.

Assim, chegamos à conclusão, ainda que provisória: a convocação que está na palavra fenomenologia, enquanto deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, é expressa numa outra formulação: à coisa ela mesma (Zur Sache selbst!). Diante dessa convocação, porém, segundo o título da nossa reflexão, perguntemos, em repetição: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo? Dito com outras palavras: O que é fenomenologia? Ou ainda numa outra formulação: O que é à coisa ela mesma?

E porque, como acima foi mencionado, à coisa ela mesma é o mesmo que fenomenologia, e porque fenomenologia diz deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, a interrogação o que é fenomenologia agora pergunta: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo?

A pergunta tem por objeto “deixar ver”, portanto, um ato do sujeito homem. E formula o seu interrogatório: o que é?… A pergunta cujo feitio tem a forma de o que é? chama-se pergunta essencial ou pela essência, ou pelo ser do ente e pelo ente do ser que está em jogo. Assim, ao submeter um objeto ao seu interrogar, a pergunta o coloca como um “que” e indaga acerca do seu ser. Assim a pergunta tem diante de si um  “quê”, um ente, interrogado pelo seu ser. Ente e Ser, ente no Ser e Ser no ente. E a pergunta ela mesma pode se virar sobre si mesma e também se colocar como um “que”, como um ente e se interrogar no seu ser.

Isto significa, porém, que ao iniciarmos a reflexão intitulando-a À coisa ela mesma, a Fenomenologia?, a própria colocação inicial já estava determinada a posicionar o que quer que fosse, o que quer que ela tocasse na sua interrogação, como ente interrogando-o no seu ser.

2.4. Fenomenologia como questão do sentido do ser[24]

A pergunta que interroga o ente no seu ser se chama questão do sentido do ser. Questão significa busca.

Segundo Ser e Tempo, § 2 (A estrutura formal da pergunta pelo ser), numa busca temos o que buscamos. O que buscamos é o ser, ou melhor, o sentido do ser. Não encontramos o sentido do ser como isso ou aquilo, não como algo, como ente, como objeto, como o contra-posto, seja ele de que feitio for, não como coisa-Ding, coisa-Sache. Tudo isso que nomeamos como termos indicativos afins ao ente, que aparecem como coisas de infinitas variações, nuances e diferenciações, são como que lugares, situações, a partir e dentro das quais a busca procura o seu buscado, o Ser, submetendo o respectivo ente sob o interrogatório acerca do seu ser. Essa situação da busca se perfaz numa estruturação de colocação bipolar, na qual num dos polos se acha o interrogante com o seu interrogatório e no outro o interrogado como ente-objeto, contraposto ao quem interroga. Surge assim uma interação, um intercâmbio de dois tipos de ente, denominados usualmente como sujeito e objeto[25]. Esta estruturação pode se dar em diferentes complexidades de interação, e em interpretações diferenciadas, mas como tal, por assim dizer, estatui o modo de agir e ser do que denominamos conhecimento, cuja estruturação está baseada na definição tradicional da verdade como adequação da coisa e do intelecto,[26] cuja esquematização se fixa como relação S – O, refletido na fala lógica como S-P, i. é, conhecimento como juízo. Essa fixação é algo como redução da questão do sentido do ser à estrutura da teoria do conhecimento, insuficiente para levar à consumação a busca, na sua radicalidade. Assim, substitui-se por doutrina e teoria dogmatizada do conhecimento, a questão do sentido do ser que se perfaz como busca do sentido do ser na situação do ente submetido ao interrogatório acerca do seu ser, a partir e dentro do qual pode emergir o vir à fala do ser no seu sentido, não como ente, como algo, não como algo-sujeito, nem como algo-objeto, nem como algo comum de dois, mas como pregnância de uma presença toda própria como ente-no-ser e ser-no-ente.

A fenomenologia, como deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo é a tentativa de fazer retornar a busca da verdade enquanto questão do sentido do ser, libertando-a desse aprisionamento impróprio da sua essência dentro da camisa de força da teoria do conhecimento, a convocando à volta para a coisa ela mesma, i. é, à causa ela mesma da sua dinâmica, evocada na própria expressão fenomenologia , i.é, deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delõun.

II – FENOMENOLOGIA

Como manifestação filosófico-cultural, fenomenologia é uma das correntes, escolas e movimentos filosóficos do fim do século XX[27].  O iniciador, fundador da fenomenologia é Edmund Husserl. Mas quem trouxe à luz a essência da fenomenologia como repetição e retomada da questão do sentido do ser é Martin Heidegger. Falando da fenomenologia, na consideração, intitulada O meu caminho na fenomenologia, escrita por ocasião do 80º aniversário de Hermann Niemeyer, em 16 de Abril de 1963, respondendo a pergunta, feita por ele mesmo acerca da fenomenologia, diz Heidegger: “E hoje? O tempo da filosofia fenomenológica  parece que se foi. Ela já vale como algo passado,  assinalado apenas ainda historicamente ao lado de outras correntes da filosofia. Só que a fenomenologia no que é o seu, o mais próprio, não é nenhuma corrente. Ela é de tempos a tempos possibilidade mutante e somente assim permanente do pensar, de corresponder à demanda do que é digno de ser pensado. Se a fenomenologia é assim experienciada e conservada, ela pode então como título desaparecer, a favor da coisa do pensar, cuja clareira permanece um mistério[28]. Fenomenologia, no que há nela de mais próprio, é a causa, o âmago, o coração, a saber, o mistério, i. é, o que há de mais íntimo e próximo ao pensar. Como tal, ela é cada vez atinência íntima à aberta da eclosão do mundo, de tal modo que o seu surgir, crescer e se consumar se perfaz cada vez como historiar-se na in-sistência na factualidade do tempo de sua situação histórica, de tempos a tempos. O lugar, a situação histórica onde se dá o surgir iniciante da questão chamada fenomenologia pode ser expresso, formulado em termos de alguns problemas filosóficos, ocorrentes no fim do século XX, como p.ex. problema do psicologismo; da possibilidade do conhecimento verdadeiro; o problema do realismo e idealismo ou do objetivismo e subjetivismo na teoria do conhecimento; problema da diferença existente entre ciências naturais e humanas; o naturalismo e o historicismo; a História como Geschichte e Historie etc. Todos esses problemas, no entanto possuem no fundo uma implicação profunda com a mesma questão: o que é afinal a verdade? E a verdade é definida nessa implicação, tradicionalmente, como adaequatio rei et intellectus, da qual numa simplificação formal muito grande, surge o esquema do S – O, e na sua projeção no nível lógico como esquema do juízo S- P. E dentro desse esquema se discute então o problema do realismo e do idealismo na teoria do conhecimento, na manualística da filosofia.

A seguir na nossa breve exposição simplificada do que seja fenomenologia, num modo mais temático e explícito do que já ocorreu acima, tomemos no início como fio condutor o problema do realismo e idealismo na corrente da teoria do conhecimento, mas que p. ex., no início da pesquisa fenomenológica de Husserl, tomou a forma do confronto com o assim chamado psicologismo. O que estava em questão nesse inicial confronto da fenomenologia com o psicologismo?

Trata-se de uma questão todo especial, surgida bem nos inícios da fenomenologia. Questão essa que, longe de estar resolvida, hoje até caiu no esquecimento como questão e aparece nas diversas disputas acadêmicas, como nas existentes entre as correntes filosóficas de orientação fenomenológica tradicional e assim chamada filosofia analítica da linguagem.

No confronto da fenomenologia iniciante com o psicologismo, estava em jogo a questão da fundamentação das ciências modernas e do papel exercido pela psicologia nos inícios da fenomenologia nesse problema da fundamentação, e ao mesmo tempo, trata-se da questão implícita nessa fundamentação das ciências, a saber, a questão da essência ou ser das ciências.

As ciências modernas, na sua acribia crítica, sempre de novo examinam e reexaminam sua própria fundamentação. O interesse e a preocupação para a necessidade de fundamentar e revisar as ciências a partir dos seus posicionamentos básicos começaram a se avivar intensamente no início do século XX, mobilizados pelo progresso da psicologia experimental. E na perspectiva desse interesse da refundação das ciências, o nome Psicologia não somente indicava essa inquietação pela busca da limpidez da cientificidade do ser científico, mas também uma autointerpretação da psicologia dela mesma como a ciência primeira e última, i. é, como ciência básica, a meta-ciência, que fundamenta todas as outras ciências, quer naturais, quer humanas, no seu ser científico. Essa autointerpretação da psicologia de si mesma como ciência fundamental de todas as ciências formou uma filosofia que recebeu na época o nome de psicologismo, que em breve começou a se des-almar, des-animando a alma para ser o bios da biologia, e des-vitalizar o bios para ser energia da ciência físico-matemática, recebendo sucessivamente o nome de biologismo e naturalismo ou fisicismo. Portanto, repetindo, o psicologismo é uma corrente filosófica que coloca a psicologia moderna experimental como ciência básica que fundamenta todas as outras ciências.

Fenomenologia surge, de início, como confronto com o psicologismo.

  1. O problema do psicologismo

De uma forma bastante simplificada e talvez até ingênua, podemos caracterizar o problema do psicologismo mais ou menos da seguinte maneira: as ciências, sejam elas naturais ou humanas, são conjuntos sistemáticos de conhecimentos. Enquanto conhecimentos são atos de intelecção, juntamente ao lado dos atos de volição e de sentimento. Esses atos, na época também chamados de vivências, são fenômenos psíquicos, fenômenos inerentes e provenientes da psique humana. Toda ciência tem o seu objeto próprio e o ato da intelecção que constitui o(s) conhecimento(s) desse mesmo objeto. Embora as ciências sejam diferentes entre si no seu objeto, elas todas têm em comum serem sistematização de conhecimentos, de produtos dos atos de intelecção. Sem referência à intelecção, ao ato do intelecto, que num sentido mais vago e geral também pode se chamar de atos psíquicos do sujeito-homem ou de atos da consciência, não haveria nenhuma ciência. P.ex. um objeto enquanto coisa, ali simplesmente dada, que exista em si, sem nenhuma referência ao sujeito humano ou à consciência humana, não teria nenhum sentido, pois algo em si, sem nenhuma referência ao homem já é uma referência. Ora, entre as ciências, existe uma que tem por objeto os atos psíquicos em geral e em particular: é a psicologia. Portanto, a psicologia tem por objeto os atos psíquicos, i. é, o elemento constitutivo do conhecimento, do saber humano, portanto das ciências. Assim, a psicologia, como ciências dos “fenômenos psíquicos” é a ciência primeira e básica que fundamenta todas as ciências.

No ano 1900 saiu publicado o I volume das Investigações lógicas de Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. O livro causou um grande impacto no mundo acadêmico da época. Pois, ali, Husserl se confronta de um modo contundente com a tese do psicologismo. Mostra que p. ex. objetos-ideais como as estruturas matemáticas, lógicas etc. não podem ser reduzidos na sua objetividade a atos psíquicos da intelecção, os quais têm propriedade de serem atos passageiros, mutáveis, sujeitos à evolução psicossomática do ser humano. Se for assim que estruturas lógico-matemáticas como p. ex. 2+2=4 possam ser reduzidas em última análise ao ato psíquico da sua intelecção, poderia no futuro acontecer que, elas, pela mudança p. ex. do cérebro humano pela evolução, não mais fossem verdadeiras. A tese de que as estruturas lógico-matemáticas que regem os atos do pensar são na realidade momentos do próprio ato, e que por isso mesmo estão sujeitas às mutações biológicas constitui a posição fundamental da filosofia que agora não mais se chama psicologismo, mas sim biologismo. E dando mais um passo adiante, a tese de que as mesmas estruturas ideais estão sujeitas às leis de transmutações físicas puramente corporais materiais recebeu a qualificação de serem naturalistas, daí o naturalismo ou de serem fisicistas, daí o fisicismo. Assim, psicologismo, biologismo, naturalismo e fisicismo indicam uma mesma e única tendência, na qual se processa a redução de diferentes dimensões da realidade às estruturas psíquicas, destas às psicossomáticas, depois destas às biológicas, e por fim às físico-energéticas da física nuclear.

A reação de Husserl ao psicologismo no I volume das investigações lógicas foi saudada com simpatia e entusiasmo pelos que na questão da verdade pertenciam ao realismo na teoria do conhecimento[29]. O I volume das Investigações lógicas parecia ter retomado a posição do realismo através da doutrina da intencionalidade. Em distinguindo claramente o conhecimento, entendido enquanto o conteúdo objetivo e o conhecimento enquanto o ato do conhecer e resgatando o aspecto objetivo da referência do conhecimento à realidade, existente em si, independente do ato de conhecer, a fenomenologia das Investigações lógicas, ao mesmo tempo que combatia o relativismo do psicologismo, mostrando-lhe a impossibilidade de identificar o conteúdo objetivo simplesmente com o ato fugaz e passageiro do ato de conhecer, parecia ter re-introduzido o conceito da intencionalidade da escolástica medieval no mundo acadêmico-filosófico, dominado pela teoria do conhecimento de cunho subjetivo-idealista. Essa recepção da fenomenologia, feita a modo do realismo, fomentou a busca cada vez mais diferenciada na descoberta de diferentes tipos ou classes de objetos. Começou-se assim a distinguir objetos-coisas, objetos-valores, objetos-ideais, objetos-etiológicos, estéticos etc. e tudo isso em acentuando a “ocorrência” de todos esses tipos de objetos como “realidades” em si, cada qual a seu modo, entendendo-se a palavra realidade num sentido bem lato, não restrito ao modo de ser em si das coisas físico-corporais. Abre-se assim a possibilidade de uma fenomenologia “realista”, na qual se aprimora na descrição detalhada do objeto dado, sob diferentes ângulos. A fenomenologia que permaneceu nesse nível de colocação realista recebeu muitas vezes o nome de fenomenologia descritiva[30].

Entrementes, na autocompreensão da fenomenologia começou-se a perceber que essa maneira de entender a intencionalidade não correspondia à grande descoberta de Husserl, a qual chamou de intencionalidade. Com a descoberta da intencionalidade, no sentido todo próprio de Husserl, a fenomenologia rompe com a camisa de força em que ela foi colocada na autointerpretação inicial, como sendo uma nova teoria de conhecimento. Com a descoberta da intencionalidade, Husserl inaugura uma abordagem do conhecimento, não mais a partir da teoria do conhecimento, inteiramente dentro da bitola da definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus, mas a partir e dentro da questão do sentido do ser, a partir da “ontologia” toda própria e nova na indagação mais vasta e mais radical do ser do próprio ato, não mais entendido usualmente como referido ao sujeito, à consciência, ao intelecto, mas como o modo de ser sui generis: como intencionalidade.

  1. A intencionalidade

É sempre difícil entender e dizer adequadamente o que a fenomenologia convencionou chamar de intecionalidade, livre inteiramente da tendência realista da teoria do conhecimento[31]. Na tentativa de compreender a intencionalidade fenomenológica da melhor forma possível, mais condizente com ela, voltemos à obra de Franz Brentano, intitulada Psicologia sob o ponto de vista empírico[32], donde Husserl intuiu a ideia da intencionalidade.

Na p. 115 da acima mencionada obra diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Uma afirmação banal em que, se não a captarmos com precisão, nada encontramos de novo, nada que denote uma descoberta importante, a não ser o óbvio de uma constatação, conhecido por todos, na teoria de conhecimento. Conforme essa compreensão óbvia há, de um lado, a coisa em si, e de outro lado o sujeito humano com seus atos psíquicos, i. é, fenômenos psíquicos, de diversos tipos como representação, juízo, volição, apreensão etc. Esses atos psíquicos se caracterizam como intenções, i. é, o ato de tender em direção a (in-tendere). Cada uma dessas in-tenções se dirige a, e tem na ponta da sua tendência um objeto, cada vez seu, para o qual está apontando. Assim compreendida, a intencionalidade não nos revela realmente de imediato, o que digamos, corpo a corpo, em carne e osso, i. é, como a coisa ela mesma, experienciamos no nosso vivenciar. É que no modo usual de “descrever” a intencionalidade, não percebemos que todos os elementos que constituem o esquema sujeito-ato-objeto já estão prefixados como: duas substâncias-coisas ocorrentes e enfileiradas uma ao lado da outra, ligadas por uma relação, que por sua vez, não passa de uma representação vaga e sem conteúdo de ligação, i. é, de relação, como uma linha geométrica, reta entre dois pontos. Talvez seja por isso que Brentano não diz: cada sujeito com o seu ato, mas sim, cada fenômeno psíquico.

Como entender, pois, a afirmação de Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”? Não se pode perceber o que intuiu Husserl nessas frases se continuarmos a interpretar a colocação de Brentano dentro do esquema usual da intencionalidade como “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele, através do ato de conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.” Mas, por quê? Porque o indicado, o apontado pela frase “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante de dele através do ato” não é vivência do ato, mas sim produtos, i. é, resultados constituídos num processo de objetivação. Se somos assim que não percebemos tratar-se aqui de produtos de objetivação, e nos representarmos esses produtos simplesmente como entes reais em si, acontece então conosco o seguinte processo: primeiro, isolamos os produtos da objetivação, separando-os do processo de objetivação, hipostatizando-os ora como coisas em si (substâncias), ora como ‘coisas’ aderentes (acidentes) a outra coisa. A seguir tentamos ligar entre si essas coisas assim hipostatizadas, dizendo-nos mais ou menos “com os nossos botões”: aqui estou, eu, uma substância existente em e por si mesma, diante da qual está uma coisa chamada objeto, que é também uma substância em e por si mesma (ou se não o for realmente existente como coisa física, ao menos tida como algo em si a modo de coisa ideal, coisa psíquica, coisa estética, coisa-valor, coisa supra-sensível etc.), sobre a qual a substância-eu se dirige numa ação, i. é, numa ‘coisa’ chamada intencionar (conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.), que não é propriamente uma substância, mas algo que adere como seu acidente a uma substância. E se alguém nos chama atenção de que todas essas coisas (substâncias: res in se) e semi-coisas (acidentes: res in alio) são como que produtos da ação chamada objetivação, representamos a própria objetivação como acidente inerente a uma substância, chamada sujeito-homem, que por sua vez, através do acidente-ação, se dirige aos objetos, no nosso caso p. ex. sujeito eu, o ato da intencionalidade, a saber, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc. E esse processo, cujo esquema é o do sujeito-ato-objeto, pode se repetir indefinidamente[33].

Mas, então, como entender a frase de Brentano, onde Husserl intuiu a essência da intencionalidade? Devemos entendê-la como acenando para vivência. Antes de percebermos a colocação de Brentano como indicativo da vivência, uma rápida observação sobre o título do livro de Brentano, onde Husserl leu a ‘definição’ do que seja propriamente intencionalidade. O título do livro de Brentano soa Psicologia do ponto de vista empírico. O título pode nos enganar se entendermos a palavra ‘empírico’ na acepção usual hodierna do modo de ser experimental das ciências positivas do estilo das ciências naturais, físico-matemáticas. O empírico assim compreendido é o oposto do especulativo, do não-real, do fantasiado, apenas “fenomenal[34]. O empírico, aqui, deve ser tomado no sentido mais abrangente possível de captação imediata, simples, pele a pele – a tentação é de dizer –, anterior a toda e qualquer elaboração. Só que esse acréscimo desvia a compreensão do caráter empírico que Husserl reivindicava para a sua fenomenologia. Pois dizer anterior a toda e qualquer elaboração dá a entender que no início há o material informe, vago, indeterminado que depois toma forma e concreção; e que o empírico significa captar a realidade elementar ainda intacta[35], no seu estado material. Ao passo que o empírico na fenomenologia significa só e simplesmente o captar, ou melhor, o colher simples e imediato, sem mais nem menos que está expresso no slogan: à coisa ela mesma[36]. Isto significa que, se acaso houver, aqui, apenas dado como suposto, esse processo de elaboração do material indeterminado, vago e informe para a gradual coisificação até o processo se consumar numa hipostatização, a modo de coisa ali presente em si, o captar simples e imediato acolhe cada etapa, cada ligação das etapas, cada crescimento das etapas, cada vez de novo, cada vez simples e imediatamente, sem mais sem menos, assim como tudo isso aparece sempre novo e de novo na sua totalidade. Trata-se da claridade e distinção do tornar-se da e-videnciação, algo como o contínuo e renovado abrir-se da claridade, i. é, da clarificação[37], um surgir incessante, o vir à fala, o vir à luz. Essa claridade dinâmica da e-videnciação, da presenciação é o ponto de vista empírico. Aqui o ponto de vista não é um ponto fixo, a partir do qual se encaixem todas as coisas na perspectiva desse visual pressuposto, mas sim como que ponto nevrálgico, ponto de toque, o fundo do salto, dentro e a partir do qual continuamente brota o vigor elementar do e-videri, a clareira, o olho da luz que, enquanto condição da possibilidade, e enquanto espaço de jogo impregna todos os entes, i. é, cada ente, cada em sendo, cada vez na sua totalidade dinâmica[38]. Todo o segredo da compreensão adequada do que seja a intencionalidade fenomenológica está em compreender com precisão essa evidenciação, i. é, como é o puro ato chamado captar simples e imediato. Como já foi mencionado, para isso devemos fazer o processo de entender o modo de ser do conhecimento como vivência.

Como, porém nos reconduzir à vivência, a partir da representação que fazemos da intencionalidade como relacionamento do sujeito sobre o objeto, através do ato chamado intencionalidade?

Repetindo, diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Brentano não diz: eu, o sujeito-homem, dirijo-me ao objeto através do fenômeno psíquico, do ato. Diz simplesmente: Todo fenômeno psíquico. Em vez de fenômeno psíquico, digamos vivência. Sem “definir” logo o que seja vivência, deixando vago de que se trata, ouçamos: “vivência” contém em si algo como objeto. Se a vivência se chama representação, algo é representado; se juízo, ajuizado ou julgado (reconhecido ou rejeitado); se amor, amado etc. Usualmente no esquema sujeito-ato-objeto temos primeiro o objeto como coisa em si fora, diante, independente de nós, existente em si, ali presente na sua ocorrência, pronto para ser representado, julgado, amado, odiado, cobiçado. O objeto, a coisa em si é por assim dizer, enfocada várias vezes, de modos diferentes pelos atos subjetivos, i. é, do sujeito, denominados representar, julgar, amar, odiar, cobiçar. Na colocação de Brentano, o estado da coisa não é mais assim. Cada “fenômeno psíquico” é cada vez, por assim dizer um todo chamado representação, juízo, amor, ódio, cobiça que cada vez contém o seu objeto que tem cada vez o modo de ser que ele, o fenômeno psíquico tem. É como o fundo, o horizonte, o âmbito aberto, que se estrutura como uma paisagem, no qual estão contidas as coisas, ordenadas como mundo. As coisas da paisagem assim abertas em leques como mundo são impregnadas, são coloridas, segundo o matiz, segundo o modo de ser de cada uma dessas aberturas. Chamemos esse âmbito aberto como mundo, a modo de uma paisagem, de intencionalidade. E ouçamos dentro dessa compreensão o que Brentano diz: “cada fenômeno psíquico contém algo como objeto em si”, visualizando o modo de ser da abertura da paisagem acima mencionada. Talvez, assim, possamos adivinhar de alguma forma o que Husserl poderia ter intuído ao ler esse trecho do texto de Brentano. Se assim é a intencionalidade, então não se trata do ato de um sujeito-homem dirigindo-se ao objeto, existente em si, fora dele. Mas para que a nossa compreensão tenha maior precisão, devemos agora completar a nossa descrição dizendo: o que denominamos acima como âmbito aberto a modo de uma paisagem que se abre em leques de ordenações de detalhes concretos da mesma paisagem como mundo não é algo que está diante de mim como uma paisagem da realidade fora de mim. Antes, esse âmbito aberto com todos os seus “ingredientes” em mínimos detalhes de implicações e explicitações sou eu mesmo, eu mesmo não como esta substância-homem, mas sim como o âmbito aberto vivido na sua concretude, intensidade, no seu desvelamento e velamento, em todas as suas camadas dinâmicas de estruturações como totalidade do mundo, diante de “mim”, ao redor de “mim”, fora de “mim”, dentro de “mim”, enfim, essa totalidade, esse mundo que “me” envolve e envolve todas as coisas. Portanto essa abertura, essa presença é a minha essência, eu sou todo inteiro, tout court, de imediato, esse ser-no-mundo, dito de outro modo: eu sou essa vivência. O que aqui denominamos de vivência coincide com o que acima, ao tentarmos dizer em que consiste o significado do ponto de vista empírico caracterizamos como captar simples e imediato.

A tentativa de dizer o que seja propriamente fenomenologia na nossa exposição se concentra apenas em compreender com precisão esse captar simples e imediato. Para isso, a seguir falaremos brevemente do que se convencionou chamar na fenomenologia de redução, ideação e constituição. Elas são três momentos da intencionalidade, ou melhor, são processos pelos quais e nos quais se dá a intencionalidade.

Antes, porém, de modo provisório e sempre interrogativo, repitamos o que seria Psicologia sob o ponto de vista empírico, se entendermos a empiria como foi insinuado há pouco. A alma (psyché) agora não seria mais aquela da acepção usual, na qual é um dos componentes do ser humano como substância: corpo, alma e espírito. Mas, então, seria a vida como vitalidade biológica no sentido ‘somático-vegeto-animal’? Ou Vida simplesmente na sua compreensão, a mais vasta, a mais profunda e dinâmica possível? Seria Ser, no seu sentido ainda originário como presença do abismo de possibilidade, como plenitude inefável e inesgotável do poder ser, sempre novo e renovado, sempre e cada vez mais origem, arché, ou melhor, hyparché, o nada, tinindo na potência da generosidade de ser?

Sem podermos nem querermos dizer o que é, deixemos abertas todas essas e outras perguntas, não como interrogações que tentam ter respostas que fecham, facilitam e satisfazem a busca, mas que a abrem e a mantêm como questão, portanto como busca que se adentra cada vez mais cordial, generosa e crítica[39] na jovialidade atônita do não saber que se adensa como o tinir do silêncio de ausculta como a espera do inesperado… De repente, talvez, possamos vislumbrar num in-stante o que significa: captar simples, e-videri, ver simples da coisa ela mesma, a imediação do sem mais nem menos. A concentração, a densidade da ausculta que integra essa abertura da espera do inesperado é um dos elementos que constitui o significado da palavra  logia (logoV), que expressa o caráter científico da psicologia. Lógos (-logia) vem do verbo legein, que significa usualmente falar, discursar, mas também no seu significado ‘radical’ arcaico, ajuntar, colher, recolher. Re-colher-nos na atônita ausculta de um jovial não-saber, na total disposição da ausculta do inesperado, seja talvez o significado, o mais interessante do “saber” que recebe o nome de psicologia. Se tivermos como pano de fundo tal compreensão da psicologia sob o ponto de vista empírico, podemos talvez melhor compreender o que Husserl dizia, em criticando a empiria dos filósofos ingleses (Locke, Hume), a saber, que o empírico e o experimental dos antigos positivistas ingleses ainda sofria de fixação e da bitola do dogmatismo filosófico, não superado; e que somente com a fenomenologia se alcançou a compreensão legítima e autêntica do que seria realmente o empírico e o experimental.

  1. Redução

Repetindo, o nosso objetivo é entender de que se trata quando falamos de fenomenologia. Na tentativa acima, ensaiamos dizer de que se trata na fenomenologia, em ‘definindo’ em que consiste a essência da intencionalidade. E dissemos que aqui se trata de um captar simples a coisa ela mesma de modo imediato na evidência. E advertimos que não é nada simples ver de que se trata, quando falamos de captar simples e imediato, i. é, na evidência. Para vermos cada vez melhor e com maior precisão em que consiste esse captar simples e imediato na evidência, examinemos a intencionalidade enquanto redução, ideação e constituição.

Redução é ação de reduzir. Reduzir pode significar restringir, diminuir, mas também reconduzir. É o que mostra o latim reducere. Na fenomenologia redução significa reconduzir, propriamente, reconduzir à coisa ela mesma. Isso significa que nós estamos afastados, longe da coisa ela mesma?! O que é isso, do qual estamos longe, para o qual devemos ou queremos ser reconduzidos? A coisa ela mesma!? O que é na fenomenologia coisa ela mesma? Em vez de redução, usamos também expressões como pôr entre parênteses, suspender a crença na existência, voltar e permanecer na atitude do espectador sem pressuposições.

Alguns autores explicam o que é a redução fenomenológica, referindo-se às expressões acima mencionadas, como sendo “ação de neutralizar o posicionamento da realidade como existindo em e por si, fora do sujeito conhecedor, i. é, pôr entre parêntese; não ter nenhuma pressuposição prévia, apenas ver a coisa ela mesma. Hoje teríamos a tentação de dizer: transformar a realidade real em realidade virtual. Percebe-se imediatamente que essa explicação expõe o que seja fenomenologia, já partindo da posição de que na fenomenologia trata-se da teoria de conhecimento e de suas problemáticas, principalmente do problema do realismo e do idealismo. Assim, já representamos p. ex. o ato de ver uma floresta de quaresmeiras floridas, pondo incontáveis pressuposições, quais como “ver é um ato psico-físico”, “dentro de mim”, é “captar através dos nervos ópticos os estímulos físico-ondulatórios provenientes de um organismo vegetal da espécie herbifólios etc. E a mais abrangente, tenaz e persistente pressuposição é a de que a coisa chamada quaresmeira florida está ali diante de mim, ocorrente em si, dada de antemão como realidade objetiva incontestável, independente da referência a mim. Segundo esses autores, redução fenomenológica seria des-coisificar, sim, des-substancializar as coisas assim dadas como se fossem coisa ela mesma, denunciando esses dados como não dados imediatamente, como não aparecendo, não vindo à luz eles neles mesmos.[40] Esse processo de “des-materialização” da “coisa hipostatizada” como esse bloco-coisa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da “realidade” em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regiões, sub-regiões, setores, áreas de conjunto de “coisas”, constituindo o aparecimento do mundo “objetivo” diante e ao redor de mim: temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez “des-substancializado” se abre como todo um mundo de “realidades” sui generis próprias com seus variegados atos, “noemas” e “egoidades”: temos assim a paisagem denominada: noesis. Mas tanto a paisagem noema como a paisagem noesis são ainda de alguma forma colocadas como “realidades” “diante” ou “ao redor” de “quem” as percebe. Assim, de alguma forma, agora de modo menos “coisificado” e mais sutil se reitera o esquema do sujeito « objeto, postulando-se um sujeito, não mais empírico (sujeito do subjetivismo ingênuo), mas inteiramente des-cosificado, como que pairando sobre todos os sujeitos, a modo de uma imensa área de possibilidade de surgimento de infindas paisagens noemáticas (mundo de noema) e noéticas (mundo de nóesis) que então recebe a denominação de subjetividade transcendental. Surge assim uma interpretação da fenomenologia que de alguma forma identifica a fenomenologia com o modo de ser do idealismo alemão, dando-lhe um cunho metafísico-transcendental. Nessa perspectiva, redução significa descongelar todas as complexidades de “realidades” de diferentes tipos, de diferentes níveis de composições que tendem a se endurecer como diferentes hipostatizações-coisas, em as reconduzindo às suas origens que as constituem a partir e dentro da dinâmica da subjetividade transcendental. A redução fenomenológica assim entendida coloca a modo metafísico, a subjetividade transcendental como grande pressuposição de toda a sua explicação, sem mostrar, sem nos fazer ver “de que se trata”, quando dizemos subjetividade transcendental. É que a subjetividade transcendental da fenomenologia não é propriamente nem subjetividade nem objetividade, nem transcendentalidade como nós as entendíamos na filosofia, mas sim apenas, simplesmente, exclusivamente, captar simples, imediato do e-videri. Trata-se de uma coisa “tão simples e imediata” que se torna dificílimo dizer de que se trata se não o captamos simplesmente. Tentemos, no entanto, dizer da melhor forma possível[41] esse captar simples, imediato do evideri.

E-videri é um ato humano. O ato de captar simples e imediato é o que somos. Por isso o simples fato de sermos ato de captar simples e imediato e saber de que se trata no captar simples e imediato é o mesmo. Só que tudo isso, por ser absolutamente simples, deixa de ser simples para nós agora, pois representamos o “simples fato de ser ato e o ser do ato” como ocorrência de coisa, chamado fato, que implica numa coisa chamada homem, que por sua vez faz uma coisa chamada ver, e nesse ver capta uma coisa que se chama captar simples e imediato, o e-videri. Como, porém, esse simples fato de ser ato, representado como todo um entrelaçamento de diferentes coisas, está sendo captado por outro ver anterior, que por sua vez o capta simples e imediatamente, pensamos que podemos somente ver esse último captar, porque o representamos como uma coisa “diante” de nós. Assim, pensamos que o ato de ver, com todas as suas implicâncias, tanto do lado do sujeito do ato (noesis) como do lado do objeto do ato (noema), somente é percebido porque é colocado como objeto. Portanto, o ato como tal, no seu ser simplesmente ato de captar simples e imediato, se retrai, num processo de reduplicação dentro do esquema “sujeito-objeto” numa série infinita de reduplicações cada vez que o tentamos captar. Surge, pois, uma questão. Não é possível captar o próprio captar diretamente? A e-vidência, não é possível vê-la diretamente, simples e imediatamente? Repitamos a pergunta: A e-videncia, não é possível vê-la diretamente, simples e imediatamente? Percebemos o que dissemos!? Dissemos: vê-la! Vê-la não é possível, pois, é poder da e-vidência  não precisar colocar-se diante de si como objeto, mas ela é evidência a partir de si e em si e por e para si. Portanto aqui na e-vidência, no captar direto, simples e imediato. Trata-se da autopresença a si mesma da autopresença, da tautologia da coisa ela mesma, da Selbstgegebenheit,[42] como diz Husserl. O ser do ato, ou melhor, quando o Homem está no modo de ser do verbo[43] é ele mesmo. Com outras palavras, o Homem no seu ser, originária – e propriamente, é ato; impropriamente substância na acepção de coisa-bloco-em si. É o que a fenomenologia quer dizer, quando define o Homem como Da-sein, i. é, ser-aberto, Offen-sein. Esse ser-aberto, porém, não deve ser entendido como ser o Homem uma substância que tem a abertura, mas sim como: em sendo estância da abertura, i. é, existência, ou com maior precisão sistência do ex[44]. Portanto em sendo no ex, o homem é. Dito com outras palavras, a essência do Homem está no seu ser-abertura ou ser-na abertura[45]. Assim, apenas em sendo captar simples e imediato, se é captar simples e imediato; e-vidência. Essa abertura primordial, esse apriori da fenomenologia se chama das Offene, o Aberto, a Clareira. Perceber que em toda parte, a cada momento, a cada passo somos cada vez ambiência, médium-abertura, liberdade da incandescência da evidência se chama redução na fenomenologia. Toda questão é ver tudo isso. Assim, parafraseando o título do livro de Brentano “Psychologie vom empirischen Standpunkt” poderíamos dizer: redução fenomenológica é intencionalidade a partir e fundada na estância, no médium da claridade ou clareira.

Apesar de ser chato, vamos insistir um tanto mais em precisar esse captar simples e imediato, o e-videri, o Da-sein que para a fenomenologia é o ser do Homem, a sua essência. As palavras usadas para caracterizá-lo são todas inadequadas porque sempre de novo nos evocam representações “substancialistas”. Assim, p. ex. medium, ambiência, ser no etc. nos faem representar um espaço fixo, vazio, e mesmo que “dinamizemos” o espaço como “espaço de jogo”, de surgimento e aumento do ser etc. etc., tudo isso é ainda representação da coisa, por mais movimentada, subtil e  des-materializada que ela seja. Só que exatamente aqui é que reside o pivô da questão. A proibição de representar, de coisificar nos lança de volta a separarmos o ato, do seu objeto, como se existisse o ato puro de um lado e juntamente com ele o ato impróprio de representar ou de coisificar etc. Tudo isso acontece, sempre de novo, porque tentamos entender o ato chamado captar simples e imediato, não tematicamente no seu se apresentar ou na sua operação, no seu ser operativo, mas como que estando de e por fora do próprio em sendo. Com outras palavras, esse em sendo aparece ali aberto como mundo (Welt) em milhares de modulações e variedades cada vez como totalidades que por sua vez se qualificam como sendo o surgir, crescer e consumar-se de um determinado sentido do ser como possibilidade de ser, em suas variegadas estruturações.

É de importância decisiva para a adequada compreensão da intencionalidade e do seu momento-redução compreender com precisão, em que consiste o que a fenomenologia chama de sentido do ser. Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Aqui na fenomenologia, sentido propriamente nada tem a ver com signo ou significação[46], também não com conceito, embora tenha muito a ver com o aceno. Sentido, na acepção usual, indica os cinco sentidos, que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, também à sensibilidade artística. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um apriori, para que se receba. Mas aqui não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do apriori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre e depois atua, de algo que existe em si e então age. E também, não é assim que então quem o recebe seja factualmente um algo que quer passiva, quer ativamente, acolha esse algo e sua atuação anterior. Aqui, tanto o anterior como o posterior, tanto a doação como a recepção são momentos de uma e mesma fluência, qual atinências, pertenças ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente, i. é, nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo. A finura e disponibilidade cordial dessa recepção, a precisão da limpidez dessa recepção e o que vem à luz como mundo nessa sintonia do encontro é o sentido do ser; o captar simples e imediato é a finura e pureza dessa recepção que deixa ser o sentido do ser[47].

  1. Ideação

A sintonia do sentido do ser, cada vez no seu todo, em mil e mil estruturações, na implicação e explicação de entrelaçamento de paisagens, regiões, sub-regiões, áreas e campos e setores dos entes é o que experimentamos como Vida, Ser, Realidade. E o Homem no seu ser próprio é a limpidez da de-cisão da recepção e ausculta cada vez mais fiel e precisa das possibilidades do nascimento, crescimento e consumação das estruturações do(s) mundo(s). Assim estar nessaé o ser do Homem.  Por isso, a essência do Homem, que antes foi definida como ato, intencionalidade, como captar simples e imediato ou como Da-sein, i. é, existência, é também denominada ser-no-mundo pela fenomenologia.

