Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fragmentos de reflexões fenomenológicas IX

05/02/2021

 

  1. Surgiu uma questão acerca da essência da fenomenologia como ver simples e imediato, formulado numa objeção: se o que estamos dizendo é verdadeiro, então que utilidade tem todo esse empenho de estudar mil e mil aspectos da fenomenologia? A resposta que foi provisoriamente sugerida foi a de ser todo esse empenho uma espécie de trabalho preparatório de limpeza das nossas pré-ocupações para abrir espaço para o fenômeno poder aparecer. É como preciosa e saborosa sopa de tigre de Bengala. É muito simples fazer sopa. Problema é encontrar e pegar o tigre. E não fazer sopa de gatos pensando que é sopa de tigre.
  2. Uma das dificuldades que mais nos fazem sofrer para ver simples e imediato, corpo a corpo, é a bitola do “esquema sujeito – objeto” em que nos achamos instalados. A dificuldade principal dessa bitola consiste em pensarmos que já conhecemos de sobra esse esquema. Por isso, tentemos examinar melhor esse esquema, que não é esquema propriamente dito, mas antes o nosso modo de ser hoje.
  3. Estou aqui e agora, num determinado instante do tempo e do espaço, cercado de coisas em diferentes classificações, e isto, tanto dentro de mim como fora de mim. Essas classificações são, p. ex., coisas da realidade sensível, coisas da realidade supra-sensível; dentro da realidade sensível: coisa físico-material, coisa-vida-vegetal, coisa-vida-animal, coisa vida-humana e seus produtos; na realidade supra-sensível: coisas divinas, a saber, Deus, anjos, espíritos, espírito e alma humanos, suas faculdades e seus produtos; coisas da realidade fora de mim, coisas da realidade dentro de mim; coisas da realidade, em si, independente da minha mente, existente por e para si; coisas da realidade, produtos da minha mente, fantasias, imaginações, crenças e interpretações etc. As coisas da realidade que está dentro de mim, imanente a mim constituem o meu mundo subjetivo; as coisas da realidade que está fora de mim, a min transcendentes, formam o mundo objetivo. Naquela definição “tradicional” da verdade que diz adaequatio rei et intellectus, eu e o meu mundo subjetivo, portanto, o eu como sujeito e agente de meus atos é o intellectus, e tudo quanto fica fora de mim, as coisas da realidade em si, a mim transcendentes, são res.
  4. Assim colocado no mundo, no meio de inúmeras e variegadas coisas, eu me pergunto: como é possível que se dê a relação chamada conhecimento, entre eu sujeito, sua imanência (S) e as coisas ou os objetos (O) que me são transcendentes? Como é possível que algo de fora, que está numa dimensão diferente à do eu-sujeito, pode entrar em mim e me dar notícia de uma coisa que está fora de mim? Embora tal esquematização da relação S – O seja uma simplificação quase caricatural do que realmente sucede no ato de conhecimento, é interessante observar que fora-e-dentro aqui é determinado pelo nosso corpo. E se observamos com mais detalhes o que queremos dizer aqui com fora e dentro, ficamos perplexos. Pois o dentro, i. é, o sujeito onde está? Dentro do corpo? Mas dentro do corpo, onde? Dentro do fígado? Nas entranhas? No coração? Ou na ponta dos dedos da mão esquerda? Mas todos esses “dentros” mencionados não estão dentro, mas sim fora do sujeito e agente do ato de conhecer, pois eles são objetos desse ato do conhecer. E o próprio eu-sujeito e seus atos, todas as representações, fantasias, estados do humor do eu-sujeito, tudo que me é imanente, portanto, todas essas “coisas” fora e dentro do sujeito e o próprio sujeito, não são na “realidade” fora do sujeito-eu, enquanto objetos do meu conhecer? Isto quer dizer que tudo quanto assim vem ao meu encontro, inclusive eu mesmo, é no fundo produto da objetivação. E o sujeito-eu ele mesmo enquanto sujeito não é nenhuma coisa, objetada, contra-posta como coisa ou objeto, mas o que é? Isto significa por sua vez que o sujeito e o objeto assim contrapostos no esquema S – O são objetos de objetivação realizada por quem? Esse quem é o ato, que não deve ser representado como uma ação ou atuação de uma coisa chamada eu-sujeito, mas como dinâmica do processo a qual Brentano chama de fenômeno psíquico, Husserl chama de vivência (Erlebnis), a qual, segundo Husserl, formulada em termos de um Descartes se chama cogitatio, ou cogitans sum ou, mais explicitamente, ego cogito cogitatum.

