Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Vida Fraterna dentro da vida Comunitária

05/03/2021

 

  1. Vida Fraterna dentro da vida comunitária é o assunto, o tema de nossas reflexões.
  2. O importante na reflexão é criar antes de tudo uma disposição para o assunto acerca do qual queremos refletir.

Por isso, antes de começar nossas reflexões, vamos examinar bem nossa própria atitude diante desse tema que soa: Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária.

Você que é convidado a refletir acerca da Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária, que atitude você tem diante desse assunto?

Diga a você mesmo o que lhe evoca este tema e observe com atenção a sua própria reação, os pensamentos, as objeções que surgem dentro de você.

Por exemplo; talvez eu me surpreenda monologando comigo mesmo:

– Basta de falatório sobre Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária. Toda essa fala nada consegue mudar.

– Refletir, reflexões! O que adianta a reflexão? O que se faz mister hoje é a prática, a vivência. Já se refletiu mais sobre esses assuntos. Esta é a hora de viver a Vida Fraterna e a Vida Comunitária.

Vida Fraterna, Vida Comunitária. Belas palavras. Belas idéias. Mas estou cansada/o de tudo isso. Nos afazeres de todos os dias, as decepções me mostram que nada disso é realizável.

A minha vida é rotina mecânica de trabalhos. Estou vazia/o. Não tenho gosto nem coragem de refletir sobre esses temas.

– Não tenho nenhuma dificuldade na Vida Fraterna e nem na Vida Comunitária. Não preciso refletir. Está tudo bem comigo. Etc, etc…

Experimente, pois, deixar espontaneamente dentro de você os sentimentos que ali estão diante do nosso tema: Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária.

  1. Mas, para que tudo isso?

Para me dispor à reflexão.

Dispor-me significa: pôr-se distanciado de minhas preocupações e abrir em mim mesmo um espaço, onde possa respirar melhor a Vida.

Por exemplo; se amanhã eu vou ser operado e estou preocupado, nada mais cabe dentro de mim a não ser preocupação. O medo da operação toma conta de mim e eu não tenho disposição por exemplo, para dar aulas ou ouvir conferências.

Na nossa vida religiosa, os afazeres, as dificuldades, os preconceitos, os ressentimentos, os desejos etc., podem nos ocupar tanto que não nos dão mais lugar para uma dimensão, onde possamos pensar em profundidade as realidades da Vida que estão por assim dizer, além das nossas preocupações.

  1. O que fazer, pois, para dispor-me, para dar mais espaço dentro de mim, para que eu possa refletir e respirar melhor a Vida?

A primeira coisa a fazer é colocar-me diante do tema proposto e examinar a mim mesmo, se o meu coração e minha mente já não estão ocupados de antemão com preconceitos, prevenções, etc., etc., contra o tema.

Fazer bem e calmamente esse trabalho do levantamento das minhas preocupações, pois um preconceito, uma prevenção que é reconhecida como tal já me faz distanciar de mim mesmo e abrir-me para a reflexão.

  1. Depois de fazer esse trabalho de levantamento das minhas preocupações, procurar tomar o tema e tentar me familiarizar com ele e tentar gostar. E como preparação para a seguinte reflexão, experimente você mesmo examinar bem o que você entende por: Vida Fraterna e Vida Comunitária.

E perguntar-se:

Como vivo a vida fraterna diante de mim, diante de Deus e dos outros? E a Vida Comunitária?

E com calma e sem pressa, vamos começar a perguntar e refletir : O que é vida fraterna?

O que é vida comunitária? Como se relacionam entre si?

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (II)

  1. Antes de perguntar como fazer e o que fazer para viver e praticar a vida fraterna dentro da vida comunitária, queremos buscar na reflexão o que é a Vida Fraterna e o que é a Vida Comunitária e como elas se relacionam entre si.
  2. A reflexão, portanto, não pode me dizer como e o que fazer para viver e praticar a Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária. Ela apenas me leva a perguntar e a ver com mais calma, com mais serenidade: o que é a Vida Fraterna e o que é a Vida Comunitária.

Nas coisas fundamentais da vida, perguntar e ver é uma atividade altamente prática e importante. É porque não nos damos o tempo suficiente para perguntar bem e ver serenamente as coisas, que as nossas ações e reformas não vingam realmente. O perguntar e o ver da reflexão nada muda imediatamente. Com o tempo, porém, ela pode mudar as coisas radicalmente. Por exemplo, digamos que alguém concebe a oração como um meio seguro de adquirir os bens materiais. Prática e oração, faz a reza para ganhar o que deseja, i.é., os bens materiais, de Deus. Não se dá o tempo para perguntar e ver o que é a oração. Não e dá o tempo, porque pensa saber o que é a oração. E diz consigo mesmo: o importante é fazer, praticar a oração. Quando a ação, a prática da oração não dá resultado, busca reformas em técnicas de fazer oração, mas jamais questiona a própria concepção que tem acerca da oração. Não se reflete, não pergunta, não vê bem o que é a oração. Se assim continuar, jamais transformará radicalmente o modo de ser diante da oração. A sua prática, o seu fazer parece muito concreto e imediato, mas na realidade, diante do fato da Vida chamada Oração, é abstrato, imprático e superficial.

  1. Portanto, na nossa reflexão deixemos de lado a precipitação em perguntar como fazer, o que fazer, para perguntar bem e ver bem o que é a Oração, a Vida Fraterna e a Vida Comunitária.

Como ponto de partida, provisoriamente vamos fixar os termos, perguntando: o que entendemos usualmente por Oração, Vida Fraterna e Vida Comunitária, quando lemos sem muito pensar o título. “Oração e Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária”.

  1. Na nossa compreensão usual e superficial, a vida comunitária é a vida cotidiana de uma Comunidade.

Comunidade se entende aqui o grupo de irmãs/ãos que moram e trabalham juntas/os, porque pertencem a um grande grupo social, à instituição chamada: Congregação Religiosa ou ordem. Comunidade aqui, portanto, considerada como o grupo social chamado Congregação Religiosa, é o campo definido, concreto, dentro do qual cada um de nós vivemos o cotidiano. Dentro desse campo definido, fazemos uma porção de coisas.

Uma coisa que fazemos dentro desse campo definido da Comunidade local, ou provincial é a vida fraterna.

Essa definição é provisória e superficial, mas já serve como um ponto de partida para a reflexão. A definição considera a vida comunitária e o que fazemos nela, a saber, a vida fraterna, por assim dizer, de fora, sob o ponto de vista da instituição. Em vez de instituição, também usamos hoje a palavra estrutura.

  1. Hoje, não gostamos da palavra instituição ou estrutura. Questionamos as estruturas institucionalizadas da Comunidade Religiosa.

Mas usualmente, o que fazemos, quando questionamos a estrutura ou a instituição? Colocamos a validade de uma determinada estrutura ou instituição, de suas normas e hábitos em dúvida. Por quê? Porque achamos que uma determinada estrutura não é mais adequada, útil e eficiente para realizar e alcançar seu fim.

Mas, se questionamos uma estrutura, se nos colocamos contra ela, é porque queremos uma outra estrutura melhor. E admitimos que não podemos viver em grupo sem um mínimo de estrutura. Admitimos, que se queremos viver num grupo social chamado Congregação, é necessário aceitar uma certa estrutura. E dizemos: a existência da estrutura, da instituição como tal não está em questão. O que se discute é como criar uma Comunidade, cuja estrutura seja boa e adequada.

  1. Tudo isso são banalidades que todos nós sabemos. No entanto, é nas banalidades que às vezes se ocultam os problemas fundamentais.

A Comunidade como estrutura, como instituição! O que é isto?

A Comunidade Religiosa é um grupo de pessoas que observam uma determinada regra de vida, segue um determinado costumeiro, uma tradição, possuem um objetivo comum, se determinam como funções de um todo social em direitos e deveres, em comandos e execuções etc.

Como organização estruturada, a Comunidade já existe de antemão, está ali diante de mim. Não estou obrigado a entrar na organização. Mas se ingresso nela, se uma vez me decido a escolher essa organização como o lugar do crescimento e busca da minha identidade, então me decido a aceitar as regras do jogo da organização.

Mas, aceitar as regras do jogo da organização é aceitar a estrutura como ela ali está, abdicando do questionamento, da minha personalidade e da responsabilidade? É submeter-me cegamente à organização?

Diante de uma pergunta primária respondemos: certamente que não! E dizemos: “A Comunidade Religiosa é uma fraternidade. Ela não é uma firma, não é uma empresa, não é um clube esportivo. Certamente a estrutura, as normas, a distribuição de funções, as regras do jogo são necessárias. Mas tudo isso está a serviço da vida fraterna, da fraternidade. E na fraternidade é fundamental eu assumir a organização como um membro co-responsável da Comunidade. Portanto, como membro livre da organização, da Comunidade Religiosa, tenho o direito e o dever da tomar parte na formação, conservação, na transformação, na melhoria da sua estrutura a co–responsabilidade.

  1. Isto significa: a Comunidade Religiosa é uma estrutura, é uma instituição. Mas como é uma organização, cujos membros a assumem livremente na co-responsabilidade, como sua própria causa pessoal.
  2. E aqui começam a surgir problemas! É que hoje, nós religiosos, falamos com ênfase, quase praticamente, da co-responsabilidade, do assumir livremente, da causa pessoal, etc.

O problema, no entanto, não é de falar, não é de estar conscientizando, mas sim de ser. De ser livre verdadeiramente, de ser co-responsáveis, de ter o vigor sóbrio da maturidade pessoal, de possuir uma compreensão clarividente, experimentada e trabalhada do que é ser co- responsável, ser livre, ser pessoal, do direito e principalmente do dever.

Em todos esses pontos fundamentais para a compreensão do que seja vida comunitária Religiosa parece reinar entre nós muita confusão. Confunde-se o pessoal com o individual, o comunitário com a opinião pública de indivíduos sem muita maturidade mental, ajuntados numa vaga ideologia, sem muita reflexão; confunde-se a liberdade com a ausência da imposição, com a possibilidade de se fazer o que se deseja: confunde-se a co- responsabilidade com a exigência de ser em tudo consultado, sem porém, assumir o dever de colaborar e de se sacrificar pela causa em questão, etc., etc.

Para que a Comunidade Religiosa se torne de fato uma estrutura realmente livre e co-responsável, é necessário cada um de nós tornar-se co-responsável na responsabilidade real, bem pensada, bem madura, livre de confusões e equívocos que brotam da imaturidade, do egoísmo, da medida do nosso pequeno eu.

