Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O que é a coisa ela mesma na fenomenologia?

05/02/2021

 

A fenomenologia, enquanto movimento filosófico, tornou-se conhecida através da palavra-chave: Zur Sache selbst[1]. À coisa ela mesma conota retorno, volta. E a todo o retorno, antecede um afastamento. Isto do que nos afastamos e ao qual a fenomenologia nos convoca ao retorno se chama a coisa ela mesma. E usualmente, à primeira vista, o movimento de retorno é simplesmente uma re-vira-volta de 180º, de tal sorte que a direção do retorno é dirigida para o ponto de partida, donde se vinha se afastando. Mas o que é, pois, a coisa ela mesma? De que coisa se trata, quando a coisa ela mesma é o ponto de partida, da qual nos afastamos e à qual somos convocados a retornar?

  1. Coisa e coisalidade

De imediato, no cotidiano, coisa é isto que está ali diante de mim, dado de antemão como objeto, à disposição da minha manipulação. Nessa manipulação, lidamos com uma porção de ‘coisas’[2]. A palavra coisa assim indica uma porção de coisas. Os termos afins ao termo coisa, que também indicam uma porção de ‘coisas’ são p.ex. ente, objeto, algo, o quê, em gíria troço, o trem etc. Quando dizemos uma porção de coisas queremos dizer uma infinidade de coisas. Coisa, portanto indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, cada quê, cada troço, cada trem, sem cessar, a todos, sem exceção. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação. E até o nada podemos chamar de coisa, enquanto ele é passível de ser nomeado como coisa: Assim dizemos: aquela coisa chamada nada não está com nada.

No entanto, todos esses termos, se os escutamos bem, parecem insinuar uma pequena nuance de diferença, embora digam todos a mesma coisa. Assim distinguimos coisa e coisa. Para nós, hoje, coisa usualmente é objeto. Podemos talvez a grosso modo e à primeira vista dizer que coisa, enquanto objeto, está, em diferentes níveis, referida ao projeto da produção do homem[3]. Objeto é a coisa produzida pela ação da indústria humana. Ao passo que coisa se usa de preferência ao objeto, indicando mais um fato da natureza virgem, ainda intacta da indústria humana. É, portanto, coisa da e produzida pela natureza. E quando queremos indicar tudo que é, seja no sentido do objeto como também no da coisa, sem distinção, se é produto do homem ou se é produto da natureza, usamos o termo inteiramente geral algo. A coisa-objeto e a coisa-coisa, a saber,  o fato natural, e a coisa-algo, o que é? Há algo anterior à coisa-objeto (produto do homem) e à coisa-coisa, ao fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas? Em alemão existem vários termos referidos ao que denominamos coisa, res em latim, referidos à realidade e suas realizações: por exemplo, etwas (algo), das Seiende (o ente), das Sein (o Ser),[4]der Gegenstand (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding (coisa) e die Sache (coisa).

O nosso interesse agora é de observar o seguinte: nós usualmente pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisa a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. Provisoriamente, chamemos esse modo de ser de coisalidade[5]. De que se trata, pois? Tentemos dizê-lo através de uma explicação. Com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação” contém sob a extensão do seu modo de ser-algo todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo Homem”. À coisalidade da classe “Coisa” pertencem primeiramente as “coisas produzidas pela Natureza, mas também os objetos produzidos pelo homem. Nessa última acepção, coisa exerce a mesma função de algo. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou inteiramente vazias de conteúdo ou concretos prenhes de possibilidades de conteúdo. Aliás, em português popular do Brasil, temos p. ex. troço, trem. Quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “abalado” pois nos soam tão concretos e vivos, de tal modo que se tem a sensação de se ter a coisa ela mesma diante da gente, e no entanto quando se pergunta de que se trata, nada dizem, a não ser um “algo” vago indeterminado, embora diferente do algo, pois é vago e indeterminado de modo todo e bem concreto. Isso em português.

Como acima mencionamos, em alemão, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Sem muita precisão nem certeza, possamos talvez dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisalidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo Homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de uma obra artesanal, feita à “mão”; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse como “a coisa ela mesma”. Sache possui a mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heróica, mito, indicando as “coisas” todo próprias, referidas à tradição antiga, primitiva e originária no início da História.

É necessário não esquecer que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que acima denominamos de coisalidade. São portanto cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não se é preciso a gente chamar esses termos de classificatórios. Isso porque classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo”, plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa, e no entanto não se iguala a ela. Por isso, aqui em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua coisalidade. Mas então, o que é Horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado podemos talvez dizer que Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm de encontro a nós, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa determinação de ser, cada vez diferenciada. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um tal horizonte. É o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicações”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicações, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber, como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicações de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa autoidentidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa perfilação única e singular do abismo insondável de ser.

De tudo isso que até agora, como que provisoriamente, refletimos da complexa acepção da palavra coisa, podemos talvez acentuar a observação de que o exame da coisalidade é de decidida importância para determinar melhor o que é coisa ela mesma. E que o exame da coisalidade, i. é, do caráter do ser da coisa, nele mesmo, está intimamente ligado com o exame da sua referência ao Homem, ao Homem a quem a coisa aparece ora como isso, ora como aquilo no modo de ser da sua presença como coisa. A coisa, enquanto aparece na sua coisalidade ao Homem, se chama fenômeno. Examinemos, também aqui ainda provisoriamente, o que é fenômeno e a sua fenomenalidade.


[1] “À coisa ela mesma”.
[2] Coisa em latim é res. Da res vem o termo português realidade. Em vez de realidade poderíamos dizer também coisalidade.
[3] A partir dali, agora num sentido muito mais lato e formal, objeto constitui o momento correlativo do sujeito no todo do esquema sujeito-objeto do modo de ser, cujo sentido se assinala como subjetividade ou o que no fundo é o mesmo objetividade.
[4] O ente (das Seiende) e o ser (das Sein) são termos que dizem tudo e nada, indicando a imensa, profunda e a mais criativa questão do sentido do ser. Assim sendo, pode indicar o significado, o mais abstrato e geral e, ao mesmo tempo, o mais concreto, singular, denso e universal de toda a realidade das realidades.
[5] Cf. Nota 2.
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