Captar essa dinâmica do processo, essa estruturação atuante, a vivência, o fenômeno psíquico nele mesmo, e não o enquadrar na bitola da compreensão usual do esquema estático S – O causa sempre grande dificuldade. Ao des-cobrir no fenômeno psíquico de Brentano a intencionalidade, no sentido fenomenológico, Husserl empreende uma tentativa exatamente contrária à nossa, a saber, reconduzir o esquema fossilizado S-O à dinâmica do Erlebnis, do cogitans-sum.

No quadro da compreensão usual estática do S-O, tanto sujeito como objeto, embora diferentes no seu ser, são coisas, objetos, ocorrentes em si, independentes no seu existir um do outro, ligados por ato de conhecer, cujo sujeito e agente é a coisa-sujeito, e cujo ser não tem o modo de ser da coisa em si (substância), mas da “coisa” no outro (acidente). Assim colocados, o sujeito e o objeto, na sua ligação no ato de conhecimento verdadeiro, portanto nesse ato duplicado em polo-objeto e em polo-sujeito, não é outra coisa do que a reprodução da definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus.

Essa fórmula latina da verdade é medieval e está formulada de tal modo que oculta duas definições: adequatio rei ad Intellectum divinum (adequação da coisa ao intelecto divino) e adaequatio intellectus (humani) ad rem (adequação do intelecto humano à coisa). No fundo dessa dupla formulação acoplada está a doutrina da criação: as coisas do universo, as criaturas, no seu ser, são feitas na adequação com o intelecto divino, que as concebeu e as trouxe à existência; por isso, o intelecto humano, ao abrir-se às obras do intelecto divino, às criaturas, na medida em que capta a sua essência, é iluminado, e pode assumir a viagem do retorno à fonte de todas as coisas, num intinerarium mentis in Deum (viagem da mente para dentro de Deus).