Falar demais de co-responsabilidade, fazer muito barulho com o slogan da co- responsabilidade, da participação pessoal na organização da Comunidade, dos direitos, dos deveres, das mudanças da estrutura etc. etc., sem o trabalho árduo, lento, tenaz e bem experimentado no crescimento pessoal da identidade, na maturidade pessoal, é o caminho mais curto para frustrar toda e qualquer tentativa séria e real de constituir e renovar uma Comunidade Religiosa.

Pertence essencialmente à nossa co-responsabilidade de religiosos a vontade e a decisão de tentar constituir e melhorar a nossa Comunidade Religiosa. No entanto, a melhoria, o melhorar, pressupõe que sejamos capazes de acertar com o que é verdadeiramente melhor. Se o melhor não passa de um desejo do meu pequeno eu, a tentativa de melhorar a vida comunitária não passa de capricho do meu desejo pessoal e a melhoria jamais terá consistência e Comunidade.

No entanto, para compreender o que é melhor, o que é bom, é necessário que o nosso eu esteja aberto com muita clarividência ao fundamental, ao essencial da Vida Religiosa. É necessário estarmos claros, decididos e não confusos e vagos naquilo que devemos querer como religiosos.

Para alcançar essa clarividência é necessário o trabalho da reflexão. E o primeiro passo desse trabalho é refletir com paciência sobre frases feitas e conceitos fixos na nossa compreensão sobre o que é Comunidade Religiosa, para ver melhor e eliminar confusões que provêm da falta de uma decisão clara e bem pensada diante daquilo que constitui a essência do religioso na Comunidade Religiosa.

A seguir, vamos aos poucos questionando algumas dessas nossas compreensões já fixas, para nos dispormos a acolher o que é a vida comunitária, a Comunidade no sentido da nossa vida Religiosa.

Talvez, no fundo, a pergunta pela vida comunitária seja a mesma que a pergunta pela vida fraterna.

Perguntas:

Você vive a vida que a sua Comunidade local vive, dentro das normas da Comunidade provincial, que por sua vez, está integrada na grande Comunidade da Congregação. Você vive ali contente ou descontente, animado ou desanimado, com esperança ou decepcionado, integrado ou revoltado etc. Você, no entanto, já se perguntou seriamente, porque e para que assumir a vida Religiosa e porque e para que se fez e se faz religioso?

– O que você busca fundamentalmente como religioso?

– O que lhe interessa de fato ao ser religioso?

– Você como religioso é co- responsável para quê?

– O que você quer de fato diante de si e diante de Deus, sendo religioso?

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (III)

  1. Dissemos na reflexão: a Comunidade religiosa é uma estrutura, uma instituição. Mas o é como uma organização, cujos membros a assumem livremente na co–responsabilidade, como a sua própria causa pessoal.
  2. Co-responsabilidade: Co-responsável por e para quê? A quem? Diante de quem?

Antigamente perguntávamos: “obedecer por e para quê? A quem? Diante de quem?”

Hoje perguntamos a mesma coisa, quando perguntamos: co-responsabilidade por e para quê? A quem? Diante de quem?

  1. No entanto, será que de fato perguntamos, hoje?

Não é assim que quando se fala de co-responsabilidade, todo mundo já sabe de antemão: somos co- responsáveis por e para a Comunidade, a nós mesmos, aos irmãos e diante de Deus?

Uma tal compreensão da co-responsabilidade, no entanto, é ainda muito abstrata, geral e indeterminada. Pois, os membros de um clube de futebol, de uma firma, se tomarem a sério o seu ofício, podem dizer a mesma coisa.

Para a compreensão da nossa co-responsabilidade se tornar mais individualizada e concreta e determinada é necessário compreender melhor o que nos une a formar uma Comunidade Religiosa: o que a Comunidade Religiosa quer, quando nos convida a sermos co-responsáveis: portanto, co-responsáveis por e para quê?

  1. O que aconteceu com a nossa pergunta que dizia antes: o que é a Comunidade Religiosa?

Ela se transformou numa outra pergunta mais fundamental que diz agora: em que consiste a essência da Vida Religiosa que constitui o elo de união que nos congrega numa Comunidade? Numa Congregação?

Com outras palavras: ao nos congregarmos numa Comunidade, na Comunidade local, provincial ou congregacional, somos co-responsáveis por e para aquilo que constitui o fundamental da Vida Religiosa. Pois toda e qualquer Comunidade religiosa está a serviço do fundamental da Vida Religiosa.

Assim, o que é a vida comunitária, o que é a Comunidade só pode tornar-se claro e determinado, na medida em que temos clara a determinação do que é o fundamental da Vida Religiosa.

  1. O nosso tema é Vida Fraterna dentro da Vida Comunitária.

Na Vida fraterna tentamos viver como irmãos. A oração, principalmente a oração comunitária,  é a expressão dessa união fraternal diante dos irmãos e de Deus.

Para viver como irmãos, devemos ter o mesmo sangue. Somos irmãos, isto é, temos o mesmo sangue comum, se nascemos dos mesmos pais.

O sangue que nos une como irmãos e nos congrega numa nova família é o vigor, a força, a essência da Vida Religiosa, isto é, o fundamental da Vida Religiosa. É o nascimento que nos dá o mesmo sangue e os mesmos pais, é o nascimento em Jesus Cristo.

Enquanto não sentirmos em nós a força desse sangue, enquanto não colocarmos como o apelo de união a Comunidade desse sangue, ficaremos confusos e indeterminados nos nossos contínuos apelos para a co-responsabilidade comunitária.

  1. Portanto, repetindo: antes de tudo, como a condição sem a qual nada progride, devemos buscar compreender sempre mais o que é isto: o fundamental da Vida Religiosa. Essa busca se chama também a busca ou a questão da identidade.
  2. Há muitas coisas na Vida Comunitária que podem ser resolvidas com imposições, com combinações, com conversas, com bom senso, com técnicas de animação comunitária. Há muitas renovações do espírito comunitário por meio de cursos, movimentos espirituais, retiros, etc., que podem inflamar grupos de pessoas para uma vida comunitária mais intensa, conforme a concebem esses movimentos.

No entanto, em toda e qualquer tentativa de renovação, em todo e qualquer movimento de renovação, de uma coisa jamais seremos dispensados, se quisermos uma renovação profunda e uma transformação duradoura: da contínua busca do fundamental da Vida Religiosa. E essa busca só se dá no dia a dia, na tenacidade e na paciência de um trabalho e da auto-responsabilidade pessoal de cada um de nós, diante de si e diante de Deus. Se descuidarmos esse ponto nevrálgico, se não trabalharmos constante e tenazmente nesse ponto, nenhuma renovação, por mais eufórica que seja no momento, nos transformará realmente.

  1. A busca da identidade, a busca do fundamental da Vida Religiosa, isto é, daquilo que nos une na Comunidade religiosa, pode se dar de diversas maneiras, conforme a situação, época, lugar. Nenhuma dessas maneiras de buscar tem de antemão o privilégio de ser melhor do que a outra. Ela é boa, se de fato nos leva a crescer na identidade e compreender mais profundamente o fundamental da Vida Religiosa.

No nível da profundidade na busca da identidade fundamental do nosso ser-religioso não há “nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos somos um em Jesus Cristo” (Gl 3,28), se na medida que buscamos o fundamental da Vida Religiosa cristã. O que nos une é, portanto, a busca, o crescimento na busca, o trabalho da busca dessa nossa identidade. Não é o fato de ter uma teologia nova ou antiga, não é o fato de e ser atualizado ou antiquado, não o fato de e ter estudo ou não ter, não é o fato de e ter esse ou aquele trabalho ou cargo, não é o fato de e pertencer a esse ou aquele movimento renovador, não é o fato de ser “social” ou “caseiro” que me garante a compreensão do fundamental da Vida Religiosa. Mas sim a seriedade, a responsabilidade pessoal, a intensidade do trabalho na busca da identidade, naquele lugar, naquela situação, naquela história em que me acho, agora, aqui, concretamente.

O que constitui, portanto, a garantia da Comunidade e a sua união, deveria ser fundamentalmente essa busca da identidade. A obrigação, o apelo, a tarefa dessa busca é sempre válida e necessária. Ela não é nem moderna nem antiga; era, é e será sempre, sempre do novo, pois, ela é o vigor sempre antigo e sempre novo do renascimento em Espírito.

  1. A palavra Comunidade nos diz que nós, os comunitários, temos algo em comum. O que é isto que temos em comum, nós que nos congregamos numa Comunidade religiosa?

Temos em comum a busca do fundamental da Vida Religiosa.

  1. No entanto, a busca do fundamental não a pode ter como temos por exemplo um gravador, um quarto, um automóvel, uma rede em comum. Pois a busca do fundamental não é um objeto de uso, existente como uma coisa diante de mim.

Por isso, quando dizemos que na Comunidade religiosa temos a busca fundamental em comum, não dizemos no sentido de uso comum.

A busca do fundamental pertence a cada um de nós como uma tarefa toda pessoal. A busca é a realidade, a mais pessoal e inalienável de nós mesmos. É a realidade mais singular de nós mesmos. É como a maturidade humana pessoal. A maturidade humana pessoal é o que constitui o âmago, o coração de cada pessoa singular. A maturidade pessoal nós jamais a podemos ter em comum como temos por exemplo um quarto em comum. Por que não? Porque tanto a maturidade como a busca do fundamental da Vida Religiosa é uma experiência profunda, uma convicção que deve ser conquistada pessoalmente no processo, no crescimento lento da história singular de cada um de nós. A busca do fundamental da Vida Religiosa é, pois, a nossa própria vida pessoal na sua profundidade fundamental.

No entanto, como no caso da maturidade humana pessoal, quanto mais uma pessoa é madura como pessoa singular, quanto mais ela cresce na sua maturidade pessoal, tanto mais é capaz de relacionar-se com os outros, isto é, de ser e viver na Comunidade, assim também, quanto mais crescermos na busca do fundamental da Vida Religiosa, tanto mais crescem em nós a compreensão e a acolhida para aquilo que une e faz a Comunidade Religiosa.

  1. Mas, então, que sentido tem em dizer que a busca do fundamental da Vida Religiosa é o que temos em comum, na Comunidade?

A palavra Comunidade vem do adjetivo comum. Comunidade é aquilo, cujo modo de ser é comum.