Se, agora, ‘sentirmos’ atentamente essa recepção do sentido do ser, percebemos que há ali dois momentos que vêm à luz como duas tendências de um e mesmo movimento. Uma tendência é a que acima chamamos de redução e sua limpidez. Essa tendência se adentra cada vez mais na ausculta da profundidade e da criatividade do abismo inesgotável e insondável das possibilidades do vir à fala do sentido do ser como mundo(s). E o faz na contínua vigilância crítica, na liquidificação de todo e qualquer preconceito, prejulgamento e dogmatismo que possa instar e estagnar o movimento da estruturação do(s) mundo(s). Mantém-se assim sempre de novo na limpidez, na claridade do aberto (das Offene) do abismo-nada da plenitude do sentido do ser que se oculta como profundidade insondável[48] de ser. A outra tendência é o crescente desvelamento, o vir à luz das possibilidades do sentido do ser, cada vez como nascimento, crescimento e consumação do(s) mundo(s). Aqui, começa a se dar, na dinâmica da Selbstgegebeneit, a abertura de diferentes paisagens, regiões, áreas, campos e setores do sentido do ser que cada vez se estrutura como totalidade da possibilidade dos entes, ou na linguagem fenomenológica como ser do ente na totalidade. Isto significa que, no desvelamento que vem das profundezas do abismo da possibilidade do sentido do ser emergem cada vez de novo e novos, toques do fundo do abismo-nada, lançando, rasgando horizontes de um determinado sentido possível do ser, como que vislumbres genéticos de um mundo em surgimento. Esse toque e lance de iluminação, esse vislumbre se diz em grego eidoV ou idea. É a partir e dentro desse vislumbre que se constelam mundos, cada qual na sua identidade e diferença, na sua estruturação ordenada, concreta e viva como que na fluência da potência do sentido abissal do ser. Manter-se na nitidez, clareza do vislumbre do iluminar-se do horizonte da constituição do mundo se chama então na fenomenologia de ideação[49].

  1. Constituição

Constituição é um momento da intencionalidade ou do captar simples e imediato. Nela “tematizamos” o momento de consumação, acabamento ou remate de todo o processo do vir à luz dos entes enquanto concreções do sentido do ser como mundos. Nessa estruturação concreta, i. é, concrescida do mundo como cada vez ente na sua totalidade, o ente vem à fala, toma corpo como isto e aquilo, mas não mais isolado, atomizado, separado um ao lado do outro como blocos substanciais, mas sim como consumação da finitude de cada mundo como possibilidade que veio a si na sua facticidade.

Facticidade é diferente da factualidade. Nesta, cada ente ali está como fato, como isto e/ou aquilo em si, qual bloco-coisa, sem desvelar nem ocultar a propriedade da sua possibilidade como uma bem determinada decisão do surgimento, crescimento e consumação de um determinado “possível”, i. é, do poder do sentido do ser. Assim, o ente na factualidade ocorre neutra e simplesmente na monótona igualdade de ser sob uma visão geral e panorâmica, sem deixar ser a intimidade oculta e o resguardo do seu destinar-se como aventura e ventura do espanto na gênesis do mundo. Um tal visão sofre da amnésia do sentido do ser, como quem se esqueceu da sua origem, da sua história, do seu destino, sim do seu ser. A redução desperta o ente dessa perdição no esquecimento do sentido do ser, liquidificando toda e qualquer fixação preestabelecida e o reconduz à sua gênesis, tornando-o em sendo concreção. E a ideação o faz se reencontrar e retornar à sua identidade, a partir e dentro do vislumbre, do nascimento de um determinado horizonte do sentido do ser. No movimento da redução e da ideação do processo de vir à fala do sentido do ser, o ente é desvelado como articulação viva e concreta de todo um mundo de percussão e repercussão do sentido do ser, que em cada ente, em cada em sendo, se torna presente como o abismo inesgotável do vigor sempre novo da sua possibilidade. O ente assim captado simples e imediatamente é o próprio e-videri, cintilação, incandescência, percussão e repercussão do sentido do ser, que em sendo como tal na finitude da diferença da sua identidade, inclui sempre de novo na finitude de ser isto e/ou aquilo, na singularidade da decisão e liberdade de ser cada vez como seu destinar-se e historiar-se na fluência do envio da imensidão, profundidade e originariedade da possibilidade do abismo do ser. Um tal historiar-se do lance do surgimento, crescimento e consumação do ente na sua totalidade como mundo é o que a fenomenologia chama de facticidade. A concreção consumada da facticidade como ente na sua totalidade se chama constituição. Essa facticidade é o in-stante da existência, a sua in-sistência, o em-sendo prévio, o ser-homem: a intencionalidade, i. é, o captar simples e imediato.

A intencionalidade com os seus três momentos fundamentais redução-ideação-constituição como a tentamos esboçar de modo muito imperfeito sou eu, cada vez, enquanto existência. Esse “sou eu, cada vez” não significa a egoidade do sujeito-eu-indivíduo na sua autoafirmação aqui, agora, mas sim o modo de ser próprio do Homem, que a fenomenologia caracteriza como Da-sein. Trata-se, pois, do ser, da essência do Homem, que é a existencialidade. No entanto, a expressão “modo de ser próprio do Homem” na fenomenologia é sempre ambígua. Pode indicar o modo de ser diferencial do Homem em comparação com o modo de ser dos entes não-humanos, como p. ex. de animal, de planta, de coisas inanimadas. Pode também significar “condição da possibilidade” para que o sentido do ser venha à luz enquanto identidade diferenciada e diferencial no modo de ser do Homem e dos entes não-humanos. O Homem enquanto existência seria então a clareira do sentido do ser, na qual e através da qual, emerge o abismo do sentido do ser e se estrutura cada vez todo um mundo de possibilidade, no tempo e no espaço, mundo da constituição histórico-epocal da humanidade e das suas vicissitudes. Isto significa que tudo que sabemos, podemos, queremos, sentimos e fazemos, tudo que não sabemos, não podemos, não queremos, não sentimos e não fazemos; tudo que construímos e destruímos, tudo que não construímos e pretendemos construir como projeto e prolongamento de nós mesmos, está como que por um tênue fio referido a e sob a responsabilidade da limpidez e atinência do nosso captar simples e imediato, do nosso e-videri ao toque do sentido do ser, como ser-no-mundo.

Esse modo de ser do Homem como clareira do sentido do ser, como “condição da possibilidade” do(s) mundo(s), portanto a intencionalidade ou o captar simples e imediato, com tudo que ele implica como acima mencionamos, é o “saber” fundamental para todos os outros saberes, quer pertençam eles à dimensão pré-científica, pré-predicativa ou mesmo também à pré-fenomenológica. Um tal saber recebeu na fenomenologia o nome de ontologia[50] fundamental, por ser ele a investigação do ente no seu ser que se adentra mais e mais na recepção e sondagem dos toques do sentido do ser que vem do abismo da possibilidade da Vida. Como tal é esse saber fundamental, i. é, do fundo que oferece às ciências a adequação do seu positum, dando-lhes as possibilidades da formação dos seus conceitos fundamentais e da sua revisão.

Hoje, a psicologia se refere a todo um imenso e complexo sistema do saber denominado ciências modernas, que se dividem em ciências naturais e ciências humanas.  A psicologia pertence ora às ciências naturais, ora às ciências humanas. Onde busca ela a razão da sua cientificidade, a razão da lógica do seu saber, a sua fundamentação?

No início da fenomenologia, a palavra psicologia evocava a questão do psicologismo. A psicologia experimental e o naturalismo, dali decorrente, na sua autointerpretação buscava tornar-se a ciência fundamental, a ciência primeira, a meta-ciência de todas as outras ciências. E hoje, como a psicologia se interpreta a si mesma na sua cientificidade? O que outrora constituía demanda da psicologia na sua forma do psicologismo parece ter passado de um lado à cientificidade positivista do positivismo lógico, como meta-ciência a modo das ciências naturais físico-matemáticas, e por outro lado à fenomenologia, na busca do sentido do ser, como ontologia fundamental. Há hoje, no confronto antagônico entre a fenomenologia e o positivismo lógico, alguma afinidade de questão, algum relacionamento da paixão pela verdade, como no início histórico da fenomenologia no confronto com o psicologismo entre psicologia e fenomenologia?

III – ANOTAÇÕES FENOMENOLÓGICAS

A exposição de até agora, sucinta e desengonçada, acerca de que se trata quando falamos de fenomenologia deixa muito a desejar, e por isso necessita de melhorias, correções e complementação. Dito em termos acadêmicos carece de tematização, de “pontuações”, de uma explanação mais ampliada e sistematizada.  Apesar de perceber claramente essa carência e falha, a seguinte coleção de anotações amadoras, não consegue nada melhorar, a não ser talvez enrolar cada vez mais a fala, de que se trata, quando dizemos: Fenomenologia ou Zur Sache selbst! Mas, abusando da proposta de que essas reflexões são anotações,  tomamos  a liberdade a seguir, a liberdade de multiplicar anotações em reflexões inacabadas, tendo, porém, no fundo a intenção de  repetir e dizer de novo o que já foi dito até agora, e tentar dizer de que se trata, quando operativamente, falamos sobre isso e aquilo fenomenologicamente, i. é, intencionalmente, mais ou menos segundo o que foi exposto acima acerca da compreensão fenomenológica da intencionalidade. Assim, a seguir em diferentes anotações tentemos repetir o que já foi dito, sem, porém, com isso poder satisfazer a demanda de maior precisão, amplidão e competência na reflexão e fala acerca da fenomenologia. Em todo caso, tudo que aqui a modo de anotações enroladas e amadoras foi e é aventado sobre “à coisa ela mesma, a fenomenologia”, gostaria de ter no fundo o que no capítulo I foi dito da fenomenologia, a saber: do evideri, do “captar simples e imediato” que é um modo de dizer o que na Anotação fenomenológica I se denominou fenômeno, a saber: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delõun.

  1. Intencionalidade como a aberta?

Aqui a aberta seria a tradução da expressão alemã, em uso na fenomenologia, das Offene. A aberta é abertura, fenda, nesga do céu que as nuvens, abrindo-se, deixam ver em dias chuvosos (Aurélio). Das Offene não é propriamente uma fenda, não é bem abertura, pois é o substantivo neutro do adjetivo offen, o aberto. Trata-se de adjetivo substantivado. Nele, o substantivo não diz própria e primeiramente que aqui ocorre um algo, que possui a qualidade de ser aberto, mas que a dinâmica do abrir-se se tornou consumada, a ponto de aparecer como in e per-sistente em si mesmo. O aberto indica, pois, uma qualidade, digamos, um quilate do ser (verbo), subsistente, assentado na sua identidade como em si, por si, a partir de si: o delõun, o evidente, o pré-sente como presença. Torna-se claro que não é adequado traduzir das Offene por a aberta. Pois, a aberta como fenda nas nuvens que encobrem o aparecer do céu conota que há algo ali, atrás do qual se oculta uma outra realidade, que por um instante aparece, através da fenda como nesga do céu. No entanto, se observarmos mais atentamente o que seja a fenda, na e através da qual se mostra o céu aberto, percebemos que o céu aberto, jamais é uma nesga, ou melhor, o mostrar-se do céu jamais é parcial na sua e-vidência, mas, por menor que seja a possibilidade de aparecer, por infinitesimal que seja a fenda, o transluzir do céu aberto é sempre e em cada fenda cabal e ab-soluto. A aberta, a fenda é fenda somente porque deixa ser esse modo da mostração. Com outras palavras, na abertura de uma fenda o espaço aberto, o horizonte, o abrir-se e o que se abre coincidem como das Offene[51].

Usualmente quando falamos na fenomenologia de intencionalidade, não orientamos a nossa fala na direção da aberta, nem do aberto, mas sim na direção do objeto, na compreensão usual e banalizada do texto de Brentano acima mencionado, lendo-o: “cada ato psíquico tende em direção ao seu objeto”. Por isso, podemos estranhar que aqui se chame de intencionalidade o modo de ser da aberta, enquanto delõun. Examinemos com mais detalhes essa questão.

Geralmente, quando falamos da intencionalidade na fenomenologia, partimos da teoria do conhecimento, dentro da padronização esquematizada do problema da possibilidade de conhecimento verdadeiro, mais ou menos no seguinte teor:

  1. A intencionalidade, o conhecimento verdadeiro, o esquema S-O

Estou aqui e agora, num determinado instante do tempo e do espaço, cercado de coisas em diferentes classificações, e isto, tanto dentro de mim como fora de mim. Essas classificações são p. ex. coisas da realidade sensível, coisas da realidade suprasensível; dentro da realidade sensível: coisa físico-material, coisa-vida-vegetal, coisa-vida-animal, coisa vida-humana e seus produtos; na realidade suprasensível: coisas divinas, a saber, Deus, anjos, espíritos, espírito e alma humanos, suas faculdades e seus produtos; coisas da realidade fora de mim, coisas da realidade dentro de mim; coisas da realidade, em si, independente da minha mente, existente por e para si; coisas da realidade, produtos da minha mente, fantasias, imaginações, crenças e interpretações etc. As coisas da realidade que está dentro de mim, imanente a mim, constituem o meu mundo subjetivo; as coisas da realidade que está fora de mim, a mim transcendentes, formam o mundo objetivo. Naquela definição ‘tradicional’ da verdade adaequatio rei et intellectus, eu e o meu mundo subjetivo, portanto eu como sujeito e agente de meus atos é o intellectus, e tudo quanto fica fora de mim, as coisas da realidade em si, a mim transcendentes são res.

Assim, colocado no mundo, no meio de inúmeras e variegadas coisas, eu me pergunto: como é possível que se dê a relação chamada conhecimento, entre eu sujeito, sua imanência (S) e as coisas ou os objetos (O) que me são transcendentes? Como é possível que algo de fora, que está numa dimensão diferente à do eu-sujeito, pode entrar, dentro de mim e me dar notícia de uma coisa que está fora de mim? Embora tal esquematização da relação S – O seja uma simplificação quase caricatural do que realmente sucede no ato de conhecimento, é interessante observar que fora-e-dentro aqui é determinado pelo nosso corpo. E se observamos com maiores detalhes o que queremos dizer aqui com fora e dentro, ficamos perplexos. Pois o dentro, i. é, o sujeito, onde está? Dentro do corpo? Mas dentro do corpo, onde? Dentro do fígado? Nas entranhas? No coração? Ou na ponta dos dedos da mão esquerda? Mas todos esses ‘dentros’ mencionados não estão dentro, mas sim fora do sujeito e agente do ato de conhecer, pois eles são objetos desse ato do conhecer. E o próprio eu-sujeito e seus atos, todas as representações, fantasias, estados do humor do eu-sujeito, tudo que me é imanente, portanto, todas essas ‘coisas’ fora e dentro do sujeito e o próprio sujeito, não são na ‘realidade’ fora do sujeito-eu enquanto objetos do meu conhecer? Isto quer dizer que tudo quanto assim vem de encontro a mim, inclusive eu mesmo, é no fundo produto da objetivação. E o sujeito-eu ele mesmo, enquanto sujeito, não é nenhuma coisa, objetada, contra-posta como coisa ou objeto, mas o que é? Isto significa por sua vez que o sujeito e o objeto assim contrapostos no esquema S – O são objetos de objetivação realizada por quem? Esse quem é o ato, que não deve ser representado como uma ação ou atuação de uma coisa chamada eu-sujeito, mas como dinâmica do processo a qual Brentano chama de fenômeno psíquico, e Husserl, de vivência (Erlebnis), a qual, segundo Husserl, formulada em termos de um Descartes se chama cogitatio, ou cogitans sum ou mais explicitamente ego cogito cogitatum.

Captar essa dinâmica do processo, essa estruturação atuante, a vivência, o fenômeno psíquico nele mesmo, e não o enquadrar na bitola da compreensão usual do esquema estático S – O, causa sempre grande dificuldade. A tentativa de Husserl, ao des-cobrir no fenômeno psíquico de Brentano a intencionalidade no sentido fenomenológico, é exatamente uma tentativa contrária à nossa, a saber, de reconduzir o esquema fossilizado S-O à dinâmica do Erlebnis, do cogitans-sum.

No quadro da compreensão usual estática do S-O, embora diferentes no seu ser, tanto sujeito como objeto, são coisas, objetos, ocorrentes em si, independentes no seu existir um do outro, ligados por ato de conhecer, cujo sujeito e agente é a coisa-sujeito, e cujo ser não tem o modo de ser da coisa em si (substância), mas da ‘coisa’ no outro (acidente). Assim colocados o Sujeito e o Objeto, na sua ligação no ato de conhecimento verdadeiro, portanto esse ato duplicado em polo-objeto e em polo-sujeito não é outra coisa do que a reprodução do que está formulado na definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus.

Essa fórmula latina da verdade é medieval e está formulada de tal modo que oculta duas definições: adequatio rei ad Intellectum divinum (adequação da coisa ao intelecto divino) e adaequatio intellectus (humani) ad rem (adequação do intelecto humano à coisa). No fundo dessa dupla formulação acoplada está a doutrina da criação: as coisas do universo, as criaturas, no seu ser, são feitas na adequação com o intelecto divino, que as concebeu e as trouxe à existência; por isso, o intelecto humano, ao abrir-se às obras do intelecto divino, às criaturas, na medida em que capta a sua essência, é iluminado, e pode se adentrar na viagem do retorno à fonte de todas as coisas, num intinerarium mentis in Deum (viagem da mente para dentro de Deus).

Para nós, hoje, o fundo dessa definição duplicada se retrai, por ser ele de origem teológica, e nos resta apenas a compreensão da definição enquanto adaequatio rei et intellectus humani, na qual intellectus significa sujeito e res objeto, mas agora de novo duplamente, num sentido bem diferente ao da definição medieval, a saber: adaequatio intellectus ad rem (conformidade do sujeito ao objeto) e adequatio rei ad intellectum (conformidade do objeto ao sujeito). Daqui, na manualística de certos sistemas de ensino da filosofia, surge o esquema S – O do assim chamado realismo (objetivismo) e idealismo (subjetivismo). Caricaturando numa simplificação máxima: no realismo o que se dá de antemão são coisas em si diante e ao redor de mim; eu-sujeito com os seus atos, p. ex. no ato do conhecer, é qual chapa fotográfica que reproduz em imagens, representações e ideias a realidade de lá fora, dos entes do mundo circundante, pré-jacente. Critério da verdade e da sua certeza é objetividade. No ‘idealismo’ ou subjetivismo, se dá o contrário: acerca do que e como seja a realidade fora de mim, ou se realmente há uma realidade em si, a mim transcendente, não posso ter nenhuma certeza; pois o que se dá de imediato e primariamente é o eu-sujeito e seus pro-dutos imanentes. E se, mesmo que, como diz o realismo, haja a realidade em si, dele posso ter notícia através do eu-sujeito e das suas faculdades de captação, a saber, dos sentidos e do entendimento e da razão, imanentes em mim. Essa descrição do realismo e do idealismo, na teoria do conhecimento em certos manuais de filosofia, é sem dúvida, uma caricatura. Nenhuma teoria de conhecimento que leva a sério a sua busca ensina tal doutrina. No entanto, esse modo da compreensão ‘ingênua’ da adaequatio rei et intellectus, pode infestar a nossa mente, na vida e no uso e mesmo nas ciências, quando queremos sem pensar muito explicar a realidade, em nós e ‘fora’ de nós. A esse modo de entender, tanto do realismo como do idealismo, tanto do objetivismo como do subjetivismo, Husserl caracteriza como impostação natural, virado às coisas, alienada do problema da possibilidade do conhecimento[52]. Aqui, tanto o realismo como o ‘idealismo’ operam na ingenuidade de um ‘realismo’ deficiente, que não despertou para a questão da possibilidade do conhecimento. Com outras palavras, na impostação do conhecer está fixa, presa na obviedade dogmatizada e opaca da condição da possibilidade do conhecimento. Entende a possibilidade do conhecimento dentro da estrutura estática S-O, sem jamais sequer desconfiar que aqui há um problema de fundo, a partir e dentro do qual se dá tanto o sujeito como o objeto e sua inter-relação como adequação, problema de fundo que coloca em questão, em busca o sentido do ser do sujeito e o sentido do ser do objeto, na sua diferença ontológica. Portanto, alienado da compreensão do que seja o ser do conhecimento.

A questão do sentido do ser do conhecimento, num certo nível bem iniciante da compreensão do que seja intencionalidade, aparece como contensão do e tensão ao objeto. Assim, diz Brentano, como já foi mencionado antes: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Essa contensão do e tensão ao objeto é usualmente entendida de modo banal: eu daqui, em meus variegados atos psíquicos, dirijo-me ao objeto ali presente diante ou ao redor de mim, como ao fim, e assim os meus atos contêm em si algo do objeto.  Nessa tendência, o objeto está diante de mim e me vem ao encontro em dupla distinção: ora como objeto em si, existente nele mesmo, ora como referido a mim, enquanto algo contido nos meus atos. Surgem assim os conteúdos objetivos e o objeto em si. O objeto em si não pode ser captado direta e imediatamente. Ele o é de alguma forma apreensível através dos conteúdos objetivos contidos nos meus atos, a modo de aproximação paulatina num movimento assintótico. Nesse sentido, o objeto em si está também contido nos meus atos, enquanto função unitiva dos diversos conteúdos objetivos dos meus atos em referência à realidade do objeto em si. E por assim dizer na ponta da tensão indicativa do em si enquanto função unitiva dos conteúdos objetivos imanentes nos meus atos, o objeto em si aparece com um ponto x em fuga para cada vez mais além do que se me apresenta como mostração dele. E ao mesmo tempo em que se dá esse movimento da ‘adentração’ em direção ao x em si em fuga, os objetos enquanto conteúdos na contenção e tensão dos atos se estruturam em   variegadas constelações de objetos multímodos, constituindo multifários uni-versos, mundos, regiões, sub-regiões, setores, áreas, campos, classificações dos entes, denominados por Husserl de noema. E o (s) sujeito-eu (s) e seus atos, enquanto também objeto da intencionalidade, i. é, da contenção e tensão do ato de conhecer, amar, julgar etc., se estrutura como uni-verso, mundo, região etc., todo próprio, o qual poderíamos chamar de mundo da subjetividade, ao lado do mundo da objetividade, perfazendo a grande divisão dos entes em mundo do ente humano e mundo do ente-não humano, a partir da qual divisão, podem surgir binômios como Homem e Mundo, Cultura e Natureza, História e Natureza etc., divisão que aparece p. ex. na classificação das ciências enquanto ciências humanas e ciências naturais[53].

Aqui, surge um problema. Como captar o sujeito e seus atos enquanto sujeito e não enquanto objeto? O conjunto dos conteúdos referidos ao sujeito-homem e seus atos enquanto ‘objeto’ da contensão e tensão do ato de conhecer o homem e o seu mundo são também noema? Ali também surge um ponto x assintótico, que une a série de dados acerca do sujeito e seus atos numa unidade? Há aqui uma diferença na objetividade, na objetivação, diferença que surge na medida em que de um lado temos o sujeito-homem e seus atos por objeto, portanto como objetos imanentes, e o objeto-não-humano e suas características por objeto, portanto objetos transcendentes? A essa altura da reflexão é útil observar que aqui, os termos “sujeito” e “seus atos”, recebem uma dupla significação. Uma vez significa sujeito e seus atos enquanto objeto e sujeito e seus atos enquanto sujeito do ato que tem o sujeito e seus atos como objeto. Este, recebe em Husserl o nome de subjetividade transcendental. Aquele, sujeito empírico. Conforme o que foi dito na Anotação fenomenológica II, quando se falou da descoberta da intensionalidade, através do texto de Brentano no livro Psicologia sob o ponto de vista empírico em todo o fenômeno psíquico (leia-se intencionalidade ou ato) se dá como momentos do próprio ato, dois momentos quais bipolaridade do mesmo ato, o polo objeto e polo sujeito. Essa bipolaridade, na impostação natural cotidiana, aparece como duas coisas ou dois objetos separados ligados pelo ato no esquema estática S – O na colocação do que acima denominamos de realismo deficiente. Nesse esquema, o sujeito aparece como sujeito empírico e a ele corresponde o objeto empírico. Mas o que perfaz a condição da possibilidade para que se dê a realidade como esquema estático S – O, portanto a condição da possibilidade do sujeito e objeto empíricos, é o que acima denominamos de Subjetividade transcendental. Haveria aqui digamos no nível transcendental um correlato à subjetividade, uma objetividade transcendental? O que ‘realmente’ quer dizer noesis em Husserl, quando a coloca como correlativa a noema? Tudo isso se dá somente no nível do empírico, ou se dá também no nível transcendental? Haveria noema transcendental e noesis transcendental? Que coisa é essa a Subjetividade Transcendental? A Subjetividade Transcendental de Husserl tem algo a ver com o que acima denominamos com o termo a aberta, das Offene?

  1. Intencionalidade: subjetivismo empírico e Subjetividade transcendental

No texto de Brentano acima mencionado, onde Husserl descobriu a intencionalidade fenomenológica, tudo parece empírico. E parece nem sequer se tratar de subjetivismo, mas sim de realismo ou objetivismo empírico. Como tal, ali está um objeto, como uma coisa em si, real, e é abordado, a partir de vários pontos de vista, do ponto de vista do ato representação, do juízo, do amor, do ódio, da cobiça etc. Temos assim um objeto visto por vários aspectos subjetivos. Somando-se os aspectos subjetivos, que são visões parciais do todo do objeto, me aproximo cada vez mais da compreensão total do objeto. A interpretação que Husserl faz do texto de Brentano, no entanto, vê a situação desse texto bem diferente. Em primeiro lugar, não se trata de um objeto ali presente, visto sob o ponto de vista de vários atos. Nesse sentido não é intencionalidade a modo do realismo. Trata-se de perceber que os atos não são pontos de vista, mas uma totalidade em si, digamos, completa, onde tem o seu próprio objeto e o próprio sujeito adequados ao ato correspondente. Assim, o mundo da representação é uma totalidade, toda própria, com o seu sujeito, seu ato e seu objeto. O mesmo se diga do mundo do juízo, do amor, do ódio, da cobiça etc. Cada qual totalmente diferente, próprio, com sua lógica própria. É, mais ou menos, como jogos e lutas de competições esportivas. Jogo de futebol, de xadrez, de vôlei, de judô, de capoeira, de briga na rua, de peteca, cada qual possui sua lógica, sua lei, normas e dicas, cada qual é todo ele completo como jogo, luta, competição, um bem diferente do outro. É de importância para a compreensão fenomenológica da intencionalidade, captar com precisão essa situação, e não declinar para uma compreensão que permanece fixa ainda no realismo empírico deficiente, acima mencionado. Pois pode-se ter a impressão de que tal concepção do conhecimento, reduz tudo ao relativismo e ao subjetivismo do ponto de vista. Não haveria mais um objeto em si, real, mas apenas produto do ato do sujeito? Tudo não se dissolveria no fluxo contínuo e cada vez variante dos atos, em impressões e vivências fugidias, sem nada de firme, constante, de certo e verdadeiro?  Um fluir caótico de impressões, apercepções, representações, sem nenhuma orientação de constituição, carente de toda e qualquer centralização unificativa, nem no polo do sujeito, nem no polo do objeto? Ou projeções do sujeito-eu em mil e mil variantes de mundos de objetos, como que a criar continuamente e arbitrariamente realidades virtuais? A intencionalidade, assim descoberta nos textos de Brentano, no entanto, apresenta uma constituição interna bem ordenada, abrindo-se de um lado, enquanto totalidade própria e bem estruturada de entes como mundo (noema), e de outro lado, de modo correlato, pulsando no eclodir, crescer e consumar-se da estruturação do mundo, como o fluir da dinâmica na condução do seu modo de ser (noesis). Denominemos o todo dessa estruturação do mundo no fluir da dinâmica na condução do seu modo de ser de ser-no-mundo. Só que esse ser-no-mundo não deve ser representado como se o sujeito-homem estivesse no meio do mundo como um ente cercado de outros entes, como algo dentro do espaço aberto, onde também estão colocados outros entes. Aqui, ser-no-mundo nos deve acenar para a dinâmica de estruturação cujo movimento é espiral. Imaginemos uma imensa superfície lisa de uma lagoa, vista de cima, de um helicóptero, numa visão panorâmica. Ao olharmos com muita atenção esse superfície, percebemos um pequeno ponto preto no meio dela, parado, imóvel. Na medida em que baixamos a altura e nos aproximamos da superfície, percebemos que aquele pequeno ponto é um círculo, formado pela água em movimento concêntrico. Como a nossa visão é por assim dizer de fora, panorâmica da superfície, de início vemos o grande círculo, e dentro dele outros círculos concêntricos, e bem nomeio um pontinho. Mas ao chegarmos bem perto da superfície, de repente percebemos que se trata de um redemoinho que estava surgindo. O que parecia um círculo com seus círculos concêntricos dentro dele, se nos apresenta como vigorosa dinâmica do afundar espiral, criando cada vez círculos em diferentes níveis de profundidade, na tensão e contensão do movimento centrípeto e centrífugo simultaneamente ocorrente. O que de longe parecia o ponto do meio, na realidade era o ‘ponto de fuga’ do movimento centrípeto, o ponto “olho-do-furacão” e o que parecia o grande círculo que cotinha outros círculos concêntricos e o ponto do meio não eram outra coisa do que a borda, a mais estendida do movimento centrífugo desse movimento espiral, em expansão. Na expressão ser-no-mundo a palavra no (ser-em) deve ser entendida como a dinâmica do adentrar-se a modo de “olho de furacão” do movimento centrípeto, e mundo como cada vez círculos concêntricos constituídos como extensões abertas em diferentes níveis de profundidade pelo movimento centrífugo, na sua expansão. Aqui é importante ver que o movimento centrípeto e centrífugo são simultâneos, são momentos do mesmo movimento, numa troca de mútua estruturação. A direção centrípeta é o polo-sujeito e a direção centrífugo é o polo-objeto. Quando esquecemos ou não percebemos que se trata de um movimento espiral, a dinâmica do surgir, crescer e consumar-se do mundo da intencionalidade é fixa e expressa numa flecha reta em cuja ponta está o objeto e no extremo oposto está o sujeito. Quando nos achegamos mais ao próprio da dinâmica intencional, viramos a linha reta num círculo e quando nós mesmos cairmos dentro do movimento do redemoinho da intencionalidade, da linha reta parcial (flecha) e do círculo, cuja linha circular é uma reta infinita, sofremos uma torsão[54], em cuja viragem começamos a perceber que a vigência de fundo da intencionalidade é a aberta. Quando, assim, somos nós mesmos a aberta, o nosso ser enquanto humano coincide com ser mundo e recebe então o qualificativo do ser-no-mundo. Como aqui Homem e Mundo coincidem, não podemos mais usar os termos subjetivismo, nem objetivismo, para caracterizar esse “comércio” de intercâmbio “entre” Homem e Mundo[55]. Para indicar que aqui na fenomenologia, quando se fala da intencionalidade, se transcende tanto o subjetivismo como o objetivismo do realismo deficiente acima mencionado, usamos a expressão subjetividade transcendental ou Subjetidade e Objetividade transcendental ou Objetidade. Aqui, porém, nesse ponto pode ocorrer um risco de cairmos na armadilha de uma imprecisão.

Em que sentido imprecisão? De não empreender a acima mencionada torsão da compreensão usual da intencionalidade como linha-flecha e como círculos concêntricos para a dinâmica do movimento espiral[56].

A imprecisão na compreensão do que seja propriamente a subjetividade transcendental se dá da seguinte maneira.

Acima foi dito, ao interpretarmos o texto de Brentano, que o fenômeno psíquico – ou para Husserl, o ato ou intencionalidade –  é uma totalidade em si, digamos, completa, onde tem o seu próprio objeto e o próprio sujeito adequados ao ato correspondente. Portanto, que se trata de mundo. Surge a pergunta: como se relaciona um mundo com o outro? São totalidades estanques entre si ou há uma comunicação entre as totalidades? Algo, pois que abrange todas as totalidades, unindo-as sob algo comum a todas? Algo que transcende a todos os mundos, portanto, num mundo ‘transcendental’?[57] Nessa pergunta surge o termo “algo” como um termo de perplexidade a nomear p. ex. o mundo. Nessa perplexidade percebemos como é difícil captar o próprio do que na fenomenologia se denominou ato, fenômeno, vivência, intencionalidade, mundo, ser-no-mundo, a aberta, nele mesmo, prescindindo totalmente dos termos cujo sentido do ser era dominante no esquema S-O na acepção do realismo deficiente. Mas aqui podemos perceber, como um assunto que parecia tratar-se de problema da possibilidade do conhecimento verdadeiro, implicava no seu bojo, como uma questão anterior, a questão pelo sentido do ser.

  1. Intencionalidade como questão do sentido do ser

Em que sentido, com a transcendentalidade da subjetividade e da objetividade, surge a questão do sentido do ser? Ao compreendermos a intencionalidade como subjetivismo e objetivismo empíricos, ao enfocarmos a nossa atenção sobre o sujeito ou sobre objeto e sobre o ato, podemos perguntar “o que é o sujeito?” O que é o objeto? E o que é o ato?” As perguntas pressupõem a resposta em formulação: “sujeito é...”; “objeto é…”; “o ato é…”. Ocorrem pois, 3 vezes o verbo é. Os três és, cada qual, possuem predicados diferentes. Esses predicados indicam a diferença existente entre sujeito, objeto e ato. Mas todas essas diferenças jazem, como que, no seu ser, ou melhor, no seu modo de ser em repouso dentro do mesmo sentido do que seja o ser. Por isso, as perguntas buscam a diferença do sujeito, objeto e ato, a partir e dentro da pressuposição de que no seu ser, os três são iguais. Essa plataforma comum ou igual, ou melhor geral, aparece nas palavras que indicam em diferentes modalidades a coisa, p. ex. na palavra algo, ente, coisa, objeto, Gegenstand, Objekt, Ding etc. No uso comum, esse sentido geral do ser no algo, no ente, conota algo ‘compacto” abstrato a modo de um ponto-núcleo, um “quê”. Esse “quê” formal poderia ser o que restou da compreensão da substância, da qual se despojou de todo o conteúdo diferencial, portanto, apenas como um ponto de referência. Por menor que seja o conteúdo dessa “substância” ‘desnatada’, o caráter do “quê em si” permanece. É o que se percebe no subjetivismo e objetivismo empíricos do realismo deficiente. Na subjetividade transcendental o modo de ser da subjetividade liquidifica todo e qualquer resquício da ‘substancialidade’ objetivada em si, e se perfaz como a dinâmica da condição da possibilidade da correlação sujeito-objeto a modo empírico, de tal modo que ela somente pode ser de alguma forma tematizada no movimento de um salto para trás de retraimento, qual movimento da fonte, que ao emitir o jorro da água que brota para fora, nesse próprio jorrar faz presente a profundidade a partir e dentro da qual vem à potência da possibilidade da eclosão. Assim, a transcendentalidade da subjetividade transcendental não é outra coisa do que o movimento da retração na dinâmica da constituição e estruturação do mundo, enquanto condição da possibilidade desse próprio movimento.

Na compreensão da intencionalidade, no nível usual do realismo empírico deficiente, a estruturação interna da intencionalidade não aparece, é ignorada. Assim, usualmente a direção da intencionalidade vai sobre o objeto, em forma de uma flecha. Na compreensão da intencionalidade, no nível da subjetividade transcendental, o que antes era flecha se torna círculos concêntricos e depois espiral, e o que antes ali estava diante da intencionalidade como sua ponta ou para além da ponta como a coisa em si vira o universo da totalidade do ente constituído, como leque aberto de toda uma paisagem de entidades. E então, dentro dessa paisagem da totalidade do ente, surge a grande divisão diferencial entre a região do ente humano e região do ente-não humano. Essa divisão é entendida, no realismo empírico deficiente, como duas regiões uma ao lado da outra, embora diferentes, mas inquestionáveis no sentido do seu ser, de tal sorte que ser significa obviamente o conceito, o mais geral, destituído de toda e qualquer qualificação diferencial, comum tanto à região do ente humano como à do não-humano.

Na compreensão da intencionalidade, no nível da subjetividade transcendental, o sujeito na sua transcendentalidade como subjetividade é o movimento de retração constitutiva do mundo, como sua condição da possibilidade de ser, a paisagem da totalidade do ente permanece inalterável, mas surge a questão do sentido do ser do ente humano e do ente-não humano, na qual a mira da busca não permanece na obviedade da diferença de qualificação entre a região do ente humano e da região do ente não-humano, mas se dirige ao ser do ente humano e ao ser do ente não-humano, enquanto o ente humano uma vez aparece como objeto constituído ao lado do objeto constituído não-humano e, nesse aparecer, como objeto ou ente do mundo, se perfaz como o puro movimento de retração constituinte do mundo, portanto como o puro movimento denominado subjetividade transcendental. Dito com outras palavras, a diferença existente entre o ente humano e o ente não-humano agora não é mais uma diferença entre ente e ente, mas sim uma diferença entre o ente e o seu ser. A diferença entre ente e ente se chama diferença ôntica. A diferença entre o ser e o ente se chama diferença ontológica.

  1. A intencionalidade e a diferença ontológica

Nessa questão da diferença ôntica e ontológica, corre-se continuamente o risco de não permanecermos na precisão devida, quando formulamos a questão como o fizemos acima no título do 1.4: “diferença ontológica entre o ser do sujeito e o ser do objeto”. Pois, sem o perceber, lemos ser e o entendemos ente (respectivamente entidade). Nesse caso, teríamos a diferença entre ente sujeito e ente objeto, a partir e dentro do mesmo sentido do ser, geral, comum entre os dois, que são diferentes no modo de ser, mas no ser mesmo são iguais. É mais ou menos, dentro dessa perspectiva, que nas nossas abordagens usuais dos problemas filosóficos distinguimos entre ser do homem e mundo, ser da história e ser, ser da cultura e natureza, ser da existência e essência, ser e ente, sem indagar a diferença que há no sentido do ser de cada membro desses binômios. A mesma dificuldade acontece quando definimos a diferença ôntica como diferença entre ente e ente, e a ontológica, como diferença entre Ser e ente, entendendo a esta última como diferença existente entre um ente concreto e o seu sentido geral, entre um ente efeito e a sua causa, entre o ente criatura e o seu criador etc. Como, pois, entender a diferença ontológica sem nos declinarmos da sua precisão?

No uso e na vida, no entanto, mesmo então numa primeira olhada, sem o tematizar, nos apercebemos operativamente da diferença que aqui é chamada de ontológica. P. ex. quando diante de uma paisagem, cuja imensidão e beleza nos tiram o fôlego, ou em contato com uma existência humana, cuja história nos acena para a profundidade de doação, amor e dedicação, e sua generosidade, exclamamos: “Grande!” Ninguém, aqui, pergunta quantos metros quadrados tem essa grandeza, quanto ela pesa, quantas moléculas ou átomos a compõem etc. É que o sentido do ser da grandeza humana é bem diferente ao da grandeza quantitativa físico-matemática. Mas aqui, ao tentar tematizar essa diferença, percebida primária e imediatamente, podemos declinar na imprecisão e dizer: a diferença está apenas nisso que no caso da grandeza quantitativa físico-matemática, ela é objetiva, ao passo que a captação da grandeza moral e espiritual da existência humana é subjetiva. E, se perguntarmos em que consiste a diferença entre a medida subjetiva e a medida objetiva, recebemos a resposta de que no fundo não diz nada, a saber, que a medida objetiva diz respeito à realidade em si, constante, independente das vicissitudes da subjetividade do homem, portanto é medida de validez geral, comum a todos os que pensam físico-matematicamente, portanto real, ao passo que a medida subjetiva diz respeito aos fenômenos pessoais, de validez privativa, particular, variável segundo o capricho do sujeito-homem. Observemos que aqui, a diferença da medida humana, subjetiva, pessoal, já está medida a partir e dentro da medida que caracteriza a realização objetivada da realidade, de sorte que ela aparece como diferença ôntica em contraposição à medida físico-matemática, como que avaliada e medida a partir e dentro da sua valência, e não aparece jamais nela mesma, no sentido próprio do seu ser. O ser do sujeito, i. é, a subjetividade do sujeito é entendido a partir e dentro do horizonte do ser do objeto, i. é, da objetividade.