Para nós, hoje, o fundo dessa definição duplicada se retrai, por ser ele de origem teológica, e nos resta apenas a compreensão da definição, enquanto adaequatio rei et intellectus humani, na qual intellectus significa sujeito e res objeto, mas agora, de novo duplamente, num sentido bem diferente ao da definição medieval, a saber: adaequatio intellectus ad rem (conformidade do sujeito ao objeto) e adequatio rei ad intellectum (conformidade do objeto ao sujeito). Daqui, na manualística de certos sistemas de ensino da filosofia, surge o esquema S – O do assim chamado realismo (objetivismo) e idealismo (subjetivismo). Caricaturando numa simplificação máxima: no realismo o que se dá de antemão são coisas em si, diante e ao redor de mim; eu-sujeito com os seus atos, p. ex., no ato do conhecer, é qual chapa fotográfica que reproduz em imagens, representações e idéias a realidade de lá fora, dos entes do mundo circundante, pré-jacente. O critério da verdade e de sua certeza é a objetividade. No “idealismo” ou no subjetivismo, se dá o contrário: a cerca do que e como seja a realidade fora de mim, ou se realmente há uma realidade em si, a mim transcendente, não posso ter nenhuma certeza; pois o que se dá de imediato e primariamente é o eu-sujeito e seus pro-ductos imanentes. E se, mesmo que, como diz o realismo, haja a realidade em si, dele posso ter notícia através do eu-sujeito e das suas faculdades de captação, a saber, dos sentidos, do entendimento e da razão, imanentes em mim. Essa descrição do realismo e do idealismo, na teoria do conhecimento em certos manuais de filosofia, é sem dúvida, uma caricatura. Nenhuma teoria de conhecimento que leva a sério a sua busca ensina tal doutrina. No entanto, esse modo da compreensão “ingênua” da adaequatio rei et intellectus pode infestar a nossa mente, na vida, no uso e mesmo nas ciências, quando queremos sem pensar muito explicar a realidade, em nós e “fora” de nós. A esse modo de entender, tanto do realismo como do idealismo, tanto do objetivismo como do subjetivismo, Husserl caracteriza como impostação natural, virada às coisas, alienada do problema da possibilidade do conhecimento[1]. Aqui, tanto o realismo como o “idealismo” opera na ingenuidade de um “realismo” deficiente, que não despertou para a questão da possibilidade do conhecimento. Com outras palavras, na impostação do conhecer está fixa, presa na obviedade dogmatizada e opaca da condição da possibilidade do conhecimento. Entende a possibilidade do conhecimento dentro da estrutura estática S-O, sem jamais sequer desconfiar que aqui há um problema de fundo, a partir e dentro do qual se dá tanto o sujeito como o objeto e sua interrelacão como adequação, problema de fundo que coloca em questão, em busca, o sentido do ser do sujeito e o sentido do ser do objeto, na sua diferença ontológica. Possibilidade do conhecimento, portanto, alienada da compreensão do que seja o ser do conhecimento.

A questão do sentido do ser do conhecimento, num certo nível bem iniciante da compreensão do que seja intencionalidade, aparece como contensão do e tensão ao objeto. Assim diz Brentano, como já foi mencionado antes: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Essa contensão do e tensão ao objeto é usualmente entendida de modo banal: eu daqui, em meus variegados atos psíquicos, dirijo-me ao objeto ali presente diante ou ao redor de mim, como ao fim, e assim os meus atos contêm em si algo do objeto. Nessa tendência o objeto está diante de mim e me vem ao encontro em dupla distinção: ora como objeto em si, existente nele mesmo, ora como referido a mim, enquanto algo contido nos meus atos. Surgem assim os conteúdos objetivos e o objeto em si. O objeto em si não pode ser captado direta e imediatamente. Ele é de alguma forma apreensível através dos conteúdos objetivos contidos nos meus atos, a modo de aproximação paulatina num movimento assintótico. Nesse sentido, o objeto em si está também contido nos meus atos, enquanto função unitiva dos diversos conteúdos objetivos dos meus atos em referência à realidade do objeto em si. E por assim dizer na ponta da tensão indicativa do em si, enquanto função unitiva dos conteúdos objetivos imanentes nos meus atos, o objeto em si aparece com um ponto x em fuga para cada vez mais além do que se me apresenta como mostração dele. E ao mesmo tempo em que se dá esse movimento da “adentração” em direção ao em si x em fuga, os objetos enquanto conteúdos na contenção e tensão dos atos se estruturam em variegadas constelações de objetos multímodos, constituindo multifários uni-versos, mundos, regiões, sub-regiões, setores, áreas, campos, classificações dos entes, denominados por Husserl de noema. E o(s) sujeito(s)-eu e seus atos, enquanto também objeto da intencionalidade, i. é, da contenção e tensão do ato de conhecer, amar, julgar etc., se estrutura como uni-verso, mundo, região etc., todo próprio, o qual poderíamos chamar de mundo da subjetividade, ao lado do mundo da objetividade, perfazendo a grande divisão dos entes em mundo do ente humano e mundo do ente-não humano, a partir de cuja divisão, podem surgir binômios como homem e mundo, cultura e natureza, história e natureza etc., divisão que aparece p. ex. na classificação das ciências enquanto ciências humanas e ciências naturais[2].