O que é comum? A palavra comum vem do latim: communis. Communis é uma palavra composta de com e munis. Com ou cum significa: com, junto com, um ao lado do outro, unido, junto. Munis significa: disposto a, pronto, preparado para o serviço. O adjetivo munis vem do substantivo munus, eris, que significa: tarefa, trabalho, cargo, serviço, campo de ação, mas também, contribuição, donativo, oferta sacrificial, presente, o que duas pessoas trocam mutuamente como o sinal de uma profunda amizade, etc.

O munus é, portanto, o melhor de nós mesmos, o que de mais caro, precioso, o qual conquistamos no trabalho, na ação de toda a nossa dedicação, no suor do nosso serviço, no cargo do nosso ofício: o peso da nossa identidade, o qual apresentamos ao outro como um presente, como uma oferta de uma troca mútua da amizade profunda. Estar juntos, estar unidos nessa troca mútua do melhor de nós mesmos, da maturidade e do crescimento, da autoridade da identidade pessoal é ser co-mum.

  1. Dissemos acima: a busca do fundamental da Vida Religiosa, em última instância, é da responsabilidade pessoal de cada um de nós. E é na medida da seriedade, da intensidade e do crescimento nessa busca que nos tornamos mais e mais comunitários.

Dissemos também que a maneira como buscamos o fundamental da Vida Religiosa depende de cada situação e de cada história.

Significaria tudo isso que na Comunidade Religiosa como instituição não pode haver exigência, estrutura, dever e direito comum? Que cada qual para e por si vai o seu caminho da busca? Que não há, portanto, nenhuma medida, nenhum critério para a busca? Que uma tal busca não admite normas, estruturas, imposições?

  1. Se bem tivermos entendido a reflexão, principalmente o sentido originário da palavra Comunidade, comum, veremos que jamais podemos apelar à singularidade pessoal da experiência de busca como a um argumento contra as obrigações, normas, imposições, contra os deveres que orientam e mantêm uma instituição Religiosa. Pois, a exigência e a tarefa de buscar o fundamental da Vida Religiosa não estão contra, opostas às normas de uma instituição, a favor de uma espontaneidade individualista, livre de toda e qualquer encarnação numa situação social.

A tarefa pessoal de buscar o fundamental da Vida Religiosa não é, pois, exclusiva. O que significa isso?

Significa o seguinte: a tarefa da busca da identidade, do fundamental da Vida Religiosa é válida, é exigida, quer haja normas, quer não haja. Se estamos numa Comunidade, onde há uma estrutura com suas determinadas leis e normas, buscaremos o fundamental da Vida Religiosa, em vivendo essa estrutura, essas normas, como o lugar onde devemos buscar o tesouro precioso da identidade. Onde não há normas, onde podemos estruturar a vida cotidiana como gostamos, também aqui devemos buscar o fundamental da Vida Religiosa. Por exemplo numa Comunidade, onde o trabalho está a serviço de uma obra que exige de todos que ali trabalham, que tenham muita pontualidade, disciplina, que cada qual esteja no seu posto com muita competência e dedicação, haverá normas bem determinadas, sem as quais o trabalho não funciona. A tarefa de buscar o fundamental da Vida Religiosa numa tal situação seria: guardar a pontualidade, estar no seu posto com grande disciplina. Mas, em fazendo tudo isso, buscar sempre de novo o sentido profundo e grande de uma tal observância, por exemplo de se exercitar em assumir tais normas com um coração cada vez mais jovial e livre, na tentativa de fazer crescer o coração na medida da cordialidade do Deus de Jesus Cristo. Para isso, a pessoa que assim busca o fundamental no seu trabalho, na observância das normas, deve lutar continuamente contra uma porção de tendências do egoísmo, para se dispor dessa maneira ao profundo do seu serviço. Quando estou fora do trabalho, por exemplo, nas férias, certamente não precisarei ser pontual, estar no meu posto, pois estou fazendo férias. No entanto, não estou dispensado da busca da disciplina interior, da prontidão alegre e pessoal nos acontecimentos da minha vida, pois a minha tarefa é, seja sob as normas, seja livre das normas, buscar sempre mais o fundamental da Vida Religiosa. Quem busca seriamente o fundamental da Vida Religiosa, busca-a fora das normas, mas busca-a também nas normas, pois nada exclui da sua busca, mas tudo nela inclui como exercícios da sua perfeição.

Perguntas:

– Quando me queixo da Comunidade, quando estou descontente com os outros, costumo em primeiro lugar me perguntar: busco na minha vida Religiosa e comunitária, o fundamental da Vida Religiosa?

– Não me coloco num nível muito superior, egoísta, num nível só do meu gosto, do meu eu pequeno e mesquinho e, a realização na Vida Religiosa?

– Quando falo contra normas e estruturas, em favor do crescimento espiritual pessoal e carismático, não estou no fundo fugindo de uma busca, de um trabalho sério, real e encarnado da busca do fundamental da Vida Religiosa?

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (IV)

  1. O que nos une numa Comunidade Religiosa é a busca do fundamental da Vida Religiosa. Portanto, não buscamos qualquer coisa. Não buscamos as satisfações do nosso pequeno eu. Não buscamos a realização humana como nós a concebemos a partir e na medida do nosso pequeno eu. Não buscamos compensar, substituir e reaver o que deixamos, ao nos decidirmos a formar a Comunidade Religiosa. De todo o coração, tenaz e pacientemente, buscamos em tudo o fundamental da Vida Religiosa.

Não é assim que desprezamos as satisfações, a realização do nosso pequeno eu. Não é assim que desprezamos o aconchego do lar, as afeições, a segurança da família. No entanto, tudo isso não é, rigorosamente falando, o que buscamos. O que é uma nova e radical compreensão da realização humana: o fundamental da Vida Religiosa. Nessa busca, cremos firmemente que, se buscarmos tenaz e intensamente o fundamental da Vida Religiosa, seremos colhidos pela afeição, pelo vigor da jovialidade do Deus de Jesus Cristo, que nos transforma com o tempo, e nos liberta para um humanismo cheio de vida, humanismo que nos faz crescer para a maturidade humana verdadeira.

  1. E aqui surge uma objeção. Pois hoje se fala muito de formar o homem todo: a formação integral. Dizemos hoje: na perspectiva da formação integral, a formação religiosa é só um aspecto. E o religioso não é só religioso, mas um todo-humano. Dizemos: o erro da formação antiga foi o da unilateralidade. Absolutizou-se a parte religiosa e se descuidou de desenvolver outras partes integrantes do todo humano.

Aparentemente, essa objeção parece confirmar a realidade. Pois, nós religiosos que temos uma profissão a busca da realização total no fundamental da Vida Religiosa, como somos infantis, imaturos, cheios de preocupações acidentais, ressentimentos, sensibilidades, como somos confusos, inexperientes, de pequena envergadura humana e espiritual…

Donde vem essa imaturidade. Essa falha, essa falta de identidade?

Vem disso que nós buscamos, intensa e apaixonadamente o fundamental da Vida Religiosa? Vem disso que não estudamos psicologia, sociologia, antropologia, ou vem disso que temos poucos contatos sociais?

Mas buscamos seriamente o fundamental da Vida Religiosa? Ou não buscamos na Vida Religiosa aquilo que sabemos e queremos conforme a medida do nosso pequeno e imaturo eu?

Por que uma experiência como a de São Francisco de Assis ou de Santa Clara pode chegar à idade madura na plenitude de Cristo? Porque teve a “formação” integral? Ou não foi antes porque buscou apaixonadamente o fundamental da Vida Religiosa? O que valeu outrora, não vale mais?

Podemos superar a unilateralidade, só pelo fato de multiplicar formações especializadas unilaterais e no fim somando todos os aspectos num todo confuso e eclético? Somos unilaterais, quando buscamos o fundamental da Vida Religiosa? Ou não é assim que nós não o buscamos mais com todo o vigor e de todo coração, dispersos que estamos em idéias confusas e pouco pensadas?

À base das nossas reflexões, no entanto, está a seguinte afirmação: só forma radicalmente uma pessoa, aquilo para o qual a pessoa dá a sua vida. Não se pode, porém, dar a vida assim em geral, mas sim num processo concreto e histórico bem determinado e limitado. Uma tal decisão para o concreto limitado não é unilateralidade, mas sim encarnação, concretização. Uma tal decisão se torna prejudicial e unilateral, se não for assumida num trabalho constante e tenaz, no qual se gaste o tempo suficiente. Torna-se superficial e unilateral se ficar a meio caminho. Se for tomada a sério, se houver um trabalho e empenho real, essa limitação se abre para uma totalidade humana não quantitativa, indefinida, confusa, geral e somativa, mas sim para uma totalidade singular que inclui na identidade limitada todo o universo. O humano só pode ser universal, em assumindo o concreto limitado de uma situação.

O que dissemos não é uma campanha contra os estudos e a formação. Apenas afirma que o fundamental da Vida Religiosa, se buscado de todo o coração pode me dar de uma forma excelente a formação integral.

  1. O que nos une numa Comunidade Religiosa é a busca do fundamental da Vida Religiosa. É uma busca. Portanto não é apenas a execução resignada de costumes e normas religiosas, mas fundamentalmente muito mais. Busca é dinâmica, embora não seja agitação pela novidade. É uma dinâmica paciente, tenaz, de longo fôlego. Não é a busca da satisfação de vivências momentâneas, de fogo de palha, mas sim um crescer lento, real, que tem o vigor suficiente para esperar, para trabalhar, mesmo lá onde não vê um resultado imediato. Aliás, hoje, confundimos a dinâmica com a zangação, agitação, muito fazer. A dinâmica fundamental de longo fôlego tem a capacidade de parar, de esperar, de descansar, de crescer lentamente. Que tudo isto não é cruzar os braços, nem precisamos mencionar. Pois o cruzar os braços, desanimado, é sempre o resultado de um viver que não tem a dinâmica verdadeira. Agita-se demais, é impaciente quer tudo de imediato e gasta a energia rapidamente e por fim cruza os braços frustrado.
  2. A busca do fundamental da Vida Religiosa é, portanto, um modo de ser dinâmico.

Repetindo: o dinâmico não é o mesmo que agitado. É antes uma força tranqüila, fundamental, paciente, constante, de longo alcance que sabe esperar. A espera, aqui, não é sinal de esgotamento, mas sim de reserva em vigor.