  1. Intencionalidade e a clareação transcendental[58]

Do que acima foi exposto, podemos perceber que o aspecto transcendental jamais pode ser pego diretamente, pelo modo da percepção usual objetivada e objetivante, mas sim, indiretamente, por tabela com um objeto. Mas há vários modos de captação por tabela, p.ex., percepção da causa, pelo efeito; captação pelos sinais, pelo ‘símbolo’ no simbolismo, pela aparência etc. Aqui, por mais variegados que sejam os modos de uma percepção por tabela, ela é sempre captação de um objeto, do qual se vai à percepção do outro, que por sua vez de alguma forma é captado como ou a modo de um objeto. E assim, da impossibilidade de captar o transcendental a não ser por tabela com o objeto, tira-se precipitadamente a conclusão de que o aspecto jamais é perceptível direta e imediatamente. Assim, o que aparece à captação do aspecto transcendental, por tabela, indiretamente é chamado de aparência transcendental, der trasnzendentale Schein, em cujo aparecimento, o ser do aparecer recebe a conotação de aparência, que no fundo esconde um algo mais atrás de si. Aqui recordemos tudo quanto falamos do aparecer, na exposição do que constitui o evidenciar-se do fenômeno como aclaração na Anotação fenomenológica I. Assim a aparência transcendental não significa aparência que é mediação de outra coisa que está para além da aparência, mas o imediato e direto vir às claras, portanto a evidência, a clareação que no seu evidenciar-se é o mostrar-se imediato e concreto, o aberto, das Offene, a translucidez do luzir, a autopresença ela mesma que transcende toda e qualquer objetivação, não a modo de uma escalação para além da coisa chamada objetivação ou objeto, mas como “mediação”, i. é, como ação ou dinâmica do médium, a partir e no qual toda e qualquer modalidade de objetivação e objetos vem a si na aclaração da sua pressuposição, i. é, o positum da sua automostração. É o que na Anotação fenomenológica II denominamos captar ou ver simples e imediato. Como, porém, o termo trascendental de alguma forma conota uma transcendência a modo do movimento de trânsito para além, a modo meta-físico, subjetividade transcendental enquanto clareação transcendental de preferência recebe o nome de ontologia fundamental.

III – FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA FUNDAMENTAL

Como já vimos acima na Anotação fenomenológica I, Heidegger no Ser e Tempo nos diz da expressão grega phainómenon:

“A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha– como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com  ta ónta (o ente)”.

Isto significa que no início da nossa Tradição Ocidental, ente era compreendido a partir e como phainómenon, portanto, a partir do phaínesthai. Assim, não é de estranhar que na fenomenologia o título fenomenologia seja usado como idêntico com o título ontologia. Só que hoje, no uso geral desse termo na concepção manualista do ensino da filosofia, se opera no fundo na concepção tradicional da ontologia, e isso no modus deficiens, onde o sentido do ser, correspondentemente do ente, já está predeterminado como conceito o mais vasto, o mais óbvio, no qual todas as diferenças ônticas são abstraídas, para se estabelecer num sentido lógico formal do ser, expresso nos princípios de identidade e de não contradição etc. e ao mesmo tempo o ón é entendido como referido ao objeto. A fenomenologia, justamente, tenta colocar em questão esse fundo operativo de todo o nosso saber, quer filosófico, quer científico, sondando na tematização desse fundo operativo, possibilidade de outro(s) sentido(s) do ser, como possibilidade(s) de início de fundo fundante, em cujo apro-fundamento possamos vislumbrar o abismo inesgotável e insondável do sentido do ser, a partir e dentro do qual se tornem viáveis ontologias como desvelamentos multifários da acolhida do ser, como gênese de mundos, cada vez próprios, mas na dinâmica una anunciada na aurora do Ocidente como hen:panta, cujo eco ainda ressoa em tò ón légetai pollakos, em Aristóteles.  Por ser a sondagem do fundo de possíveis ontologia(s), a fenomenologia se chama ontologia fundamental[59].

  1. Analítica da existência, antropologia ou ontologia?

No Ser e Tempo, chama-se analítica da existência o interrogatório ao qual é submetido o ente denominado homem, em referência ao seu ser. Esse interrogatório, enquanto análise das estruturas fundamentais da existência humana, é introdução à ontologia fundamental. No entanto, a analítica da existência e consequentemente a fenomenologia como ontologia fundamental é sempre de novo interpretada dentro do esquema tradicional do ensino filosófico onde se dividem as disciplinas filosóficas em Metafísica Geral ou ontologia, Metafísica especial, em cosmologia, antropologia e teologia natural. Assim, a analítica da existência seria uma moderna antropologia filosófico-existencial[60] e a fenomenologia, enquanto ontologia fundamental, algo semelhante à ontologia enquanto metafísica geral[61]. Com isso, a analítica da existência se reduziria a uma disciplina filosófica especial, a ontologia fundamental, a uma outra disciplina mais geral, que trata do ente enquanto ente especial. Portanto a analítica da existência e a ontologia fundamental não são consideradas como uma nova colocação da questão do sentido do ser. Esse equívoco, na maioria dos casos, vem, por não se guardar bem a diferença entre o ser[62] do Homem, a existência e o ser do ente não-humano, a entidade como diferença ontológica. Dito com outras palavras, é uma coisa eu distinguir o ente homem e o ente não-humano como se faz diferença entre ente e ente, debaixo do denominador comum entidade, e uma outra coisa é se aperceber da diferença entre o ser, ou melhor, sentido do ser do homem e o ser, ou melhor, sentido do ser do ente-não humano.  Aqui nesse ponto, para marcar a diferença existente entre ente-humano e o ente não-humano, usamos a expressão modos diferentes de ser. Modos de ser significa que estes, enquanto ser, são idênticos, mas diferentes no modo. Alias, a expressão “modos de ser” já é produto de uma impostação, cujo sentido do ser está bem determinado sob a denominação da palavra substância e seus acidentes ou seus modos. Reflitamos acerca dessa questão, retomando e aprofundando aqui o que no início das nossas reflexões no 2.2 falamos, citando um texto de Martin Heidegger, ao examinar o que é objetivação. Repitamos o texto. Diz Heidegger: “a) O que significa objetivar? É fazer de algo objeto, colocá-lo como objeto e  representa-lo somente assim, como tal. E o que significa objeto? Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso subiectum  significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas[63]. Em comparação com a significação usual nossa, hoje, a significação das palavras subiectum e objectum é justamente  o inverso: subiectum é o para si (objetivamente) existente, obiectum, o apenas (subjetivamente) representado. Por causa da transformação do conceito do subiectum por Descartes (cf. Holwege, p. 98ss), também o conceito do objeto alcança ter uma significação transformada. Para Kant, objeto significa: o contra-posto[64] existente da experiência das ciências naturais. Cada objeto é o contra-posto, mas nem todo contra-posto (p. ex. a coisa em si) é um possível objeto. O imperativo categórico, o ter que ser ético, o dever não são objetos da experiência das ciências naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles não se tornam por isso objetivados. A experiência cotidiana das coisas no sentido lato não é nem objetivante nem é uma contra-postatização[65]. Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe. Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá como um objeto das ciências naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus ”.

O que acima indicamos como substância e seus acidentes ou seus modos de ser, é o que está referido no texto acima: “Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum  significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas.

  1. Excurso: o ser substância, a ontologia da substancialidade

Na reflexão 2.1 colocávamos então entre outras a pergunta: o obiectum na compreensão medieval, como ele se distingue do contra-posto, em alemão Gegenstand, caracterizado como um algo tematicamente representado? Que esse obiectum não seja Objekt (tema das ciências naturais) é claro. Mas é para distinguir o obiectum medieval, do Gegenstand, enquanto algo tematicamente representado? Na Idade Moderna, Objekt é o contra-posto como tema do enfoque das ciências naturais. E Gegenstand é algo tematicamente representado (Vollgestellte). Haveria uma diferença decisiva entre “o contra-posto tematicamente representado” e “o lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?

Na perspectiva e dentro dessas colocações acerca do subiectum (substância) o obiectum na Idade Média e subiectum (Sujeito) e objeto (o proposto das ciências naturais) o que significa o ente homem e o ente não humano se diferenciam como ente e ente, i. é, possuem diferentes modos de ser; e a expressão ser e seus modos de ser é produto da impostação, cujo sentido do ser está bem determinado sob a denominação da palavra substância e seus acidentes ou seus modos? Aqui este “substância e seus acidentes ou seus modos” é o subiectum da Idade Média, que é a tradução do grego hypokeímenon?

Tentemos ilustrar esse problema como  exemplo exposto no início, o da pesca. Vou pescar. Levo comigo coisas: a vara de pescar, linha de náilon, anzol de aço, minhoca como isca, e chapéu de palha. Vai comigo meu irmão caçula que carrega consigo um filhote de cachorro. Segundo a compreensão do subiectum como substância e substância como hypokeímenon, quantas coisas ou entes ou substâncias estão ali nessa pescaria? A resposta usual nossa é 8, incluindo na contagem a mim mesmo e contando p. ex. minhocas como iscas ou diferentes anzóis e linhas e varas em conjunto, como cada vez 1. E cada uma dessas sub-stâncias possuem seus modos de ser, i. é, acidentes como tamanho, cor, peso, qualidade etc. Digamos que nessas coisas de contagem sou um cri-cri e pergunto: dentro de você e de seu irmão caçula, do cachorrinho, e de infinidades de minhocas que você trouxe como isca, na superfície de anzóis, de linhas de náilon, devem existir milhares de micróbios. Aliás, todas essas substancias devem estar compostas de milhões e milhões de moléculas, átomos e partículas subatômicas. Todas essas coisas são substâncias? Hipokeímena!??? Ou são modos de ser? Acidentes? Ou não será que na concepção medieval do objeto, todas essas coisas “substanciais” assim colocadas não são obiectum, o lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar? Mas então o que é subiectum, substância, hypokeímenon? O fundo da totalidade da paisagem imensa, profunda, cada vez e sempre de novo vigente na sua possibilidade insondável, perfazendo se presença una estruturante de obiectum, i. é, do lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, de quem? Do subiectum, na sua significação transformada, por Descartes? Talvez o medieval dirá: Não, não do sujeito, nem do objeto, mas sim da substância homem, imagem e semelhança de Deus, de cujo ser que é a plenitude do ser, participa; da substância homem a quem se comunica, se doa de modo todo singular e único, unindo-se a Ele no assim chamado mistério da Encarnação, de tal modo que todos os seres, desde o pó da terra até os anjos, os mais sublimes, em diferentes níveis de participação, são imagem e semelhança do homem assim agraciado. Sendo assim, todos os entes que constituem as diferentes ordenações das esferas dos entes do universo medieval, desde a esfera das coisas sem vida, das coisas viventes (vegetais), das coisas sensíveis (animais), das coisas humanas (homem, animal-racional), dos espíritos em diferentes níveis de intensidade do ser (os coros dos anjos) até o próprio Deus, enquanto como Criador de todas as coisas é fonte de todo o ser, são chamados substâncias, (substâncias compostas e simples). Assim, todos os entes, enquanto obiecta, i. é, lançados e mantidos de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, se assentam numa vigência de fundo, cuja imensidão, profundidade e criatividade prenunciam o ser, uma presença inominável, ‘denominado’ Deus, cuja caracterização é assinalada como substância simples, a se, i. é, ab-soluto assentamento da e na plenitude do ser, por e para si. Aqui é interessante observar que o homem, de encontro em face do qual (aperceber, imaginar, julgar, desejar, mirar) são lançadas e mantidos os obiecta, a partir e na vigência do fundo da totalidade do universo medieval, a partir e no vigor da prejacência ab-soluta da deidade, é também ou melhor por excelência, prejacência substancial enquanto imagem e semelhança de Deus. Aqui o que denominamos obiectum e subiectum, ambos como vir à fala da vigência da plenitude do ser, do apriori prejacente do universo medieval consiste na escalação da densidade de ser no ente na sua totalidade, e não relação entre dois entes, um ao lado do outro, chamados homem-sujeito e objeto, duas coisas pontuais, dois blocos diferentes, cuja característica consiste em ocorrer como simplesmente dado como isto e aquilo.

Entender ente e ser e o sentido do ser na intensidade, imensidão, profundidade e criatividade da vigência da presença como na paisagem do universo medieval sob o nome substância, prejacência, hypokeímenon , portanto, entender ente e ser e o sentido do ser nesse médium medieval e entender ente e ser e o sentido do ser na vacuidade de um espaço dentro do qual se acham entes-bloco-subsitentes como pontos atômicos, como algo e algo, um ao lado do outro, são duas paisagens bem diferentes do ser, duas realizações da realidade distintas. Aqui podemos de alguma forma perceber o que quer dizer ente no ser e ser no ente, e o sentido do ser ali operante. Em certas manualísticas da filosofia chamamos caricaturalmente de realismo, onde sob uma determinada concepção do ser comum, geral, se diferenciam duas grandes regiões dos entes, a região do ente-humano e região do ente-não humano. E ali denominamos a ciência que investiga o ser do ente-humano de antropologia, e o ser do ente-não humano de cosmologia, e de ontologia a ciência especializado na investigação do ser do ente enquanto ente, da entidade como o comum de duas regiões, expresso no conceito do ser geral, comum, sem conteúdo, na formalidade abstrata lógica, e no conceito do ente desse sentido do ser como ‘substância’, como algo bloco, pontual, atômico. Talvez todo esse “realismo” e a sua realidade não seja outra coisa do que  modus deficiens  do fundo do universo substancialista medieval, esquecido do seu sentido do ser e sua vigência, e ao mesmo tempo sofrendo de extrapolação para dentro da compreensão transformada do subiectum e obiectum, operada desde Descartes, mas sem maior clareação do sentido do ser ali operante, como fundo do universo moderno.

Mas como seria a diferença da compreensão do subiectum, na sua transformação sob a influência de Descartes como sujeito, e do objectum medieval acima descrito, para com a compreensão do Objekt (das ciências naturais) e também para o Gegenstand, caracterizado como um algo tematicamente representado? Aqui a paisagem é bem outra, a do mundo medieval. Subiectum é o Sujeito. Obiectum é Objekt a partir e dentro da impostação da possibilidade humana chamada Ciências naturais e Gegenstand, como um algo tematicamente representado, na vigência da presentação do projeto do homem, não mais como imagem e semelhança de Deus, mas como sujeito-eu (ou nós).

O que acima, na compreensão medieval do subiectum, denominamos substânciahypokeímenon (e ali incluído obiectum) não se refere a coisa individual, isso e aquilo, nem ao conceito geral, comum, a essas coisas individuais, a modo de nossa classificação das coisas em geral e particular etc. Substância, hypokeímenon significa portanto, o prejacente, o apriori, a arché, a hyparché. É o fundo a partir e dentro do qual todo um mundo de entes recebe identidade, localização no todo, unidade de participação no sentido do ser que os faz surgir, crescer e se consumar, como elementos componentes, ou melhor, estruturantes da eclosão de uma paisagem da possibilidade de ser. Trata-se, portanto, digamos, do ponto de salto e o próprio eclodir que se perfaz como surgir, crescer e consumar-se de um possível mundo.

Assim também, quando agora falamos na compreensão transformada do subiectum, através de Descartes, como sujeito e sua subjetividade e ali, correlativamente do objeto e sua objetividade, sujeito não significa coisa individual, mas sim o prejacente, o apriori, o princípio da estruturação do ente na sua totalidade, o fundo da nossa epocalidade moderna. Esse apriori, esse princípio da estruturação do mundo, do ente na sua totalidade se chama ontologicum, o ser do ente. Como se caracteriza, pois esse ontologicum do mundo moderno, o sujeito?

Para caracterizar o ontologicum, sujeito vamos a nosso modo fazer o resumo de uma tradução livre parafraseada dos pensamentos de Heidegger de quando ele caracteriza o ontologicum Sujeito e mostrando de que se trata, quando falamos da transformação do conceito medieval de subiectum por Descartes, para o sujeito da subjetividade moderna, no livro “A Pergunta pela coisa” (Heidegger, 1962).

  1. Excurso: o ser Sujeito, o ontologicum da subjetividade

Costumamos diferenciar a Idade Moderna, da Idade Média, assinalando a Idade Média como teocêntrica, e a Idade Moderna como antropocêntrica. Na Idade Moderna, a grande “revolução copernicana” operada por Descartes é de colocar o Homem como medida de todas as coisas. A esse tipo de explicação, já a encontramos, anteriormente nas nossas anotações, quando examinamos a definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus no seu duplo aspecto de: Veritas est adaequatio rerum ad intellectum divinum e adaequatio intellectus humanus ad res. Dissemos que desse duplo aspecto, hoje na manualística nos abstraímos do primeiro aspecto, por ser ele teológico, e ficamos somente com o segundo, mas então numa dupla acentuação, a saber: veritas est adaequatio intellectus humanus ad res (realismo) e adaequatio rerum ad intellectum humanum (idealismo). A acima mencionada definição tradicional da verdade na duplicidade de seu aspecto, que é derivada da compreensão medieval da Criação, tem como fundo, a paisagem do universo medieval, cujo princípio fundante é o ontolgicum substância. O que restou dessa definição, depois de ser colocado de lado o aspecto teológico, é considerado muitas vezes como sendo a definição tradicional da verdade em sua dupla interpretação, a saber, a interpretação do realismo, i. é, adaequatio intellectus humanus ad res; e a interpretação do idealismo ou do subjetivismo, i. é, adaequatio rerum ad intellectum humanum. Aquela é então tida como a posição usual da Idade Média, cuja concepção de fundo é realista, pois, antes de tudo há Deus, substantia in se et a se, que é Criador de todas as coisas, e por isso as coisas são em si, antes das ações humanas. Aqui o teocentrismo tem como consequência o realismo epistemológico. Com a passagem da Idade Média para a época moderna, ao se colocar o homem no centro do universo, como medida de todas as coisas, se dá em Descartes o antropocentrismo, e com isso também como conseqüência o idealismo ou subjetivismo ou relativismo epistemológico. Essa diferenciação manualista entre a concepção do universo medieval e a moderna, na realidade, é uma explicação feita pelo realismo proveniente de mundividência, digamos, defasada, do cristianismo medieval, que não consegue mais fazer jus nem à compreensão mais autêntica do ontologicum substância da Idade Media, na sua vigência mais nasciva, muito menos à novidade eversiva da transformação do conceito de subiectum medieval para o ontolgicum sujeito da modernidade, portanto à revolução copernicana operada no pensamento de Descartes.

Para libertar a questão do ontologicum sujeito, característico da Filosofia Moderna, dessa colocação inadequada e anacrônica do realismo ‘neo-medieval’, é necessário  captar em que consiste o modo de ser do ontologicum sujeito, colocando sob a interrogação aquilo que constitui o próprio e o novo da epocalidade moderna que é caracterizado como era científica, e sob essa interrogação, rastrear o fio condutor presente no modo de ser que impregna todas as entificações estruturantes da época hodierna, expresso na dominação totalitária do que chamamos de o matemático nas ciências modernas[66].

3.1. Disciplina matemática e o matemático

Mas o que é o matemático?

Usualmente respondemos: o matemático é o que aparece na disciplina científica chamada matemática. Assim, respondendo, entendemos usualmente o matemático a molde, a partir e dentro da disciplina de ensino e da pesquisa científicas, dizendo: o matemático é o que se refere à disciplina científica chamada Matemática como tal, à ciência estudada e cultivada nas faculdades de Ciências Naturais.

Essa resposta, porém, não corresponde ao que é propriamente o Matemático, pois o classifica dentro de um modo de ser determinado, diríamos, congelado, na forma da disciplina matemática.

A palavra “matemática” se refere às palavras gregas: mathésis, manthanein, ta mathémata. Ta mathémata são coisas “aprendíveis” e ao mesmo tempo ensináveis. O verbo é manthanein, e significa aprender. O substantivo mathésis significa então ensinamento, ensino, mas também a ação de ir ao ensino, isto é, aprender o que se ensina. Aprender e ensinar estão intimamente ligados no verbo manthanein. Mas para que possamos entender o que é ta mathémata, mathésis e manthanein é necessário examinar como os gregos distinguiam as coisas, os entes.

Os gregos distinguiam ta fysika, as coisas ou os entes enquanto surgem e eclodem a partir de si: coisas da natureza; ta poioumena, as coisas enquanto são feitas através das mãos humanas, coisas produzidas manufactualmente e como tais ali estão diante de nós; ta chremata, as coisas enquanto estão continuamente no uso e à disposição do uso: pode ser fysika ou também ta poioumena, conquanto estejam em uso; ta pragmata, as coisas enquanto são tais com as quais nós temos a ver, sejam que as elaboremos que estejam referidas à praxis. Esta é a ação de prattein ou prassein, que significa perfazer, agir, realizar. É um fazer que é diferente de poiein (cf. ta poioumena), pois aqui trata-se não de fazer, fabricar, produzir, mas, sim, em fazendo isto ou aquilo, tornar-se; iniciar, crescer e consumar-se; fazer-se, fazer e tornar-se obra. É uma ação toda própria do ser humano, na qual, na medida em que age e cria obras, vai crescendo, aumentando cada vez mais no seu próprio ser, conhecendo e conhecendo-se, isto é aprendendo. Mathesis, manthenein, ta mathémata têm a ver com a ação e o efeito de um tal aprender. Esse tipo da aprender-práxis é uma espécie de recepção, captação, tomada de posse, apropriação, dispor de coisas. Mas, na realidade, nós não nos apossamos da coisa, mas apenas do uso. Aprender é pois dispor o uso das coisas. É tomar e se apropriar não de coisas, mas sim do uso da coisa. A tomada de posse acontece pelo próprio uso. Esse modo se apropriar-se do uso se chama exercitar-se ou exercício. Exercitar-se é uma modalidade de aprender. Mas nem todo aprender é exercitar-se. Isto significa que existe um aprender que é mais do que exercitar-se? Sim. Como? É o aprender todo próprio chamado mathesis, o aprender “matemático”. Como é esse aprender “matemático”? Tentemos entender o que é esse modo de aprender por meio de um exemplo. Eu me exercito no uso de arma. No exercício tomamos, nos apossamos do uso da arma, isto é, do modo, da maneira, da lida com ela. O nosso modo de lida e convívio com a arma se coloca, se dispõe naquilo que a arma exige para ser usada. Isto significa que, na lida, não somente lidamos com, dominamos a função, mas em usando, ao mesmo tempo aprendemos a conhecer a coisa. Aprender assim é sempre aprender a conhecer. O aprender como exercitar-se, aprender o uso, apossar-se do uso, pode assim ser elevado para um nível de práxis mais perfeito como aprender a conhecer a coisa. Portanto, aprender no sentido de mathesis pode ter duas direções: a) aprender o uso e a aplicação; b) aprender a conhecer a coisa.

No aprender o uso e a aplicação (a), o conhecimento da coisa ela mesma permanece num nível bem limitado. Posso saber, por exemplo, o uso da arma, mas não sei como é construída a arma. O segundo (b) é um aprender que se abre ao conhecer a coisa ela mesma. Aqui se abrem diferentes níveis e extensões cada vez mais crescentes do conhecer. Para quem, por exemplo, não somente quer aprender a usar a arma, mas também fabricar a arma, não basta aprender o uso, mas é necessário aprender a conhecer de que se trata, em diferentes níveis de profundidade do conhecimento, até chegar ao conhecimento disso que a coisa ela mesma é, como ela mesma é. Na medida em que aprendemos a conhecer a coisa no que ela é e como ela é, portanto, aprendemos a conhecer o ser da coisa como tal, aprendemos também a ensinar o que e como ela é. O exercitar-se e usar é portanto somente um momento ou nível limitado daquilo que é possível aprender na coisa. Daí, o aprender originário é aquele tomar conta de, aquele apossar e aquele captar que é aprender a conhecer o que uma coisa é, no seu ser.

Mas o que uma arma p. ex. é, o que um ente ou objeto de uso é, o ser, portanto, nós já sabemos propriamente. Quando pegamos numa arma, quando queremos conhecer uma arma de um determinado modelo, não estamos propriamente aprendendo, aprendendo a conhecer o que é uma arma. Pois o é, o ser de qualquer coisa que seja, nós já sabemos antes de captá-la, do contrário não poderíamos nos relacionar com ela e conhecê-la como tal. Somente enquanto nós de antemão, a priori, estamos no toque do ser de uma coisa, somente assim, o que nos é proposto, anteposto, se torna visível, captável naquilo que é. Só que, nós sabemos o que é uma coisa e certamente de antemão, a priori, em sendo, mas este saber em sendo, à primeira vista e de imediato no nosso uso aparece de um modo opaco, assim geral, vago e indeterminado. Essa opacidade, generalidade, vagueza e indeterminação, na realidade, são como a superfície lisa e parada da contenção do abismo de imensidão, profundidade e vitalidade que na perplexidade de não conseguir definir adequadamente chamamos de ser, vida, realidade. Esse saber operativo é a presença da dinâmica do abismo da possibilidade de ser, a Vida, em mil e mil eclosões de modalidades multifárias do mundo e da sua mundidade. A essência do que sob o termo o matemático foi refletido até agora, enquanto a dinâmica da autoconstituição do “Eu penso, logo sou”, é o que chamamos subjetividade e se estrutura como vigência da autonomia. Essa vigência da autonomia, do pôr-se de si mesmo a partir de si, no perfazer-se da autoconstituição, é a essência do aprender que em grego se chama mathésis, isto é, o “matemático” num sentido originário e profundo. O matemático como a autonomia, como a subjetividade da autoconstituição em sendo vida, não é isso ou aquilo, mas uma concreção do tornar-se, do perfazer-se cada vez no toque da possibilidade de ser, eclosão, gênesis, crescimento e consumação da totalidade do ente, como mundo. Essa concreção do perfazer-se percebemos como densidade de ser, que traduzida em termos do conhecer, está dita na expressão: tomar conhecimento.

Aqui, o tomar conhecimento não é adquirir conhecimento, não é se conscientizar, não é ter dados informativos ou adquirir saber, mas sim potencializar-se, adensar-se na e-vidência de si, a partir e dentro de si. Dito tudo isso nos termos usuais do conhecimento, é conduzir o saber operativo a um conhecimento mais próprio, mais temático, i. é, tomar conhecimento do que já antes tínhamos como conhecimento. Esse “tomar conhecimento” do que já antes sabíamos em sendo é propriamente o matemático.

Assim, ta mathémata, as coisas matemáticas são “coisas” enquanto nós as tomamos em conhecimento como aquilo que nós já de antemão, isto é, a priori e propriamente conhecemos. Trata-se no manthanein e na mathésis, portanto, de um captar, tomar e receber todo próprio, altamente estranho, no qual, quem capta, toma e recebe, somente toma e recebe o que ele no fundo já tem e é.

A esse aprender-se a si, que é o aprender-se, em se aprendendo, e ao aprender corresponde também um ensinar todo próprio. Ensinar aqui é certamente dar e oferecer, mas o que é dado, oferecido no ensinar não é o que pode ser aprendido ou ensinado. O que é dado ao aluno não é outra coisa que apenas aceno, incentivo para que ele mesmo tome, capte de si a si mesmo o que já é, o que ele já tem e o tem. Se o aluno toma o que lhe é oferecido, ele não aprende. Só vem ao aprender, se experienciar o que ele toma como o que ele propriamente já tem e é. Há somente um verdadeiro aprender lá onde a tomada e a recepção do que a gente já tem e é é um dá-lo a si mesmo, é um vir a si de si mesmo como autoevidenciação.

3.2. Desviando um pouco do assunto

Daí, ensinar não é outra coisa do que deixar o outro aprender, isto é, mutuamente se deixar aprender. O verdadeiro professor se diferencia do aluno apenas nisso, que ele pode aprender melhor e propriamente mais quer aprender. No todo do seu ensinar, aprende mais quem ensina, assim[67].

Nesse sentido diz Martin Heidegger no seu livro O que evoca o pensar?:

Ensinar é mais difícil do que aprender. Isto a gente sabe muito bem; mas ponderá-lo se faz raras vezes. Por que ensinar é mais difícil do que aprender? Não por isso, porque quem ensina deve possuir a maior soma de conhecimentos e tê-la a cada momento à sua disposição. O ensinar é mais difícil do que aprender por isso, porque ensinar significa: deixar aprender. O professor propriamente dito não deixa a não ser apenas aprender, nada mais do que aprender. Por isso o seu agir desperta muitas vezes também a impressão de que com ele não se aprende propriamente nada, enquanto aqui a gente imperceptivelmente entende por “aprender” somente a angariação de conhecimentos úteis. O professor está apenas nisso à frente dos alunos aprendizes, que ele, ainda muito mais do que eles, tem que aprender, a saber: o deixar aprender. O professor deve poder ser mais ensinável do que os alunos. Ele é muito menos seguro da sua coisa do que os alunos o são da sua coisa. Por isso, no relacionamento de professor e alunos, quando verdadeiro, jamais entra em jogo a autoridade de quem-sabe-muito e a influência autoritativa do autoritário de quem foi incumbido da missão. Por isso, permanece uma causa sublime a de quem ensina, o que é totalmente diferente de ser famoso como docente (Heidegger, 1961, p. 50).

3.3. O matemático como o a priori

Esse tomar em conhecimento o que já antes sabíamos é propriamente a essência do aprender, do manthanein, da mathésis.

O que é pois o Matemático? É aquilo que nós já conhecemos nas coisas, o qual não tiramos primeiro das coisas, mas num certo modo já nós mesmos trazemos junto conosco. Este aprender, este tomar em conhecimento o que nós já sempre sabemos e somos até ao fundo abissal que se abre em nós mesmos é a célebre frase do oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!” É por isso que no portal da academia de Platão estava escrito: “Ninguém que não tenha captado o matemático jamais tenha entrada aqui”, isto é: Ninguém ageométrico jamais entre[68]!

Mas como é que aparece como matemático dos cálculos e medições matemáticas da nossa era moderna, nas ciências esse conhecer apriorístico, no qual nada vem de fora, mas tudo, por assim dizer, se desdobra e se ex-plica de dentro, a partir de dentro? É que, em cálculos e medições matemáticas da própria disciplina chamada matemática, o que conhecemos assim pela medição e cálculo não é aquilo que nós conhecemos nas coisas, tirando-o primeiro das coisas, mas sim num certo modo o que já trazemos nós mesmos junto conosco e depositamos, lançamos de antemão sobre as coisas. Assim o modo de saber e conhecer matemático é bem outro do contemplar medieval.

3.4. O matemático como a “concepção da mente”

Esse modo de ser a priori aparece nitidamente numa famosa frase de Galileu[69]:

Eu conheço mentalmente um corpo móvel, excluindo todo impedimento: assim consta disso que num outro lugar foi dito extensamente que o movimento desse corpo sobre o plano será igual e constante, se o plano se estende infinitamente[70].

Diz Galileu “Eu concebo”, isto é, me lanço sobre, ajuntando tudo sob o que se torna determinante de antemão, saltando sobre as coisas, tendo já o que é decisivo para todas as coisas atingidas por esse lance. Assim, nesse lance sobre todos os corpos vale de antemão que • – todos os corpos são iguais; que • – nenhum movimento é especial, destacado; que • – cada lugar é igual ao outro; que  • – cada momento do tempo é igual ao outro; que • – cada força se determina, segundo o que causa a mudança do movimento, entendido como movimento de mudança de localização.

Assim, todas as determinações sobre o corpo são esboçadas num traçado básico de um plano, segundo o qual o processo e o fato da Natureza nada mais são que determinação ou definição espaço-temporal do movimento uniforme dos pontos de massa, numa totalidade, cuja, medida é homogeneamente igual em toda parte.

A partir do que foi dito, resumamos a essência do Matemático em três itens:

  • – O matemático é um “mente concipere”, isto é, um projeto lançado sobre as coisas.
  • – O projeto abre então um espaço de jogo, onde as coisas, isto é, os fatos se mostram.
  • – Dentro desse projeto é posta a medida, pela qual as coisas são tidas como aquilo que é apreciado no seu modo próprio, de antemão.

Apreciar ou ter por, em grego, é axioó. As determinações e as sentenças que predeterminam de antemão no projeto são axiomata (axiomas). Axiomas são princípios fundamentais que colocam o fundo de antemão para as coisas.

O projeto matemático, enquanto axiomático, é o lance conceitual prévio, a ordenação prévia para dentro da vigência das coisas, dos corpos. Com o projeto matemático é preparado o esboço fundamental de como cada coisa e cada referência de coisa a cada coisa é construída.

Este esboço fundamental dá a medida para delimitar a região, o âmbito, ou a área que daqui por diante abrange todas as coisas que tem a mesma “essência”[71].

Natureza não é mais aquilo que como substância é a capacidade e possibilidade interior dos corpos, o que lhes determina cada vez a sua qualidade, a sua forma de movimento e o seu lugar, o seu habitat próprio. Natureza agora é a região dentro do projeto axiomático. É a natureza das ciências naturais. Essa região tem a caracterização de ser um conjunto de movimentos referidos um ao outro dentro da homogeneidade do tempo e do espaço, igual em toda parte e a cada tempo, dentro do qual (conjunto) os corpos são inseridos e estendidos e somente assim podem ser corpos.

Uma tal região da natureza dita e determina o modo de acesso, o modo de abordagem próprio para corpos e corpúsculos que assim se acham no âmbito de sua abrangência.

O modo de interrogar e determinar o conhecimento da natureza não mais é orientado e dirigido por opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não possuem mais propriedades, forças, capacidades ocultas, mais profundas e interiores. Os corpos da natureza são apenas isto como eles se mostram dentro do âmbito do seu projeto.

As coisas agora se mostram apenas em referência à localização pontual no espaço e no tempo homogêneos, em referência à medida homogênea de massa e das forças atuantes.

Como as coisas se mostram é pré-traçado através do projeto. O projeto determina por isso também o modo da captação e da sondagem do que se mostra, isto é, determina o modo da experiência. Porque agora a sondagem é determinada de antemão pelo esboço fundamental do projeto, o interrogar pode ser ajeitado de tal maneira que se põem de antemão condições, às quais a natureza deve responder assim ou/e assim. O interrogar é uma interpelação produtiva à natureza. Tendo no fundo esse projeto matemático, experiência se torna experimento ou experimentação no sentido moderno.

A ciência é experimental por causa do projeto matemático. O impulso experimental para com os fatos é uma consequência necessária do apriori matemático, a saber, do saltar por sobre todos os fatos predeterminando o seu modo de ser e o âmbito do seu aparecer[72].

Segundo o que foi dito, o projeto coloca a homogeneidade e uniformidade de todos os corpos segundo espaço, tempo e relacionamento de movimentos. Por isso, possibilita, fomenta e exige ao mesmo tempo como o modo de determinação das coisas a medida igual do início até ao fim, isto é, medição numérica quantitativa[73].

O modo do projeto matemático dos corpos, segundo Newton, nos levou à formação, à constituição de uma determinada “matemática”, no sentido estrito, como a temos na disciplina chamada matemática.

Dizer que o matemático é o próprio da ciência não quer dizer que o matemático, no sentido essencial, deva ter a forma da matemática no sentido estrito da disciplina matemática. Na realidade, a possibilidade de a matemática do cunho especial, enquanto medição e cálculo numéricos, ter podido entrar no jogo da epocalidade e dominar não é a causa mas sim uma conseqüência do projeto matemático no sentido essencial[74].

O que dissemos à mão da famosa frase de Galileu e de sua variante em Newton é o que está no fundo dessa caracterização da ciência, isto é, das ciências modernas como o matemático, o característico essencial da nossa era moderna.

Há, porém, matemática e matemática. Pois, de imediato, esse matemático essencial que aparece escondido na forma da matemática como cálculo e medição numérica quantitativa, possui um fundo mais pro-fundo. É necessário captar esse fundo para entendermos bem como é o ser do moderno, sua essência e o seu modo próprio de ser.

Dissemos acima que o matemático é a estrutura fundamental das ciências modernas. Estas constituem um dos traços básicos do modo de pensar e ser epocal moderno. Todo o modo de ser e pensar assim epocal pertence à facticidade da existência historial: à decisão acerca da colocação fundamental ontológica, isto é, em referência ao Ser e ao modo como o ente se revela como tal no seu todo, a saber como verdade epocal. Somente assim, mostrando o matemático dentro dessa perspectiva é que podemos compreender quão diferente é o modo de ser e pensar antigo e medieval e o nosso moderno, e ao mesmo tempo captar um toque de contato num nível de ser mais profundo e radical. Para podermos ver melhor a essência do matemático nesse sentido essencial como o próprio do nosso modo de ser e pensar moderno, é necessário examinar qual é a nova colocação fundamental acerca da existência humana que se mostra nessa dominação do matemático e em que sentido o matemático, conforme o élan correspondente da estrutura interna da sua essência, se torna hoje uma determinação filosófica nova da existência humana.

  1. O matemático e o “eu penso” de Descartes[75]

Essa nova colocação fundamental acerca da existência humana e com isso, através dela, também acerca do ente na sua totalidade aparece no modo como o existir humano moderno se comporta para com a Tradição. Aqui à primeira vista parece haver uma ruptura radical diante do passado. Costumamos citar Descartes como aquele que realizou a ruptura revolucionária contra o passado, no pensamento moderno.

É que um tal posicionamento da realidade como o que acima foi refletido acerca da concepção da Natureza nas Ciências Naturais, reduzindo tudo à Matemática de cálculos e medições numéricas quantitativas, fez com que se colocasse em questão a concepção que se tinha até então da realidade física. É por isso que a Modernidade se inicia através da assim chamada “dúvida metódica” de Descartes. Costumamos dizer que Descartes, em duvidando metodicamente de tudo, a modo de alguém que diz “suponhamos, façamos de conta que tudo é duvidoso”, nos conduz gradualmente de um conhecimento mais duvidoso para um menos duvidoso, até numa aproximação cada vez maior se achegar à verdade certa e indubitável no fato da existência de um eu que tudo pensa, tudo sente, tudo percebe, portanto do eu-sujeito, do núcleo do solipsismo do subjetivismo moderno. Daí, a nossa mania de colocar o pensamento moderno como filosofia da imanência do subjetivismo, do individualismo, unilateral, centrado em si, antropocêntrico, em contraposição à tradição que era realista, aberta ao Ser, teocêntrica, universal etc. Mas, talvez em Descartes, a afirmação absoluta do “Eu penso, logo sou” não tenha muito a ver com o subjetivismo, nem com a imanência antropocêntrica, entendida assim “substancialmente”, mas sim com o matemático das ciências modernas.