Aqui surge um problema. Como captar o sujeito e seus atos enquanto sujeito e não enquanto objeto? O conjunto dos conteúdos referidos ao sujeito-homem e seus atos enquanto “objeto” da contensão e tensão do ato de conhecer o homem e o seu mundo são também noema? Ali também surge um ponto x assintótico, que une a série de dados acerca do sujeito e seus atos numa unidade? Há aqui uma diferença na objetividade, na objetivação, diferença que surge na medida em que de um lado temos o sujeito-homem e seus atos por objeto, portanto como objetos imanentes, e o objeto-não-humano e suas características por objeto, portanto objetos transcendentes? A essa altura da reflexão é útil observar que aqui, os termos “sujeito” e “seus atos”, recebem uma dupla significação. Uma vez significam sujeito e seus atos enquanto objeto; e sujeito e seus atos enquanto sujeito do ato que tem o sujeito e seus atos como objeto. Em Husserl, este recebe o nome de subjetividade transcendental. Aquele, sujeito empírico. Conforme o que foi dito II. Anotação, quando se falou da descoberta da intencionalidade, através do texto de Brentano no livro Psicologia sob o ponto de vista empírico em todo o fenômeno psíquico (leia-se intencionalidade ou ato) se dá como momentos do próprio ato dois momentos quais bipolaridade do mesmo ato, o polo objeto e o polo sujeito. Essa bipolaridade, na impostação natural cotidiana, aparece como duas coisas ou dois objetos separados, ligados pelo ato no esquema estática S – O na colocação do que acima denominamos de realismo deficiente. Nesse esquema o sujeito aparece como sujeito empírico e a ele corresponde o objeto empírico. Mas o que perfaz a condição da possibilidade para que se dê a realidade como esquema estático S – O, portanto a condição da possibilidade do sujeito e objeto empíricos, é o que acima denominamos de Subjetividade transcendental. Haveria aqui digamos no nível transcendental um correlato à subjetividade, uma objetividade transcendental? O que “realmente” quer dizer noesis em Husserl, quando a coloca como correlativa a noema? Tudo isso se dá somente no nível do empírico, ou se dá também no nível transcendental? Haveria noema transcendental e noesis transcendental? Que coisa é essa a subjetividade transcendental? A subjetividade transcendental de Husserl tem, ela, algo a ver com o que na fenomenologia denominamos com o termo a aberta, das Offene?

De tudo que até agora foi exposto, é importante observar que no subjetivismo empírico, tanto o sujeito como o seu objeto são objetivações bipolares da subjetividade transcendental. E no todo dessa implicância entre a subjetividade empírica e a subjetividade transcendental, o subjetivismo empírico é o ente no todo, o mundo e a subjetividade transcendental no seu caráter de transcendentalidade é o ser do ente. Com outras palavras, o ente no todo, o mundo, reconduzido ao seu modo de ser nele mesmo, imediato e originário na intencionalidade é o fenômeno, o que se mostra nele mesmo, a partir de si; e a subjetividade transcendental, ou melhor, o ser enquanto reconduzido ao seu modo de ser nele mesmo como transcendental é o que na intencionalidade foi chamado de ver simples e imediato. Com isso, o ver simples e imediato não possui mais o caráter do ente, ou melhor, enquanto ente é nada, pois o ente no todo é o mundo enquanto fenômeno, a saber, o que se mostra ele mesmo, a partir de si, de tal modo que aqui a relação entre a subjetividade empírica e a subjetividade transcendental se revela como o Da-sein/ser-no-mundo, i. é, coincidência da mostração nela mesma e ver simples e imediato. É o que Heidegger na preleção acerca do conceito do tempo sugere, caracterizando a intencionalidade, i. é, o ver simples e imediato como a demora junto do ente.


[1] Cf. Husserliana, II, Die Idee der Phänomenologie, p. 3.
[2] Antigamente, pela influência do uso da terminologia alemã, em vez de ciências humanas, se dizia ciências do espírito e em vez de ciências naturais, ciências da natureza.
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