Isto significa: na Comunidade Religiosa não é quem que se agita, que mexe muito, que busca sempre novidades, que se impacienta com rotinas e estruturas que é verdadeiramente dinâmico. Pois, uma tal agitação pode ser apenas um sintoma da falta de vigor fundamental, um sintoma de impaciência e de histeria de quem não tem a força de assumir e trabalhar uma situação real.

  1. Mas, em certas circunstâncias, não é necessário uma ação mais agitada, imediata, que derrube certas estruturas erradas que estão impedindo, sim asfixiando o crescimento espiritual e humano? A busca do fundamental da VR pode ser certamente importante, mas o que se faz mister, hoje, nas Comunidades Religiosas não é antes a ação imediata e corajosa para renovar estruturas? Falar da busca do fundamental da Vida Religiosa, que é um trabalho lento de cada pessoa, numa situação onde a mais premente necessidade é de reformas imediatas da estrutura, não é alienado, alienante, não equivale a um convite para resignação e passividade?
  2. Esta objeção é séria e real. Por ser séria e real ela deve ser tomada a sério. Tomar a sério uma objeção é no entanto questioná-la, para que a própria objeção não seja apenas uma frase, um slogan irrefletido.

Certamente, há situações em que necessitamos de uma ação rápida e imediata. Mas perguntamos:

– Se há necessidade, por que ainda não se agiu? Por que ainda não se mudou a estrutura? E se é exigida uma ação, quem deve agir? Os outros? E mesmo? Por que ainda não agi?

– Talvez há necessidade de mudança imediata das estruturas, mas não seja tão fácil mudá-las. Por quê? Porque sozinho não tenho poder de mudá-las? Porque a mudança depende de fatores que não estão ao meu alcance? Por que a Congregação, a Província não estão ainda maduras para as mudanças?

Mas que é a Congregação, a Província? Não são pessoas humanas? Se forem pessoas humanas, mudar estruturas significa mudar, transformar as pessoas. Mas é possível mudar, transformar pessoas de imediato? O que significa, pois mudar estruturas? É possível mudar bem uma coisa sem um trabalho bem trabalhado, sem dar tempo a tempo?

– Se em última análise as estruturas estão fundamentadas nas pessoas humanas, se as estruturas mais difíceis de mudar são as estruturas mentais, basta mudar leis e normas para que a Comunidade viva melhor e cresça no vigor do espírito, na força da Vida Religiosa;

– Ou não é antes assim que mesmo para mudar qualquer estrutura, se pressupõe o trabalho lento e dinâmico de transformação, do crescimento de cada pessoa?

Seja como for, mesmo quando se trata de uma ação rápida e imediata para mudar estruturas, se estas forem difíceis de remover ou de transformar, é exigida uma condição real para ação, uma personalidade tenaz e paciente que tenha o dinamismo verdadeiro, adquirido na busca do fundamental da Vida Religiosa.

  1. Ao falar da ação imediata e rápida para mudar estruturas, não esqueçamos de pensar real e concretamente no trabalho exigido para o crescimento na nova estrutura, introduzida depois de abolida a antiga. Portanto, não só pensar em se livrar de uma estrutura errada, mas também em crescer e construir realmente na nova estrutura. Somente quando ponderamos tudo isso realmente e quisermos pessoalmente assumir o lento e o longo trabalho da nova construção é que a objeção acima mencionada começa a ser séria e real. Mas, se for assim, jamais objetaremos contra a necessidade e a importância da busca do fundamental na Vida Religiosa. Pois esta é a condição fundamental para que possamos realmente e com proveito mudar as estruturas.
  2. No entanto, pensando bem, a busca do fundamental da Vida Religiosa tem um modo sui generis de mudar estruturas. Ela não derruba primeiro a estrutura para depois colocar uma nova e ali começar a construir. Ela não esbanja as energias, ela se concentra numa única ação, lenta e paciente: na transformação e no revigoramento espiritual da pessoa. Pois, ela sabe: toda e qualquer estrutura só funciona se a pessoa que nela vive tem a maturidade e o verdadeiro vigor humano. E na medida em que cresce o vigor espiritual da pessoa, o que não servia na estrutura vai caindo por si, e o que ainda servia é revigorado. Assim, não substitui apenas uma estrutura por outra, mas faz nascer, concrescer uma nova estrutura da antiga revigorada. Com outras palavras: a busca do fundamental da Vida Religiosa, quando muda uma estrutura, não destrói primeiro para construir uma nova e então fazer habitá-la num vigor novo, mas já faz nascer a nova estrutura junto com o vigor; o aumento do vigor cria por si uma nova estrutura própria correspondente.
  3. Resumamos o que refletimos até agora:

– O que nos une na Comunidade Religiosa deve ser a busca do fundamental da VR.

– Essa busca tem a sua maneira de ser: ela é dinâmica.

– Dinâmica num sentido todo especial de um crescimento lento, pessoal, transformador.

– Esse modo de ser transforma a estrutura de uma Comunidade Religiosa, mas não a modo de uma ação rápida e imediata, nem a modo de eliminar e substituir estruturas, mas sim a modo de um crescimento paciente. Não serve portanto para ser usado como um meio de reação a uma estrutura.

Perguntas:

– Antes de falar das mudanças da estrutura, qual o meu trabalho pessoal e real para mudar a estrutura da minha mente, do meu modo de ver e sentir, justamente lá onde percebo claramente que se trata de uma estrutura proveniente do meu egoísmo?

– Ao ver algo errado, uma estrutura errada na Comunidade local, provincial ou congregacional, até que ponto reajo contra ela, com a atitude de não só criticar e destruir, mas antes com a atitude de ver a situação com grande sobriedade e realismo e com a disposição concreta e decidida de realmente colaborar para construir?

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (V)

  1. Recordemos:

O que nos une, anima, nos renova na Comunidade Religiosa, portanto, na Vida da Comunidade é a busca do fundamental da Vida Religiosa.

A busca do fundamental da Vida Religiosa é uma busca.

  1. Para que falar e recordar uma coisa tão sabida e conhecida? O que é busca, nós sabemos. O que é Vida Religiosa nós o sabemos igualmente.

Sabemo-lo de fato? Na experiência bem caminhada de uma busca? Ou não o sabemos de uma forma bem vaga, indefinida? Ou não o sabemos no sentido de uma representação coisificada, confundindo o espírito, o vigor da Vida Religiosa com normas, costumes, com certas devoções, com certos modelos de vida que nós gostamos ou não gostamos? Buscamos a compreensão, a experiência da Vida Religiosa realmente como a força que nos faz crescer em toda e qualquer situação da nossa vida cotidiana?

  1. Talvez sim, talvez não. No entanto, se examino a minha (não a dos outros) atitude diante da Vida Comunitária, a minha maneira de abordar, enfrentar as dificuldades cotidianas da vida comunitária, as frustrações e as mágoas sentidas diante da estrutura e limitações impostas pela Comunidade provincial ou congregacional, percebo que não tenho olhos claros e penetrantes para descobrir em todas essas vicissitudes, pequenas e grandes oportunidades para aumentar a busca e a compreensão do vigor da Vida Religiosa.
  2. Senhor, dá-nos olhos fracos

Para tudo quanto não tem importância.

E olhos claros, penetrantes

Para tua verdade toda (Kierkegaard)

Será que na nossa busca, na busca da realização na Vida Religiosa, temos olhos claros e penetrantes para a verdade toda da presença do Senhor em todos os adventos do acontecer cotidiano?

Buscamos adquirir olhos claros e penetrantes?

Buscamos adquiri-los adequadamente?

  1. A busca do fundamental da Vida Religiosa é uma busca. Há busca e busca.

Uma modalidade de busca é buscar o que esperamos e já sabemos de antemão o que ele é; por exemplo: quando buscamos na biblioteca um livro, já sabemos qual o livro que buscamos. Se ainda não sabemos bem que livro buscamos, ao menos sabemos que se trata de um livro. Uma tal busca, por mais trabalho que ela nos dê, não exige uma reflexão sobre o que buscamos.

Na busca do fundamental da Vida Religiosa não é bem assim. Aqui sabemos de antemão, o que buscamos. É essa ambigüidade que nos causa o maior problema na busca do fundamental da Vida Religiosa.

Tudo isso parece estranho e bastante abstrato. Mas essa ambigüidade na busca do fundamental da Vida Religiosa é a realidade concreta. É porque estamos pouco familiarizados com esse modo ambíguo de ser da essência da Vida Religiosa, que hoje entramos facilmente na confusão, quando as normas, os costumes mudam e ouvimos diferentes teorias sobre a essência da Vida Religiosa.

  1. Como é maneira de ser da busca, na qual sabemos e não sabemos ao mesmo tempo? Como posso buscar o que não sei? Tudo que se refere à realidade profunda do ser humano tem essa maneira ambígua de ser conhecido: nós sempre sabemos e não sabemos ao mesmo tempo acerca do que procuramos.

Na vida cotidiana convivemos com muitas coisas ao redor de nós. Entramos em contato com elas, podemos vê-las, tocá-las, agarrá-las. Ao assim entrar em contato, as coisas não mudam, estão ali objetivamente, em si. Assim, temos a segurança e a certeza das coisas, embora não as conheçamos de todo; sabemos alguma coisa, sim muita coisa acerca delas.

Ficaríamos inseguros e perplexos se por exemplo a mesa de trabalho começasse a crescer, se nela começasse a nascer olhos, boca, nariz, se ela começasse a se espreguiçar, falar, cantar, a se transformar em ser vivo.

Tudo que vive, se move, cresce, não fica ali parado como uma coisa. Há muitas coisas vivas ao nosso redor. Podemos vê-las, tocá-las. Podemos também ver o seu crescimento, o movimento da vida. Por isso, aqui também, embora não tenhamos diante de nós uma coisa pronta, fixa em si, mas sim um ser vivo, podemos saber muito sobre essas coisas vivas. Podemos até prever de antemão como elas crescem dentro de um determinado âmbito de possibilidades. Assim, a gente sabe de antemão, que tipo de árvore vai ser uma determinada plantinha.

O que acontece, porém, com a realidade realíssima, a realidade a mais viva que é o profundo, o fundamental do humano, ao qual pertence a Vida Religiosa?

Essa realidade não a podemos ver, pegar e tocar fisicamente. Ela não existe em si como uma coisa, mas ela se torna presente como vigor, força, crescimento em si, força, crescimento da liberdade, em todas as coisas visíveis que constituem a nossa vida cotidiana, ela vive em nós. Não é fixa, não é coisa, se transforma, é real, mas não é objeto, nós somos essa realidade viva, vivemos nela, a partir dela; e por isso sempre já sabemos algo acerca dela, mas não a podemos pegar e definir como uma coisa sobre a qual podemos saber com segurança e certeza de uma fixação.