Pois na Modernidade, através das Ciências Naturais iniciantes, aos poucos, com a redução da explicação da Natureza à extensão quantitativa, a movimento, massa e suas localizações no tempo e no espaço homogêneo, começa a dominar a compreensão matemática do universo. A essência do Matemático que aparece aqui nessa interpretação físico-matemática do universo, do mundo, ultrapassa o nível das Ciências Naturais, portanto ultrapassa o âmbito da região da Natureza, e se mostra como a dinâmica do projeto a priori, lançado não tão-somente sobre os corpos físicos da Natureza, mas sim sobre o ente no seu todo ou os entes na sua totalidade, pondo-lhes de antemão a medida, através da qual, os entes podem e devem aparecer como entes. Esse projeto tem por pretensão e exigência,  fundamentar-se, fundar a si mesmo a partir e dentro de si, a ponto de que nesse caso tudo que vem à fala já tenha estado ali como sempre sabido. Essa paixão de autoidentidade implica que se coloque em questão todo o saber de até então, independentemente do fato de saber se esse saber era sustentável ou não. Nesse sentido, Descartes duvida, não porque é céptico. Ele duvida de tudo porque coloca o Matemático como o absoluto fundamento para todo o saber. Ele busca encontrar não somente uma lei fundamental para o reino da Natureza, mas para o saber do ente no seu todo. Essa posição fundamental matemática não pode ter nada que seja anterior a ela, não admite, não suporta nada que lhe seja dado previamente. Nada aqui pode ser pressuposto[76]. Se aqui algo é dado, então deve ser tão-somente a própria posição (como ato, como ação), no sentido do pensar que põe o projeto como autoposicionamento autônomo do matemático, isto é, da evidência a partir de si, nela mesma. É o pensar que se pensa a si mesmo. Isto é: tomar em conhecimento, tomar conhecimento do que nós já somos: o manthanein.

Como tal, essa posição do próprio posicionar a si mesmo é o “eu”: “eu penso”. O pensar aqui é sempre caracterizado como EU penso, ego cogito. É nesse “eu penso”, nessa ação do autoposicionamento[77] que aparece a experiência do “eu”. E essa experiência da densidade de ser “eu” se expressa na fórmula: sou. Cogito, ergo sum, isto é, cogito: sum = cogitans sum, em pensando sou. É pois a imediata segurança da posição como autoresponsabilização, a densidade de autoidentidade da autopresença de si a si mesmo: = subiectum, isto é, o sujeito, não no sentido de uma substância que ali ocorre como núcleo de referência de acidentes que sobrevêm a ela, mas sim no sentido de subjacência, isto é, assentamento, dominância plena e cheia p. ex. de um tom fundamental que pervade e impregna tudo, portanto subjacência dominante e bem assentada da autonomia da autoevidência e autoidentidade do autoposicionamento. Este sujeito-eu a modo de ser do Matemático não é nada de “subjetivo” como uma propriedade do Homem. Somente quando a essência, isto é, a vigência, a dominância prejacente do tom fundamental do Matemático que é e está no “Eu” não é mais visto, é que caímos na interpretação subjetivista do eu como se fosse uma substância centrada no eu-núcleo solipsista.

O “Eu penso: sou” assim compreendido não é o polo subjetivo de um outro polo objetivo chamado coisa, diante de mim. Nesse modo de ser do “Penso” o esquema Sujeito – Objeto, no sentido usual, desaparece inteiramente. Antes, o que chamamos de objeto não é outra coisa do que o vir à fala do Sujeito-Eu na sua autoidentificação. Pois no Cogito, isto é, em pensando, em coagitando a modo do lance de projecto, portanto em projectando a possibilidade a priori de todos os entes no seu todo, se inaugura, funda-se o modo de ser, em cuja dinâmica os entes vêm de encontro a lance do projeto, isto é, de encontro a “Mim” como ob-jeto, isto é, o explícito do projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto[78].

4.1. Eu-sujeito como substância e o sujeito-eu como o matemático[79]: subjetividade

O eu como “eu penso” não deve ser entendido como uma substância-coisa-sujeito que emite um ato de pensar (modelo do pensar substancialista). O “eu penso” deve ser entendido como a experiência originária que o homem tem de si mesmo, de modo imediato, concreto, vivenciado como autoevidência, autopresença do autoposicionamento de si a partir de si, como estar-ali na disposição de ser, enquanto lance e projeto a partir de si e em si mesmo.

Este “eu penso” como autoevidência, autopresença imediata do ser do homem a si mesmo é o que denominamos de matemático ou mathesis. Um saber que se determina de antemão como aquilo que contém tudo em si e está na feliz posse de si mesmo. A consciência feliz, plenamente realizada, dessa autoposse de si é o que Descartes chama de bona mens ou espírito: isto é, “eu penso”. Para Descartes a ciência, o saber, o conhecimento, isto é, a mathesis não é outra coisa que a plena realização do “eu penso” ou do espírito: é o próprio espírito plenamente ele mesmo.

Aqui portanto o “eu penso” é o modo de ser que caracteriza o próprio do homem, de ser sempre já a partir de si, de estar sempre consigo mesmo. Se o próprio do homem é esse modo de ser, então o homem encontra o seu progresso não na aquisição dos conhecimentos mas sim no esvaziamento deles. Mas em que sentido?

Até Descartes, a tradição ocidental definiu a verdade, isto é, o conhecimento verdadeiro como adaequatio rei et intellectus: como o espírito, indo à realidade, o saber adequando-se, dirigindo-se à coisa. Daí, a verdade ser adequação, correspondência, concordância do intelecto com a coisa e da coisa com o intelecto. Agora com Descartes, com a descoberta do “eu penso”, isto é, do matemático como o princípio básico de todo e qualquer conhecimento verdadeiro, a verdade não é mais o movimento de relacionamento do sujeito-eu-coisa com o objeto-coisa, do ir de encontro à coisa, abrindo-se a ela na adequação ou concordância. É antes simples, imediata e concretamente o eclodir, o abrir-se do próprio dar-se do espírito.

Na compreensão usual da teoria de conhecimento, conhecer é um ato do sujeito-substância simplesmente dado, entre outros atos do mesmo sujeito de p. ex. volição, sentimento etc. Nesse ato de conhecimento o eu-sujeito se dirige às coisas, sejam elas coisas fora de nós ou dentro de nós em diferentes níveis de entificação, para assim adquirir um acervo de conhecimentos. Quando esses conhecimentos correspondem às coisas e reproduzem o conteúdo das coisas, dizemos que ali há verdade, isto é, conhecimento verdadeiro. Se não houver a correspondência, temos então falsidade, isto é, conhecimento falso. Nessa usual e tradicional teoria de conhecimento, a mente (espírito, intelecto) é algo espiritual (portanto não material) que está no corpo humano, algo espiritual, cuja característica é de ser vazia, sem determinação, mas que, na medida em que vai adquirindo conhecimentos, torna-se como papel branco vazio que vai aos poucos sendo enchida de escritas. Quanto mais adquire conhecimentos, quanto mais se apossa do saber, quanto mais bem informada é a mente sobre a realidade, tanto mais verdades ela possui.

Descartes inicia o processo da busca de uma certeza absoluta, duvidando passo a passo da validade do conhecimento de tudo, a partir dos conhecimentos os mais físico-materiais dos nossos cinco sentidos até a validade dos conhecimentos os mais abstratos e mais espirituais, até chegar a uma única intuição derradeira, onde não dá mais para pôr em dúvida a validade da adequação. Esse último ponto é o “eu penso, e enquanto penso, que penso não posso duvidar!”

Por que Descartes duvida de tudo, assim passo a passo? E, quando por fim Descartes constata: eu, enquanto penso, que eu penso, não posso duvidar; enquanto duvido de tudo, da própria dúvida que duvida de tudo, não posso deixar de ver claramente que enquanto duvido não posso duvidar que duvido, o que restou de tudo isso? De que se trata? Pois, se duvidar, o fato de duvidar já está mostrando que eu, enquanto duvido, que duvido não posso duvidar.

Tudo isso parece uma brincadeira, enquanto não intuirmos que aqui não se trata de averiguar, de descobrir um ponto firme, um fato, uma realidade em si, a qual eu não posso duvidar, realidade essa que receberia o nome de sujeito-eu ou o subjetivo, isto é, o eu que é o ponto de referência centro-núcleo e portador de todos os meus atos de conhecer.

Mas, então, de que se trata? Todo esse processo de duvidar de tudo é para eliminar da minha mente tudo quanto não é ela mesma, isto é, para esvaziar a nossa mente de conhecimentos adquiridos e inatos. Mas para quê? Para chegar a um resto firme, a um fundamento, um ponto seguro que não se deixa eliminar, mas que ali está como algo, antes de todos esses movimentos?

Não! Mas antes para estar bem junto da mente, do espírito, como ele é nele mesmo, isto é, sem as sobrecargas, os acréscimos, as aquisições de conhecimentos. Dito com outras palavras, aqui Descartes quer encontrar-se com o ser do espírito, com o ser da mente, com o ser do intelecto, não o conhecendo a modo de conhecimentos de coisas, adquiridos ou inatos, mas sim esvaziando-se deles e deixando o espírito ser espírito.

Duvidar aqui portanto não tem a função de testar a validade da adequação do espírito ou do intelecto com a coisa, mas sim de esvaziar o espírito, a mente de todos os conhecimentos adquiridos e inatos, para que o espírito se torne presente, nu, puro, com ele é, a partir de si, nele mesmo.

Como é então o espírito esvaziado, limpo de tudo quanto não é ele, de todos os conhecimentos adquiridos e inatos?

Responde Descartes: é como “eu penso”. Mas, atenção, Descartes não diz: como eu sujeito aqui, tendo um ato chamado penso. Mas, sim: “eu penso” significa sou um conhecimento, uma experiência, um saber, uma ciência que não conhece distância para si mesma, não conhece caminho para si mesma, não conhece elaboração de si, porque vive na plena posse de si. Mas não é muito exato dizer “vive na posse de si”, pois ter posse é sempre um ter, que tem ainda distância entre o que se tem e quem o tem. Ao passo que no “eu penso” cartesiano, na experiência descartiana do espírito de si mesmo, a coisa não está diante do espírito, mas ela é nele, ou melhor, ela é a presença do espírito ela mesma, é por si, para si, é o espírito ele mesmo. Tal “realidade” (eu penso, logo sou) não tem mais o modo de ser da substância, do sujeito, da coisa ou do ente simplesmente dado, mas sim possui o caráter da luz, claridade incandescência, distinção, nitidez. Não vem de fora ao espírito, mas sim nasce nele, como ele mesmo, é ele mesmo em nascendo, portanto, conascimento: conhecimento, conaître. Essa presença, essa presencialidade não é um espaço aberto dentro do qual uma coisa se mostre (isto é, coisas prováveis e duvidosas), mas sim: o espírito ele próprio no seu tornar-se presente. Uma tal incandescência, a qual aparece a partir de si na sua própria presença se chama e-videri (evidenciar-se), evidência.

Espírito (intelecto, mente) é vigência desse modo de ser de estar junto de si, na autocaptação de si mesmo, na vivência da plenitude da imediatez. É esse modo de ser que está dito na famosa sentença de Descartes: “eu penso, logo sou”. E a partir dessa “realidade”, tudo quanto tem esse modo de ser da evidência é verdadeiro: idéias claras e distintas.

Assim, Descartes dá à verdade uma nova essência, a essência da evidência. É sob o signo da evidência que se reconhece o “espírito”. Até agora, o espírito estava impedido de ver na evidência o seu ser, devido a uma compreensão falsa do saber, do conhecimento. Isto é, saber ou conhecimento = adequação do espírito às coisas; adquirir, ganhar o saber, o conhecimento, isto é, ir às coisas, dirigir-se às coisas, ser correto. Assim o espírito, em vez de permanecer nele mesmo, começou a se afastar de si, alienar-se de si, começando a se interpretar a partir dos conhecimentos que estavam longe dele mesmo.

Recordemos porém que esse modo de ser do “eu penso” como o de estar junto de si naquilo que já sempre era, e buscar a si mesmo a partir do lance e projeto de si, sem jamais sair de si, mas sempre de novo só considerar válido o que se dá a partir de si, é o modo de ser que está expresso no verbo grego manthanein (ta mathémata, mathésis = o matemático).

Esse modo de ser da autopresença da e-vidência é o espírito que na Tradição do Ocidente se chama logos e que os latinos traduziram por ratio e em alemão se diz Vernunft (de vernehmen). Quando esse modo de ser da Vernunft está na sua absoluta limpidez, na plenitude de si, aparece na sua pureza. Esse caráter da pureza, essa qualificação da pureza, da limpidez, da translucidez (portanto, o adjetivo puro(a)) é o que está designado pelo termo “o matemático” no sentido da transparência límpida da evidência[80]. O matemático como razão pura, assim compreendida, é a essência do que no sentido autêntico denominamos de subjetividade na filosofia de hoje.

4.2. Cogito e vontade para o poder

A interpretação acima esboçada da “subjetividade moderna” como a autopresença da pura imanência de ser, a partir de si, na absoluta autonomia da autoconstituição, hoje parece tomar a forma do totalitarismo do cálculo e autoasseguramento da dominação da interpelação produtiva atuante nas ciências sob o poder da tecnologia. Como equacionar a autopresença da pura imanência de ser do Cogito, com esse totalitarismo científico-tecnológico na dominação da interpelação produtiva? Como se chegou do Cogito a essa dominação da interpelação produtiva da objetivação absoluta global interplanetária?

  1. Vontade para poder: o ser do sujeito

Para compreender o próprio do ser do sujeito e da sua subjetividade, como o ontologicum da era post-cartesiana, em vez de caracterizá-lo a partir e dentro da compreensão do subjetivismo do binômio da manualística idealismo e realismo,  subjetivismo e objetivismo, rastreamos o ser da subjetividade moderna à mão do que seja o matemático, reproduzindo, a modo de resumo e paráfrase, o texto de Heidegger que fala do matemático como a essência da nossa era científico-tecnológica. Assim, o ser da subjetividade moderna deve ser compreendido como matemático, expresso de modo já congelado, dogmatizado na ciência matemática que atua em toda parte através das ciências naturais tecnologizadas como dominação do poder da interpelação produtiva. Heidegger nos mostra como o Cogito, ergo sum de Descartes, está assentado na compreensão do que seja propriamente o matemático, que não deve ser identificado tout court com a disciplina matemática, mas sim, referido ao que os gregos originariamente entenderam por matemático. E ao reconduzir o Cogito cartesiano à mathésis, ao manthanein, e a ta mathémata gregos, nos faz suspeitar de que, na nossa atual compreensão do matemático à la matemática e do Cogito cartesiano como início do antropocentrismo, subjetivismo, solipcismo, aparece um sentido do ser do matemático já fixado, endurecido, em forma de autopresentificação, de autoposicionamento do saber de si a partir de si como evidênciação do saber-se, cujo inter-esse é o do ser da e na certeza de controle, cálculo do autoasseguramento. Esse autoasseguramento é então colocado como o ontologicum e também operativamente colocado sob a interrogação a cerca do seu ser, sob a denominação da expressão “Vontade para o poder” em Nietzsche.

O ontologicum Sujeito e subjetividade como Cogito em Descartes se diz em Nietzsche “Vontade para Poder”. Tanto Descartes como Nietzsche estão sob a necessidade e exigência da busca do novo sentido do ser, que faça jus à absoluta afirmação do ser da totalidade do ente, denominado por Nietzsche Vida. A essa nova afirmação do ser do ente na totalidade Nietzsche chama de “Princípio de uma nova valorização” (der Wille zur Macht).

O que significa valor, valorização para Nietzsche?

Acerca do valor, diz Nietzsche em Vontade para Poder, aforismo 715 (1887/1888):

“O ponto de vista do “valor” é o ponto de vista de condições de conservação-escalação, em vista de complexas formações de duração relativa da vida dentro do devir”.

No Ocidente chamamos a tal der ontologia do sentido do ser dos entes no seu todo. E a busca do sentido do ser é a busca do princípio, isto é, da fonte da vida, que está na raiz, na origem de tudo que pode ser invocado como sendo. Para Nietzsche, o sentido do ser dos entes, isto é, aquilo que faz com que cada ente seja ente enquanto ente, se chama valor. E a dinâmica do surgir do valor como estruturação do todo como mundo se chama valorização. Assim, em vez de se dizer ser, aqui se diz valorizar, valorização. Em vez de ente (coisa, algo, objeto), se diz valor. Portanto, tudo, cada ente e o todo dos entes, é considerado sob a perspectiva do valor e da valorização.

Mas o que é valor, valorização? Responde Nietzsche: é ponto de vista de condições de conservação-escalação… da vida do devir.

O ponto de vista é a medida estabelecida previamente, de antemão, a qual projetamos diante de nós como perspectiva e prospectiva de referência. De lá, a partir de e em vista desse ponto, estruturamos tudo que somos e não somos, tudo que fazemos e não fazemos, segundo o escalonamento possibilitado e exigido pela medida previamente estabelecida. Essa medida prévia não é uma coisa fora de nós, uma norma, uma exigência ou necessidade impostas de fora, mas é a afirmação de nós mesmos, a im-posição que somos nós mesmos. É o quantum da possibilidade de nós mesmos, é a medida que damos a nós mesmos e a tudo que se refere a nós, enquanto capazes de ser, enquanto possíveis, isto é, potentes de viver. O ponto de vista é portanto condição ou condições da vida. Condição em alemão diz: Bedingung (Be = movimento incoativo; Ding = coisa; ung = sufixo de ação). Na palavra Bedingung está a palavra Ding (thing em inglês), que usualmente traduzimos por coisa, objeto, mas que evoca um todo ajustamento. Uma concentração ao redor do mesmo interesse e da mesma causa, como p. ex. a assembleia popular, portanto a corporificação da intensidade da energia vital de um povo livre. Condição ou condições de vida nessa evocação significaria o quantum ou os quanta da Vida.

Mas que Vida? Biológica? Zoológica? Psico-somática? Anímica, espiritual? Nietzsche diz: de conservação-escalação. Diz conservação-escalação e não conservação e escalação, para significar que conservação e escalação dizem dois momentos do mesmo.

Conservação: aqui a ação de se conservar. Conservar-se é manter-se, é ater-se de corpo e alma ao próprio de si, é guardar intata, originalmente, a vitalidade e o frescor da dinâmica de si mesmo. É a Erhaltung.

Escalação: escalar é subir passo a passo de degrau em degrau. É ação, a dinâmica que cria o escalonamento, mas aqui não um escalonamento de degraus fixos, um após o outro num movimento unidimensional linear, mas sim na ordenação da dinâmica da potencialização, do crescimento, do aumento do poder, como a escalação de força, como a dinâmica da autoindução no crescimento. É a Übersteigung, a transcendência.

Conservação-escalação da Vida é o modo de ser da autosuperação (Überwindung), a transcendência, o ir para além (metá), mas não saindo de si, não abandonando a si, ou negando a si em favor de uma coisa, de um reino, de uma região acima, para além, para fora de nós, mas sem ir para além de nós mesmos como potencialização, como escalada, não de violência, mas sim da afirmação da Vida. Esse modo de autosuperação, isto é, da simultânea dinâmica de se manter e se aumentar, portanto da conservação-escalação, esse poder, essa força, essa vitalidade de transcender, esse modo de ser é a estrutura da vontade que deve sempre de novo querer o querer do seu querer, numa contínua manutenção-escalação de si como liberdade. Essa liberdade não é liberdade de, mas sim liberdade para.

Essa dinâmica do querer como aumento da cordialidade de ser a partir de si na doação livre de si a si mesmo é o contínuo e crescente vir a si como crescimento. É tornar-se cada vez mais presente a si mesmo. Esse aumento de si mesmo como a vitalidade da autocordialização é o que caracteriza o poder. Assim, o novo sentido do ser que satisfaz a exigência e a necessidade da absoluta afirmação da vida, isto é, o princípio de uma nova valorização se chama Vontade para Poder.

Vontade para Poder em Nietzsche, portanto, não é desejo, ambição da conquista do poder dominador. É o princípio de nova valorização, é o ser dos entes na sua totalidade, cujo modo de ser é caracterizado como Vontade para Poder, por causa do modo de ser da vontade e do poder, descrito por Nietzsche como valor, como valência da coragem do ser, como valentia de ser que perfaz a condição da conservação-escalação da Vida.

Valor e valores são por conseguinte quantum e quanta da concreção de Vontade para Poder em diferentes densificações, formando assim as complexas configurações, isto é, os diversos entes, cada qual por si e na mútua implicância de interação como todo. Essas complexas formações, isto é, os entes na implicância mútua como textura energética da totalidade, assim criada, são durações do devir. São durações porque são contenções, momentos contidos, cristalizações passageiras do fluxo dinâmico e generoso da Vida, do devir. São relativas porque são relacionadas entre si uma na outra, uma com a outra. O ser do ente no seu todo para Nietzsche é, pois, Vontade para Poder, a Cordialidade-Vida no seu conservar-se e crescer, formando-se em mil e mil diferentes quanta, isto é, porções homogêneas da dinâmica do “querer ser” e “poder ser”. Essas porções, a que Nietzsche chama de valor, são valências de Vontade para Poder. Esse movimento e fluxo contínuo, cada vez mais intenso do vir a si de Vontade para Poder é um movimento espiral de autoescalação e autoconservação, que no renovado transcender-se para a essência de si mesmo é a expansão de si como aumento de autoescalação de Vontade para Poder, o seu crescimento. É, portanto, contínua repetição circular do mesmo, não na indiferença e chatice da monotonia linear de um rodar sem crescimento a modo de realejo, mas, sim, circulações da escalada do aumento, a modo dos anéis-espirais do voo da águia, que em diferentes e repetidos círculos concêntricos sobe cada vez mais, não flutuando, indiferente e carregado pelo vento como um balão de ar, mas superando sempre de novo o peso da sua sustentação da conservação e aumento de Vontade para Poder. Por isso, Vontade para Poder na sua dinâmica “interna” do crescimento é o eterno retorno do igual ou do mesmo, como a permanência no mesmo da retomada cada vez nova do todo de Vontade para Poder.

Assim, na ontologia de Nietzsche tudo é visto, avaliado, em vista e a partir do ontologicum Vontade para Poder, tudo como função ou funções de valia, como valor, valência, como a contínua conservação, escalação e retomada da coragem de ser. É nessa perspectiva que a vigência do Matemático que em Descartes operava como autoevidência da autoapresentação como evidência do saber de asseguramento vem à fala como valor da Vida, em valores de Vontade para Poder.

E em Vontade para Poder (1887), o n. 507 diz: “A avaliação do valor”, isto é, “eu creio que isto e isto é assim” como essência da “verdade”.

Nas avaliações de valor expressam-se as condições de conservação e crescimento. Todos os nossos órgãos de conhecimento e sentidos são desenvolvidos somente em vista de condições de conservação e crescimento. A confiança na razão e nas suas categorias, na dialética, portanto a avaliação de valor da lógica, somente prova a já por experiência comprovada utilidade da verdade para a Vida: não a sua “verdade”. Que deve haver ali uma grande porção de crença, para que se possa julgar; para que falte a dúvida em vista de todos os valores essenciais; – isto é pressuposição de todo o vivente e da sua vida. Portanto, que algo deve ser tido por verdadeiro, é necessário, – não, que algo é verdadeiro.

“O mundo verdadeiro e o mundo aparente” – esta oposição é reconduzida por mim a relacionamentos de valor. Nós projetamos as nossas condições de conservação como predicados do ser como tais. O fato de que nós devemos ser estáveis na nossa crença, para crescer, disso fizemos com que o mundo “verdadeiro” não seja nenhum mundo de mudanças e do devir, mas sim que seja um mundo que é”.

A verdade é ilusão, é apenas função para a sobrevivência de uma espécie do ser vivente, a saber, do homem; a verdade é uma crença, rejeição de dúvidas e incertezas em vista da avaliação, isto é, do cálculo da valia, da valência dos nossos posicionamentos, para criar condições de estabilidade em favor da conservação e crescimento da Vida; o mundo verdadeiro, absoluto e eterno do suprasensível, o mundo metafísico é apenas um projeto do cálculo de valor do asseguramento do nosso crescer. A verdade não é outra coisa do que projeto do homem-sujeito e do seu agenciamento da própria sobrevivência e conservação.

Mas tudo isso, essa colocação de Nietzsche não é no fundo, mutatis mutandis, exatamente o que Kant na Crítica da razão pura propõe, na sua viragem copernicana, segundo a qual, o conhecimento não mais se deve orientar segundo o objeto, mas sim, pelo contrário, o objeto deve-se orientar segundo o intelecto? Certamente tanto Kant como Nietzsche, na sua crítica da razão ocidental, permanecem, no fundo, na pista da colocação metafísica do Ocidente. Assim, seja como for, a estrutura da verdade para ambos é sempre adequação, concordância, direcionamento como a transcendência da superação. Ambos colocam, como o centro e o substrato do ponto de referência do constituir-se do mundo, a Subjetividade, o homem como Sujeito e agente da estruturação do ser do ente no seu todo. O que, porém, em Nietzsche é próprio e para nós de grande importância é que essa correspondência, esse direcionar-se, se dá como avaliação de valor (Wertschaetzung). Diz Nietzsche: “A avaliação do valor… é a essência da verdade”. Nessa afirmação está o pivô, o ponto nevrálgico da Filosofia de Nietzsche, a sua crítica da razão ocidental. A palavra alemã para a avaliação de valor é Wertschaetzung (Wert = valor; Schaetzung = avaliação; Schatz = tesouro; ung = sufixo de ação). Portanto, no termo Werschaetz-ung está a palavra Schatz que significa tesouro. Avaliação de valor sugere pois que o valor diz respeito ao tesouro. O valor é a valência do tesouro. É a unidade de verificação de todas as coisas, portanto, dos entes na sua totalidade, enquanto contêm ou não contêm, enquanto contêm mais ou menos do ouro de fundo, isto é, do tesouro. Quanto mais fundo de ouro, quanto mais tesouro ali houver, tanto mais forte, tanto mais de valia é a unidade, tanto mais quantum de ser possui o ente. Mas lá onde está o teu tesouro, lá está também o teu coração. E o coração do tesouro da metafísica de Nietzsche é, como já foi dito acima, Vontade para Poder.

Isto significa que a essência da verdade, o que ela é de fato, realmente, só pode ser compreendido, se tivermos Vontade para Poder como o tesouro do coração de todas as coisas, como o fundo de ouro da “bolsa de valores” que é o mundo, o universo, o ente no seu todo.

Com o estabelecimento de Vontade para Poder como o ser do Sujeito e da sua subjetividade, o que se denominou “revolução copernicana” na virada da Idade Média para a Idade Moderna chega a sua consumação sob o título de “Eversão de todos os valores”. Ali Nietzsche coloca como o fundo da razão ocidental, o princípio da nova valorização: Vontade para Poder. Os valores, todos os valores, desde os mais insignificantes até os mais altos e absolutos, que desde Platão até hoje sustentam a humanidade na busca do sentido do ser dos entes no seu todo, não são outra coisa do que as condições de conservação e crescimento da própria Vontade para Poder, colocados como tais por ela mesma. Os valores supremos do mundo suprasensível, as verdades do reino do “Deus cristão” e de seus substitutos, isto é, a verdade absoluta da razão ocidental se desmascaram como valência, como funções de valia de Vontade  para Poder, que se torna agora, em Nietzsche, a verdade de todas as verdade, o valor de todos os valores, portanto o ser dos entes na sua totalidade.

Mas o que é isto a verdade de Vontade para Poder? Vontade para Poder não é ela agora a verdade suprema? A desvalorização do sustentáculo fundamental da razão ocidental e a descoberta do Princípio da nova valorização é a descoberta de que a essência da razão ocidental está nela mesma enquanto Vontade para Poder. E Vontade para Poder é o ser dos entes no seu todo. Mas o que de crítico, o que de diferente há nessa tão badalada Vontade para Poder? Não é ela senão a exacerbação cada vez mais desenfreada do envolvimento da razão ocidental consigo mesma enquanto metafísica? Esse transcender de Vontade para Poder não mais para fora, mas para dentro de si, esse assumir sempre de novo a responsabilidade de ter que ser cada vez si mesma, é realmente uma passagem para o radicalmente novo? Ou não é antes apenas um autoengano da razão ocidental que se tem por Vontade para Poder, mas por não possuir mais uma referência fora de si, volta-se sobre si, com o mesmo jeito da transcendência para o infinito do além, apenas agora aprisionada dentro do próprio movimento, apenas como um movimento circular de realejo? Um girar vazio, portanto, mas com a pretensão de ser o movimento centrípeto do olho do furacão da tempestade, sem contudo conseguir afundar e sucumbir para dentro de si, por não ter mais, nesse tempo de indigência do nihilismo europeu, o suficiente caos para poder gerar estrelas a partir de si? O que há de diferente pois no movimento do eterno retorno de Vontade  para Poder, diferente do movimento circular da ação projetiva do sujeito-homem? Vontade para Poder não é a exacerbação desse processamento da objetivação do homem como sujeito?

Nesse processamento da objetivação do homem-sujeito como um movimento de contínua superação de si para dentro de si, nada se encontra ali que lhe pudesse servir de fonte e fim da conservação e escalação do próprio vigor do retorno. Tudo começa a se desgastar num esvaziamento total do sentido do ser, restando cada vez mais apenas a exigência e necessidade de girar, girar sem cessar no vazio. No vazio nadificante, onde todos os entes são apenas funções, isto é, objetos liquefeitos, rarefeitos como momentos fugidios de cálculo, na indiferença da pura ocorrência, sem vida, sem alma. Vontade para Poder, o olho do suposto furacão da Eversão de todos os valores e do surgimento do princípio de nova valorização, parece ser exatamente o vir à fala da nihilidade nadificante que aniquila o próprio nada, reduzindo tudo a fluxos indiferentes de funções, numa entropia do ser, onde jamais poderá nascer, brotar e crescer, sequer uma ilusão do erro, sequer uma dor, um desespero ou sofrimento.

No entanto, por outro lado, nas próprias palavras insistentes de Nietzsche, Vontade para Poder, o novo ser dos entes no seu todo, é um anúncio inaudito da nova jovialidade de ser. É a Boa-Nova da Vida plena, da renovação contínua da coragem de ser, livre de toda e qualquer vindicância alheia a si, a não ser a exigência única, radical de ter que ser o vigor nascivo dela mesma. E nas palavras de Nietzsche no Assim falou Zarathustra (Also sprach Zarathustra) é a terceira e a última transformação do ser-homem, descrita como “inocência, criança, um esquecer, um novo início, um jogo, uma roda que gira a partir de si, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim!” Entrementes, na terra, livre da amarra do céu da metafísica, aumentam os sofrimentos e as dores dos filhos dos homens: as intermináveis guerras fratricidas, os absurdos da crueldade humana, os massacres dos inocentes, as brutalidades das limpezas étnicas, a desertificação do nihilismo europeu, as derrocadas e o esvaziamento do sentido de todos os ideais da Terra, a planificação do universo numa mobilização planetária destruidora de toda diferença que não seja correspondente à interpelação produtiva do autoasseguramento da subjetividade do sujeito-homem! Vontade para Poder!? A alegria de viver, a partir de si, para e por si, na valência da valentia de ser em assumindo a mortalidade e finitude da terra dos homens?! Não soa tudo isso, estranhamente alienado e alienante? Heróico? Trágico ou cínico-eufórico, estático-tresloucado?

Na obra Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Boese), no aforismo 150 (1886), escrita no tempo em que se ocupava com o pensamento, enquanto planejava sua obra principal, Vontade para Poder, escreve Nietzsche: “Ao redor dos heróis, tudo se torna tragédia; ao redor do semi-deus tudo se torna jogo de Sátiro; e ao redor de Deus tudo se torna – como? Talvez “mundo”?

Ao redor de Deus, tudo se torna… mundo?! O mundo, o Tudo, ao redor de Deus da “morte de Deus”, do Deus Vindouro do nihilismo europeu?! O que é pois e como é este Novo Mundo?

No fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (38[12]) responde Nietzsche:

E também vós, sabeis vós o que é “o mundo” para mim? Devo mostrá-lo a vós no meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, sem fim, uma imensidão, imensidão de forças, firme e brônzea, grandeza que não se torna maior nem menor; grandeza que não se desgasta, apenas se transforma. Como todo, imutável: uma economia sem gasto nem perda, mas também igualmente, sem acréscimo nem entrada; imensidão cercada pelo “nada”, como por sua totalidade; no entanto nada de vazio, nada de esbanjado, nada de infinito-estendido; mas sim, como força determinada, inserida num determinado espaço, e não num espaço que fosse de algum modo “vazio”; antes cheio como força em toda parte, como jogo de forças e como forças-ondas, simultaneamente um e “muito”; aqui crescendo, e ao mesmo tempo lá diminuindo; um mar de forças, se lançando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente se refluindo, com anos incríveis de retorno, a maré alta e baixa dos perfis dos entes na dinâmica da expansão, a partir do mais simples para os mais complexo, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais gélido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontraditório, e então de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradições, de volta para o prazer da sintonia, afirmando-se a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e seus anos, abençoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que não conhece nenhuma saturação, nenhuma superfluidade, nenhum cansaço –: este meu mundo dionisíaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, este mistério-mundo de dupla volúpia, este meu além do bem e do mal, sem meta, se não jaz uma meta na fortuna do círculo; sem vontade, se um anel não tem para si mesmo boa vontade, – quereis vós um nome, um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais ocultos, vós os mais fortes, os mais intrépidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo é Vontade para Poder – e nada mais! E também vós sois esta Vontade para Poder – e nada mais!

Mas o que é este mundo dionisíaco de Vontade para Poder, essa absoluta e incondicional afirmação da Vida na sua imensidão, profundidade e criatividade? O que significa “e também vós mesmos sois esta Vontade para Poder – e nada mais”?

Nós mesmos, a razão ocidental na morte de Deus, nós mesmos como a crítica da própria razão ocidental, esse “nós mesmos” somos Vontade para Poder e nada mais.

Esse “nós mesmos” como a concreção, como o vir à fala de Vontade para Poder, recebe em Nietzsche um estranho titulo, a saber, Humano, demasiadamente Humano. Assim, num fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (36[37]) nos ensina Nietzsche:

Humano demasiadamente Humano: com esse título está insinuada a vontade para uma grande libertação, a tentativa de um singular livrar-se de todo e qualquer preconceito que fala em favor do homem; e ir todos os caminhos, os quais conduzem suficientemente para o alto, para, por um instante que seja ao menos, olhar sobre o homem de cima para baixo. Não para desprezar o desprezível, mas sim para questionar até o fim para dentro dos últimos fundos, se ali não ficou ainda algo para desprezar, mesmo ainda no mais alto e no melhor e no todo, acerca do qual o homem de até agora estava orgulhoso; se ainda ficou algo para desprezar, mesmo neste orgulho e na inocente e superficial confiança na sua avaliação de valor: esta tarefa não menos questionável era um meio entre todos os meios, para os quais me obrigou uma tarefa maior, uma tarefa de maior envergadura. Quer alguém ir comigo estes caminhos? Eu a ninguém aconselho a isso. Mas vós o quereis? Então eia, vamos pois!

Essa tarefa maior, essa tarefa de maior envergadura, a tarefa de sucumbir, de ir ao fundo, até aos abismos os mais profundos dos entes na sua totalidade, no zelo, na diligência da fidelidade, de não deixar de pé nada que não seja o límpido, o puro, o expedito salto da boa vontade de Vontade  para Poder é o grande enigma de Nietzsche, de “Nietzsche e da crítica da razão ocidental”. A essência da Metafísica de Nietzsche, essência como do “Nietzsche e a crítica da razão ocidental”, portanto a essência de Vontade para Poder sucumbe no profundo silêncio da escuridão da Não-razão. Crepúsculo dos ídolos (Goetzen-Daemmerung, Sprueche und Pfeile 11), obra escrita por Nietzsche em 1888, terminada segundo o prefácio do livro “no dia em que o primeiro livro da eversão de todos os valores chegou ao fim”, diz: “Pode um jumento ser trágico? Que sucumba sob uma carga a qual não pode nem carregar nem jogar fora?… O caso do filósofo”.

O que vale a verdade de Vontade  para Poder como a verdade suprema no tempo de indigência da morte de Deus jamais poderemos saber de Nietzsche. No entanto, a própria Metafísica de Nietzsche, em percorrendo todos os momentos principais da sua constituição como o nihilismo europeu, a eversão de todos os valores, Vontade para Poder e o eterno retorno do igual, na tentativa de divisar o fundo abissal do Destinar-se do Ocidente, portanto mesmo a própria metafísica de Nietzsche, como crítica da razão ocidental, não é ela a própria busca apaixonada do Ocidente, do animal racional? Uma busca, através de todos os níveis dos abismos dos sofrimentos e das dores da terra dos Homens, através da aridez e secura da crescente desertificação da terra. Da terra, onde aos poucos nada mais resta a não ser a pura estruturação formal lógica, neutra e indiferente da objetivação calculada do autoasseguramento cibernético de não-se-sabe-o-quê. A busca apaixonada do radical-outro de nós mesmos que talvez não resida no além mundo da metafísica, mas sim, silencioso no fundo, bem no fundo, no pro-fundo da nossa razão vespertina do Ocidente, como escuridão e demência, como sofrimento e dor… como pura loucura? Ou… como a pura espera do inesperado… a espera de um “Deus-vindouro”, o puro início, o Ueber-Mensch: um não-homem, um aquém-homem, um homem-Deus, cuja “divindade” é aqui tão diferente, cuja alteridade tão outra que recebe o nome de “non-aliud” (Cusano), o mais próximo de nós mesmos, o mais íntimo de nós mesmos do que nós a nós mesmos?

  1. Da-sein: fenomenologia: ontologia fundamental

Assim, o ser do sujeito e da sua subjetividade como Vontade para Poder parece ter se transformado na finitude absoluta, i. é, inteiramente livre e solta do instante da percussão da Vida.

O que acima denominamos finitude absoluta, inteiramente livre e solta, do instante da percussão da Vida, é uma outra maneira de dizer: ex-sistência ou Da-sein.

6.1. O Da-sein

Usualmente se traduz o termo alemão Dasein na acepção da ontologia tradicional como a existentia (existência), contraposta à essentia (essência). Existncia, Dasein nessa acepção, significa ocorrência. Na fenomenologia a palavra Dasein está reservada somente ao Homem, mas numa referência toda própria. Dasein, existência designa o próprio do “Homem”, indica o Homem, compreendido no seu ser, não mais como Homem na acepção em uso até agora, mas num sentido do ser todo próprio, inteiramente novo, de tal sorte que se evita usar o termo Homem para referir-se a ele, empregando a palavra Dasein em substituição ao termo Homem. Nessa colocação não é preciso dizer o Homem na sua existência, pois existência não é algo que o Homem pode ter como sua propriedade, como sua qualidade ou característica, pois Dasein (existência) é o próprio Homem, a sua essência, de tal sorte que tudo que se sabe e se disse dele até agora deve ser entendido a partir e dentro dessa nova acepção. Por isso também dizer existência humana é um pleonasmo. E dentro dessa perspectiva se deve dizer que Deus não tem existência; nem pedra, nem planta, nem animal, mas somente o Homem é existência. É desse termo assim compreendido que surge o adjetivo existencial.

Há explicação muito bem feita, de como devemos entender com propriedade o Dasein, nas Notas Explicativas, colocadas no fim da tradução brasileira do Sein und Zeit (Ser e Tempo), tradução de Márcia de Sá Cavalcanti, Petrópolis: Vozes, 1988, p. 309-310[81]. Vamos a seguir reproduzir a explicação, na íntegra, e então, à mão dessa explicação, tentar a nosso modo dizer como devemos entender “a finitude absoluta, inteiramente livre e solta, do instante da percussão da Vida” a que se transformou na nossa epocalidade, com a fenomenologia, no ser do sujeito e da sua subjetividade, que em Nietzsche aparece como Vontade para Poder. Sob o verbete Presença = Dasein, diz a tradutora:

“Pre-sença não é sinônimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e Tempo, traduz-se, em geral, para as línguas neolatinas pela expressão “ser-aí”, être-là, esser-ci etc. Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binômio metafísico essência-existência; 2) para superar o imobilismo de uma localização estática que o “ser-aí” poderia sugerir. O “pre” remete ao movimento de aproximação, constitutivo da dinâmica do ser, através das localizações; 3) para evitar um desvio de interpretação que o “ex” de “existência” suscitaria caso permanecesse no sentido metafísico de exteriorização, atualização, realização, objetivação e operacionalização de uma essência. O “ex” firma uma exterioridade, mas interior e exterior fundam-se na estruturação da pre-sença e não o contrário; 4) pre-sença não é sinônimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua história etc. (cf. entrevista de Heidegger ao Der Spiegel, Rev. Tempo Brasileiro, n. 50, julho/set. 1977).

Quanto à formação do termo pre-sença, observar: “pre” corresponde a “Da” e sença, como forma derivada de “esse”, corresponde a “sein”. Quanto à origem latina de pre-sença, cf. a expressão de Cícero: dii consentes = os deuses conjuntamente, i. é, em assembleia, presentes, decidem”.

As traduções usuais do Da-sein para as línguas neolatinas usam para o Da alemão, os pre-fixos (ser-aí), (être-là), ci (esser-ci) etc. e para o – sein alemão o ser, être, esser. Esses prefixos são evitados na tradução nova do Dasein para pre-sença, pois conotam o imobilismo de uma localização estática. Com esse imobilismo em localização estática o Da-sein recebe, de alguma forma, a significação de factualidade, e como fato conota existência no sentido metafísico de atualização da essência, aqui da essência enquanto quiddidade, i. é, enquanto um quê que por sua vez recorda substancialidade pontual, como algo. A palavra Dasein, no entanto, não se refere a um ser, a um algo, uma substância que tem o seu aí, alí, lá, mas sugere que o Da é ser, no sentido verbal de puro movimento. Para indicar o sentido verbal de puro movimento, portanto, o movimento da dinâmica de ser, o –sein do Da-sein é formulado muitas vezes em gerundivo, -seiend, i. é, sendo ou em sendo, de tal sorte que em vez de Da-sein se torna melhor e mais preciso dizer Da-seiend. É nessa acepção do gerundivo como dinâmica do puro movimento em concreto, o ente é dito em alemão das Seiende, e correspondentemente o Dasein, das Da-seiende. Isso tudo está bem expresso no termo pre-sença. Pois ser enquanto gerundivo, como dinâmica do puro movimento em concreto, pode ser dito –sente, -sença, -sendo, -ente. Como tal, a forma do ser, do esse que diz em sendo, -ente, -sença, -sente conota puro ato, não propriamente no sentido do actus medieval dentro do binômio potentia-actus, que é variante do essentia-existentia, mas, digamos de algum modo, no sentido do ens a se, que na Idade Média, só é possível referir se ao Ente Supremo, Deus absoluto e infinito como plenitude do ser. Aqui, porém na compreensão do Da-sein como Da-seiend, retiramos da compreensão do ens a se (em sendo a partir de si) toda a conotação de plenitude, pujança absoluta, da infinitude, para apenas ficar limpidamente concentrados no modo de ser expresso no a se, como a partir de si, dentro de si, nele mesmo, sem nenhuma mistura de outros elementos e mediações que não seja ele mesmo, como límpida autopresença de si para si, mesmo, digamos bem a modo de quando falamos do modo de ser do phaínesthai medial, do scheinen, do evideri, de tal modo que se trata do puro nada, na sua dinâmica, onde a palavra dinâmica diz demais, e de alguma forma lembra substancialidade, ao passo que a se enquanto o puro movimento da liberdade, da soltura em si, nela e dela mesma, não é nada mais nem menos que a pura disposição prévia em sendo, pre-sença, o pre-sente, o Da, o Pré, sem nenhuma coisa a não ser o nada, o apenas nada Daseiend. É nesse sentido que o pré- da presença, o Da- do Dasein, “remete ao movimento de aproximação, constitutivo da dinâmica do ser, através das localizações”. Dito de outro modo, presença enquanto o puro movimento da liberdade, da soltura em si, nela e dela mesma, que é nada, i. é, a pura disposição de e para ser pura possibilidade de ser e de não ser, é um movimento onde propriamente não há aproximação, nem constituição de si, nem dinâmica de ser, nem suas localizações, mas apenas o deixar ser o ente no seu ser, na medida em que o ente livremente vem à fala como eclodir do sentido do ser como mundo. Esse nada na límpida disposição de deixar ser se diz em alemão das Offene, a aberta. A aberta no entanto não é ente, não é nada, a não ser possibilidade do ente ser, no seu ser. E, como possibilidade, não é uma espécie de fenda, um buraco, um espaço, um algo vazio dado simplesmente, mas acolhida, livre, i. é, cada vez disposta a deixar-se tocar pelo vir à fala do ente no seu ser, em cuja acolhida se doa sempre novo e de novo à condução do sentido do ser que nasce, cresce e se consuma, a partir e dentro da renovada disposição de receber, de tal modo que essa própria disposição de receber é recebida conforme se dá o toque do nascer da gênesis, do crescimento e da consumação do mundo. Essa disposição de receber, essa aberta do deixar ser o ente no seu ser é o Da, cujo ser é o próprio nada ser a não ser o próprio e límpido Da. Esse Da, a aberta é a essência, o próprio do Homem. O Homem enquanto o Da, enquanto a aberta a partir e dentro da qual nasce, cresce o ente na sua totalidade como mundo é o ponto de salto do eclodir do mundo,

6.2. Em repetição: Da-sein, na criação da existência artística

Assim, a pre-sença, o Da-sein não é nenhum ente dentro do sujeito homem, nem algum momento do seu ser, mas sim modo de ser próprio do homem que no homem considerado como sujeito e agente do ato não pode aparecer. Pois, nessa consideração, o homem de antemão já é posto, colocado como um ente, cujo modo de ser é do objeto ao lado de outros objetos não-humanos. Mas, podemos perceber em nós mesmos, em sendo, como é esse modo de ser próprio do homem, pois nós mesmos somos Dasein[82].

Tentemos, repetindo o que foi dito em 2.5.1, intuir de que se trata quando falamos da pre-sença, do Dasein ou melhor do pre-sente, do Da-seiende, à mão de um exemplo, através da dinâmica da criação artística? É o que vamos tentar a seguir.

Usualmente, quando usamos a palavra criar, pensamos na efetivação, produção, causação ou fabricação. Criar é efetivar, produzir, causar ou fabricar. Nesse sentido a criação artística produziria obras de arte. Estas, porém, têm um quê todo próprio que as diferencia de outros tipos de produção. Esse quê diferente é como uma fenda, como uma aberta que nos conduz para dentro de toda uma nova paisagem, até então nunca vista. Ou formulado um pouco diferente, uma obra de arte é uma fenda, a partir e através da qual eclode todo um mundo de estruturações da possibilidade humana. O que aqui denominamos possibilidade humana  é Da-sein como foi exposto no 2.5.1. Dasein é a interioridade do ser do Homem, donde vem à luz, vem à fala o mundo enquanto toda uma nova paisagem da possibilidade de ser. Usualmente interpretamos essa interioridade como um núcleo, dentro do homem, como do sujeito e agente da ação de produzir a coisa chamada obra de arte. E perguntamos: e esse sujeito homem, quando faz a ação de produzir o objeto ‘obra de arte’, donde tira a ‘inspiração’? Há algo ‘anterior’ a esse sujeito-homem que o toca, o move para a ação criadora? E se aqui respondermos que há outro anterior que inspira o sujeito-homem para a produção artística, a pergunta agora passa a ser aplicada a esse algo ou alguém que toca e move o sujeito-homem: quem move aquele que move o sujeito-homem? Desencadeia-se um regresso para o sujeito e agente cada vez “mais anterior”, a perder-se na repetição interminável de pergunta. Todo esse regresso só é possível, porque entendemos o Da-sein sempre ainda como sujeito-quê, i. é, algo, objeto, coisa chamada homem. Esse impasse no fundo é algo parecido com o movimento das rodas de uma locomotiva antiga que ao puxar numa subida os vagões pesados não dá conta do recado e fica a marcar passo, girando vazio, parado num mesmo lugar. É para evitar esse tipo de impasse, no qual sempre de novo ficamos girando vazio no esquema fixo sujeito-ato-objeto, que devemos reconduzir o intuir para dentro do seu fundo, ao Da-sein da vida artística. Esse fundo é sem fundo, no sentido de não haver nada de algo, nada de objeto, nada de coisa, portanto nada de sujeito em si, anterior. O que se dá aqui no Da-sein é apenas o ser Da.[83] Para, de algum modo ‘ver’ como é esse ponto nevrálgico do caráter do fundo da estrutura (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte), usemos um conceito tirado da doutrina da Criação do universo na mundividência medieval cristã. O conceito é aseidade e se refere à anterioridade de todas as coisas criadas. Como a aseidade é exclusivamente só atribuída ao Ente Supremo, Deus, corremos o risco de fazer uso inteiramente inadequado desse conceito medieval, se o usarmos para se referir ao ser do Homem que na mundividência medieval é denominado de ente finito. O nosso interesse aqui, porém, é apenas o de tentar a mão do conceito da aseidade[84] ilustrar de que se trata quando dizemos que o ser do Homem é Dasein, e colocamos o Da-sein como o ponto de salto do surgimento do mundo. Aseidade vem da expressão latina a se. Significa: Deus na sua essência, no que lhe é próprio, é a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si[85]. A expressão a se foi criada para evitar o uso da expressão causa de si (causa sui). Pois causa sempre nos remete a uma causa superior que se torna causa do efeito que produz. Causa pressupõe o esquema sujeito-ato-objeto. A se porém não supõe nada, nem a si, nem o ato em si, nem o objeto produzido. É então nada? É nada de tudo isso que dizemos assim predicando disso e daquilo, que é, seja o que for[86]. Trata-se, pois, de não determinar a partir de fora o que é. Então se trata de quê? É deixar ser a coisa ela mesma no seu ser. O modo de ser do a se não é portanto causa sui? Não. Mas então o que é? Não é um quê, mas sim simplesmente ser, i. é, a se, a partir de si, em si, para e por ser, a soltura de si, liberdade de e em si, a partir de si por e para o deixar-se ser. O deixar-se ser na liberdade, a soltura de si, a se é deixar ser todas as coisas nelas mesmas, também na soltura de si, a se. Mas deixar-ser já não supõe que algo seja, se não em ato, mas sim, ao menos, em potência? É possível deixar ser nada, sem cair totalmente no vazio do nihilismo, nada nadificado, um vácuo, tão vácuo que nem sequer se pode dizer que é vazio? No entanto, esse nihil é o Da do Dasein, a essência, i. é, o ser do Homem na sua interioridade, a mais própria, mais íntima do que ele a si mesmo, a possibilidade de ser ab-soluto na concreção do seu ser. É essa ab-soluta concreção, o sentido próprio do que se chama finitude humana[87]. É assim que alma do Homem, a psyché, que traduziríamos mais adequadamente como Dasein, é todas as coisas[88]. O in, a interioridade do Homem enquanto Da-sein é esse nada que é, na medida em que deixa ser o abismo de imensidão, profundidade e originariedade fontal da potência de ser; ser, na jovialidade gratuita da doação de si, na liberdade de ser. Essa liberdade de ser aparece sempre nova e de novo ‘contraída’, de-finida como simplicidade da finitude[89] no ser, i. é, no uno, cada vez seu, cada vez novo no surgir, crescer e consumar-se do mundo. É nesse sentido que o Da do Da-sein é passagem, não passagem de uma margem à outra[90], mas o “entre-meio” de cada “coisa”, que a deixa-ser, que a deixa eclodir como mundo. Da-sein é a mercê de, é afim de, é a afinação à gratuidade livre do abrir-se que é no seu fundo a recepção gratuita livre do ocultamento silencioso, humilde e contida da insondável potência de ser. Potência de ser que somente é no instante do abrir-se do mundo na sua finitude. Esse desvelar-se no e como ocultamento do estar-em casa, em toda parte, no resguardo do aconchego do que é sempre, a cada instante, como presença modesta, sem nome, anônima do ocultamento, se chama em grego antigo léthe (a-létheia), e na obra de Heidegger intitulada A Origem da obra de Arte, se chama Terra, e é a pátria, a matriz, o abismo fecundo, insondável da possibilidade de ser, cuja repercussão concreta se diz em grego: mythos[91], cuja raiz significa toar, soar. A concreção-repercussão do tonar da Terra é o mundo. Assim, o mundo seria o entoar ressonnte do assentamento do mundo na confiabilidade da Terra que aparece digamos como imensidão, profundidade e produtividade da Vida, que se oculta e se retrai para dentro da Terra, se perfazendo como a superfície das multifárias realizações da realidade nos afazeres e nas vicissitudes dos homens, de imediato, na maioria dos casos como anônima e silenciosa ocorrência de todos os dias?

6.3. Em repetição: Da-sein e Vida

Tentemos, em repetição, intuir melhor de que se trata quando na fenomenologia usamos o termo pré-sença (Dasein) para dizer o sentido do ser todo próprio e novo que jaz no fundo do ser da subjetividade do sujeito-homem, presente na compreensão transmudada do ser do Homem em Descartes, que em Nietzsche vem à fala como vontade para o poder. Para isso recorremos a um texto de Nietzsche, onde ele descreve o mundo.

Este mundo dionisíaco da vontade para poder é a absoluta e incondicional afirmação da Vida na sua imensidão, profundidade e criatividade. Ao assim caracterizar o mundo como Vida, de imediato surge a pergunta: o que significa afirmação da Vida. É a Vida que se afirma, se põe e se expõe a si mesma, na sua imensidão, profundidade e vitalidade ou quem afirma é o homem, aqui, o sujeito de nome Nietzsche que afirma que a vida é assim, expressando a sua maneira pessoal subjetiva, poético-literária de conceber, sentir, imaginar e representar o mundo, ou melhor, de interpretar o mundo? Assim, queiramos ou não, seja como for, em detalhes e em concreto o que está implícito na realidade em si chamada mundo, uma coisa parece ser óbvio e incontestável, a saber, que de um lado ali está o mundo como realidade em si, diante, ao redor de nós, a constituir o mundo objetivo ou exterior; e de outro lado aqui estamos nós, homens, pessoas, sujeitos, seja como indivíduos, seja como grupos, coletividades, com todos os nossos atos, vivências, volições, intelecções e sentimentos, a formar o mundo subjetivo ou interior. A partir e dentro dessa prévia obviedade do esquema e distinção bipolares  “Sujeito ↔ Objeto”, como entender o que é dito no texto de Nietzsche: Este mundo é a vontade para poder – e nada mais! E também vós sois esta vontade para poder – e nada mais!”?

O que é este mundo de coisas reais, em si, objetivas? O que é esse mundo de coisas humanas, pessoais, todas referidas ao sujeito homem, subjetivas? Que coisa é isto que em dizendo e vendo tudo isso e muito mais, se vê a si mesmo vendo, julgando, pensando, sentindo tudo isso como coisas subjetivas e objetivas, isto que se acha “fora de si”, como que a espelhar essa imensidão, profundidade e vitalidade em si mesmo?

No fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (38[12]) diz Nietzsche:

“E também vós, sabeis vós o que é “o mundo” para mim? Devo mostrá-lo a vós no meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, sem fim, uma imensidão, imensidão de forças, firme e brônzea, grandeza que não se torna maior nem menor; grandeza que não se desgasta, apenas se transforma. Como todo, imutável: uma economia sem gasto nem perda, mas também igualmente, sem acréscimo nem entrada; imensidão cercada pelo “nada”, como por sua totalidade; no entanto nada de vazio, nada de esbanjado, nada de infinito-estendido; mas sim, como força determinada, inserida num determinado espaço, e não num espaço que fosse de algum modo “vazio”; antes cheio como força em toda parte, como jogo de forças e como forças-ondas, simultaneamente um e “muito”; aqui crescendo, e ao mesmo tempo lá diminuindo; um mar de forças, se lançando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente se refluindo, com anos incríveis de retorno, a maré alta e baixa dos perfis dos entes na dinâmica da expansão, a partir do mais simples para os mais complexo, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais gélido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontraditório, e então de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradições, de volta para o prazer da sintonia, afirmando-se a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e seus anos, abençoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que não conhece nenhuma saturação, nenhuma superfluidade, nenhum cansaço –: este meu mundo dionisíaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, este mistério-mundo de dupla volúpia, este meu além do bem e do mal, sem meta, se não jaz uma meta na fortuna do círculo; sem vontade, se um anel não tem para si mesmo boa vontade, – quereis vós um nome, um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais ocultos, vós os mais fortes, os mais intrépidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo é a vontade para poder – e nada mais! E também vós sois esta vontade para poder – e nada mais!”

Para nós hoje, esse texto de Nietzsche, na sua imensidão, profundidade e beleza, no entanto, soa grandioso demais. Há ali para nossa sensibilidade e gosto demasiado ingrediente de heróico, genial, escatológico, sim metafísico. Acima, dissemos em falando da vontade para o poder e presença (Dasein) que o ser do sujeito e da sua subjetividade como Vontade para Poder parece ter se transformado na finitude absoluta, i. é, inteiramente livre e solta do instante da percussão da Vida. E que essa finitude livre seria uma outra maneira de dizer: ex-sistência ou Da-sein. Em que consiste, pois, a diferença entre a vontade para o poder e a presença, na estruturação do seu ser como entoação do sentido do ser todo próprio e novo, dito com outras palavras, como a coisa ela mesma da fenomenologia?

Antes, porém, embora brevemente, nos adentremos no mundo acima apresentado por Nietzsche. Ali aparece de modo veemente e grandioso a imensidão, profundidade e a dinâmica da realidade, da coisalidade de ser como elã vital.

O mundo é universo, totalidade ab-soluta, como todo, no todo, em cuja totalidade não há nenhum resquício de indeterminação indefinida, infinita, sem definição, mas é imensidão a tinir na dinâmica de autopresença da força. É, pois, um monstro de força, plenitude absoluta de força, o poder: a tinir na autopresença a partir de e em si, com tamanha densidade, a ponto dessa contenção do tinir da potência da autoatuação se assentar em si, se firmar como grandiosa imensidão que: não se torna maior nem menor; que não se desgasta, mas é monstruosa contenção do fervilhar da dynamis, i. é, no poder de criatividade na transmutação de cada momento do todo na dinâmica das transformações das concreções como vitalidade interior. Assim como todo, o turgescer do interior do todo, em todas essas concreções transformantes, se perfaz qual firmeza- superfície de contenção e contenência que raia a imutabilidade, ocultando sob a aparência de imobilidade uma potência que não é outra coisa do que economia, boa gestão da autoidentidade, do cuidar do ser em casa, sem gasto nem perda, mas também igualmente, sem acréscimo nem entrada, sem o que denotaria carência e vazio de privação interna. Esse determinar-se, esse acercar-se de si, a partir de si, em si, esse assentar-se em si como a autopresença, do monstro de força, não é nem fechamento de um bloco maciço dentro de um espaço vazio do nada de carência e privação, mas sim o tinir da plenitude na dinâmica de ser. Portanto nessa dinâmica de ser não há nada de vazio, de privação, nada de carência nem de esbanjamento, nada de infinito, espraiado, distraído, estendido indefinidamente na vaguidade de ser. Tudo ali, a cada momento, em cada elemento do todo, cada qual e no todo, é inserção, é determinação, no abrir o espaço próprio de expansão e contenção, sempre e a cada in-stante:

cheio como força em toda parte, como jogo de forças e como forças-ondas, simultaneamente um e “muito”; aqui crescendo, e ao mesmo tempo lá diminuindo; um mar de forças, se lançando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente refluindo, com anos incríveis de retorno, a maré alta e baixa dos perfis dos entes na dinâmica da expansão, a partir do mais simples para os mais complexos, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais gélido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontraditório, e então de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradições, de volta para o prazer da sintonia, afirmando-se a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e seus anos, abençoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que não conhece nenhuma saturação, nenhuma superfluidade, nenhum cansaço.

Nietzsche chama esse mundo assim descrito de: “meu mundo dionisíaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, i. é, do ser e do devir”. Esse adjetivo possesivo meu, de imediato e na maioria dos casos, nos evoca o nosso medium do inter-esse usual, de ser e de compreender, expresso no esquema Sujeito – Objeto e nos faz pensar com nossos botões: esse mundo dionisíaco da elã vital, descrito grandiosamente por Nietzsche, não é nenhuma coisa da realidade objetiva, mas sim impressões, representações, sensações a partir e dentro das quais esse sujeito-indivíduo chamado Nietzsche interpreta antropomorficamente a realidade objetiva, a coisa em si. Então, o que se chama na sua grandiloquência de mundo dionisíaco não passa da vida subjetiva interior do sujeito Nietzsche e não pode ser levado a sério como coisa real do mundo objetivo.

Mas, em vez de entender o adjetivo meu como possesivo, não poderia entendê-lo como expressão atônita de pertença? Em que sentido? Não no sentido de um subjetivismo, no qual o eu sujeito, quer individual, quer grupalmente compreendido, projete solipsisticamente a realidade em si como coisa para mim (nós), de mim (nós), por e através de mim (nós), como representação, como objetivação projetiva, de tal modo que deva dizer: o que seja realidade em si, como tal, acerca de tudo isso nada podemos dizer, a não ser que o que me vem de encontro como coisa em si, como mundo e suas entidades são no fundo minhas objetivações que eu lanço como realizações do meu interesse e projeto  sobre o desconhecido ponto x que se apresenta supostamente como algo em si fora de mim. Mas também não, no sentido de um realismo objetivista oposto ao subjetivismo, no qual o homem se considera como que um modesto pontinho perdido na imensidão do universo cósmico, quer acolhido, quer abandonado, quer integrado, quer perdido no mundo, quer como um ente assinalado por um destaque especial de ser criatura, filho de Deus, de ser superior, o mais evoluído, dotado de inteligência e vontade, portanto de ser animal racional, quer diluído como elemento qualquer, reduzido a uma das possibilidades de variações quânticas da energia material etc. Mas sim, no sentido de pertencer ao destinar-se de um ente, cujo ser consiste em se responsabilizar pelo próprio ser e a partir dali pelo sentido do ser de todos os entes ao redor, diante e dentro dele, no e do tempo e espaço, com outras palavras pelo sentido do ser do ente no seu todo. O mundo que assim eclode, cresce e se consuma como uma possibilidade de ser é o que Nietzsche denomina de meu mundo. Mas como é esse responsabilizar-se pelo mundo na pertença a ele, como vontade para o poder? É a modo da vontade, que tende ao poder. Como entender, pois, a vontade e o poder? Diz Nietzsche: este mistério-mundo de dupla volúpia, este meu além do bem e do mal, sem meta, se não jaz uma meta na fortuna do círculo; sem vontade, se um anel não tem para si mesmo boa vontade, – quereis vós um nome, um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais ocultos, vós os mais fortes, os mais intrépidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo é a vontade para poder – e nada mais! E também vós sois esta vontade para poder – e nada mais!” O mundo, este meu mundo, este mistério-mundo é de dupla volúpia? Volúpia, o elã da vitalidade como gozo visceral, além ou melhor, aquém do certo e errado, do adequado e inadequado a uma meta, um assumir-se, um responsabilizar-se por e para si, um destinar-se que ao se lançar, se lança por e para si, como lance de autoconstituição circular, de autocriação? O mundo, este meu mundo, o círculo, o anel da autocriação, não é uma vontade como faculdade do sujeito-homem, mas é o ela vital que se estrutura como mundo, no seu perfazer-se, no se fazer a partir de si, por e para si, é a boa vontade, a vontade boa, perfeita, consumada, na plenitude de si mesma, a vontade que é poder e poder que é vontade: vontade para poder.  E segundo Nietsche: este mundo, o dionisíaco, a saber a vontade para poder, somos-eu-e-nós mesmos, sois tu-e-vós mesmos,  é o próprio homem. Isto significa que o mundo e o eu, o mundo e o homem coincidem enquanto  são reduzidos ou reconduzidos à sua vigência originária, aquém de toda e qualquer objetivação como coisa-homem e coisa-objeto, portanto à Vida e sua vitalidade. Esse apriori, essa dinâmica da anterioridade de todas as coisas, no todo e em cada momento desse todo, a boa vontade circular, a vontade, o poder, não é tout court isso ou aquilo constituído a partir e dentro de, por e para si,  mas o ontologicum do ente no seu ser, é a “causa”, a “coisa” subjacente, o ser atuante da totalidade-mundo que vem à fala como Vida. O ser do Sujeito é Vida, entendido como Vontade para Poder. Não poderíamos dizer a substância, o hypokeímenon, o prejacente, a “coisa”, a causa prejacente do Sujeito é Vida? Mas tudo isso não é exatamente a mundividência chamada vitalismo, onde se concebe a realidade a partir e através do horizonte prévio da Vida. É a intepretação do ser da realidade como elã vital.

E Nietzsche, no outro texto acerca do Humano, demasiadamene humano, nos responde, dizendo: não, não se trata de vitalismo, não se trata de elã vital, mas da vontade do homem enquanto sujeito e agente de transformação do mundo.

Num fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (36[37]) nos ensina Nietzsche:

“Humano demasiadamente Humano: com esse título está insinuada a vontade para uma grande libertação, a tentativa de um singular livrar-se de todo e qualquer preconceito que fala em favor do homem; e ir todos os caminhos, os quais conduzem suficientemente para o alto, para, por um instante que seja ao menos, olhar sobre o homem de cima para baixo. Não para desprezar o desprezível, mas sim para questionar até o fim para dentro dos últimos fundos, se ali não ficou ainda algo para desprezar, mesmo ainda no mais alto e no melhor e no todo, acerca do qual o homem de até agora estava orgulhoso; se ainda ficou algo para desprezar, mesmo neste orgulho e na inocente e superficial confiança na sua avaliação de valor: esta tarefa não menos questionável era um meio entre todos os meios, para os quais me obrigou uma tarefa maior, uma tarefa de maior envergadura. Quer alguém ir comigo estes caminhos? Eu a ninguém aconselho a isso. Mas vós o quereis? Então eia, vamos pois!”

Trata-se, portanto, do querer, da vontade do homem, do sujeito e agente de transformação!…?… A vigência do querer, do poder da vontade, da vontade que se escalona na autopotencialização como vontade para poder. Mas que coisa é esta, a vontade e poder  a se prezar e em se prezando se desprezar, a se valorizar e a se desvalorizar em função, em vista de valor maior? Que coisa é, isto que sempre de novo e continuamente se supera, se transcende a si mesma e vai mais para além de tudo que lhe pertence, tudo que projeta como supervalorização da sua vontade para poder, como liberação, como libertação de si?

Nessa altura de reflexão, nos empenhamos de entender as palavras e expressões quais Vontade para Poder, Vontade, Poder não mais como força, energia, impulso que está dentro do homem, seja de que forma for; nem Sujeito e agente da transformação do mundo como este, aquele, ou grupo de homens que é ente ou entes em si, a modo de substância em si, que causa, atua e sustenta uma ação transformadora sobre esta ou aquela coisa, ou conjunto de coisas. Mas que coisa é? De que se trata? E como acima respondemos: é o ontologicum do ente no seu ser, é a “causa”, a “coisa” subjacente, o ser atuante da totalidade-mundo que vem à fala como “vontade para poder”.

Percebemos que nesse girar abstrato em palavras, dizendo que não se deve entender assim, nem assado, não avançamos, apenas giramos vazio, sem conseguir dizer positivamente de que se trata, o que é afinal, que coisa é essa “vontade para poder” e o que sejam todas aquelas coisas que falamos na sua cercania como Sujeito, Agente de transformação do mundo, vontade, poder etc.

Mas na insistência de girar vazio, e nesse formalismo vazio perder fôlego e não mais ter o ar suficiente para prosseguir na compreensão mais aprofundada do que seja o ontologicum, ocorre nesse vácuo da ausência de conteúdos, onde nos agarramos e nos apoiamos, uma suspeita: não está na hora de retomarmos a questão da diferença ontológica, entre o ser do Dasein e o ser do ente-não humano de uma forma mais adequada e eficiente?

6.4. Em repetição: Da-sein e a sua diferença ontológica

Da-sein como modo que se abre no fundo do ser da subjetividade do sujeito, como sentido do ser todo próprio e novo que nos traz o ser do Homem na sua diferença ontológica, só pode ser captado com precisão na oscilação da sua ambigüidade. Pois  pode ser entendido ora no seu sentido todo próprio de presença, ora como o modo que diferencia o homem enquanto ente dos entes não-humanos. Assim entendido, no jargão filosófico dizemos que o próprio do ser do Dasein tem o caráter diferencial da assim chamada diferença ôntica que distingue o homem de outros entes não-humanos. Nesse caso teríamos duas grandes regiões do ente como: a região do ente humano e a região do ente-não humano. Embora nessa divisão entre o modo de ser próprio do homem e o modo de ser do ente não-humano haja grande diferença, o sentido do ser que abrange essas duas regiões numa generalidade maior e mais vasta é o ser num sentido bem determinado. Pois tanto os entes humanos como também os entes não-humanos são entes. O sentido do ser aqui é comum, geral a ambas as regiões. A expressão o modo de ser próprio do homem, entendido como diferencial diante do ente não-humano, debaixo do igual sentido do ser, comum a ambos, é diferença ôntica. O modo de ser próprio do homem, porém, ao ser entendido como diferença ôntica, pode ao mesmo tempo ser entendido também como diferença ontológica. Na diferença ontológica, a diferença existente não é entre este ente e outro, nem entre ente e ente num sentido mais geral, mas entre o ser e ser, ou melhor, “entre” o sentido do ser e o sentido do ser. Mas de que se trata? Em vez do ser ou sentido do ser, usemos os termos horizonte, ou melhor, mundo, que no início da nossa reflexão, ao falarmos das diversas acepções dos termos algo, objeto, coisa, troço, trem, ou em alemão etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, mencionamos como indicadores do modo de ser característico de cada modo de ser. Nesse sentido então, a diferença ontológica diz respeito à diferença existente entre horizonte e horizonte, entre mundo e mundo. Só que aqui é necessário não entender o horizonte (ou o mundo) de modo vago e abstrato como se fosse um grupo, uma classe ou uma região diferente de entes. Pois horizonte ou mundo diz respeito à totalidade, de tal modo que não se trata de “objetivar” a totalidade como ente e colocá-los uma ao lado da outra a modo de conjunto de coisas. O horizonte ou o mundo como cada vez totalidade abrange todos os entes atuais e possíveis sob o sentido do ser ali operante, de tal modo que uma vez dentro, não há nada que possa ficar fora e, a partir de dentro não se pode perceber que é possível uma outra totalidade. Surge a pergunta: é possível se pensar o mundo o mais geral que abrangesse todos os mundos na sua mundidade? Não seria possível um mundo assim geral, pois o mundo não é um gênero, nem espécie, nem isso ou aquilo, mas …cada vez mundo, cada vez seu, na total autoidentidade de e consigo mesmo, sem se trancar em si, pois a partir de dentro se expande indefinidamente, mas na sua identidade diferencial, se perfaz radicalmente “fechado” ou “oculto” a si mesmo, pois não se pode sair do mundo e tomar pé numa posição extra ou além-mundo, para adquirir uma visão panorâmica geral dos mundos na sua mundidade. Esta, a assim colocada visão panorâmica, é fruto de um bem determinado horizonte, cujo modo de ser é caracterizado por termo algo (etwas) e mesmo ente (Das Seiende) ou também objeto (Objekt), cujo “grau” de mundidade é tão baixo que o ente não aparece aqui a não ser como um quê-bloco totalmente abstrato e indeterminado. O modo de ser da mundidade caracteriza o modo de ser ôntico do Homem que ambigüamente se pode chamar também Da-sein, mas é precisamente nesse modo de ser onticamente diferencial que aparece a possibilidade de recolocar a busca, i. é, a questão do sentido do ser, na sua diferença ontológica, pois é somente no Homem agora entendido como Dasein que se abre a compreensão de que se trata quando dizemos ser como horizonte, como mundidade do ente na sua totalidade. Esse modo de ser que é ao mesmo tempo ôntico e ontológico, ou melhor, o modo de ser ôntico, que na sua diferença ôntica, ao se distinguir do ente não-humano, traz nessa diferença identificadora do ser do Homem a revelação, a abertura que mostra a mundidade como a diferença que caracteriza a identidade de cada ente no seu ser, (diferença ontológica) se diz no “Ser e Tempo” ser-no-mundo e se refere à finitude essencial do Homem como Da-sein.

Mas como entender tudo isso com maior clareza? Para insistir, ao perseguirmos uma pista da possibilidade de compreender a coisa ela mesma e a convocação à coisa ela mesma da fenomenologia, no momento em que conseguirmos intuir o ser do Dasein na sua identidade diferencial, na precisão da sua diferença ontológica, possamos compreender o que significa coisa ela mesma em diferentes níveis do sentido do ser e de que se trata quando a fenomenologia despertou sob o apelo Zur Sache selbst.

6.5. Em repetição: Das-ein na Ontologia da substancialidade e na ontologia da subjetividade?

No 2.6.1, ao começarmos a falar do Da-sein, citamos a nota explicativa feita pela tradutora do Ser e Tempo, sob o verbete (N1) Presença = Dasein. Ali se diz: “Pre-sença não é sinônimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comumente traduzida por existência. Em Ser e Tempo, traduz-se, em geral, para as línguas neolatinas pela expressão “ser-aí”, être-là, esser-ci etc. Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binômio metafísico essência-existência (…); 3) para evitar um desvio de interpretação que o “ex” de “existência” suscitaria caso permanesse no sentido metafísico de exteriorização, atualização, realização, objetivação e operacionalização de uma essência”. E bem no início da nossa reflexão no n. 2.2, ao fazermos um excurso sobre objetivação, citamos um texto de Heidegger, onde se dizia:  Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas”.

Como já o fizemos anteriormente na nossa reflexão, os textos acima mencionados marcam uma nítida diferença entre compreensão do Da-sein, da pre-sença (existência) no sentido fenomenológico e a compreensão do Dasein e da existência no sentido usual, caracterizada nos textos ora como medieval, ora como pertencente ao binômio essência-existência. Esta compreensão medieval pertence a assim chamada ontologia  substancialista, que representa a metafísica tradicionalista, por ser sua categoria fundamental substância, em grego hypokeímenon. E o binômio essência-existência são uma das categorias fundamentais da ontologia substancialista, intimamente ligada com a categoria substância. Nessa ontologia substancialista subiectum significa sub-stância,  hypo-keímenon: “o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas” e obiectum, o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar”. Segundo Rombach,[92] essa ontologia substancialista abrange a metafísica grega e medieval, assinalando-se diferenças e características próprias entre a grega e a medieval. Mas tanto numa como na outra o sentido do ser era o mesmo, expresso na palavra hypokeimenon, traduzido em latim por substância.

Essa mesmidade, no entanto, não deve ser entendida nem como igualação nem generalização, como se se tratasse de uma classificação geral, debaixo da qual estivessem as classificações especiais, uma denominada metafísica substancialista grega e a outra metafísica substancialista medieval. Na mesmidade ambas são totalidades bem caracterizadas, cada qual com sua identidade toda própria.

Tentemos a seguir caracterizar, ainda que superficialmente, a ontologia substancialista, a “coisa”, chamada substância, tentando intuir como a devemos ver concreta e vivamente dentro do todo da paisagem, cuja tonância de fundo, cuja dominante é o sentido do ser denominado substância.

Usualmente pensamos que substância é o que está ou é (estância) debaixo de (sub). O que está por baixo de uma coisa, o que a sustenta. Por isso, é seu fundamento, sua base. Mas quando falamos de fundamento ou base que segura, sustenta por baixo uma coisa, imaginamos tanto a coisa sustentada como a coisa sustentadora como bloco, chapa,  camada fixa, ali constituída, ocorrente[93]. Se, agora, tomarmos uma das coisas ocorrentes ali diante de mim p. ex. uma pedra, e a chamarmos substância, não a estamos considerando como uma coisa que está debaixo ou por baixo de uma outra coisa como fundamento-bloco. Mas, por que chamo algo sólido e firme como pedra, árvore, animal, homem de sub-stância, se esse algo ali está em si e por si, sem estar por baixo de nenhuma outra coisa? É que ao vermos uma imensa pedra p. ex. ficamos impressionados pelo seu aspecto externo, aquele lado que na pedra está virado para nós, sua superfície, cor, extensão, tamanho, peso etc. Esses aspectos podem mudar, sem que a pedra deixe de ser pedra. Assim é que temos pedras pesadas, leves, grandes, pequenas, bonitas, feias, pedra que tem o formato da cabeça de homem, pedra que parece pão de açúcar etc. Tudo isso, todos esses aspectos, embora possam mudar, são como que mantidos, unificados ao redor de um núcleo central, que não aparece, mas que está atrás, dentro, debaixo de todas essas camadas de aspectos que se chamam acidentes. Temos assim um núcleo, sobre o qual caem os acidentes (accidentia =ad+cadere), formando a exterioridade da coisa, a sua fachada, atrás ou por baixo da qual representamos um núcleo-bloco[94], um em si, permanente. Por isso, cada coisa é constituída de substância e seus acidentes. Essa representação do que seja a coisa ou o ente como substância, evidentemente não é nem grega, nem medieval. Por isso que nós hodiernos ironizamos perguntando: numa cebola, onde está a substância e os acidentes; cada camada da cebola que em sucessivas camadas, uma envolvendo a outra, vai diminuindo em tamanho é cada vez substância que é por sua vez, em possuindo seus acidentes como p. ex, cor, densidade, peso etc., é acidente da camada-substância anterior? Assim, também a camada de terra, sobre as quais crescem capins, arbustos etc. que cobre o cimo de uma montanha rochosa e é sustentada por ela, é substância ou é acidente, mas com pleno direito, substância?! Por isso Heidegger diz: “o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas. Por conseguinte, coisas não são blocos, núcleos, isto, aquilo, ali, lá, acolá, mas sim prejacências, presenças, ocorrências. Mas em que sentido?