Assim, ao mesmo tempo, sabemos e não sabemos acerca dessa realidade.

No entanto, esse não saber, não é uma coisa vaga, vazia, confusa. É uma experiência clara de uma realidade viva em nós. Mas por ser uma experiência de uma realidade via, a experiência não é fixa, determinada como uma coisa material.

Por exemplo, nós temos a experiência muito clara do que seja amizade. Sentimo-lo e experimentamo-lo no encontro. Mas quanto mais claramente sabemos o que é amizade, tanto mais sentimos a necessidade de crescer na amizade, percebemos quão longe estamos de compreendê-la profundamente, somos provocados a nos purificar sempre mais de nossos egoísmos, preconceitos e idéias falsas. Sabemos e não sabemos ao mesmo tempo.

  1. Na busca do fundamental da Vida Religiosa devemos nos familiarizar com essa maneira toda especial de busca.

Abraçamos a VR e vivemos em Comunidade. Ao entrar numa Comunidade já vamos pra lá, sabendo o que é a Comunidade. Temos uma idéia do que deve ser a Comunidade. Temos nossas expectativas; temores, ideais. Temos informações sobre como deve ser a Comunidade Religiosa. Temos as nossas carências afetivas, exigências, desejos. Tudo isso pertence ao nosso saber, quando nos agregamos a uma Comunidade.

De início esperamos da Comunidade tudo isso que nós sabemos sobre ela. Trabalhamos e lutamos para realizar o que sabemos, nos esforçamos para criar um ambiente comunitário como nós o idealizamos, sabemos e gostamos.

Na vida cotidiana da Comunidade tudo isso que nós sabíamos pode entrar em crise. Em breve descobrimos que a realidade concreta e cotidiana da vida comunitária não é o que sabíamos e esperávamos: muitos defeitos em nós e nos outros, imaturidade em nós e nos outros, estruturas institucionais aparentemente ou realmente obsoletas, sem sentido, a ausência de autenticidade, falta de seriedade mesmo no que se refere ao fundamental da Vida Religiosa, etc. Começamos a nos indagar: Mas é isto a vida comunitária?

Numa tal crise, quem não se familiarizou com o modo todo especial da busca, que sabe e não sabe ao mesmo tempo, pode ficar confuso e se bloquear na caminhada; se escandaliza com o demasiado humano da Vida Religiosa, tropeça nele e cai.

Esse tropeço, esse escândalo faz com que entre no nosso coração amargor e decepção. Tornamo-nos ressentidos diante da Comunidade da Vida Religiosa.

Se examinarmos bem porque nos escandalizamos e ficamos amargurados, havemos de perceber que o nosso modo de ser na busca não está conforme o modo de ser exigido pela busca do fundamental da Vida Religiosa.

No nosso modo de ser usual da busca, buscamos, esperamos, desejamos o que sabemos e gostamos. Assim, tentamos encaixar tudo quanto nos advém, dentro da medida do nosso saber, querer, gostar. Quando a realidade não se adapta à nossa medida, desanimamos, nos quebramos, decaímos, perdemos o sentido de viver. E mesmo lá onde nos adaptamos à realidade, o fazemos nos recalcando, nos resignando, e assim nos deixamos afetar no fundo de nós mesmos com decepção e ressentimento, fobias, etc.

  1. A busca do fundamental da Vida Religiosa tem um outro modo de caminhar.

Não abandona facilmente o que aprendeu no passado. Toma pois a sério o que já sabe, o que deseja, o que espera. Mas deixa-se questionar pela nova situação. Não para negar ou recalcar a si mesmo, mas para perguntar, se o que sabia, o que queria, o que esperava não era superficial, irreal, apenas emocional, pouco refletido, pouco experimentado; para perguntar, se o que busca não é apenas um ideal vago, um modelo exterior sem interiorização, se não era romântico, sem curtição real da vida. Assim, em vez de negar, aprofunda, faz crescer, ampliar, purificar, faz mais interior e real o que busca. Faz, pois, experiência. Em fazendo bem a experiência, toma a sério o que sabia, toma a sério o que agora aprende, mas deixa aberta a possibilidade de no futuro deixar-se questionar mais e mais e crescer no seu saber.

Essa atitude de abertura ao questionamento não é, portanto, uma dúvida neurótica de uma pessoa insegura, mas sim a cordialidade e disposição para sempre mais aprofundar e compreender melhor, de uma forma mais rica e vigorosa o que já sabemos de alguma forma, mas que devemos sempre de novo fazer crescer.

Assim, a busca do fundamental da Vida Religiosa, ao viver numa Comunidade, a vida fraterna procura aumentar sempre mais, no fracasso e na vitória, na alegria e na tristeza, na frustração e na realização, em tudo, a experiência do que é fundamentalmente Comunidade; vida fraterna. Não se fixa, portanto, na medida do seu pequeno e fixo. Não nega, porém, o que no momento sabe e pode, mas a partir dali, tomando a sério o que pode e o que sabe, procura sempre mais abrir-se ao sentido mais profundo, sábio, real e também mais rico da Comunidade, vida fraterna.

Portanto, no modo de ser dessa busca, o nosso e, a medida do nosso pequeno e, sempre de novo morre para ressuscitar numa compreensão maior; morre para ressuscitar de novo numa compreensão cada vez maior, etc. É pois um caminho dolorido, mas também libertador da experiência.

  1. A busca é pois uma atitude, na qual eu não decido facilmente de antemão sobre a realidade, sem antes experimentar a situação numa curtição de crescimento. Nessa curtição humana haverá certamente muitas dificuldades, horas de escuridão, frustrações, fracassos, fugas, resignação. Mas quem busca, com o tempo aprende que tudo isso pertence ao caminho da busca, e assim não dramatiza essas situações “negativas”, como se elas fossem o fim de tudo, o fim da nossa Vida Religiosa.

Numa tal busca, se quisermos crescer, se não quisermos sucumbir após algumas tentativas, é necessário ter muita coragem de viver, e deixar-se questionar, deixar-se desafiar pela Vida.

  1. 10. Que tal se a Comunidade Religiosa for o lugar de curtição, para aprender, exercitar-se e crescer nesse modo sui generis da Busca?

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (VI)

Algumas mini-reflexões avulsas acerca do que dissemos até agora.

  1. Estou amargurado, decepcionado, sim agressivo com a Comunidade, pois ela não é o que esperava, não me dá a satisfação do meu ideal, não me dá a realização afetiva da família fraternal que desejava. Ela está cheia de defeitos e imperfeições. Começo a me imaginar que esta minha situação é frustrante, que não é o lugar da minha realização. Digo comigo mesmo: Há tantas outras possibilidades, onde o ambiente é melhor, mais propício para a minha realização.

A busca de um ambiente melhor pode ser uma busca boa e autêntica. Mas é necessário não facilitar em simplificar a seriedade dessa busca. Antes de se questionar, se o ambiente é favorável ou não, é necessário colocar-se a questão fundamental acerca de mim mesmo:

– Mas afinal o que busco?

– Como busco?

– Já experimentei, lutei, trabalhei de corpo e alma na busca?

– Não sou uma pessoa que só consegue se realizar quando a realidade funciona como gosto e como espero? Tenho a capacidade de me questionar, de deixar-me questionar pelas dificuldades da vida?

– Não sou uma pessoa que espera da Vida e dos outros que sempre me dêem o que espero, como uma criancinha espera de seus pais, sem jamais pensar seriamente que na Vida só recebe na medida em que eu dou e busco sentido, nas vicissitudes do que me advém?

– Sou capaz de fazer experiências? Não sou um tipo de pessoa que se fixa em idéias, modelos e representações, sem conseguir me transformar, crescer e me aprofundar através dos desafios da Vida?

  1. Se, no entanto, eu tenho muita dificuldade comunitária, e principalmente se os outros têm sempre dificuldade comigo e se eu já experimentei viver em diversas Comunidades e sempre criei problemas para os outros, então é necessário examinar seriamente se eu sirvo para essa Província, essa Congregação, essa forma de vida. Ali não adianta ficar culpando a si ou aos outros. O que se faz mister é simplesmente ter a coragem de se decidir, ou de transformar radicalmente, ou buscar uma outra forma de vida, um outro ambiente. Ficar numa tal situação, sem se decidir, só serve para neurotizar-se ou neurotizar os outros. Pertence também à co-responsabilidade comunitária, eu me decidir sair dela, se vejo que infernizo a vida da Comunidade. Sair nesse caso é um serviço fraternal.
  2. Se a Comunidade é o lugar onde cada qual busca a sua identidade fundamental, então, cada qual deverá colocar sob a sua mira os seus próprios defeitos que afetam o seu próprio crescimento. Se uma pessoa tem pele grosa, é insensível, é dominadora, deverá ver se nos conflitos do cotidiano procura tornar-se mais fina, mais sensível, menos dominadora para com as pessoas que são mais sensíveis e mais lúcidas. Se uma pessoa tem pele muito fina, é sensível demais, é encolhida, deverá ver se nos conflitos do cotidiano, procura tornar-se mais forte, menos sensível, mais corajosa e calma diante das pessoas que parecem querer dominá-la.

Numa Comunidade, tanto quem é dominador, como aquele que é dominado, podem ser tremendamente agressivos. E não raras vezes, a agressividade de quem é dominado, pode se tornar com o tempo muito vingativa. Há pessoas que no fundo têm grande necessidade de dominar. Na Comunidade, quando a sua necessidade de dominar encontra resistência, pode uma tal pessoa dominadora passar a assumir papel de vítima. Vítima que, em se fazendo sofredora, tenta dominar a Comunidade, infernizando-lhe a vida com exigências, silêncio, sim até com doenças. Numa Comunidade, portanto, onde não há uma busca sincera e autêntica do fundamental da Vida Religiosa, onde cada qual não procura libertar-se do seu egoísmo, onde cada qual não procura libertar-se para a verdadeira pobreza interior, sempre começa a surgir luta pela dominação, tanto nos que dominam como nos que se fazem vítima de uma dominação.

  1. A busca da identidade pessoal e fundamental numa Comunidade é um trabalho pessoal, árduo e inteligente.

É inteligente na vida espiritual, não aquele que tem o poder e o domínio do saber, mas sim aquele que luta de corpo e alma para ser sensível ao sopro do Espírito da Vida.