Quando uma imensa extensão se estende e jaz diante e ao redor de nós, como p.ex. numa chapada, não somente temos a sensação da extensão horizontal, mas ao mesmo tempo a extensão possui peso, é como se o todo da imensidão subisse do fundo e se abrisse como vastidão bem assentada no profundo de si mesma. Esse modo de ser de uma paisagem, onde percebemos a imensidão, profundidade e vigor do sereno estar assentado em si mesmo, para dentro do seu profundo, é dito na palavra hypokeímenon, hypokeisthai, prejacência, substância. Esse “assentar-se no seu ser”, a prejacência não é isto ou aquilo, não é localizável aqui ali como uma coisa, mas impregna o todo e cada momento, todas as articulações e partes do todo, está presente como vigência em todas as coisas que constituem a paisagem, perfazendo a cada qual o seu “erguer-se”, o seu surgir, crescer e consumar-se a partir e para dentro dessa prejacência. São: os prejacentes a partir e dentro da imensidão, profundidade e vigor da prejacência de ser, de si, os presentes, a saber: as coisas” na ontologia substancialista. Coisas de tal teor, se destacam no seu perfil, saltam aos olhos, de quem inabita, mora na estância, bem assentado na imensidão, profundidade e vigor desse modo de ser da prejacência[95]. Pois tanto coisas como o homem são entes prejacentes, presentes, cada qual a seu modo, junto, na cercania da pregnância do vigor da prejacência. Por isso substância (hypokeímenon) se diz também essência, em grego ousia[96].

Esse modo de ser da prejacência, a substancialidade, vige em todas as coisas para que cada coisa seja cada qual a seu modo substância. E o assentar-se no ser, de cada coisa, portanto a substancialidade de cada coisa, a seu modo, perfaz a identidade diferencial de cada coisa enquanto substância, i. é, prejacência do vigor, a tornar-se, em sendo, concreções, a saber, coisas ou entes, no seu todo, a saber, cada vez um mundo. A grande dificuldade de nos mantermos na precisão da compreensão do que seja tudo isso que estamos falando, consiste em sempre de novo objetivarmos à la representação no sentido nosso atual da metafísica da subjetividade, a prejacência, a substância como esta ou aquela coisa-bloco, mas também ao mesmo tempo, de representarmos a prejacência que impregna todas as coisas e cada coisa como algo espacial, extencional, a modo da extensão quantitativo-geométrica etc. Mas, então, como é possível ver, captar, se afetar, ou melhor, ser tocado sem representar, sem objetivar, sem nada de intermédio, assim direta e simplesmente? Não há resposta para essa pergunta a não ser: em sendo simples e imediatamente ver, captar, se afetar, ser tocado. Pois aqui ver, captar, se afetar, ser tocado não é outra coisa do que de imediato e simplesmente ser presente, prejacente a seu modo, como ente denominado homem, na pregnância da imensidão, profundidade e vigência da prejacência. Talvez um exemplo possa ilustrar o que aqui está sendo dito sob a expressão “ver simples e imediato”.

Esse ver simples e imediato é como abrir-se de uma paisagem, a “clareira” de fundo livre, a partir e dentro da qual cada ente é deixado ser na propriedade do seu ser. Não seria isso a coisa ou a causa[97] do que no texto da carta citada no 2.2. Excurso: Objetivação, é dito por Heidegger:

Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”. Ou “Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá, como um objeto das ciências naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus”.

O ser do prefixo pré- da prejacência, do hypó- do hypokeímenon, falando com precisão não deve ser entendido como se ela estivesse ali estendida diante de mim, à la extensão quantitativo-geométrica. Ela antes me envolve, me “impregna”, sou ou somos uma “coisa” presente como momento concreto da imensidão e profundidade e vigência de toda a paisagem. Por isso, o que na carta, ao descrever a compreensão do obiectum na Idade Média, i. é, na ontologia substancialista, Heidegger diz: “obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar” não deve ser interpretado dentro do “realismo” usual a modo do esquema S – O, mas dentro da substancialidade, i. é, da imensidão bem assentada da paisagem-prejacência do ser, como vir à evidência, na plasticidade bem destacada, própria, “a saltar aos olhos”, digamos do fundo imenso, profundo e bem assentado da substancialidade prejacente. Dentro dessa perspectiva, lançado e mantido (objeto) não significa como diz Heidegger “o que é levado de encontro através de um representar[98], mas sim o que surge, cresce e se perfaz como a dinâmica da phaínesthai, do phainómenon, do fenômeno. E aperceber, imaginação, julgar, desejar e mirar não seriam atos do(s) sujeito(s) eu(nós) de atuar, quer em projetando, quer em deixando se afetar pela atuação do outro (da coisa), mas “participar”, estar junto com todos os entes, ser disposto na consonância bem assentada do e ao todo, no caso do homem, no assentar-se no próprio do seu ser, ao qual pertencem como consonância consigo mesmo enquanto uma determinada intensidade de ser substância, todos esses “atos” acima mencionados[99].

A essa altura poderíamos perguntar se há alguma referência entre Dasein, no sentido fenomenológico e ontologia substancialista? Aparece uma insinuação de Dasein nessa paisagem substancialista? A pergunta parece ser inadequada a essa altura do percurso da nossa reflexão, pois, ao iniciarmos o 2.6.3.2 dissemos exatamente que Dasein não deve ser entendido como existência no sentido da metafísica substancialista. Portanto Dasein não é de modo algum substância. Não é também sujeito no sentido da metafísica da subjetividade dentro do percurso. Mas quando dizemos que Dasein não é substância, Dasein não é sujeito, estamos dizendo que Dasein não pode ser entendido a partir da compreensão do homem como substância nem como sujeito. Mas com isso estamos dizendo em primeiro lugar que Dasein deve ser entendido ele nele mesmo e dele mesmo e em segundo lugar que talvez seja possível entender o homem como substância e o homem como sujeito, à luz da questão do sentido do ser do Dasein. Mas como? De que modo? E aqui, ao tentar responder a essa pergunta, fiquemos de olho numa objeção que surge por assim dizer “atrás de nossas orelhas”, ao observarmos que segundo a descrição acima feita da substância, na compreensão da ontologia substancialista, a descrição feita por Heideggger da “paisagem” do jardim de rosa em flor e da estátua de Apolo parece pertencer à ontologia substancialista, e não à fenomenologia!… Para podermos prosseguir, sem perder o fio da reflexão, resumamos o percurso da nossa reflexão até agora, mais ou menos no seguinte esquema:

  • – No início, ao falar ainda que provisoriamente da coisa ela mesma; depois, do fenômeno; e do logos ou logia referente à fenomenologia, percebemos como falar da coisa ela mesma está sempre de algum modo implicado e intimamente ligado com falar do Homem. Portanto, há uma correlação “Coisa e Homem”. Correlação “Coisa e Homem” originariamente é idêntica com o esquema hodierno Sujeito-Objeto?
  • – Em seguida, ao falarmos mais explicitamente sobre a fenomenologia, observamos como, no início, a fenomenologia surgiu de um confronto com o psicologismo e seus problemas e foi retomada da análise crítica a respeito do realismo e idealismo na teoria do conhecimento, a cerca da possibilidade do conhecimento verdadeiro, e da definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus e do esquema S«O, dentro do qual se achavam as perguntas, respostas e os problemas que diziam a respeito à realidade e seu conhecimento seguro. Que tipo de correlação “Coisa e Homem” encontrou, no início, a fenomenologia, ao defrontar-se com a acima mencionada situação dos problemas que vinham da teoria do conhecimento?
  • – Todos esses confrontos levam à descoberta da intencionalidade no sentido fenomenológico em Husserl, que em se encaminhando para a questão do ser do conhecimento, transcende o nível da teoria do conhecimento para ser uma tentativa e tentação de uma nova ontologia, que em Heidegger recoloca tematicamente a questão do sentido do ser. E ao colocar a questão do sentido do ser, surge a pergunta pelo ser do Homem, que entre todos os outros entes possui o destino de ter que ser, a saber, ter a possibilidade da necessidade livre de dar-se o sentido do ser e se responsabilizar por ele e nessa incumbência abrir o sentido do ente na sua totalidade.
  • – Assim surge a designação do ser do Homem, a pré-sença ou o Da-sein e na tentativa de precisar a compreensão do Dasein e suas implicâncias, ao rejeitar explicar em que consiste Da-sein como substância (da metafísica substancialista) ou como sujeito (da metafísica da subjetividade), se percebe que os conceitos opostos no esquema S«O, eram nada menos do que indicativos. Indicativos, i. é, apontavam para uma determinada ontologia, não na sua compreensão originária, mas na sua interpretação já defasada e congelada doutrinária e dogmaticamente. O (Objeto: coisa, algo, realidade, mundo, ente) apontava para e tinha implicação com a explicação do ente na sua totalidade, chamada ontologia substancialista, atuante na antiguidade e na Idade Média, sob a palavra-chave hypokeímenon (metafísica grega) e substantia (metafísica medieval). E S (Sujeito: homem, eu-nós, a Humanidade) apontava para e tinha implicação com a explicação do ente na sua totalidade, chamada ontologia existencial, atuante na Idade Moderna (metafísica moderna: Descartes®Nietzsche) e na nossa Era Contemporânea (Fenomenologia e suas variantes) sob as palavras-chave Sujeito (Cogito, Vontade para Poder) e Subjetividade ou ser da Subjetidade (Da-sein).
  • – Assim a pergunta inicial: o que é a coisa ela mesma adentra a pergunta: em que consiste a coisa ela mesma, a causa da ontologia substancialista? O que é substância enquanto ontologicum, i. é, ser do ente na sua totalidade, na epocalidade antiga? E ao mesmo tempo: em que consiste a coisa ela mesma, a causa da ontologia existencial? O que é sujeito enquanto ontologicum, i. é, ser do ente na sua totalidade, na epocalidade moderna? E em que consiste a coisa ela mesma, a causa da assim chamada fenomenologia ou ontologia fundamental, cujo conceito chave é Da-sein? O que é Dasein enquanto ontologicum, i. é, ser do ente na sua totalidade, na nossa epocalidade contemporânea? Ou não será assim que o Dasein não pode mais ser compreendido como ontologicum, como indicativo de uma nova fundamentação do ente na sua totalidade, mas antes ou ao mesmo tempo é a causa toda própria, a coisa que impregna e pulsa, tanto no fundo da ontologia substancialista, como na da ontologia existencial, enquanto questão do sentido do ser de toda e qualquer ontologia, i. é, das realizações da realidade, i. é, enquanto ontologia fundamental?!

Depois dessa esquematização breve e simplificada do que viemos dizendo mais ou menos até agora, a trancos e barrancos sob o fio condutor da pergunta “o que é a coisa ela mesma, e, ou melhor, o que é à coisa ela mesma, na fenomenologia”, tentemos examinar a possibilidade de entender o homem como substância e o homem como sujeito, de um modo mais fundo, à luz do que seja propriamente Dasein na fenomenologia e a partir dali ver como é o relacionamento do Dasein com substância e sujeito, dito com outras palavras, com Coisa e Homem.

  1. À coisa ela mesma: a coisa da fenomenologia chamada Da-sein

Há pouco afirmamos: quando dizemos que Dasein não é substância, Dasein não é sujeito, estamos dizendo que Dasein não pode ser entendido a partir da compreensão do homem como substância nem como sujeito. E ao mesmo tempo, com isso estamos dizendo que Dasein deve ser entendido nele mesmo e dele mesmo; e insinuando que talvez seja possível entender o homem como substância e o homem como sujeito, à luz da questão do sentido do ser do Dasein. Mas como? De que se trata esse negocio de à luz da questão do sentido do ser do Dasein?

A fenomenologia que em Heidegger através da analítica da existência (leia-se presença) se constitui como ontologia fundamental, e que de início foi muitas vezes interpretada como antropologia existencial, é tentativa de recolocar a questão pelo sentido do ser numa pre-compreensão do ser, diferente, quem sabe, enquanto um outro começo, que coloca sob interrogatório o sentido do ser dominante na ontologia na Tradição do Ocidente, como metafísica da Substância e metafísica do Sujeito. Esse interrogatório diz respeito ao ser da metafísica da substância e do sujeito, na ambigüidade estruturada em dois momentos: um, ao interrogar a substância e sujeito no seu ser respectivo, traz à claridade o determinado sentido do ser operante nessas metafísicas, e em assim se perfazendo na tematização do sentido do ser dominante na ontologia na Tradição do Ocidente, reconduz tanto a ontologia da substancialidade como a ontologia da subjetividade à sua origem; outro momento, em assim se tornando a partir da raiz da sua constituição, a concreção viva e definida de cada uma das ontologias acima mencionadas, na finitude dessa concreção, tenta – em se exercitando e se perfazendo como recondução à origem (redução), em se concretizando como perfilação estruturante e estruturada das dimensões, dos horizontes, ou  melhor, das mundidades (ideação) e se consumando cada vez como o tomar corpo da mundidade na concreção de-finida do mundo (constituição) – se dispõe a deixar-se tocar pelo abismo inesgotável e insondável da gratuidade do sentido da possibilidade de ser. Nesse fundo, donde emergem e ao mesmo tempo convergem o movimento da redução, ideação e constituição, no ponto de salto do mundo na sua mundidade, sob o toque do abismo da gratuidade do sentido da possibilidade de ser, … não poderia nesse fundo se “localizar” o ser, ou melhor, o nada chamado Da-sein, ou melhor ainda, o Da, o Pré do Dasein, da Presença? Não poderia ser esse o sentido da palavra fundo, expresso no adjetivo fundamental da denominação da fenomenologia que é a ontologia fundamental?

7.1. Em repetição: Dasein e Mundo e Terra

No Ser e Tempo, um momento essencial como estruturação do Da-sei se chama Ser-no-Mundo. Dito com outras palavras, Da-sein e Ser-no-Mundo é o mesmo. Aqui, não é necessário alertar que a expressão não está a dizer que eu ou nós, como substância homem, estamos no meio de outros entes de diversos tipos, como que dentro da grande e infinda totalidade chamada universo cósmico. Ser-no-Mundo se refere à estruturação do fundo de realizações da realidade, i. é, à essencialização do ente na sua totalidade, portanto do Mundo, cada vez na sua mundidade. Na metafísica medieval da substância na ontologia da substancialidade, mundo é o uno do  todo, a saber, as dimensões, Deus, Homem e Universo, com todas as suas ordenações de entes em diferentes esferas de intensidade de ser, desde as substâncias ínfimas compostas até as substâncias simples, denominadas espírito, incluindo o próprio ente supremo Deus. Todos esses entes constituídos na ordenação como mundo surgem e são sustentados no seu ser a partir de e dentro de um determinado sentido do ser, do sentido da substancialidade. O Homem não é aqui sujeito, diante do qual vem de encontro o ente na sua totalidade enquanto produto do seu projeto, como expressão da vontade para o poder, a partir e dentro de um determinado sentido do ser, do da subjetividade. O ponto de salto, donde e no qual se dá gênese, crescimento e consumação do mundo, é sua interioridade ou seu in, a saber, o no mundo, i. é, o in do mundo. O Da do Da-sein, o Pré do Pré-sença não é outra coisa do que esse In. O ser do In é o ser do Da. Ser-no do Mundo é o Da-sein. Assim o Da-sein e o Ser-no-Mundo coincidem. Portanto, insistindo: Da e In, Da e Sein, mas também Da e Sein coincidem. Essa tríplice coincidência se dá de modo subtilmente todo próprio. Aqui, nessa coincidência, o ponto de incidência não consiste em se ser um ponto, fixo constituído, neutro e opaco, mas sim em tornar-se sempre de novo “ponto de salto”. Isto significa que esse ponto não é um quê, mas sim contenção, continência no tinir vigente: a) de prontidão e disposição da espera do inesperado; b) da pura recepção do sentido do ser, entoado no toque da percussão de cada vez uma determinada possibilidade de ser; c) do deixar ser o eclodir, o crescer e o consumar-se da concreção dessa percussão de cada vez uma determinada possibilidade de ser em pluriformes leques de entoações, como repercussões das repercussões das repercussões, constituindo o ente na sua totalidade como mundo. Mas essa contenção, essa continência no tinir vigente tríplice é instância da mira in-stante (im Augenblick) em cujo ser em (In-Sein) cintila cada vez o evento, o Ereignis[100], a facticidade do ser no|Mundo, i. é, o Da, o pré|Mundo, a aberta do Mundo[101] enquanto ser tempo, a temporalidade, i. é,  a vinda oportuna do já chegado do ainda sempre por vir, como epoché, como época do  historiar-se da agraciada finitude de ser cada vez Da-sein como Ser e Tempo.

O sinal gráfico | acima colocado entre ser no e Mundo, entre Da e Mundo é para insinuar que ser no ou Da é como verso da mesma página, cuja face está virada para nós. Só que aqui a aberta é como sonoridade ao toque da percussão. Como tal, não é toque, não é percussão, não é som em repercussão, mas: apenas: …nada… Esse nada é o que foi insinuado acima como a instância da mira in-stante. Tentemos explicitar melhor aqui de que se trata, localizando o Da, o Pré como hiato (-) que na palavra grega alétheia separa a da létheia enquanto a-létheia.

Aqui o a-, que usualmente é chamado de alpha privativo, teria a função do prefixo des nas palavras como desnecessário, descontente ou do in em latim nas palavras como indefinido, incapaz e do ent em alemão, p. ex. em Entmitologisieren, Entdecken etc. Mas ao mesmo tempo conota um movimento de surgimento, de tornar-se presente, vir à fala. Létheia ou léthe, cujo verbo lanthanein significa ser oculto e permanecer desconhecido, é traduzida por velamento, encobrimento, ocultamento ou esquecimento. Assim, a palavra a-létheia se traduz usualmente como des-velamento, des-ocultamento, revelação. Em tudo isso, porém, alétheia não se mostra no seu significado próprio, se representamos a léthe como ocultação de algo por encobrimento ou velamento, de tal sorte que basta tirar a cobertura, o véu, para fazer aparecer o que estava escondido. Portanto o a- do verbo aletheúein ou da alétheia não é propriamente privativo, não tira, não remove do algo o que o encobre. E léthe denota ocultamento, não porém, na acepção de colocação de coberta em cima de algo, mas no sentido de retraimento. No retraimento vamos ao fundo do que é o próprio de nós mesmos, nos reservamos, i. é, salvamos, guardamos o que é o íntimo, o âmago de nós mesmos, nos recolhemos para dentro do imo de nós mesmos, nos ajuntamos a nós mesmos para dentro e a partir do que é o fundo de nós mesmos. À beira de um abismo, ao olhar o abismo, nosso olhar se perde e se afunda para dentro da escuridão cada vez mais intensa e profunda. E ao mesmo tempo lá do fundo insondável do abismo vem subindo a voragem a se escancarar numa medonha abertura abissal. Assim, o vórtice se abre, vem ao nosso encontro, na mesma medida em que se adentra para o seu fundo insondável, dele nos afasta e ao mesmo tempo a ele nos atrai. Temos o simultâneo movimento do abrir-se (a) e (-) do retrair-se (lanthánein): a-letheúein, a-léthe, a-létheia. O mesmo tipo de movimento, embora bem diferenciado e cada vez a seu modo, podemos observar na dinâmica binômia do próximo-e-longínquo, da cercania e da longitude, p. ex., em Millet, na paisagem da hora do Âangelus, um casal de camponeses recolhido na oração, tendo no fundo a imensidão do campo, a cercania, da proximidade; e o contido pudor da interioridade de um luto que ao mesmo tempo que aparece nos conduz para o recolhimento, no resguardo da mistério da morte, na figura de um anjo, com pálpebras fechadas, em Paul Klee[102].

Em todas essas ilustrações, o movimento de vir à fala, o abrir-se, o vir para fora, o surgir,  é ao mesmo tempo o movimento de ir para o fundo da fala, a saber, silenciar; a abertura que se vira para fora, o surgir, guarda no seu imo a profundidade insondável cada vez mais funda. O que assim nesse um mesmo movimento simultaneamente centrípeto e centrífugo de um vórtice, da proximidade e do perder-se no longínquo horizonte de uma paisagem, no abaixar a pálpebra reatraindo-se num silêncio, a salvaguardar a intimidade da própria identidade, num encontro, todos esses fenômenos nos denotam o modo de ser do verbo grego aletheúein, da palavra alétheia.

Com o propósito de “situar” o Da-sein, o ser do Da dentro da estruturação do surgir, crescer e consumar-se do mundo como “desvelamento” do ente na sua totalidade, i. é, dentro da estrutura da alétheia, precisemos melhor a nossa colocação:

Quando usamos a expressão o ente no (seu) todo, indicamos o que na expressão ser-no-mundo está dito pelo termo mundo. Mundo é o ente no todo. O mundo, o ente no seu todo, todos os entes, atuais e possíveis são, mutatis mutandis equivalentes. Todo problema é ver mundo, cada vez na sua mundidade ou o ente no todo, na sua totalidade, ou o ente no ser. Na palavra alétheia, o alpha (a-) corresponde a mundo, ente no todo, todos os entes, abreviando o ente.

Como não é possível ver a mundidade, a totalidade, o ser, pois não são ente, e são apenas perceptíveis a partir e no ente de modo sui generis, digamos de imediato e simplesmente a seu modo, em interrogando o ente no seu ser, é necessário, antes trazer à fala, cada vez, em concreto, o ente, o mundo que se submete ao interrogatório.

Para podermos compreender de que se trata, vamos a seguir mostrar o ente, o mundo da existência camponesa, através de um texto.

Trata-se de um texto, obra do Pensamento, que faz toar outra obra, de Artes Plásticas, de van Gogh, que pintou um par de sapatos da camponesa. O texto se encontra em A Origem da obra de Arte, de Martin Heidegger: Diz Heidegger:

“Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos  e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito  na iminência da morte. À Terra pertence este artefato e no mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência[103]. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente no artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma, repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade[104]. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da Terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao Mundo simples a proteção segura e assegura à Terra a liberdade da impulsão permanente”[105].

7.1.1. Mundo

O título dessas nossas anotações diz: O que é a coisa ela mesma? Quer saber que coisa é a coisa. O texto descreve sapatos. Coisa chamada sapatos da camponesa. Esses sapatos descritos por filósofo, Heidegger, e pintor, van Gogh, segundo nossa exposição acima, pertence à existência camponesa. A palavra existência aqui é o que, na fenomenologia, chamamos de Dasein,  usualmente traduzida por o ser-aí, être-là, esser-ci, e na versão brasileira do Ser e Tempo por presença, e que não indica o homem nem enquanto substância nem enquanto sujeito. Mas, afinal, o que é esse Dasein, como é, onde está, o que ele faz? Ao assim nos perguntarmos, percebemos como a maneira nossa usual, sim enraigada do nosso interrogar sobre as coisas entende coisa como esta ou aquela coisa em si, individual, aqui, agora diante de mim, como um bloco de coisa, portanto, como substância, de alguma forma. Assim, quando escutamos dizer que a descrição em questão aqui no texto é uma descrição da existência camponesa, substancializamos a existência como vida camponesa, i. é, o modo de viver de um camponês, ou de camponeses, portanto de pessoas que pertencem a uma classe de gente que vive no campo, com a profissão de camponês, i. é, do cultivador da terra para a produção agrícola. Nesse modo de viver no campo, então esse ou aquele camponês, um grupo de camponeses ou todos os camponeses de uma região, uma província, país, continente, do mundo encontram, possuem, inventam, produzem ou interpretam esta, aquela, mil e mil coisas que estão diante deles ou os cercam. E essas pessoas têm “suas coisas”, utensílios, suas propriedades, posses seus costumes, religião, possuem suas idéias, pensamentos, imaginações, suas vivências, experiências, sua história, como indivíduo, como família, como clã, como um povo, uma nação etc. etc. E todas essas coisas que se chamam também entes, objetos, algos, pertencem ou à realidade objetiva da Natureza ou à realidade subjetiva do Homem. Dentro de tal maneira usual de entender a existência camponesa a compreensão do que seja a existência camponesa como Dasein e a exposição camponesa do Mundo ou ser-no-mundo camponês, como são feitas no texto de Heidegger ou pintada por van Gogh, não passam de uma maneira poética, artística, do ponto de vista subjetivo de um filósofo, de um artista plástico. Mas ao lado desse mundo do ponto de vista subjetivo, filosófico ou artístico, podemos também expor o mundo do ponto de vista também subjetivo de manufatura, de comércio, o mundo do ponto de vista agora objetivo das ciências, e aqui da psicologia, sociologia, historiografia, de geografia etc. Em cada um desses mundos dos diversos pontos de vistas, quer subjetivos, quer objetivos, o sapato da camponesa vai aparecer de um modo consonante com o leque de articulações aberto pelo respectivo ponto de vista. E não somente isso, cada mundo tem a sua lógica, o seu colorido, a sua estruturação, conforme a mundidade em que é atuado, ou melhor, que atua o ponto de vista correspondente.

E se agora diante de todos esses mundos dos diversos pontos de vista existentes aqui e agora e outros possíveis, quer no passado como no futuro, perguntarmos que ponto de vista é esse que considera o mundo como produtos inteiramente subjetivos ou intepretações da realidade existente em si, e interpreta a existência camponesa como um modo de  viver de um ou mais sujeitos do campo, então de repente percebemos o seguinte: o que chamamos pontos de vista surge, se multiplica e se estabelece como esclarecimentos válidos, obviamente tidos como ‘objetivos’, ‘reais’, ‘evidentes’ da ‘realidade’, cuja vista não nos diz, nem pode dizer o “ponto de salto” a partir do qual faz saltar o todo dos mundos do ponto de vista e o ponto de vista de todos os pontos de vista. Com outras palavras, a vista, a visão do ponto de vista que projeta os mundos do ponto de vista é visualização ou, dito com outra palavra, é objetivação mencionada por aquele texto da carta de Heidegger, citado bem no início da nossa reflexão. Objetivação essa, cujo ponto de salto recebe o nome de Sujeito, cujo ser se chama subjetividade. Acrescentemos aqui também, talvez num sentido bem diferenciado e diverso de objetivação a modo S – O, o surgir, crescer e consumar-se do todo de uma concreção a partir e sob o toque da percussão p. ex. do sentido da possibilidade de ser cujo caráter de ser recebe nos gregos o nome de hypokeímenon e depois na Idade Média, de substância. Tentemos agora fazer presente todos esses mundos e mundos de objetivações e concreções, em diferentes níveis, em variegadas modalidades de ser, em diferentes epocalidades, atuais, passadas e futuras, na sua possibilidade, mundos que se entrecruzam, se sucedem, se repetem, se repelem, que se contrapõem, se conjugam, se harmonizam, se afinam e se desafinam, quais ressonâncias e dissonâncias, em repercussões das repercussões de entoação de imensa sinfonia, cuja percussão toa como que de um ponto de salto, no primeiro toque do início da execução sinfônica[106]. Resumamos e chamemos toda essa presença dos mundos em diversas mundidades simplesmente de mundo. E provisoriamente[107] incluamos aqui nesse mundo nomeado por último também a “realidade” denominada naquela carta já mencionada de Heidegger de 11.03.1964, endereçada aos participantes de um diálogo teológico sobre O problema de um pensar e falar não objetivantes na teologia, hoje[108], de realidade do pensar e falar não objetivante. Incluamos aqui também a “realidade” da dimensão religiosa e artística. Portanto, esse mundo como já foi dito há pouco é o mundo da expressão ser-no-mundo. E foi dito também que o fundo, a interioridade a mais profunda, o imo desse mundo é o no, o ser-no (In-sein), que é o mesmo que o Da. E se mundo, na palavra alétheia, é representado pelo alpha (α), podemos representar o Da-sein por hífen (-) e com isso formalmente encontramos a localização do Dasein no conjunto da constituição estruturante do ente no todo. Se pudermos usar uma representação que aliás manca, poderemos dizer que o mundo é o tronco com vários galhos principais, dos quais, de cada um deles, se abrem inúmeros outros leques de galhos menores, e de cada um deles, outros leques de galhos cada vez mais finos, formando no conjunto toda a extensão da copa da árvore. O tronco se assenta na terra, e ao se assentar na terra lança raízes para dentro da terra. Se fosse na estrutura de uma árvore, o Dasein se localizaria na cercania das raízes. E a terra seria então a léthe, a létheia?

No texto acima citado do livro A origem da obra de arte, onde se descreveu a existência camponesa, diz Heidegger: É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da Terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra estão assim ali para a camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao Mundo simples a proteção segura e assegura à Terra a liberdade da impulsão permanente”.

De que se trata, quando há na palavra alétheia, a léthe, o “ocultamente do retrair-se” para dentro do ab-ismo do fundo sem fundo, da insondável e inesgotável possibilidade de ser? Esse retraimento que significa também esquecimento? Em que consiste a confiabilidade, pela qual o mundo se assenta na terra? A terra aqui no texto teria algo a ver com  a léthe? E nesse conjunto como entender o Da-sein?

7.1.2. Terra

No mesmo livro, ao descrever o templo grego, Heidegger diz:

“De pé, ali, a obra da construção repousa no seu fundo sobre a rocha. O assentar-se do templo, da obra, exaure da rocha a escuridão do seu carregar que não é ajeitado e, no entanto, a nada obriga. De pé, ali, a obra da construção desafia a tormenta que passa por sobre ela em fúria e assim a mostra a ela mesma no seu poder. O brilho e o luzir da pedreira, ela mesma aparecendo somente graças ao sol, traz à mostra a luz do dia, a largueza do céu, a treva da noite. O soerguer-se seguro faz visível o espaço invisível do ar. O inabalável da obra ab-soluto está, contra a voga do mar, de pé, e do seu repouso, deixa aparecer o furor das ondas. A árvore e a grama, a águia e o touro, a serpente e o grilo então entram no destaque da sua perfilação e chegam assim à mostra como o que eles são. A esse vir para fora e eclodir, ele mesmo e no todo, os gregos primordialmente chamavam de Φύσις. Ela aclara ao mesmo tempo aquilo, sobre o qual e no qual o Homem funda a sua morada. Nós o chamamos Terra. Disso que aqui a palavra diz, deve-se manter bem longe afastada tanto a representação de uma massa armazenada de material, como também a mera representação astronômica de um planeta. A Terra é para onde o eclodir de tudo que surge e se abre, e quiçá como tal, retorna no reservar-se no ocultamento. No que surge e se abre, vige a Terra como o resguardo.

Essa paisagem do templo grego e aquela paisagem na qual se acha o sapato da camponesa, numa visualização panorâmica das coisas, onde se acham? Respondemos do mirante, acima, por cima de e sobre as coisas: estão entre as coisas que pertencem aos produtos do ser humano, da imaginação, da interpretação, da ficção do sujeito-homem, portanto da experiência, vivência, mundivisão artística, filosófica de um pintor, de um poeta-pensador. Todas essas “justificações” da visualização mirante em diferentes classificações das coisas nos mostram imediata e nitidamente que estamos falando bem de outra coisa; não estamos na paisagem a que nos referimos, não adentramos o mundo camponês nem o mundo religioso grego. Para isso, devemos descer das alturas do mirante da visualização planificante, atravessando infindas “camadas” de sedimentações endurecidas de mediações fixas, padronizadas e acumuladas a partir e dentro de determinados pontos de vista que não conseguem se ver no fundo dos olhos, a não ser se visualizando “por fora de si”, esquecidos que estão do seu ser-no, da sua interioridade constitutiva. O ponto de vista artístico, o ponto de vista filosófico, como o de van Gogh e Heidegger, enquanto obra da arte, ou melhor, do poetar e obra do pensar e também no caso do templo grego, obra do crer, são como olho em cujo centro, em cujo meio, se abre a fenda da retina, através da qual se abrem perspectivas de uma imensa paisagem nova, dantes nunca visualizada, e ao mesmo tempo à mão do fio condutor dos acenos das perspectivas dessa nova paisagem do novo mundo, se dá o vislumbre de uma clareira. Esta é o ver simples e imediato, a ausculta obediente da pertença, a disposição de entrega, gratidão e louvor que perfazem o olho, o ouvido, o coração do poeta, pensador e crente na sua obra como a aberta do eclodir, no transluzir, estranhamente simultânea da serenidade e imensidão solta da Liberdade e ao mesmo tempo um risco, qual raio a rasgar o cintilar de um choque do espanto de uma fenda inexorável a fazer permanecer todas as coisas no susto instantâneo da nitidez da perfilação de cada coisa, a saber, o ente na densidade inexorável da sua identidade como diferença, para de repente, afundar tudo no silêncio do abismo “sem fundo” de uma “caligine”  inominável.

Por isso, no fundo de um mundo onde se torna possível uma coisa como templo, estátua de Apolo, o quadro “o sapato da camponesa”, a saber, um van Gogh, e sua interpretação como obra de pensamento na obra A origem da obra de arte, um Heidegger, vige o Da-sein, onde cada mundo que surge e concresce como ente no todo, é ponto de salto de um novo mundo, que na fenomenologia recebeu o nome de o evento da facticidade, em alemão Eräugnis der Faktizität. É dessa realização da realidade, é dessa coisa que fala o texto de Heidegger, quando fala do Mundo, da confiabilidade, do assentamento na Terra, através da paisagem da existência camponesa, e seu comentário. Tentemos refletir mais em detalhe o ponto dessa coisa, para enfim situar o Dasein no seu ser, i. é, na morada própria do seu ser.

A existência camponesa, cuja paisagem salta da obra de van Gogh e Heidegger[109], é tida como produto do ponto de vista do sujeito de nome van Gogh e Heideger. No entanto, tudo isso visto do ponto de salto donde se abre o mundo da existência camponesa e o sapato de camponesa, trata-se da origem, concreção e remate do ente no todo, do uni-verso mundo. Dasein se situa na cercania desse ponto do salto. Por isso, ele não pode mais ser compreendido a partir do ente. Se o compreendemos como ente, no todo de um determinado eclodir e constituir-se do mundo, é interpretado como um ente que recebe diversos nomes e qualificações como p. ex. homem, criatura, sujeito, consciência, o ser-aí, causa, condição da possibilidade, e até demiurgo, deus etc., mas jamais Dasein na sua essência, no que há de seu próprio. Seria então nada (não ente)? Termos como Dasein, presença, as suas versões variantes como o ser-aí, être-là, esser-ci, a aberta, o aberto, a abertura, existência, são expressões de perplexidade, na dificuldade de dizer o quê é… Heidegger fala da confiabilidade[110], do assentar-se do mundo na Terra, da Φύσις. Nós acima chamamos o sentido do ser determinado como ponto de salto do mundo da Idade Média, de substancialidade, do Mundo Moderno, de subjetividade. Physis, depois substancialidade (hypokeímenon, substantia), subjetividade (cogito, vontade para poder) todos seriam pontos de salto do mundo? O que seria então aqui a Terra?

“A esse vir para fora e eclodir, ele mesmo e no todo, os gregos primordialmente chamavam de Φύσις. Ela aclara ao mesmo tempo aquilo sobre o qual e no qual o Homem funda a sua morada. Nós o chamamos Terra.(…). A Terra é para onde o eclodir de tudo que surge e se abre, e quiçá como tal, retorna no reservar-se no ocultamento. No que surge e se abre, vige a Terra como o resguardo”.

O vir para fora e eclodir, o movimento e o constituído no movimento, portanto, ele mesmo e no todo é Physis. É na clareira da Physis que vem à luz isto, sobre o qual e no qual o Homem funda a sua morada. Assim, no início, com os gregos. Hoje, nós o chamamos Terra. Isto significa que Terra é aquilo sobre o qual e no qual o Homem funda, enraíza e assenta a sua morada, hoje? A Terra é “para onde o eclodir de tudo que surge e se abre, e quiçá como tal, retorna no reservar-se no ocultamento. No que surge e se abre, vige a Terra como o resguardo”. Mas, e hoje? Não é assim que hoje a Terra é um planeta, perdido bem num recanto do infinito espaço aberto por um sistema galáctico físico matemático, sobre o qual pulula uma multidão de entes evoluídos da complexa composição de elementos da matéria, formando diferentes tipos de matéria orgânica, que por sua vez evoluem para entes mais complexos, desenvolvidos, denominados animal racional ou homem, os quais guarnecidos de um órgão chamado cérebro, cada vez mais aperfeiçoado, se tornam capazes de descobrir que todos os entes, sejam quais forem suas denominações, inclusive o próprio homem, não são senão um caso variante do imenso jogo de composições e decomposições, de mutações e transmutações de energia material cósmica, calculável e controlável físico-matematicamente. O que há com os mundos e mundos dos quais falamos nas nossas reflexões anteriores? Mundo como o ente no todo, em cujo ponto de salto, cada vez se dá um toque da percussão da possibilidade de ser no e como o eclodir de tudo que surge e se abre e que como tal retorna no reservar-se no ocultamento para dentro da vigência da Terra como o resguardo? Que mundo é esse, o hoje, que reduziu todos os surgimentos e todas as aberturas do ente no todo, portanto, do mundo, ao esquecimento da necessidade de retorno ao toque da percussão do sentido do ser, que haure a sua força e vitalidade a partir e dentro do seu ocultamento ao resguardo da questão da sua própria origem? Em que consiste o ser no desse ente no seu todo, desse mundo de desertificação da desolação do sentido do ser? Onde está, em que consiste o ponto de salto desse mundo chamado hoje de matemático, a partir e dentro do qual, todos os outros mundos e seus pontos de salto, nada mais são do que epifenômenos, errupções e excrecências, digamos efeitos colaterais de evolução e de elaboração ainda não suficientemente desenvolvidas? Nessa igualação homogênea unívoca, nessa redução de todas as coisas na sua diferença, ao elemento unidimensional de quantificação físico-matemático resta ainda um surgir, crescer e consumar-se, há o erguer-se, o abrir-se? Há Vida? Ser? Espirito? Razão? Verdade? Há a Terra? Há o Homem? Mas… há o nada!? ou quase nada! Hoje nós chamamos Φύσις de Terra. A colocar a questão hoje, a mais necessitada de ser perguntada de novo: em que consiste o ser-no, o ponto nevrálgico,  o ser-Da, donde e para onde se possa buscar o resguardo para um nascer, crescer e assentar-se da compreensão do sentido de ser?

A questão pelo sentido do ser se chama ontologia. A ontologia, hoje, é o fundo do ente no seu todo, da desolação do esquecimento do sentido do ser, onde, donde e para onde chamamos Φύσις de Terra. Não é apelo saudoso à volta ao Grego do mundo da natureza ainda inocente e primitiva, originária na sua pujança e vitalidade intocada, antes de todo e qualquer movimento de meta-física[111].  É antes uma convocação, uma vocação, a partir de hoje, impregnados pela tonância da desolação do esquecimento do sentido do ser, de retornarmos adentrando para o ser-noêMundo de nós mesmos de hoje, para perceber que do fundo de nós mesmos, como um fio condutor de busca, ecoa em repetição a entoação de uma longínqua mas bem próxima percussão através das repercussões das palavras-chave que se referem ao ponto de salto dos mundos da Φύσις, do ὑποκέιμενον, da substancialidade, da subjetividade, da desolação do esquecimento do esquecimento do ser ou da dominação do físico-matemático ou da consumação da vontade para poder, pelas quais viemos até aqui, hoje na epocalidade do nosso destinar-se, onde colocamos a pergunta do título das nossas anotações: O que é a coisa ela mesma na e da fenomenologia?