Onde não há autêntica busca do fundamental da VR, as pessoas se tornam broncas em relação ao Espírito e à Vida. Numa comunidade constituída de pessoas que se tornaram broncas na inteligência espiritual, por negligenciarem a busca do fundamental da VR, com o tempo tudo se torna sem gosto, a comunidade se perde em sensibilidades fúteis, corre atrás de distrações, reina tédio e mesquinharia.

Mas a inteligência do espírito e a sensibilidade para o espírito é uma conquista. Quem não a busca decai irremediavelmente. O fruto da decadência da inteligência do espírito é a preguiça mental, o bitolamento, o domínio brutal de slogans e opiniões particulares, antigas e modernas, sentimentalismo e afetividade grudenta sem a transparência fraternal, a falta de disciplina interior. É pois a morte da Comunidade.

  1. O fundamental da Vida Religiosa não é bitolamento. Não é imposição morta e sem inteligência de normas, costumes e disciplina. Mas, por outro lado, o fundamental da Vida Religiosa não é liberalismo. Antes pelo contrário ele é exigente, rigorosamente exigente. Não permite que cada qual faça o que acha melhor, segundo a medida do seu pequeno eu. Ele tem a sua medida exata, bem precisa.

Na Comunidade, onde não há a busca autêntica do fundamental da Vida Religiosa, arma-se uma tremenda confusão. Pois confunde-se o essencial com o acidental. Não se tem mais olhos claros e penetrantes para distinguir o que importa e o que não importa.

Dá-se o contrário daquilo que Kierkegaard pede ao Senhor na sua oração: Em vez de se ter olhos penetrantes e claros para o que importa, se tem olhos fracos e cegos para o essencial, e em compensação se tem olhos neuroticamente super-sensíveis e exigentes para coisas que não importam realmente. A coordenação teme fazer exigências, clarividentes e essenciais, para não parecer impositiva. A base teme toda e qualquer imposição, receosa de ser limitada e ferida na sua pretensa liberdade. Desaparece assim a liderança. Desaparece assim a responsabilidade para com uma grande causa. Tudo se reduz ao agrupamento de pessoas confusas, sem uma busca exigente e fundamental. A Comunidade se destrói por dentro, não tem mais a imposição vital de um núcleo, se reduz a mera cerca de algumas normas e costumes exteriores. Estes com o tempo se desfazem e então temos uma confusão. Como reação contra uma tal confusão surge a imposição de normas e leis, exortações que não convencem mais a ninguém, pois não há o espírito e o vigor do essencial, onde tais leis e exortações possam encontrar um eco. E no entanto a Comunidade religiosa é essencialmente uma busca do fundamental da Vida Religiosa.

O fundamental da Vida Religiosa é exigente, é impositivo. Não na mesquinhez e na fixação de letras-mortas, mas sim no vigor e na precisão de uma busca autêntica, livre de todo e qualquer egoísmo, capricho e veleidades.

Hoje, mais do que nunca, a Comunidade está necessitada de uma imposição. Imposição grande, generosa, vital, firme e clarividente que recebe a sua medida não dos defeitos e caprichos, opiniões e piedades de um indivíduo ou de grupo de indivíduos, mas sim da sincera e autêntica busca e afeição do fundamental da Vida Religiosa. Essa grande imposição é a condição para a sobrevivência da Vida Religiosa, hoje.

  1. Na Comunidade Religiosa, onde a energia da vida não está voltada à grande causa da busca do fundamental da Vida Religiosa, as pessoas se atrofiam, criam para si uma envergadura raquítica e de pequena dimensão.

A Comunidade se perde em conflitos sobre coisas acidentais, pessoais; a verdadeira crítica franca, serena e construtiva se transforma em fofocas, a reflexão se transforma em ataques e defesas de uma discussão de autodefesa privativa, a grande amizade fraternal se transforma em formação de partidos, a coragem serena e objetiva se transforma em agressões cheias de malícia e ressentimentos, a piedade religiosa e libertadora se transforma em ensinamento de preferências para uma devoção particular, que está mais a serviço do autocontentamento do que a serviço do crescimento real na liberdade evangélica. Sem a autêntica busca do fundamental da Vida Religiosa, sem olhos claros e penetrantes para o essencial, tanto os antiquados como os novos, tanto os “esclarecidos” como os “bitolados” começam a se ensimesmar numa subjetividade afetada do pequeno eu. Desaparece assim a Comunidade da busca da Vida Religiosa fundamental.

  1. Para não haver equívoco: a busca do fundamental da Vida Religiosa não deve ser entendida sem mais como o que usualmente chamamos de devoção ou piedade.

Numa determinada devoção ou piedade, numa determinada prática religiosa etc., pode haver muita dinâmica da busca do fundamental da Vida Religiosa. Mas também pode haver muito de uma busca de si que em vez de libertar a pessoa para o essencial, pode prender a pessoa a uma espécie de egoísmo “espiritual” que não liberta ninguém para a grande medida e liberdade dos filhos de Deus, mas antes nos transforma em avarentos e mesquinhos do pequeno e que até usam de devoção e de piedade, de Deus e da Vida Religiosa para cultivar o apego a si.

Portanto, não é pelo simples fato de cultivar um tipo de piedade ou devoção, não é pelo fato de eu me dar a um tipo de técnica ou método de renovação religiosa, não é pelo fato de eu estar engajado num movimento moderno ou antigo da Vida Religiosa que cresce em mim o fundamental da Vida Religiosa. Depende tudo de como estou nessas devoções e piedades, nesses movimentos e técnicas.

Onde há uma verdadeira busca do fundamental da Vida Religiosa não se divide, não se luta, não se critica no nível de fatos, se alguém é antiquado ou moderno, se é piedoso ou menos piedoso, se reza ou não esta ou aquela oração, mas sim se em tudo que a pessoa faz ou não faz, está de fato buscando o essencial da Vida Religiosa.

A busca do fundamental da Vida Religiosa é muito exigente. Não permite a autoilusão. Não basta portanto e ser devoto do Sagrado Coração de Jesus, de Nossa Senhora, não basta e ser entusiasta, não basta me achar mais autêntico, por me dedicar ao trabalho social dos pobres; tudo isso são bons caminhos, se em fazendo tudo isso que acho válido, me questiono e busco sempre de novo a grande liberdade do fundamental da Vida Religiosa e não a mim mesmo. Mas quem critica todos esses movimentos e devoções, deverá também buscar na sua crítica o fundamental da Vida Religiosa.

Conclusão:

Isto significa que a busca do fundamental da Vida Religiosa, portanto a busca daquilo que une, coordena, aciona a comunidade religiosa é uma busca muito exigente, pessoal, um trabalho longo, dolorido, no qual e devo morrer sempre de novo para o meu pequeno eu para me abrir ao desafio da busca? Sim.

Esse desafio, essa exigência de abertura é talvez a essência da Vida Fraterna.

Passemos, pois, a refletir, dentro da perspectiva do que viemos refletindo até agora, sobre a Vida Fraterna.

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (VII)

  1. O que nos une, nos faz com-munus, isto é, Comunidade é a busca do fundamental da Vida Religiosa.

O fundamental: o fundamento, o suporte, o subjacente, isto é, o que sustenta a Vida Religiosa é a busca, o querer, o empenho em se desafiar para eu ser desafiado por uma abertura, vastidão e grandeza humana chamada Vida Fraterna.

Repitamos essa nossa determinação: a busca do fundamental da Vida Religiosa, isto é, a Comunidade, o vigor comum e comunicante é o desafio por e para a abertura de vastidão humana chamada Vida Fraterna.

  1. Geralmente, quando falamos de vida fraterna pensamos primeiro ou até exclusivamente no nosso relacionamento social com outras pessoas.

Nesse sentido usual de relacionamento humano, hoje falamos talvez demais da necessidade, da beleza, das dificuldades da Vida Fraterna. Talvez você até sinta uma certa repugnância em ler e ouvir sobre esse assunto: há muita badalação sem nenhum assumir real das Fraternidades. E principalmente aqueles que mais exigem dos outros a vida fraterna pouco ou nada contribuem para a realidade fraternal.

Mas, apesar de ressentimentos justos ou injustos contra a fala sobre a Vida Fraterna, hoje, mais do que nunca, é necessário refletir de novo acerca da Vida Fraterna.

No entanto, refletir acerca da Vida Fraterna é uma busca que procura indagar: o que é a Vida Fraterna?

Hoje, falamos muito da vida fraterna. Procuramos incentivar, planejar a Vida Fraterna. Fazemos muito acerca da Vida Fraterna. Mas, em todos esses afazeres sobre a Vida Fraterna, nós já temos na mente uma determinada concepção do que é e deve ser a Vida Fraterna. Raras vezes refletimos, indagamos o que é a Vida Fraterna.

  1. O que é, pois, a Vida Fraterna?

Usualmente se entende por Vida Fraterna o convívio dos religiosos como irmãos. No entanto, quando falamos da Vida Fraterna não falamos tanto no sentido de o convívio existir de fato entre irmãos. Antes falamos da Vida Fraterna como do convívio que deveria existir, deveria ser.

O convívio que deveria ser, nós o representamos como fim, meta, objetivo, como ideal e norma. E exigimos: o nosso relacionamento em casa, na Província, na Ordem deve nortear-se conforme o ideal do convívio, conforme o convívio que representamos como o que deve ser.

Mas, justamente aqui, surge a dificuldade. O ideal, o que deveria ser, é geralmente determinado por nosso desejo.

Assim, muitas vezes, o que chamamos de ideal da Vida Fraterna não passa daquele convívio que gostaríamos que fosse. E quando a realidade do convívio não corresponda ao que gostaríamos que ela fosse, dizemos que o convívio não é fraternal.

Em oposição a esse modo de ser que sempre se aliena da situação concreta e fugindo para o mundo de desejos, dizemos: é necessário assumir a realidade como ela é e não como gostaríamos que ela fosse.

Mas aqui também surge uma dificuldade: pois o que significa assumir uma realidade? Significa resignar-se e passivamente deixar correr as coisas como acontecem? Não pertence à responsabilidade de um assumir, a tentativa de transformar a realidade menos positiva na realidade melhor, mais positiva?

Portanto, temos por um lado a atitude alienada de escapismo para o desejo; sonha-se com um relacionamento fraternal ideal, idílico, romântico, irreal. Impacienta-se, irrita-se, escandaliza-se diante da realidade concreta, diante das fraquezas humanas. Torna-se agressivo, pessimista. Busca-se sempre um outro ambiente, uma outra possibilidade. Fala-se muito das reformas, de experiências alheias, como quem sonha com paraíso de terras longínquas.

  1. Essa questão só pode ser respondida se soubermos bem o que é a Vida Fraterna na Vida Religiosa.

Saber bem significa saborear bem, captar o próprio de uma realidade, por assim dizer, o seu sabor.

Perguntamos: o que é a Vida Fraterna? O que buscamos quando perguntamos: o que é? Não buscamos o que já existe ali como uma coisa.

Não buscamos o que há de ser no futuro como uma idéia estabelecida, a ser realizada no tempo vindouro. Pois, no primeiro caso ficaríamos bitolados no status quo. No segundo caso ficaríamos bitolados e alienados no idealismo de nosso desejo preestabelecido. O que buscamos, pois? Buscamos captar o próprio do modo de ser de um viver chamado Vida Fraterna.

Como é isso: a busca do modo de ser de um viver que não é nenhuma coisa, não é nenhuma idéia pré-estabelecida?

Usualmente identificamos a Vida Fraterna com a vida social de relacionamento mútuo do cotidiano doméstico. Imaginamos assim, o modo de ser da Vida Fraterna como sendo a maneira na qual esse relacionamento funciona. E dizemos por exemplo a nossa Vida Fraterna funciona muito mal. Não há diálogo. Cada qual vive para si. A nossa casa parece até um hotel, onde não há convivência, mas sim ajuntamento de pessoas estranhas etc.

Quem diz isso? Eu. A respeito de que digo tudo isso? A respeito da Vida Fraterna que está ali diante de mim como uma realidade social.

Temos assim o eu, o saber, o sujeito da ação de dizer, de sentir, de pensar, de querer ou não querer; esse objeto chamado Vida Fraterna.

Seja qual for o tipo de ação que se exerça sobre esse objeto, trata-se de um relacionamento entre mim e essa realidade existente diante de mim.

Fixemos bem esse ponto: seja como for o modo de ser do objeto chamado Vida Fraterna, trata-se de um relacionamento entre mim e essa realidade.

O modo de ser desse relacionamento pode ser por exemplo, reação impaciente e agressiva, reação resignada e frustrada, ou ação criativa tenaz e paciente, ação cheia de humor, compreensão e boa vontade etc.; ele é no entanto sempre modo de ser do meu relacionamento, do meu comportamento. E não somente isso, é sempre um modo de ser do meu relacionamento em referência a mim mesmo à minha identidade.

Repetindo: que a realidade chamada Vida Fraterna, existente diante de mim como um objeto social, não vá bem, não venha talvez do meu comportamento, não dependa do meu relacionamento com ela. Mas como eu me relaciono com essa coisa que não vai bem é meu comportamento, é meu relacionamento. E esse meu comportamento, esse meu relacionamento diz respeito a mim mesmo, à minha identidade.

Dissemos acima: na Vida Religiosa buscamos saber, saborear o próprio do modo de ser de um viver chamado Vida Fraterna.

Hoje, quando falamos de viver chamado Vida Fraterna, pensamos logo o exclusivamente no objeto exteriorizado do convívio social existente diante de mim como viver cotidiano. Esquecemos, porém, completamente que existe além e antes de mais nada o relacionamento meu para com esse objeto chamado “Vida Fraterna”.

Na nossa reflexão, quando busco o que é a Vida Fraterna, quando busco, portanto, o modo de ser do viver chamado Vida Fraterna, não penso na Vida Fraterna entendida como a Vida social do cotidiano, já estabelecida como o objeto do meu sentir, agir, pensar, querer, mas sim no modo de ser da minha identidade que determina o meu relacionamento para com a realidade cotidiana e social já existente, a qual usualmente chamamos de Vida Fraterna.

  1. Para que esse ponto esteja bem claro, vamos repetir num exemplo o que dissemos acima.

Vou indo por uma estrada. De repente, atrás de uma curva estou diante de um obstáculo. Uma enorme árvore caída, a impedir-me a passagem. A árvore caída é uma realidade, um objeto-obstáculo diante de mim. O objeto-obstáculo não é a minha identidade: eu não sou árvore caída, não tenho culpa nem mérito em a árvore estar ali deitada. No entanto, pensando bem, o objeto-obstáculo diante de mim faz parte de mim mesmo, sou responsável por ele como algo que se refere à minha identidade.

Em que sentido?

É que a situação em que me encontro é um relacionamento meu com a árvore caída, isto é, com o obstáculo. O modo de ser desse relacionamento diz respeito à minha identidade. Pois, posso ficar ali deitado diante do obstáculo e começar a me lamentar de tudo; posso ficar revoltado com a prefeitura; posso procurar uma passagem por cima do tronco ou um atalho através do mato; e em fazendo isso posso fazê-lo ou resignado, ou revoltado, ou com calma e inteligência etc.

Tudo que diz respeito a esse meu modo de comportamento ao me relacionar com a realidade é viver que vem de mim. Esse viver é o que na nossa reflexão vamos chamar de VIDA FRATERNA.

Nesse sentido, portanto, a Vida Fraterna não se refere primeiramente à Vida social de um determinado agrupamento de pessoas. Nem se refere exclusivamente ao relacionamento entre pessoas humanas. Antes, se refere ao modo fundamental de ser de todo e qualquer relacionamento meu com pessoas, coisas, idéias, acontecimentos, comigo mesmo. Com outras palavras, a Vida Fraterna na nossa reflexão diz respeito ao modo de ser fundamental do meu relacionamento universal com a Vida e tudo que ela me propõe. O relacionamento com a vida social usualmente chamada de Vida Fraterna é apenas uma das manifestações desse modo fundamental do meu relacionamento universal com a Vida e com tudo que ela me apresenta.

Portanto, na nossa reflexão, ao falarmos da Vida Fraterna, colocamos o problema da Vida Fraterna numa perspectiva um pouco diferente à da usual. Falamos mais do modo de ser fraternal da minha identidade em relação a tudo da Vida.

Por que essa mudança de perspectiva? Porque hoje se fala muito da Vida Fraterna enquanto objeto social de nossos relacionamentos, mas muito pouco desse próprio relacionamento enquanto referido à nossa identidade. Este, porém, é sempre o fundamento daquela.

Queremos, pois, indagar: o que é a Vida Fraterna?

Ao assim perguntarmos, não queremos saber em primeiro lugar o que é e como deve ser essa realidade social existente diante de mim como Vida Fraterna, mas queremos antes saber, como é o modo de ser de mim mesmo, para que possa me relacionar, à maneira de irmão a tudo que me cerca e advém na Vida.

Portanto: O problema da Vida Fraterna é antes de mais nada, antes de se pensar na reforma da entidade social chamada fraternidade, uma questão de identidade pessoal: em que medida sou capaz de ser irmão para com a Vida?

  1. O problema da Vida Fraterna é antes de mais nada uma questão da identidade pessoal. Temo que você esteja bastante chateado com essa nossa reflexão. No entanto, experimente agarrar essa sua chateação e refletir: por que estou chateado?

Talvez é porque sempre de novo se reduz tudo à questão da identidade pessoal. Talvez eu esteja entediado porque a reflexão sempre de novo, teimosamente, me diz: a solução é você, a solução é você! Mas, por que sempre eu? sempre eu? A realidade diante de mim também não deve colaborar? Por que só eu devo mudar? Por que sempre de novo só eu é que tenho a responsabilidade? E o que me adianta mudar de comportamento se nada muda? Se continuo sofrendo? Continuo oprimido? Frustrado? A Vida Fraterna não existe justamente para me ajudar, me realizar, me apoiar?

Muito bem. Você tem razão. É necessário que a Vida Fraterna mude, que os outros mudem, se tornem melhores, mais compreensíveis, mais fraternais. Tranqüilize-se, seja feliz, porque você tem razão.

Mas o que me adianta saber que tenho razão se nada muda, se a Vida Fraterna, os outros continuam como antes?

Vamos então mudar a Vida Fraterna! Vamos!

Vamos? Mas todo o problema está nisso, que não existe esse vamos! Se existisse esse Vamos, cordial, fraternal, não haveria o problema da Vida Fraterna!

Você conhece a fábula dos ratos: era uma vez um gato caçador, terrível e sanguinário, que andava dizimando os ratos do sótão. Os ratos então fizeram uma assembléia geral para resolver fraternalmente o problema do gato. Houve centenas de sugestões de como eliminar a dificuldade e a ameaça chamada “o gato”. Discutiu-se muito, se planejou desesperadamente. Por fim, levantou-se um rato muito inteligente e técnico e fez uma sugestão espetacular: Irmãos, disse o orador, vamos pendurar uma campainha no pescoço do gato. A campainha nos avisará onde o gato se encontra. Ela nos dará o sinal para que possamos fugir sempre que o gato de nós se aproximar.

Todos aplaudiram. A sugestão foi aceita unanimemente. O problema estava resolvido. Só que, lá do fundo da sala, levantou-se uma voz tímida, mas firme. Era a voz de um velho rato que perguntou: – muito bem, mas quem se oferece para colocar a campainha no pescoço do gato?

O que nos quer dizer a fábula?

Ela nos mostra que a questão da identidade pessoal é a condição primária e fundamental para que toda e qualquer tentativa de solução de um problema tenha realidade e eficiência. Não fique pois entediada com essa mania de voltar sempre de novo à questão da identidade. Ela é na verdade uma questão muito útil, prática e importante. Vamos, pois, ser bem fraternais também em relação a essa difícil questão da identidade pessoal.

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (VIII)

  1. O que nos une numa sociedade institucional chamada Congregação, Província, Comunidade local é a busca do fundamental da Vida Religiosa.

O fundamental da Vida Religiosa, isto é, o conteúdo do que buscamos em comum é a Vida Fraterna, isto é, uma abertura da vastidão e grandeza humana. Essa abertura de vastidão e grandeza humana não se refere apenas a pessoas humanas e suas vidas, mas sim a todas as coisas, a tudo na Vida. Trata-se, pois, do modo fundamental de ser, do modo de relacionamento universal meu com a Vida e tudo que ela me propõe.

Esse modo de ser do relacionamento universal meu com a Vida e tudo que ela me propõe é uma questão da identidade: trata-se, pois, daquilo que sou e devo ser como religioso. Com outras palavras, a Vida Fraterna é a atitude de amizade fraternal com a Vida e tudo que ela me propõe.