Esse fundo em que nos movemos, hoje, queiramos ou não, se não tematicamente, operativamente, é o fundo da fenomenologia, que se chama também ontologia fundamental.

  1. Fenomenologia: à coisa ela mesma

Depois de percorrer todas essas anotações, quase sempre bastante enroladas e não suficientemente desbastadas, recordemos o que dissemos no início acerca do título À coisa ela mesma, a fenomenologia?: já bem no início, através de uma citação de Ser e Tempo, foi insinuado que Fenomenologia não é outra coisa do que o apelo e a vocação para: À coisa ela mesma, Zur Sache selbst! À, Zur indica movimento. E ao apresentarmos a fenomenologia como movimento filosófico insinuamos que o pivô da intencionalidade não é outra coisa do que um ver imediato e simples, em alemão eifaches und schlichtes Sehen[112], ver simples e singelo. Depois, desandamos a falar  da aberta, da subjetividade, do ser, da subjetividade como subjetividade transcendental, da clareira do ser, do Dasein e do Ser-no-mundo. Em todas essas tentativas de aclarar em que consiste o Zur Sache selbst, à coisa ela mesma, a fenomenologia, a nossa reflexão amadora dá com a cara, a cada passo das explicações, num imenso paredão ora opaco, ora fosco, ora uma absoluta treva da negrura de tinta preta compacta, ora num medium de um fundo abissal sem fundo, ou algo como neblina indeterminada e confusa, ora como um pântano lamacento e devorador, enfim a realidade diante, em volta de mim, dentro e fora de mim, no tempo e no espaço, a realidade como coisa no acepção de aqui e agora, eu aqui no meio de todas as coisas, sejam de que gênero, de que espécie forem, a obscurecer sempre de novo todas as minhas aclarações: essa brutal factualidade, a coisa-realidade?

Não poderia ser muito mais simplório, opaco, sim isso mesmo (!) esse ser-aí opaco, factual, a coisa e a causa ela mesma do ser, a coisalidade-bloco do elementar sem por que, sem para que, sem ser e sem sentido, simplesmente, imediatamente ali, Da, Pré, ser? Essa reação de quem é amador nas coisas da fenomenologia e da filosofia, a quem do fundo das suas entranhas sobe uma espécie de instinto-frustração contra toda e qualquer reflexões do tipo que viemos fazendo, um impulso de mandar tudo às favas …?, de ir-sendo como as coisas vêm sobre a gente, sem por que, sem para que, da-seiend, em sendo-aí, cada momento, simplesmente… Essa reação está imbuída até o pescoço com o afã, a vontade, o desejo de resolver os problemas, da vontade de resolver e espancar o nada da escuridão do não saber, não poder, não ser… a não ser no fundo a modo da vontade para poder, a modo do ser da agressividade da subjetividade? Não seria possível, na questão do sentido do ser, ser mais sereno, querer menos, saber menos, ou melhor nada saber, nada querer… simplesmente ser… o que? Como? E lá vamos nós de novo a indagar, a interrogar… O que fazer? Há um escrito antigo hindu, onde se repetem infindas vezes em diferentes histórias repetidas cada vez de modo diferente, as vicissitudes do mesmo caminho. Um príncipe, piedoso e nobre, passou debaixo de uma forca, onde estava o cadáver de um criminoso, exposto às intempéries e aos escárnios da multidão. Compadecido, o tira da forca, e carrega nos ombros, para levá-lo ao cemitério, ao sepulcro da sua família e ali o sepultar, para que o morto possa prosseguir, no além, o seu percurso de purificação, e não ficar aqui na terra, empacado, girando vazio no caminho do progresso da sua reencarnação. Ao carregar o cadáver, a cabeça e o rosto do morto, fica bem perto do rosto do príncipe, e ao começar a caminhada, o morto começa a falar e fazer perguntas sobre a vida. O príncipe começa a responder, e se estabelece todo um diálogo entre o morto e o vivo, até chegarem ao local da sepultura. Antes de o príncipe baixar o cadáver dos seus ombros, o morto lhe coloca uma última pergunta. O príncipe não consegue lhe responder ou lhe responde falso, e vapt-vupt!, o cadáver e o príncipe estão de novo debaixo da forca, e devem reiniciar o seu percurso. E isso tantas vezes que preenchem um grosso volume de um livro em centenas de histórias mirabolantes com perguntas e respostas. Assim, já que nas coisas da vida na filosofia – é permitido também dizer na fenomenologia? –, permanecer assim morto, pendurado numa forca, simplesmente assim ocorrente num real estado, não é viável, retomemos tudo o que dissemos, agora em uma repetição, mais mixuruca ainda, a modo da caminhada da dupla, do morto e do vivo, exposta no livro hindu acima mencionado.

3.1. De novo, a intencionalidade

Dissemos acima: À, Ziur do Zur Sache selbst, o Da do Dasein é movimento. Esse movimento nas primeiras anotações se chamava intencionalidade. Intencionalidade que foi entendida usualmente como uma flecha unidirecional ®, depois bidirecional «, depois num sentido mais próximo da acepção fenomenológica da intencionalidade, numa flecha bidirecional polarizante dentro de um círculo (*«*) e depois num movimento espiral simultaneamente centrífugo e centrípeto. Recordando de tudo que dissemos nas anotações anteriores, tentemos entender melhor de que se trata quando no título dessa 3 anotação identificamos fenomenologia com à coisa ela mesma. E nessa tentativa, finalmente compreender melhor de que se trata, quando, no lugar de Homem, usamos sempre de novo Da-sein, Pre-sença.

É comum, no início do estudo da fenomenologia entender a intencionalidade unidirecional (®), como impostação do Homem, virado para as coisas, através de seus atos, e isto quer nos afazeres cotidianos, na Vida quanto nas ciências. Costuma-se chamar esse modo de impostação do relacionamento do Homem para com as coisas do seu mundo circundante de impostação do realismo empírico.   Essa classificação e explicação formal e abstrata da experiência vivida, no entanto, passa por cima do que o fenômeno como tal implica. A aclaração paulatina da implicação do fenômeno começa a se dar, quando percebemos que o relacionamento entre eu ou nós e a(s) coisa(s) do mundo circundante não é uma flecha, direcionada para frente num tender para (in-tendere) esta ou aquela coisa, nem uma flecha que vem das coisas sobre nós a modo de recepção passiva dos estímulos que as coisas nos causam (¬), nem soma simultânea da flecha ativa e flecha passiva («), nem movimento espiral centrifugo e centrípeto, se representamos a espiral como sequência contínua de linha que sobe e desce numa reta que se move, curvando-se a modo de círculos concêntricos encaracolados, sem examinar para o fenômeno que esse sinal geométrico possa estar insinuando e que poderia ser útil para nos auxiliar na reflexão.

A impostação “real” do realismo empírico, na interpretação do que seja a intencionalidade, assinalada com uma flecha → parece ser bem concreta, real e visível, de modo imediato e simples. Na “realidade”, ela é abstração, operada de modo, digamos, a ‘grosso modo’ sobre e dentro de situação viva, concreta e real do que Husserl chama de Lebenswelt (mundo circundante vital) e que nós, seguindo de alguma forma a Ser e Tempo, poderíamos chamar de mundo pré-predicativo. E por predicativo, então, entendemos o esquema da sintaxe gramatical S – P, que por sua vez é clone no nível da linguagem, do esquema Sujeito↔Objeto.

A compreensão da intencionalidade na sua acepção usual, dentro do assim chamado realismo (ou objetivismo) empírico e idealismo (ou subjetivismo empírico), se dá dentro desse esquema Sujeito↔Objeto, num nível de indiferenciação, a ‘grosso modo’, da situação vital, a partir de e dentro da qual ela acontece.

3.2. De novo, Sujeito e Objeto

A seguir, reproduzimos, encurtando e modificando em parte, a nosso modo, uma reflexão, já feita, sobre a defasagem do esquema Sujeito↔Objeto, que no fundo é de novo uma repetição, para ver como a Lebenswelt e a compreensão do homem no horizonte da vida não nos faz compreender o Dasein e Ser-no-mundo de modo concorde com a coisa ela mesma da fenomenologia. Há, pois, uma empéiria, uma realização da realidade mais concreta, mais viva, mais diferenciadamente elementar do que o modo do realismo empírico. Da tal maneira que chamá-la de pre-predicativa é compreender essa nova realização a partir e dentro do antiquado, e abstrato realismo empírico defasado. Entrementes essa descoberta nos conduz para a realização da realidade que se dá na intencionalidade, agora a partir e dentro da subjetividade transcendental. Aqui, o mundo pre-predicativo aparece como vida, i. é, Lebenswelt. Aqui, o mundo aparece na sua vitalidade em mil e mil diferentes gênesis, constituições, estruturações e consumações da ordenação do mundo como foi insinuado acima.

3.2.1. Sistuação trascendental

A situação é uma, um tanto extra-ordinária, dentro do ordinário da nossa vida de afazeres. Assim, me encontro ‘doido’ de preocupação porque, numa excursão à Mata Atlântica, perdi-me completamente; estou só, arrepiado só em pensar na noite que se aproxima. O que é aqui, nesta situação, o sujeito e o objeto, o subjetivo e o objetivo? O sujeito sou eu, só, perdido na imensidão da mata. O objeto? Objetos são: esta árvore, esta pedra, aquele ruído sinistro que vem não sei de onde, o burburinho de um riacho que se oculta na floresta, e, principalmente, a Mata Atlântica que me cerca (que, por sua vez, é conjunto de árvores e outras coisas mais). Eu, sujeito, cá; lá, o objeto, diante ou ao redor de mim. Eu, sujeito, aqui dentro desta carcaça chamada meu corpo, com todas as suas sensações, as emoções, idéias e vivências; e lá, o objeto, ali presente, indiferente à minha angústia, a coisa em si, brutalmente ali real. O que é o real, o que é a coisa, o objeto diante de mim, parece-nos evidente. Ali, tudo é obviamente, naturalmente claro, objetivo, em si, sim, real, verdadeiro. Mas e o sujeito? Dizemos: o sujeito sou eu. Quem? E aponto a mim mesmo: este sujeito aqui! Diante de mim, aquele objeto, aquela coisa lá. Eu! E o dedo apontado… Para onde? Para o meu peito. Mas e esse eu para o qual aponto onde está? Ora, aqui! Aqui… Mas onde? Quando aponto a mim mesmo, onde está, nisso que aponto como sujeito, esse “mim mesmo”? Atrás do coração? Dos pulmões? Dentro do estômago? Acima do fígado?

Já um tanto perplexos, sigamos o percurso do movimento que termina, nesse ato de apontar, com o dedo indicador sobre mim mesmo. Tenho diante de mim, ou melhor, ao redor de mim, a floresta que me envolve. Dentro da floresta sou um ponto minúsculo, que está diante de um tronco caído. A floresta é objetivo. O tronco também. Estou vendo o tronco; entre o tronco e mim está o chão úmido que me molha os pés. Os meus olhos rastreiam o tronco, passo a passo o chão molhado, encontram os pés, sobem pelo corpo até a altura do pescoço, descem seguindo o braço direito e chegam na extremidade do dedo indicador, que está apontando o meu peito. E eu digo: “Eu, aqui, o sujeito!”

A essa altura, perguntemos: tudo que meus olhos rastrearam, etapa por etapa, os meus próprios olhos e eu mesmo, o eu mesmo apontado com todos os “seus” órgãos internos, não são objetos, não são objetivos? E o que é esse sujeito-eu que tudo isso observa, julga, sente, valoriza em o apontando? Se, está em mim, o que é esse “mim”? O corpo? A alma? O espírito? A consciência? Onde é que vemos, encontramos algo como sujeito, alma, espírito, consciência? Dizemos: “Mas alma, espírito, consciência, tudo isso é invisível, insensível…” Mas, então, o que é? É nada? Fumaça? Ilusão? É real, realmente? E se é, é objeto? Um objeto chamado “sujeito”? Mas sujeito como? Em que sentido? Quem é, o que é, como é o ser desse quem que é um ponto dentro da imensidão da floresta, que por sua vez é uma minúscula área da terra, a qual é um grão de areia na vastidão abissal do universo… E, no entanto, um ponto infinitamente pequeno, perdido nesse universo, que é capaz de julgar, pensar, avaliar todo esse universo infinito dentro do qual está.

Essa estranha coisa que somos nós mesmos, que tudo abrange, tudo capta, inclusive a si mesma, tudo representa como isto e aquilo, seja coisa visível ou invisível, é ela objeto? Ou é sujeito?

De repente, minha “mente” se ilumina e me surge uma resposta “genial”: é objeto e sujeito ao mesmo tempo! Objeto enquanto captado e observado; sujeito enquanto capta e observa. Mas, se com isso representamos o sujeito, o observador como um objeto “diante de mim”, e assim ficamos marcando passo, não dissemos nada, não vimos nada, não sentimos nada…

Na realidade, isso que chamamos de sujeito, opondo-o ao objeto, não é nada dessas “coisas”. A “coisa” ela mesma é muito mais simples, mas difícil de ser percebida e de ser dita…

É objeto enquanto observado e captado; é sujeito enquanto capta e observa; e o observador, enquanto captado e observado, é objeto… de um outro observador que é, por sua vez, observado, e é objeto, e assim indefinidamente?…!

Nada disso acontece. É que… estou inteiramente perdido na Mata Atlântica. Já é noite. Uma densa escuridão me envolve, estranhos ruídos por toda parte, os gemidos, os suspiros da mata virgem… De súbito, estalo seco de galhos pisados… Depois, silêncio… De novo estalido… Algo se aproxima! Não consigo me orientar, perceber de onde me vem a ameaça. Tento dominar o pânico que me sobe do fundo obscuro de mim mesmo… Objetivo? Subjetivo? Observado e observador? Enquanto capta, sujeito? Enquanto é captado, objeto?… Essas questões não existem. São coisas que nada têm a ver com a coisa ela mesma, agora, aqui. Pois sou todo inteiro um “corpo teso”, atingido e afetado pela angústia da noite na floresta. Aqui, nem eu, nem a mim, nem floresta, nem os estalidos dos galhos pisados, nem cada momento do meu sentir, imaginar, pensar e vivenciar são objetos que um sujeito apavorado tem.

Tudo e cada “coisa”, tanto “dentro” de mim como “fora”, não são outra coisa senão “pulsações”, “modificações” de toda a extensão, de toda a presença e pregnância de ser, cuja intensidade e densidade perfaz todo um mundo de situação, a qual, no nosso exemplo acima descrito, nomeamos desajeitadamente de “perdido inteiramente na Mata Atlântica”: presença povoada de mil e uma diferentes perspectivas e profundidades da vida e da morte, abrangendo, implicando tudo, todos os entes na sua totalidade. Esse tipo, ou melhor, modo de ser da totalidade se chama “dimensão”. O que denominamos de “sujeito” e sempre entendemos como um objeto todo estranho, na realidade deve ser entendido como Ser-no-mudo. O sujeito, quando se revela e se abre como Ser-no-mundo, recebe o nome de “existência humana”. A existência humana, portanto, não é nem sujeito nem objeto, mas sim uma totalidade, toda própria, viva e riquíssima em significados, possibilidades, riscos e realizações. Qualificá-la como “subjetiva”, privativa, particular e individual é não possuir a sensibilidade vital para a realidade básica e própria do ser humano. Mas essa totalidade assim compreendida a partir e dentro da Lebenswelt, ainda não é Dasein ou Ser-no-mudo.

Mas como é uma totalidade toda própria, chamado Dasein ou  “ser-no-mundo”?

3.2.2. Da-sein e ser-no-mundo, ainda como situação, a partir e dentro da subjetividade transcendental: Existência humana

A totalidade só é em sendo vivida. Principalmente se a totalidade é chamada existência humana. Só é compreensível em sendo. Em sendo, abre-se a totalidade como todo um mundo de significações, entidades, vivências, estruturações e possibilidades. É assim, cada vez, universo, totalidade, mundo. Aqui não tem sentido perguntar se é subjetivo ou objetivo. Se é particular ou geral. Pois é mundo, totalidade, universo: cada vez o todo, tudo.

Assim, p.ex., arte, religião, vida cotidiana é cada vez uma totalidade. Não é nem subjetivo, nem objetivo, nem uma mistura de ambos. É um todo próprio, com sua própria lógica, suas próprias leis e perspectivas que não podem ser reduzidas a, substituídas ou simplificadas por leis, normas e lógica de outra totalidade. Dentro da própria totalidade há o autêntico e o inautêntico, o falso e o verdadeiro. Mas “dela” como totalidade, por ser o todo, não tem sentido falar de certo e errado, particular e comum ou geral, privativo e social, subjetivo e objetivo.

Se, no entanto, de alguma forma quisermos usar para a totalidade todos esses binômios, eles devem ser entendidos dentro de cada totalidade, cada vez de modo diferente, segundo o sentido próprio ditado pelo próprio de cada totalidade.

Agora observemos com toda a atenção. Todas essas categorias – como subjetivo e objetivo, privativo e social, particular e comum –, no sentido usual e corrente nas nossas discussões e nos nossos discursos, são, por sua vez, categorias e conceitos próprios de uma totalidade, na qual tanto o ser humano como tudo quanto não é ser humano é, por assim dizer, “pontuado”, substantivado, posicionado como bloco “coisificado”, a partir de uma visão panorâmica.

Por isso, quando descrevemos uma situação existencial como aquela em que se está “perdido inteiramente na Mata Atlântica” e começamos a perguntar: o tronco é objetivo? O dedo que aponta o sujeito eu é objeto? Onde está e o que é o sujeito? O “a mim mesmo”? etc. etc., nós não estamos sendo a presença prenhe do mundo, da totalidade da situação existencial “perdido inteiramente na Mata Atlântica”. Estamos sendo, isto sim, outra totalidade, na qual, como que de um ponto de vista “fora” da situação, numa visão panorâmica “objetiva”, não “participativa”, neutra, indiferente, localizamos cada “realidade” no enfoque dessa viseira generalizante, falando sobre isto e aquilo como coisas, blocos, átomos, pontos fixos, e ligando-os entre si numa rede geométrica de significado vazio, geral, abstrato, sem vida e concreção. Essa visualização longínqua, essa mundivisão “televisiva” é o projeto de um mundo, lançado, sustentado por uma impostação, a qual recebe o nome de objetivismo empírico.

Mas então, o que é o subjetivo? O subjetivo é o que aparece dentro dessa totalidade objetivista como se fosse um dos elementos “pontuais” integrantes da maneira de ser dessa totalidade “coisificante” objetivista. Com isso, o subjetivo oculta no seu bojo o seu ser, dissimulando o sentido mais originário da sua subjetividade, que é a totalidade toda própria, cuja “essência” não pode mais ser nem dita nem captada, reduzindo-a à “coisa” de objetividade, esquecida do próprio ponto de salto do seu ponto de vista. É aqui, nesse fundo, onde salta e mora essa autoidentidade toda própria do ser do sujeito como da subjetividade, e donde também brota a objetividade e seu mundo como projeto da subjetividade, que se dá a questão do sentido do ser do Homem, não mais simplesmente como ser do sujeito em contraposição com o ser do objeto, mas como ser da subjetividade, a partir e dentro de cujo âmbito se sedimenta em diversos níveis de compreensão da intencionalidade, acima mencionada, o seu esquema S↔O. Essa questão não mais trata a autoidentidade do ser da subjetividade, nem como coisa empírica do realismo ou objetivismo, nem do idealismo ou subjetivismo empíricos, nem sequer como coisa ou causa da subjetividade transcendental, que se apresenta como condição da possibilidade da do S↔O, em transcendendo o nível empírico, portanto, a partir e dentro do nível transcendental, mas como  situação prévia do surgimento de um novo transluzir todo próprio do sentido do ser: essa situação prévia recebe então o nome de Da-sein.

3.3. De novo, a diferença ontológica como diferença existencial

Aqui retorna de novo a pergunta, o que é afinal de contas a diferença ontológica. Desde há tempo sabemos a resposta: a diferença ontológica é diferença entre ser e ente, e como tal também diferença entre um sentido do ser do ente e outro sentido do ser do ente. Deixemos por enquanto em suspensão essa última formulação da diferença ontológica como diferença entre dois diferentes sentidos do ser do ente, para nos concentrarmos na formulação: diferença ontológica é diferença entre ser e ente. A diferença entre ente e ente chama-se então diferença ôntica.

Muitas vezes, se entende a diferença ontológica, tomando a palavra ontológica dentro da usual acepção da ontologia tradicional como ciência do ente enquanto ente. Ontologia assim compreendida, seria ontologia geral, que se subdividiria em diversas ontologias especiais, denominadas regionais, a saber, Cosmologia, i. é, ontologia da região dos entes da natureza: mundo (universo ou cosmos); Antropologia, i. é, ontologia da região dos entes humanos e suas criações: Homem; e Teologia natural, ontologia da região do divino e suas inspirações: Deus[113]. A compreensão do ser dessa generalidade da ontologia geral, no seu sentido, ao abranger os entes das ontologias regionais, subsume-os, em diferentes extensões da escalação de generalização, desde o indivíduo, através de diferentes níveis de espécie, até chegar ao gênero, extensionalmente o mais vasto, em cuja generalização, reduz e nivela todas as diferenças concretas dos entes a um único denominador geral ou comum “ente enquanto ente”. Assim, a diferença do ente não aparece no ser da identidade da sua diferença, a não ser apenas como “diferença” numérica existente entre um e outro. O sentido do ser aqui operante numa tal ordenação do ente no todo é o que chamamos sentido do ser lógico, formal. Essa maneira de entender a ontologia, a partir do sentido do ser lógico, formal,  talvez não possa própria e simplesmente ser chamada de ontologia tradicional. Pois na ontologia da substancialidade, tanto na metafísica da hypokeímenon nos gregos como na metafísica da substância nos medievais, não se dá a redução da diferença ôntica a uma tal diferença numérica de generalização lógica formal. O sentido do ser operante p. ex na Idade Média, na ordenação do ente no seu todo, sob o ontologicum-susbstância, a densidade qualitativa (e não apenas escalação quantitativa) de ser entre diferentes esferas de ordenação do ser é a medida da diferenciação que cria o “mais e menos” da “potencialização” qualitativa de ser, que visto de baixo para cima, se inicia no ser do nada, como pura passividade de recepção, e sobe sucessivamente “os graus” de qualificação no ser em concreção da região das assim chamadas substâncias compostas, estruturadas em esfera das coisas materiais, em esfera da vida (mundo vegetal), da sensoriaridade (mundo animal), da racionalidade (mundo humano), e depois do mundo humano, abre-se a grande região das esferas das assim chamadas substâncias simples (espíritos: no homem alma, intelecto, espírito, mente; os anjos em diferentes intensidades de ser, onde cada anjo é um mundo) e Deus. Essa ascensão através das esferas de graus de intensidade qualitativa de ser se chama participação. E a descida, comunicação. Mas comunicação de quê? Da absoluta plenitude de ser, portanto, de Deus, que é o critério supremo e único do ser. O sentido do ser operante na ontologia da substancialidade, na metafísica grega, cuja palavra ὑποκέιμενον é uma das palavras-chave, à semelhança da metafísica da substância dos medievais, contém diferenciações e riqueza de conteúdo todo própria. E tudo isso muito mais dinâmica e profundamente no início da metafísica grega, nos pre-socráticos, cuja palavra-chave é Φύσις. Isto significa que o que usualmente na manualística chamamos de ontologia tradicional, cuja palavra-chave é o ente enquanto ente, onde o sentido do ser operante é o do lógico formal, é uma ontologia cuja operosidade nos faz suspeitar que se trata de uma espécie de estado terminal de uma sucessão de queda em cadência, do vigor do ser presente no mundo grego sob o nome Φύσις, depois ὑποκείμενον, no mundo medieval, e na nossa manualística, ente entendido como um “algo” qualquer. Essa ontologia terminal aparece no fim da Idade Média como nominalismo, onde a compreensão da substância é reduzida a um simples algo individual. Essa de-cadência do vigor, no sentido do ser, não é uma deficiência no sentido de defeito, falha, mas uma preparação para uma transformação. É dessa transformação que o texto de Heidegger, citado bem no início (2.2. Excurso: Objetivação) fala, ao atribuir a Descartes o início da metafísica moderna, cuja palavra-chave é sujeito, no sentido da subjetividade, cujo estágio final se expressa na palavra “o matemático”, enquanto sentido de ser que recebe a forma do lógico formal, presente na disciplina matemática.

Isto significa que desde o início[114], nos primeiros gregos até nós hodiernos, de repercussão em repercussão, como ecos ressoa a toada inicial da percussão de um toque do sentido do ser que desencadeia, faz crescer e encaminha para o remate, toda uma imensa sinfonia da concreção do sentido do ser em mil e mil variantes de afinações, dissonâncias, deixando ser infinitas variedades da eclosão do mundo, i. é, do ente no todo, com suas diferentes ontologias, interpretações variegadas do que seja ser no ente, enquanto coisas, entes, “objetos” pertencentes à região, Deus, Homem e Universo.  Em tudo isso, onde se coloca o ser? Dizemos: no ente na sua totalidade. Ser está presente em toda parte e em todos os tempos, lá onde se dá o ente. Está presente ora como vigência da generalização classificatória, da coisalidade, do horizonte, da mundidade, cada vez constituindo o medium, o âmbito e a envergadura da imensidão, profundidade e criatividade, a partir e dentro da qual devemos responder a pergunta: o que é a coisa ela mesma? Ser é portanto a causa[115] de todas as coisas, enquanto vigor de ser do deslanche de todo e qualquer mundo, i. é, do ente no todo? A esse vigor de deslanche de todo e qualquer mundo chamamos de ponto de salto. Como tal não é ente, nem como isto e aquilo, nem como no todo, como mundo, mas o que é? É o ponto de salto da eclosão do mundo, do nascer, crescer e consumar-se das coisas, dos “objetos”, dos entes, de algos cada vez atinentes e pertinentes entre si como con-junto no todo. É o uno que é tudo. Se não é ente, nem no todo, nem como isto e aquilo, o ser é diferente do mundo, do ente no todo? E é diferente como? Total e radicalmente. Essa é a diferença total e radical do ente que denominamos diferença ontológica.

3.4. De novo, Dasein e Ser-no-Mundo, tomado na cercania do ponto de salto do Mundo a modo do “esquema” aclarativo: ser no|Mundo ou Da|Sein

O Ser é, pois o uno de tudo? O que significa, porém o uno? Tudo aqui não significa muitas, ou melhor, todas as coisas, uma por uma, todas? Ser como uno quer dizer um, um, um, cada um? Ou conjunto, ajuntamento de muitas coisas? Ou junção de todas as coisas? O que quer dizer nessa perspectiva, ser não é ente, e isso total e radicalmente, na diferença ontológica?

Uma tentação é sempre de novo colocar à raiz de tudo, do ente no todo, o ser como algo transcendente, p. ex. na ontologia da substancialidade, uma substância que seja totalmente diferente e outra do que o ente no todo: um ente supremo, um deus, um criador, que contém em si todo ser enquanto plenitude infinito absoluto de ser, a tal ponto que há somente esse ente supremo, e todo o resto não é propriamente ente, pois o que pode ainda restar do ser se esse ente absoluto supremo e plenitude de ser, só ele é propriamente ser? Outra é não admitir jamais que ser seja ente, portanto jamais colocar para além ou aquém do ente no todo, um outro ente, por mais diferente e outro que seja, por mais que esteja, no ser, des-substancializado, diáfano, sutil, rarefeito a ponto de tocar as raias do nada a modo de horizonte transcendental, p. ex. no modo de ser da subjetividade transcendental? Mas então, tanto na primeira tentação como na segunda, não seria muito mais simples e coerente dizer: Há o Ser. O ente no todo é nada. Ou há o ente e nada mais? A mania da implicância com o transcendental é ainda apenas o resquício da substancialidade da metafísica da substância, na hodierna ontologia da subjetividade? A insistência na diferença entre ser e ente, a diferença ontológica, não é ela que nos impede de sermos totalmente soltos e livres num positivismo empírico, puramente “experimental” a modo das ciências naturais físico-matemáticas, na qual podemos reduzir tudo à pura dinâmica de movimento de sucessão e composição de matéria, representada como pontos de concentrações energéticas em expansão e recolhimento como “armação” de quanta de valores ou valências em mútua correlação?

Sem conseguirmos responder a todas essas perguntas que provavelmente foram mal colocadas, tentemos através de uma hipótese, compreender o ser e o ponto de salto do mundo no todo, por meio de um aprofundamento do que seja finalmente Dasein ou ser-no-mundo, na acepção da fenomenologia, ou dito de outro modo, a coisa ela mesma da fenomenologia. Dito assim de passagem, uma hipótese é algo como uma tentativa de jogar verde para colher maduro. Trata-se, pois, de chutação. Chutação é por acaso. Se “cair a ficha”, quem sabe se não é viável. Embora tal possibilidade, nada tenha em si de garantia de um valor. Tentemos assim, finalmente, dizer de que se trata quando dizemos Da-sein, ou com outras palavras, tentemos colocar Da-sein no todo desses diferentes conjuntos das eclosões do mundo no seu todo.

Aqui, da melhor maneira possível façamos presente o ente no todo, o mundo no sentido ampliado a modo de “abranger” todos os mundos atuais e possíveis[116]. Para isso, recordemos a descrição da Vida, feita por Nietzsche no 2.5. “Vontade para Poder: o ser do sujeito”; a representação do Mundo à mão da comparação com a sinfonia no 2.7.1.1: “Mundo” e a descrição da situação “perdido na mata atlântica” no 3.2. “De novo, Sujeito e Objeto”. Tendo na representação a imensidão, a profundidade, a vitalidade do Mundo, o ente no todo, perguntemos: o que é ser e onde está o ser; o que é, e onde se acha Dasein ou Ser-no-mundo? E retoquemos essa pergunta, depois da nossa reação amadora diante de tantas enrolações, ao falar do Dasein e seu ser. A pergunta aqui nos faz despertar do sono trascendental e nos faz voltar à realidade. E suspeitemos: Tudo isso não é ainda visto como se fosse de alguma forma algo do e no ente? É possível ver o ser nele e ele mesmo? É sempre na concreção? Por que, pois, não dizer que essa meta-física insondável não existe. Há, portanto, só o ente. O sujeito e subjetividade não existe. O que há é só o aperto dentro de uma determinada situação aqui e agora, e nada mais, de tal modo que se dá o ponto nevrálgico da fenomenologia, que é realmente um positivismo, mas não um positivismo metafísico, a modo do realismo empírico, nem do subjetivismo empírico, nem da subjetividade, mas apenas elementarmente situação, não como a situação transcendental acima explicitada, mas como situação real pura.

Vamos assim “contrapor” ao que Husserl chamou de Lebeswelt, a situação real pura. O que assinalamos até agora de Dasein ou Ser-no-mundo, sempre ainda com o sabor da subjetividade transcendental, é agora situação na acepção acima mencionada da situação real pura. Com isso, a paisagem da imensidão, profundidade e da escuridão transcendentais que se abrem como abismo insondável e inesgotável, envolvem e impregnam o ente no todo como o fundo a partir e dentro do qual se destaca o Dasein ou Ser-no-mundo como ente todo próprio, no qual e ao qual se dá o desvelamento do sentido do ser como surgir, crescer e consumar-se do mundo, se encolhe para uma bem delimitada situação concreta do homem no seu ser, enquanto encrustamento, enraizamento e assentamento aqui e agora de um realismo empírico, na factualidade de localização, opaca, apoucada sem brilho da cotidianidade inexorável, destino da finitude. Essa finitude situacional é para nós agora o Dasein, o Ser-no-mundo.

A essa altura da reflexão, depois de todas as reflexões anteriores,  reduzir o Dasein a tão apoucada situação é um retrocesso inviável. Antes, todo o esforço era de não ficar na situação, era de não representar o Dasein enquanto o ser-no-mundo como um algo tão encrustado, colado corpo a corpo à opacidade do ente. Por que essa reviravolta para à coisa do realismo real puro, lá no início estigmatizado de defasado?

Essa redução situada do Dasein à facticidade de uma factualidade aparentemente a modo do realismo empírico defasado, longe de um retorno a essa fase deficiente da compreensão do Dasein, é antes a tentativa de resgatar a compreensão do ser do Homem como Dasein ou Ser-no-mundo, dos resquícios da colocação metafísica do Homem como substância e ao mesmo tempo da colocação metafísica do ser do homem como sujeito, portanto, é a tentativa da ontologia fundamental de não ser entendida a partir e dentro do horizonte da ontologia da substancialidade e da ontologia da subjetividade. Nessa tentativa de reduzir, i. é reconduzir a compreensão do Dasein ou do Ser-no-mundo a um simples brutal encrustamento situacional na terra, como finitude inserida na delimitação opaca do aqui e agora, não se nega nada que foi dito do Dasein ou do ser-no-mundo dentro da perspectiva da ontologia da subjetividade, mas se tenta evitar que Dasein seja interpretado na direção da metafísica da substância e da metafísica do sujeito, nas suas formas deficientes de um realismo empírico defasado ou do idealismo empírico defasado, que não faz jus, nem à ontologia da substancialidade, nem à da subjetividade, em cujo limite salta a compreensão do Homem e do seu mundo como Dasein ou ser-no-mundo na acepção agora fenomenológica. Dentro dessa situação podemos dizer e recordar que situação é onde se está sentado. Inserido. Encrustado, para não dizer entalado. Como, na tonância dessas palavras que dizem algo da situação, há um gosto que sabe ao engajamento dramático vivencial, digamos mais simplesmente que situação é o que sou cada vez, aqui e agora, corpo a corpo. Em geral, embora sempre e cada vez, sejamos inteiramente situação, só a percebemos, quando estamos até o pescoço enterrados no destinar-nos a nós mesmos, quando somos como que  postos no paredão da necessidade historial da nossa própria possibilidade histórica e entendemos o que quer dizer colocar-se na situação. Na situação, nunca estamos, assim, de antemão, de forma neutra, indiferente como estado de coisas; mas, também, não nos metemos a fabricar situações. Situações fabricadas são como que efeitos especiais de um show planejado como projeto de um meio para o fim. Numa tal colocação não há situação. Situação somos nós mesmos, somente se nos tornamos situação, na necessidade da possibilidade impossível ou da impossibilidade possível, a ponto de não poder ser se não somos assim como somos, aqui, agora, assentados, enraizados no que somos. Esse modo de ser, no qual nos devemos responsabilizar pelo e como o que somos e não somos, em se dando a si mesmo o sentido do seu ser, e tornar-se todo um mundo da realização do ser, essa liberdade por e para ser se chama Dasein ou ser-no-mundo. Quase sempre estamos esquecidos de que o nosso ser próprio é um ter-que-ser assim na vigência do Dasein ou do ser-no-mundo. De vez em quando, porém, em ocasiões de aperto, nos colocamos e somos colocados como situação e então nos dispomos a nos colocarmos a nós mesmos sob o interrogatório acerca do nosso ser próprio. Com outras palavras, somos facticidade da nossa factualidade.

Dasein como ter-que-ser e se responsabilizar no seu ser, em assim se constituindo eclosão, aumento e consumação de um determinado sentido do ser, como mundo, é o que foi denominado ao longo de toda a nossa reflexão em diversas repetições, ora como Dasein, ora como Ser-no-mundo, ora como o ser do Homem. Homem, Deus e Universo como três grandes regiões do ente no todo, com tudo que esses nomes de totalidades implicam, como foi várias vezes exposto no  decurso das nossas anotações, pertencem à constituição do mundo. O próprio Dasein, enquanto ente constituído, aparece como componente do mundo, ora como uma modalidade de physis, ora como hypokeímenon, ora como substantia ou sujeito em mil e mil variantes de aparecimento, ora “objetivado” como horizonte, como mundidade, como Dasein, Ser-no-mundo, entendidos como categorias antropológicas do sujeito homem, mas em assim sendo tudo isso, é cada vez situação, cada vez incrustado nesse próprio mundo que é a expressão do ser, enquanto ente no todo, um ponto, um instante, insignificante no meio das coisas como uma coisa, no meio dos entes como ente, como algo, objeto, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, cada vez na perspectiva do todo.

E, no entanto, essa coisa ôntica, empírica, ente entre entes, na sua diferença ôntica, se destaca como a fenda, como a aberta, clareira, vislumbre do toque da percussão de uma determinada possibilidade do sentido do ser.

E no entanto, essa coisa, empírica, ente entre entes, na sua diferença ôntica se destaca como ente cuja entidade é ontológica, a saber, é a aberta, a clareira do vislumbre, é ressonância à percussão do toque de uma determinada possibilidade do sentido de ser, que funda a realização da realidade e lança a eclosão do surgir, crescer e consumar-se do mundo. Nessa eclosão, o abrir-se em leque na ordenação do ente no todo e seu perfazer-se como mundo através da aberta do Da-sein, ser é o próprio mundo na sua consumação. É a concreção realizada, bem sucedida, afortunada, o vir à fala de uma possibilidade de ser. E a aberta, o Da, é nada, apenas a pura acolhida no deixar ser o que na percussão do toque do sentido de ser é dado. Esse abrir-se, o aberto é como o tinir do vazio da caixa de ressonância, na qual ressoa a sonoridade de tons da percussão do toque e sucessivas seqüências de repercussões em repercussões, se ergue imenso, profundo e livre todo um mundo de realização da plenitude de ser. Esse vazio de e para a ressonância da sonoridade de ser não é a sinfonia de ser como mundo, mas acompanha a cada tonalidade de ser, continuamente a acolher e deixar ser a sonoridade na percussão do toque da possibilidade de ser. Não é toque, nem o sentido do ser que vem da insondável e inesgotável possibilidade de ser. É apenas passagem, do abismo da possibilidade de ser para a concreção do ser como mundo. Mas nem o mundo, nem o abismo inesgotável e insondável da possibilidade de ser são nem se tornam em si, por e para si, a não ser a “partir” e no nada dessa pura disposição de deixar ser o ente no todo e com isso a vigência da possibilidade de ser. Essa disposição é o que no início da reflexão, ao falarmos da intencionalidade nos seus momentos redução, ideação e constituição, chamamos de ver simples e imediato. Só que ver aqui não é visualização, mas Augenblick, i. é, mira do olho, mira aqui não como meta, objetivo da visualização, mas como cintilação, o vislumbre, a aberta no instante da eclosão do mundo. Qual rasgo aberto pelo raio a riscar a escuridão deixando surgir das e a se recolher nas trevas, toda uma paisagem no instante onde surge simultaneamente a própria escuridão como vastidão, profundidade e a caligine  inicial e iniciante na sua densidade do abismo da possibilidade de ser e ali a eclodir o mundo como nascividade per-feita do vir à luz  o ente no todo como mundo. Essa realização na qual nasce o mundo sadio, redondo  e no ponto, é o evento, a Ereignis, a apropriação, a propriedade da mira de origem, a Er-äugnis. A essência do Homem, o Da-sein é apenas o ser em, ser no âmago de ponto de salto como Daí, a saber, como a aberta da mira. Portanto, Dasein como situação é a estranha coincidência: a) do mundo, como o vir à fala, à concreção sucedida, como o perfazer-se da gênese, crescimento e consumação emitido pela percussão de um toque de um sentido; b) da própria possibilidade de ser como abismo insondável e inesgotável do sentido de ser, que somente vem à fala como  como abismo de fundo da possibilidade de ser simultaneamente com e no sucesso do vir à fala do mundo; c) e do momento toque como a aberta, em cuja mira, i. é, no instante do piscar de olhos, se dá o o ente no ser e ser no ente como evento. Essa mira é o Da/-sein, o ser-no/-mundo que aparece no mundo, com instituído na coincidência Mundo, Abismo da possibilidade do sentido de ser e instante do toque da percussão do sentido do ser aparecem ora como este homem, sujeito, entalado na situação como ente entre outros entes, ora como a abertura de ajuntamento dos entes como classificação geral e regional, horizonte, mundidade, ora como a compacta substancialidade de uma singularidade única, ora como perplexidade da impossibilidade de ser como colocado no paredão de uma inexorável coisalidade etc.;  tudo isso encarnado na perfilação compacta da ocorrência simplesmente dada como mundo constituído através e nele enquanto ponto de salto da concreção do possível sentido do ser. Tudo isso é Ser, visto a partir do ente. É possível ver o Ser nele e ele mesmo? É sempre na concreção? Por que pois não dizer que essa metafisica não existe. Há portanto só o ente. O Sujeito e subjetividade não existem. O que há é só matéria. Aqui que se dá o ponto nevrálgico para que a fenomenologia seja realmente um positivismo e não um positivismo metafísico. Como entender o ser como ponto de salto.

[Descrever fleche, bipolar, etc. classe, horizonte, mundo.  Só coisa.Cosa eu e coisa objeto. Coisa como substancia. Coisa como objeto. Coisa como mundo. Mundo e mundidade. Ser no mundo. Da sein etc. Ali Eräugnis.]

III A modo de conclusão: À Coisa ela mesma

1 Naividade transcendental e positivismo-fenomenológico

  1. Ser simplesmente

3 Pensar, poetar e crer

Conclusão

Seria o “realismo” bem “seguro” da serenidade do fundo de todas as coisas? Não seria, pois, a positividade da gratidão e gratuidade de ser, sob cuja tenaz e resistente pele, se oculta a finura e a sensibilidade da tênue vibração de uma dynamis que irriga todas as coisas na sua raiz, protege e conserva o sopro de Vida do Uni-verso?

Isto significa: a opacidade da nossa existência cotidiana, na qual se dá a fenda da criatividade artística, não é asfixia, decadência, ou modus deficiente da beleza, da originariedade ou da vivência do carisma criativa da Arte. É, pois, tênue superfície da imensidão, profundidade e simplicidade da jazida bem assentada no abismo inesgotável da presença do ser, a se desvelar e se ocultar, através da aberta e na clareira do Da-sein, onde toda e qualquer estruturação do ser como mundo é enraizada e entregue à insondável confiabilidade do mistério[117] de ser, i. é, do em-casa da morada abissal da possibilidade inesgotável de ser.

Conclusão

“O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e, sem esta, nada seria. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai à apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser[118]  a ele próprio”.

Tomemos a ilustração do abismo e, de modo bem formal e geométrico, apliquemos a representação acima descrita do abismo \ dinâmica da constituição do mundo no seu ser.

Podemos dizer que a dinâmica dessa coincidência Dasein:Ser:ente[119], assim descrita de modo desengonçado, é o sentido propriamente dito da famosa “Kehre” heideggeriana[120], que não está a dizer a reviravolta da atividade literária e mutação ou transmutação ou evolução das idéias de Heidegger, mas sim a estruturação interna do ente ser. O Ser é: o Da do da-seiend, ao aparecer concreto no pudor da contenção das implicâncias do evento (Ereignis) como este próprio ente, aquele próprio ente, na “naturalidade” imediata. Na modéstia, no insignificante do dar-se simplesmente, como cada vez o próprio, como em sendo co-creação viva do pulsar tênue no nascer, crescer e consumar-se, como estremecer do viver, o cintilar “do olho” de cada coisa, em composições estruturais, forma a imensa superfície aparentemente opaca e óbvia do cotidiano e comum, i. é, da maioria e do imediato do ente, sob cuja pele na tênue vibração, nesse da-seiend, se oculta o frêmito de vida do ser. Frêmito de vida do ser! É a vigência da Vida, que, no abalo instantâneo, se revela superfície e abismo, serenidade e ira contida, ternura e vigor, nascimento e morte do estremecer e do abrir os olhos do renascimento, a se anunciar na penumbra do declínio ocidental e no cinzento claro do arrebol vindouro; é o incoativo retorno do outro início ao entardecer do primeiro início: o oriente do ocidente: esse sempre de novo e novo, cada vez da-seiend, i. é, o ente. Se de alguma forma a positividade da sua Ontologia Estrutural é o positum no des-velar-se do in-stante desse cintilar da aberta co-creativa concreta como evento, então Ser, Tempo, Vida, coincide como, no e a partir do “ponto de salto”, cuja mira, se dá na contenção e continência, no espanto e no pudor, no titubear de uma tênue vibração que, ao assim se pôr, constitui a empiria nasciva da aberta do retraimento na verdade do ser, acolhida e recolhimento da vigência do sabor humano, demasiadamente humano do “Homem humano”, o ser-in de todas as coisas, a novidade do saber do concreto positivismo e da sua “lógica” analítica, cujo início longínquo ecoa e diz: to on legetai pollacwV.


[1] Leia-se inter-esse, a saber, aquilo na qual já sempre estamos.
[2] “À coisa ela mesma”.
[3] Ser e tempo.
[4] Coisa em latim é res. Da res vem o termo português realidade. Em vez de realidade poderíamos dizer também coisalidade.
[5] Indicar Zur Frage nach den Ding, apêndice texto.
[6] Foucault, Michel, As palavras e coisas (Uma arqueologia das ciências humanas), Lisboa: Portugália Editora, 1968, p. 3.
[7] A partir dali, agora, num sentido muito mais lato e formal, objeto constitui o momento correlativo do sujeito no todo do esquema sujeito-objeto, do modo de ser, cujo sentido se assinala como subjetividade ou, o que no fundo é o mesmo, objetividade.
[8] Em alemão existem vários termos referidos ao que denominamos em português de coisa, de res em latim, referidos à realidade e suas realizações: por exemplo, etwas (algo), das Seiende (o ente), das Sein (o Ser), der Gegenstand (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding (coisa) e die Sache (coisa).
[9] E interessante talvez observar que, para nós hoje, o fenômeno é entendido como à luz da ribalta, no esplendor de um show ou na publicidade!
[10] HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 8ª ed., Tübingen: Max Niemeyer, 1957, p. 28.
[11] A grande dificuldade de ver o imediato concreto do phaínesthai do fenômeno é que essa imediação não significa facilidade, imediatismo isento de empenho e desempenho de preparação, busca demorada para a disponibilidade ao rigor e precisão de percepção à evidencia.
[12] O verbo ser que soa tão neutro, sem atuação, indique talvez esse modo todo próprio da vigência originária da autopresença pré-predicativa ou pré-científica.
[13] Distinguimos visualisar e ver. Visualizar conota em vista de um ponto predeterminado como meta, objetivo, como a priori prefixado, a partir e dentro do projeto prévio, em cuja predeterminação são captadas todas as coisas.
[14] Encontro realizado na Drew-University, Madison, USA, de 9 a 11 de abril de 1964.
[15] As coisas = Die Dinge.
[16] O termo alemão é Gegenstand. Gegen se refere de alguma forma ao Gen. Gen é como numa paisagem a imensidão que se abre e se ergue em direção ao céu aberto diante de nós e nos vem ao encontro, nos envolvendo na sua dinâmica vastidão. Stand vem do verbo stehen, e indica o erguer-se e tomar pé, a partir e dentro da imensidão aberta como uma das suas concreções in-sistentes, constituindo-se como elementos estruturantes de toda uma paisagem. Em lugar de Gegen, colocamos em português ante, no sentido de em face de, de encontro à face de.
[17] Apalavra alemã é Vergegenständlichung.
[18] Quanto a várias significações de scheinen cf. Ser e Tempo
[19] Tentar dizer o luzir do scheinen como incandescer é talvez dizer demais, pois conota uma claridade talvez demasiadamente forte. O pivô da questão aqui no luzir do scheinen está nisso de o movimento do luzir dar-se a partir e dentro dele mesmo como tomar corpo da concreção. Quando a claridade do luzir é demasiada, esse modo de se perfazer pode ser ofuscado, como se fosse uma explosão de luz. Por isso o se aclarar do scheinen se torna manifesto mais no luzir de uma pérola do que no de um diamante, na claridade de um luar do que na do sol.
[20] (Em alemão: das von sich aus, <- nicht durch ein Vorstellen entgegengebrachte-> Vorliegende, das Anwesende, z. B. die Dinge).
[21] Apalavra alemã é Vergegenständlichung.
[22] “Die Rose blühet ohne warum”, de Ângelus Silesius.
[23] Cf. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.
[24] Anotação a.1: Aqui com a expressão sentido do ser, não estamos falando da significação do ser, conceito do ser, adequação do nosso saber ao objeto, representação dentro de nós, a saber, na nossa mente, do objeto, diante, ao redor, fora de nós. O ser entendido como verbo, dinamicamente, sugere de imediato e originariamente viger, viver, animar-se, perfazer-se, surgir-crescer-consumar-se, liberar-se, desprender-se, soltar-se nasciva, espontânea e livremente no que é o seu próprio. E isto apesar de no nosso cotidiano, domine o uso do verbo ser, na significação de estar ali como algo ocorrente diante de mim à mão, ali parado, estático, à disposição do uso, ou como objeto-bloco permanente em si, do qual tenho da minha parte subjetiva impressões, sensações, representações etc. A dinâmica da espontaneidade da liberdade do próprio de si mesmo, portanto, o ser é expressa também por a presença, o vir à fala, o vir à luz, o manifestar-se. Trata-se, pois de um movimento, no qual há e do qual vem uma condução, um ductus, um fio condutor, qual subtil tração do sabor e gosto, da graça e beleza, portanto do fascínio da coisa ela mesma, ou melhor, da causa da propriedade de ser. Esse ductus que nos toca, vindo de e nos induzindo para a dinâmica do ser, se chama sentido do ser.(Anotação tirada do Glossário dos sermões de Eckhart).
Anotação a.2: Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas, sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente, por um a priori, para que se receba. Mas, aqui não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo (cf.  Artigo: Scintilla)
[25] Variante: coisas da natureza e coisas da cultura.
[26] Adaequatio rei et intellectus.
[27] Tirar dados da enciclopédia Logos….
[28] HEIDEGGER, Martin. Para a coisa do pensar.  Tübingen: Editora Max Niemeyer, 1969, p. 90.
[29]  O problema do psicologismo e a reação da fenomenologia iniciante estão dentro da perspectiva da teoria do conhecimento, proveniente dentro da definição tradicional da verdade como veritas est adaequatio rei et intellectus (verdade é adequação da coisa e do intelecto). Segundo essa definição, um conhecimento é verdadeiro se há concordância entre o intelecto e a coisa. Em vez de intelecto podemos também dizer homem-sujeito, consciência humana e em vez de coisa, objeto. Se nessa adequação, a que se conforma é coisa (res) e o que se adequa é intelecto (intellectus), temos a predominância da anterioridade da coisa, da res sobre o intellectus ou do objeto sobre o sujeito: temos nesse caso a teoria do conhecimento do realismo ou do objetivismo. Se pelo contrário, ao que se adequa é o intelecto, e o que se adequa é a coisa, temos então a teoria do conhecimento do idealismo ou do subjetivismo. Entre a posição do realismo e do idealismo ou do objetivismo e do subjetivismo, pode haver variantes de acentuação, ora na direção da coisa, ora na direção do sujeito-homem. Assim, surgem teorias de conhecimento do conceptualismo, do criticismo etc. Em todas essas tendências a posição fundamental permanece igual, a saber: todos eles colocam no ato do conhecer o lugar onde se dá a adequação, mas parece não questionar se é possível a adequação, e como se dá a adequação, o que é afinal a adequação e em que consiste o ser do intelecto, do ato e o ser do objeto e da coisa.
Na Idade Média, nessa definição veritas est adaequatio rei et intellectus estavam implicadas duas colocações, relacionadas mutuamente na dinâmica da ação de Deus na Criação. Assim, a definição se lia uma vez: veritas est adaequatio rei ad intellectum divinum e outra vez: veritas est adaequatio intellectus humanus ad rem. Aqui a medida dos entes (criaturas) está no intelecto divino; e a medida do intelecto humano está na coisa. O que fundamentava a relação entre a coisa e o intelecto era a relação que as coisas tinham com o Intelecto Divino.
[30] Entretanto, se torna bastante claro que a adaequatio da explicação realista do conhecimento parece ser mais próxima e natural, e reproduzir a obviedade das nossas vivências da experiência da realidade concreta e simplesmente dada de todos os dias. A sensação de segurança de que as coisas estão ali diante e ao redor de mim, assim como elas são e se apresentam, e que eu capto a coisa ela mesma ali presente em seus vários aspectos, parece ser um fato inegável, indubitável. Assim, o realista parece ter razão quando afirma que as coisas existem em si, ocorrem ali dadas simplesmente de antemão, anteriores a todas as nossas captações. Tudo isso, porém, parece ser evidente até certo ponto, quando se trata de captar as coisas sensíveis corpóreo-físicas. Mas também as assim chamadas coisas psíquicas, coisas espirituais, coisas estéticas, coisas-valor, coisas ideais etc. se nos dão, se nos apresentam. São todas essas coisas, coisas também no sentido das coisas físicas, algo sensível palpável pelos 5 sentidos, diante de e ao redor de nós, existentes em si, independente e anteriormente à percepção da consciência? Por ouro lado, o que significa coisas existentes em si, independentes anteriormente à consciência? Não é assim que tudo de alguma forma está referido à consciência? Esse processo de “desmaterialização” da “coisa hipostatizada” como esse bloco-coisa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da “realidade” em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regiões, sub-regiões, setores, áreas de conjunto de “coisas”, constituindo o aparecimento do mundo “objetivo” diante e ao redor de mim:  temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez “dessubstancializado” se abre como todo um mundo de “realidades” sui generis próprias com seus variegados atos, noemas e egoidades: temos assim a paisagem denominada: noesis. Que está referida à consciência, ao ato do sujeito que capta, percebe, valoriza? Que sentido faz falar de algo que existe em si, independe e anterior à consciência, se essa fala já é uma referência à captação da consciência?
[31] Intencionalidade vem do verbo latino intendere que quer dizer: tender em direção a e para dentro de. Na teoria do conhecimento de cunho realista dizemos: o sujeito no ato da intelecção tende de dentro de si para fora em direção à coisa, existente em si fora, diante ou ao redor dele.
[32] O título original em alemão soa Psychologie vom empirishcen Standpunkt, foi editado em 2 volumes, na cidade de Viena, em 1874. A tradução do Stanpunkt por ponto de vista não é exata. Pois Stand não significa vista. Stand vem do verbo stehen que significa estar de pé, erguer-se e permanecer de pé, permanecer, ficar. Talvez possamos traduzir Stand por “estância”, i. é, o lugar onde se está, o chão que serve de base para ficar de pé. O “ponto da estância” seria então o pivô fundamental, o fundo dentro e a partir do que algo se ergue e se firma. Psicologia a partir do ponto da estância empírica diz portanto: psicologia a partir da pressuposição empírica.
[33] Cf. MERTON, Thomaz. A via de Chunag-Tzu. Petrópolis: Vozes, p. 126-7: Chuang-Tzu e Hui-Tzu atravessavam o rio Hao. Disse Chuang: “Veja, como os peixes pulam e correm tão alegremente. Isto é a sua felicidade!”. Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?” Chuang respondeu: “Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?” Hui argumentou: “Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem”.
[34] Talvez fosse interessante examinar como o especulativo começa a receber a conotação do irreal, e aos poucos do subjetivo, ao passo que o empírico, a conotação do real, do objetivo. Usualmente não percebemos como, nesse real objetivo, o sentido do real já está identificado com o objetivo, de tal sorte que facilmente aceitamos sem ver a coisa, i. é, a causa ela mesma da igualação: real = objetivo. Quando na fenomenologia falamos do real, da realidade, i. é, da res, ou mesmo do ente, do ser e também do ôntico e ontológico é necessário observar essa diferença entre coisa e objeto. Por isso na fenomenologia o termo alemão Gegenstand (Gegen = gen; stand = do stehen) e Objekt (Ob, também pro; jekt = iect = iactare = jectar = lançar) indicam dois modos de objetivação, i. é, do processo através do qual o ente se torna presente, vem à fala dentro de um determinado horizonte. Objekt é o ente que vem de encontro a nós, da objetivação que se processa a partir e dentro do horizonte das ciências do tipo “ciências naturais”. Gegenstand é o ente que nos vem de encontro no horizonte da paisagem que se abre no assim chamado “mundo vital circundante natural”,  que muitas vezes é denominado também de mundo pré-predicativo ou pré-científico. Por isso, o que na fenomenologia é indicado com pré-predicativo ou pré-científico não deve ser identificado com não elaborado, informe, vago, ou indeterminação abstrata, espaço vazio sem estruturações, mas sim como concreto, imediato pleno, natura enquanto nascivo, nascente, o que é na fluência do que vem à concreção i. é, o em sendo, o ente, o fenômeno.
[35] Isto levou a inúmeras aporias que aparecem em perguntas como: – esse material, anterior às elaborações, é real em si, algo ali existente em si, independente do sujeito que o capta?;  e as formas que o material recebe, donde vêm?; não vêm do sujeito que projeta sobre essa “tela” vazia objetiva seus projetos subjetivos? Percebemos que o real, entendido como substrato indeterminado, facilmente nos leva a entender a realidade como espaço vazio objetivamente, i. é, matematicamente mensurável, onde se acham por sua vez as substâncias a modo de núcleos-átomos, sem propriamente conteúdo qualitativo, mas apenas como que concentrações quantitativas de uma “substância” geral, que não é nenhuma realidade “subjetiva”, mas sim objetiva, homogênea, “etérea”, quase nada. Daí, passar para a compreensão da realidade como energia e diferentes variações de intensificações e rarefações dessa realidade energética homogênea, calculável e calculada, segundo a precisão e o rigor da objetividade matemática, é um passo. Logo vemos que essa realidade objetiva pouco tem a ver com a realidade concreta da captação imediata e simples, dada no nosso cotidiano. Aqui podemos ver, por outro lado, como em todas as colocações, em geral não analisadas, ainda domina um dogma difícil de ser desmascarado, que é o dogma do problema mal colocado do sujeito-objeto, na forma do “idealismo-realismo”, i. é, a colocação equivocada da teoria do conhecimento.
[36] Zur Sache selbst.
[37] Klärung.
[38] O verbo latino evideri (leia-se e-videri) no seu modo de “atuar” não é nem ativo nem passivo, nem propriamente reflexivo, mas medial. O modo medial expressa movimento de dinâmica toda própria, a qual, de modo muito imperfeito tentamos descrever acima. É “algo” como o movimento de “autonomia” que aparece no crescer, entumecer, aumentar, incandescer, brilhar, vir à luz,  tomar corpo, vir à presença ou ausência etc.
[39] Crítico, -a, crise, vem do verbo grego krinein que significa distinguir, separar,  separar cortando, escolher, decidir etc. Indica todo um modo de ser da existência humana que denominamos de luta do empenho para tornar-se claro e preciso na responsabilidade de existir.
[40] Pôr entre parênteses é uma operação na aritmética. P. ex. (‘0-1) – (3+5) = 1. Aqui ( ) suspende o valor de cada número em si, mantendo-o como que implícito no conjunto abrangido dentro dos parênteses. Assim, se tenho diante de mim esta coisa ao lado de outra coisa etc., como existente em si, eu suspendo, ponho entre parênteses a suposição prévia de que cada uma dessas coisas existe em si, para deixá-las como que implícitas no conjunto em que aparecem.
[41] Aqui ocorre um fato “irreparável” que se expressa na disjunção: ou se vê ou não se vê. Portanto, o verbo ver aqui na fenomenologia não possui a acepção usual de ver alguma coisa que está diante de mim, que pode ser captado ora objetivamente ora subjetivamente. Não se trata portanto de ver um fato. Trata-se da facticidade do ver, ou acordar, despertar, iluminar-se, se transmutar para dentro de abertura de uma nova clareira, surgimento de um novo horizonte. Mas falar aqui de horizonte não é conveniente, pois horizonte é um termo que no fundo indica o transcendental. Não se trata de um ato de ver de um sujeito, mas o próprio ver é ele mesmo existência humana, possibilidade da existência.
[42]  Selbstgegebenheit se compõe de duas palavras: Selbst = Self, a coisa ela mesma, e Gegebenheit = dadidade = a ação de se dar a si mesmo. Em vez de e-vidência ou Selbstgegebenheitg, dizemos na fenomenologia de preferência: fenômeno, o vir à fala, vir à luz ele mesmo.
[43] Por isso, na fenomenologia, o ser ou o ente deve ser captado no gerundivo, a saber, ente=em sendo. Assim o Ser deve ser entendido como ato puro, não isto ou aquilo infinito, supra dimensional, absoluto, mas o “que” (sic!) de modo mais próprio é nada da coisa em si, mas tudo da potência ou possibilidade de doação de si.
[44] Aqui não se deve entender o ex a partir do sistir, mas o sistir a partir do ex.
[45] É que abertura aqui não é um espaço aberto, escancarado, mas sim dinâmica do surgimento de estância do mundo (Welt). Por isso o Homem é definido como ser-no-mundo. Aqui no possui conotação de dinâmica do crescimento.
[46] Anzeige não quer dizer indício, mas sim o toque da mostração.
[47] Essa recepção não deve ser identificada com intuição ou com algo como sentimento de evidência, ou com o que os alemães gostam de expressar com Aha-erlebnis, i. é, vivência do aha! Trata-se de acribia e limpidez da crítica, no sentido de continuamente liquidificar os pré-conceitos e pré-juizos que se estabelecem como sendo o indicativo da realidade, e manter continuamente no pique da limpidez a redução, i. é, a disposição de apenas ser o captar simples e imediato.
[48] Quando esse abismo-nada da plenitude da possibilidade insondável do sentido do ser não é mais captado na pureza reducional, pode se hipostatizar como o significado lógico do conceito do ser, o mais geral, o mais óbvio, o mais abstrato dos conceitos que diz o mesmo que nada vazio nadificante.
[49]  É a ideação que constitui a condição da possibilidade de classificações das ciências positivas a partir do vislumbre com-creto do seu positum. O(s) vislumbre(s) concreto(s) e novo(s) da paisagem ou região dos posita serve de fundamento, donde as ciências positivas haurem seus conceitos fundamentais. Esses vislumbres são iluminações que arrancam das incomensuráveis trevas da imensidão e profundidade do retraimento do sentido do ser – que se oculta, se a-pro-funda cada vez mais em si, velando, resguardando o frescor, a disposição, a ternura e o vigor das possibilidades do ser – o ente como eclosão do mundo. Enquanto servem de fundamento aos posita das ciências, formam a assim chamada dimensão pré-científica ou pré-predicativa ou até mesmo pré-fenomenológica. Essa dimensão se perde então na profundidade da incomensurabilidade do que antes denominamos abismo insondável e inesgotável do sentido do ser, que usualmente chamamos de Vida, Ser, Realidade. Fenomenologia é, no movimento da redução e ao mesmo tempo da ideação e com ela da assim chamada constituição, a sondagem da possibilidade do abismo do sentido do ser no rigor, na nitidez e clareza da sua estruturarão como vir à fala do(s) mundo(s), e é demarcação das possibilidades das ciências positivas como ausculta crítica do rigor do surgimento do seu saber e da sua sistemática a partir da dimensão pré-científica das dinâmicas genéticas das eclosões dos horizontes do sentido do ser. É a ideação que no fundo possibilita diferentes tipos de classificação na vida e nas ciências.
[50] Ontologia se compõe das palavras on, -toV, i. é, em sendo e logoV (logia), i. é, discurso, ciência, mas também, colheita, ajuntamento, recolhimento. Ontologia não tem aqui a acepção usual tradicional da ciência do ente, concebido como algo que existe em si como ocorrente simplesmente, contraposta à antropologia filosófica, dentro do esquema da teoria do conhecimento S « O.
[51] Exemplo da fenda de uma casa, porta aberta e o luar aberto, num provérbio chinês; zinco furado e o transluzir do luar através dele; o exemplo de Descartes nas Regulae dos cacos de espelho e o sol a brilhar em cada um deles etc.
[52] Cf. Husserliana, II, Die Idee der Phänomenologie, p.  3.
[53] Antigamente, pela influência do uso da terminologia alemã, se dizia em vez de ciências humanas, ciências do espírito, e de ciências naturais, ciências da natureza.
[54] Winden, Kehre.
[55] Expressão ainda inadequada.
[56] Falar sobre Kehre.
[57] Falar da diferença entre Husserl, Heidegger, Rombach.
[58] Cf. Husserl, Der transzendentale Schein.
[59] Portanto, não se trata de ontologia geral que fundamenta as possíveis ontologias, mas sim da sondagem, ou melhor, da questão do sentido do ser, a partir e dentro do qual se estabeleceu a ontologia tradicional e seus variantes.
[60] Leia-se existentiva (existenzielle).
[61] Leia-se categorial (da entidade).
[62] O ser aqui deve ser entendido na acepção do verbo, mesmo que esteja na formulação substantivado.
[63] As coisas =Die Dinge.
[64] O termo alemão é Gegenstand. Gegen se refere de alguma forma ao Gen. Gen é como numa paisagem a imensidão que se abre e se ergue em direção ao céu aberto diante de nós e nos vem de encontro nos envolvendo na sua dinâmica vastidão. Stand vem do verbo stehen, e indica o erguer-se e tomar pé, a partir e dentro da imensidão aberta como uma das suas concreções in-sistentes, constituindo-se como elementos estruturantes de toda uma paisagem. Em lugar de Gegen colocamos em português ante no sentido de em face de, de encontro à face.
[65] Apalavra alemã é Vergegenständlichung.
[66] “Eu, porém, afirmo que em toda a doutrina especial da natureza pode ser encontrada somente tanta ciência propriamente dita, quanta ali pode ser encontrada matemática” (Kant).
[67] Cf. PLATÃO, Menon, o escravo e a sua recordação das ideias matemáticas.
[68] agewmetrhtoV mhdeiV eisitw.
[69] Discorsi, 1658; esta frase é considerada como precursora dos princípios desenvolvidos por Newton no seu livro Philosophiae Naturalis principia mathematica (1686/1687).
[70] Diz Newton: “Todo o corpo, cada corpo deixado em si mesmo, isto é, não é coagido pelas forças a ele impressas, se move de modo reto e uniforme”.
[71] Essência aqui está entre aspas, porque não se deve entender essência como substância, no sentido da Filosofia Antiga e Tradicional, mas sim no sentido literal de vigência em sendo.
[72] Somente lá, onde esse transcender no projeto cessa ou é enfraquecido, são ajuntados apenas fatos e assim surge a ideologia chamada Positivismo.
[73] É o que Descartes denominou de res extensa.
[74] P. ex. o cálculo de fluxo de Newton, o cálculo diferencial de Leibniz e a geometria analítica de Descartes, todas essas novidades são possibilitadas pela estruturação fundamental matemática do pensar “matemático” como tal.
[75] Colocamos o início do Pensamento moderno em Descartes (1596-1650). Descartes é da geração de Galileu. O seu tema principal é o Mundo! A idéia do Mundo está intimamente ligada com o movimento da determinação do Matemático da existência humana na França, Inglaterra e Holanda daquela época.
[76] O voltar à “coisa ela mesma” de Edmund Husserl que em outras palavras se diz também “sem nenhuma pressuposição, abrir-se ao dado ele mesmo” (Voraussetzungslosichkeit) ou a posição de um observador neutro não são outra coisa que a posição dessa absoluta validade do Matemático como o critério da verdade.
[77] Cogito, dizem alguns autores, vem do co-agito. Coagito significaria então em agitação, em vibração, que faz vibrar tudo. A palavra “auto” vem do grego e significa eu mesmo, ele mesmo, o mesmo, e indica não o ocorrer espontâneo de um “automático”, sem consciência, mas sim o responsabilizar-se de uma ação que vem de si, a partir de si e permanece nessa responsabilização de si em cada momento da sua ação.
[78] Até Descartes, o “sujeito” era a coisa ocorrente ali, simplesmente dada. Agora, com Descartes, o “Eu” se torna um subiectum bem próprio, em cuja referência estão todas as coisas e são determinadas. Se o “Eu” é a autonomia do autoposicionamento do projeto, então tudo quanto a priori é referido a esse projeto se torna ob-iectum. Aqui sujeito diz objeto e objeto diz sujeito.
[79] O que se segue é um resumo mal feito dos pensamentos que estão no livro de Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur. Freiburg i. B./München: Karl Alber.
[80] Esse é o modo de ser da Evidência Pura que mais tarde, depois de Descartes, em Kant recebeu o nome de Razão Pura no seu famoso livro “A Crítica da Razão Pura”.
[81] Cf. A conferência no congresso da Baia.
[82] Pressupomos como já conhecido esse modo de ser que se encontra exposto detalhada e exaustivamente no que se chama analítica do Dasein, no livro “clássico” da Filosofia  “Ser e Tempo” de Martin Heidegger. A palavra existência e similares, como existencialidade, existencial, está sendo usada na reflexão no sentido da fenomenologia do Ser e Tempo (Martin Heidegger). Indica o próprio do ser do homem ou da ‘vida humana’. Em vez de o próprio do ser do homem podemos também dizer o ontologicum do humano. Geralmente, quando diferenciamos o ser do homem do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não ‘entre’ o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra existência e seus derivados, no seu uso específico fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem no sentido da diferença ôntica, mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é a de não representar a diferença ‘entre’ ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala, se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando na mira de nossa atenção a diferença entre ente e ente, divisarmos numa ‘mira’, digamos oblíqua, a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse ‘intus’ ‘ire’ como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez, nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser, se chama Homem, mas não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativa pelo sentido do ser: é existência.
[83] Da em alemão significa abertura prévia tanto espacial (ali, ai) como temporal (pré, anterior). Significa também já que, por que, em sendo assim.
[84] Usar o termo aseidade que é só atribuída a Deus para caracterizar a finitude, parece ser absurdo, para não dizer uma ignorantia elenchi. Aqui, a pressuposição é o seguinte: o ponto nevrálgico da identificação no modo de ser a se, do ente finito e ente Infinito reside no fundo na doutrina da mundividência cristã denominada Filiação divina e Mistério da Encarnação. O pretenso panteísmo que poderia surgir da atribuição da aseidade ao ente finito, é no fundo um problema da colocação mal feita e defasada da questão do sentido do ser. É que colocamos Deus e criatura numa igualdade. Igualdade não é idêntico com a mesmidade. O termo mesmo dessa mesmidade não está sendo usado como igual (=), que é uma categoria adequada para a quantidade nas coisas físicas. Quando o sentido do ser é horizonte de e para o ente qualitativamente mais rico, profundo e diferenciado do que um objeto físico, portanto mais e diferente do que o ente do horizonte algo (etwas) e objeto (Objekt), o termo igualdade não serve mais. Usamos então, de preferência o termo identidade para determinar o relacionamento “entre” os entes no tipo do horizonte Gegenstand, Ding, Sache e a fortiori Pessoa (Person) que não deve ser entendido como Sujeito (Subjekt).
[85] I. é, ab-soluto, i. é, solto, inteiramente espontâneo na sua identidade: jovialidade da graça.
[86] O que segue não está mais falando da aseidade como ela é atribuída a Deus infinito da doutrina cristã. Aqui está se falando somente do Dasein, do ser da essência do Homem, na tentativa de ilustrá-lo à mão da aseidade, mesmo no seu uso inadequado. O a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si é como se a gente quisesse dizer: o Da do Da-sein é a gratuita liberdade ab-soluta da pura recepção, na qual o doador e o receptor são simultânea e mutuamente límpido nada, i. é, nada a não ser pura dinâmica de ser, no dar e receber. A saber, pura dinâmica de puro receber no puro dar e puro dar no puro receber, de tal modo que o dar é recebido e o receber é recebido na mútua doação de ser somente e apenas o puro deixar ser. Esse aberto é o lugar do salto originário e originante da gênese do mundo novo. Essa mútua implicação no nada ser a não ser como a límpida dis-posição de doação na recepção da possibilidade do abismo inesgotável de ser é a essência do Homem,
[87] Finitude vem do finito. Finito é oposto do infinito. Finito é usualmente compreendido como privação do infinito. O que o infinito é em plenitude, o finito é em parte. Finito carece da infinitude. No cristianismo a palavra finitude cai bem à criatura. Pois os entes na sua criaturidade são finitos, i. é, são criados por um ente supremo cujo ser é o próprio ser, de tal modo que fora dele não há ser propriamente dito, portanto, por um ser supremo denominado Deus, cujo ser é absoluto e infinito. No fundo, a criaturidade é nada, ao passo que a increablidade e increaturidade é tudo.  Essa doutrina geralmente nos foi transmitida já um tanto defasada e reduzida à uma compreensão de pouca precisão, na qual a finitude acaba virando sinônimo de privação. Mas, como seria essa doutrina da Criação se levássemos a sério a doutrina, na qual ser criatura não significa ser privado do Ser Infinito, mas sim participar Dele como filho? Não é assim que o filho de dragão, dragão é? Filhotinho de dragão, quando encontra na estrada solitária um tigre adulto, que feroz avança sobre ele, abre instintivamente a pequena goela e lança-se sobre o inimigo, emitindo o chiado-dragão. Pois, ser pequeno ou grande, finito ou infinito, não lhe é critério para a sua identidade. Ele, o filhotinho, no seu ser-dragão é o mesmo com o pai dragão…
[88] Cf. “…a alma é, num determinado sentido, a totalidade dos seres”, cf. Aristóteles, Da Alma (De anima), introdução, tradução e notas por Carlos Humberto Gomes, edições 70, Lisboa 2001; cf. Aristóteles, Peri Psyché, 431b 20.
[89] O finito, a finitude nesse sentido não é privação, carência do infinito. É antes positividade do infinito encarnado como esta obra aqui concreta na perfilação optimal da sua vigência assumida.
[90] Portanto não é meta-física.
[91] mythos, – toar, soar
[92] Struturale Anthropologie.
[93] Se, porém, examinarmos a coisa chamada árvore, não é lá muito conveniente representar as raízes como fundamento-bloco do tronco e galhos; ou o chão para dentro do qual as raízes lançam seus tentáculos que sugam a seiva da terra como chapa, camada, fundamento-bloco.
[94] É dessa representação da substância como último núcleo fixo, firme, em si, imutável, abstraindo-se de todos os seus acidentes, que vem a imagem da coisa como um algo, um quê, um átomo.
[95] Por isso, segundo Heidegger obiectum para os medievais, i. é, para a ontologia substancialista é  o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar”, i. é, o que salta aos olhos.
[96] Estância = parousia.
[97] Coisa e causa é uma palavra só. Causa aqui não é entendida como causalidade de um efeito, mas como aquilo que perfaz o âmago de uma busca, o coração da ânsia de ser.
[98] Cf. o duplo sentido do representar, do vor-stellen em alemão, mencionado acima em 2.2.2.4.
[99] Inserir reelaborando alguns verbetes do glossário: ordenação do ser, ser, sentir, conhecer etc.
[100] Er-eignen = ur-äugen; er-eignis = Ur-äugnis. Cf. INWOOD, Michel.  Dicionário Heidegger, Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1944,  p. 2. O Sr. menciona no início da sua “auto-apresentação”: “O Heidegger-tardio realiza a conhecida “viragem”, segundo a qual, o Ser não é mais considerado fundamentado no Dasein, mas sim o Dasein no Ser”.  Não se poderia dizer que a sua tarefa de ampliar a descoberta do “Ser e Tempo” é um trabalho afim com uma “releitura” do “Ser e Tempo” a partir e dentro da expectativa do aceno do “Ereignis. Beiträge zur Philosophie”?
[101] Cf. em Zarathustra o portal da eternidade.
[102] Paul Klee (1879-1940, pintor alemão, nascido na Suíça, cujo nome está ligado, junto com o de Kandinsky e Gropius, à famosa escola de arte Bauhaus).
[103] Insistência sugere substância, i. é, o in se da escolástica medieval. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: hypokeímenon.
[104] Cf. nota 14.
[105] HEIDEGGER, Martin. Der Ursprung des Kunstwerkes. Mit einer Einführung von Hans-Georg Gadamer, Stuttgart: Philipp Reclam, 1960, p. 29-31
[106] Cf. Karajan: a primeira nota não é a primeira de uma série mas é também o salto do todo. Cf. o citado texto de Nietzsche.
[107] Aqui devemos fazer uma distinção…
[108] Encontro realizado na Drew-University, Madison, USA, de 9. a 11 de abril de 1964.
[109] Os nomes van Gogh e Heidegger não indicam o sujeito homem com esses nomes, mas as obras, portanto o constituir-se do mundo, em cujo ponto de salto se acha Dasein enquanto ser do sujeito homem de nome van Gogh e Heidegger. O sinal ñ indica a obra de van Gogh, assumida a partir e dentro da obra Heidegger.
[110] Verlässlichkeit.
[111] μετὰ τὰ φυσικά.
[112] Zeitbegriff.
[113] Cf. Metafísica geral e metafísicas especiais.
[114] Início como pré e início como primeiro passo da série.
[115] Âmago, núcleo.
[116] O que é suspeito.
[117]  Mistério em alemão se diz Ge-heimnis. Ge indica densidade, ajuntamento. Heim, o lar, o ser em casa.
[118] A redução de-cadente do artefato à entificação factual como sendo ele apenas uma coisa ali dada simplesmente, pressupõe que antes de algo estar ali simplesmente dado como fato, há toda uma presença viva de uma estruturação da manualidade, onde se acena uma dimensão mais profunda e subterrânea da existencialidade, lá onde ‘algo’ como realidade humana ou vida humana ou existência se torna possível.
[119] Poderíamos dizer em alemão das da-seiende.
[120] Kehre como também Überwindung (winden) não está acenando para o entorce para dentro e para fora de si no movimento de crescimento e retraimento espiral, qual movimento do globo ocular em si, dentro de si, no revirar-se na mira de uma piscada cintilante: mira contemplativa, i. é, theorética?
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