  1. Saímos, assim, da compreensão usual e mais estrita da Vida Fraterna e queremos considerar a Vida Fraterna como a atitude de amizade fraternal com os entes em sua totalidade, com todo o universo.

Por que isso? Para sermos universais, para sermos totais, globais e cósmicos, como exige hoje a mentalidade aberta, sem fronteiras? Não! Mas, então, por que ampliar o âmbito dos objetos da Vida Fraterna a todos os entes do universo?

Para sermos apenas católicos no sentido em que, por exemplo, São Francisco de Assis entendeu a universalidade. Mas, atenção, ser católico, isto é, ser universal nesse sentido é algo bastante diferente do que hoje a mentalidade “aberta” do consumo espiritual quer entender por universalidade fraternal ou fraternismo universal.

Portanto, a primeira tarefa da reflexão acerca da Vida Fraterna, é compreender, em que sentido a amizade fraternal com os entes em sua totalidade é universal.

Na medida em que compreendermos o sentido sui generis do universal, vamos também compreendendo como é o modo de ser do ser-fraternal, portanto da Vida Fraterna.

Vamos iniciar a reflexão com a afirmação do Evangelho, sobre a qual se funda a Vida Fraterna Cristã: “Ama o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua mente”. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é o mesmo a este: “Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-40).

  1. Esse mandamento, nós já o sabemos de cor. Compreendemo-lo, de tal modo que se torna uma fala monótona e já demasiadamente ouvida repeti-lo aqui. Mas o compreender torna uma fala demasiadamente monótona e já ouvida. Mas o compreendemos de fato? Sabemos realmente de cor? Pois de cor significa de coração! Aprendemos uma sentença de cor quando a realidade expressa na sentença se torna carne da minha carne, o coração do meu ser, de tal modo que ela volta sempre de novo a tocar-me o coração, a ponto de não mais sair da memória. Isso é saber (saborear) de cor (de coração).
  2. Vamos, primeiro, comentar o texto do Evangelho, para depois tirar a conclusão acerca da compreensão do que é a Vida Fraterna. O comentário será um tanto abstrato e monótono. Peço-lhe, porém, que experimente seguir o pensamento, pois é muito importante.

Aliás, recordamos: a reflexão espiritual é um trabalho. A partir de um certo nível de profundidade, compreender uma realidade espiritual se torna um trabalho árduo que, pela própria natureza da coisa ela mesma, exige sacrifício de um trabalho árduo de pensar. Peço-lhe, pois, não se poupar em assumir esse trabalho de pensar.

O Evangelho diz: Ama!

Amar o que é? Amar, amor, indica uma realidade que todo mundo sabe o que é, e, no entanto, não sabe bem o que é, se é perguntado sobre ele. Isto acontece porque as palavras amar, amor, como no caso das palavras viver, vida, indicam uma realidade tão intimamente fundamental, total e próxima do homem, que não pode ser colocada diante de nós como uma coisa ou um objeto, para captá-lo e defini-lo. Indica, pois, uma realidade fundamental que só pode ser captada através de um lento e longo crescimento na caminhada de uma experiência.

Por isso, o imperativo ama: não é uma ordem moral para eu seguir, numa norma fixa já determinada como isso ou aquilo, mas sim um apelo, um convite exigente para entrarmos na caminhada de uma busca profunda e bem trabalhada da experiência.

Se, porém, observamos a experiência e principalmente a experiência de pessoas que viveram autenticamente esse mandamento como por exemplo, São Francisco de Assis, podemos talvez dizer que entre muitas outras características apresenta duas fundamentais: amar é ao mesmo tempo querer e sentir.

Amar é querer intenso, decidido, mas não é só querer. Ou melhor, amar é um querer que é mais do que uma simples e engajada afirmação da vontade ou desejo de querer. É um querer cuja clarividência e orientação é uma afeição, um sentir muito preciso, afinado, direto e evidente.

Geralmente, explicamos o amor ou só como um querer, ou só como um sentir. Se explicamos o amor só como um querer, amar se torna um ato arbitrário da vontade, um ato voluntarioso e lhe falta então a fineza, a delicadeza, a afeição de ternura e do calor humano. Torna-se uma energia de paixão da vontade, facilmente se torna fanatismo sem clarividência e faro humano, torna-se uma imposição do eu.

Se explicamos o amor só como sentir, então falta-lhe a consistência, a fidelidade, o vigor determinado da decisão e facilmente cai no vago e instável romantismo sentimental.

No entanto, amar, o amor, é antes uma decisão forte, apaixonada, cultivada no empenho de um querer, sempre de novo assumido, mas que obedece, ao deixar-se guiar pelo toque de uma condução que sempre mais exige uma ausculta precisa e delicada, para corresponder ao aceno da realidade a que se quer amar.

Essa ausculta precisa e delicada para corresponder à condução do que me toca é antes um sentir do que ter uma idéia ou um conceito. Mas um sentir que busca sempre de novo a compreensão bem afinada rigorosamente exata da realidade que me toca. Essa compreensão está sempre respeitosamente aberta à compreensão concreta, mais profunda e mais radical, maior e melhor da realidade amada.

É portanto cuidado e solicitude em ver melhor, ouvir melhor, captar melhor o que se desvela aos poucos, de encontro à realidade amada. É necessário a disposição de aprender e aprender a cada passo de novo, ao querer amar.

  1. Esse modo de querer chamado amar, que é uma busca, tem o modo de ser que é: de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua mente.

Certamente, o mandato do Evangelho se refere a Deus. Por isso, poder-se-ia pensar que o modo de ser de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente se refere só ao amor de Deus. No entanto, a Deus não o podemos ter presente como temos um objeto ou uma pessoa diante de nós. Deus é uma evocação, um apelo que só aparece em coisas, eventos, vicissitudes, pessoas que vem ao meu encontro na minha Vida, na minha História. Por isso, o modo de ser descrito no Evangelho como de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente se refere a todos os atos do meu ser, a tudo.

Coração, alma e mente são termos que indicam a totalidade do ser, todo o ser do Homem. De todo o coração, de toda a alma, de toda a mente significa pois: com tudo que o Homem é.

A palavra grega usada para indicar o todo é hólon. A palavra “segundo” ou “conforme” se diz em grego Katá. Portanto, em grego, o modo de ser que é conforme o todo, segundo o todo se diz: kathólon. É da expressão Kathólon que é derivada a palavra que nos distingue: cathólico. Católico é universal. Mas o universal aqui do Kat’ hólon não significa tanto tudo no sentido somativo de todas as coisas quantitativas mas sim: com todo o vigor de tudo que o homem é desejando, querendo, se empenhando ardentemente de boa-vontade, em todas as situações necessariamente limitadas e finitas, definidas do seu viver concreto.

  1. Mas o que é isto: o vigor de tudo que o homem é? Isto é: o coração, a alma, a mente? O que é o homem?

Diz Santo Agostinho, dialogando com Deus: “Tu nos excitas, de tal modo que louvar-te seja alegria, pois nos fizestes para Ti e inquieto é o nosso coração até que descanse em ti” (Confissões).

O homem é, pois, essencialmente uma busca. Mas busca de que? Busca de Deus?! De Deus? Não buscamos uma porção de coisas que não é Deus?

Não trabalhamos, não lutamos, não choramos, não sofremos, não nos frustramos, nos desesperamos, sim até não agredimos, pecamos só para agarrar, possuir, ter aquilo que buscamos? Mas afinal, em tudo isso, em todo esse agitar inquieto do nosso coração, o que buscamos? A nossa própria felicidade. Buscamos a realização, a satisfação do anelo do nosso coração, da nossa alma, da nossa mente.

Essa busca, diz Santo Agostinho, é excitada por Deus. Por isso, diz Santo Agostinho, enquanto o Homem não atingir a Deus e parar em Deus, jamais terá satisfação, a sua felicidade, e estará sempre mais e mais frustrado. Mas quando é que tenho a felicidade? Quando é que atinjo a Deus e paro nele e assim tenho a satisfação, a realização, a felicidade? Quando eu começar a ficar feliz, quando se me tornar alegria louvar a Deus como a um íntimo e o mais próximo Tu do meu anelo.

O primeiro mandamento do Evangelho, portanto, nos convida: Queiras, com todo o vigor do ser, abrir-te a uma busca da felicidade, de tal sorte que te leve a atingir a tua suprema, a tua máxima felicidade, realização. Essa felicidade, essa realização tu a terás, quando a tua felicidade, a tua alegria consistir em louvar a Deus!

Mas o que é isto o louvor de Deus?

O louvor de Deus é quando o homem se “amarra” de tal sorte à Grandeza, à Beleza, à Graciosidade de Deus que fica “embasbacado” e se esquece de si, se alegra que o seu Deus é assim, se torna feliz só pelo fato de o seu Deus ser o que Ele é. Mas essa admiração é ao mesmo tempo uma afeição, isto é, um excitamento de um grande desejo e querer: desejo e vontade de ser semelhante a Ele, não porque quer ser alguma coisa, mas simplesmente porque ficou afeiçoado.

Esse é o sentido do grande convite do Evangelho: Amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente.

  1. Mas, para me abrir a Deus no esquecimento total de mim mesmo, nessa admiração atônita diante da Grandeza, Beleza, diante do Ser de Deus, é necessário eu conhecê-lo, vê-lo.

O que é esse Deus, quem é esse Deus, a quem não vejo, nem conheço, mas a quem devo louvar para eu ser plenamente feliz? Como e onde encontrá-lo?

Como resposta a essa pergunta, o Evangelho apresenta o segundo convite: Ama ao próximo como a ti mesmo!

É algo muito conhecido esse convite. Sabemos muito bem que no próximo está Deus. Sabemos que se não amarmos ao próximo que nos é visível, não podemos amar a Deus a quem não vemos. Mas não me adianta nada saber tudo isso se eu não sei como Deus está no próximo… Pois é assim que quase sempre é mais fácil amar a Deus a quem não vemos do que amar ao próximo a quem vemos? Amar esse próximo, carregado com todos os seus defeitos, com todas essas negatividades da Terra dos homens… É mais fácil amar a Deus ideal do nosso coração…!

Não é também assim que amamos o próximo, dizendo que ali está Deus, justamente porque o próximo corresponde à idéia que temos de Deus, idéia que corresponde à nossa medida, portanto a Deus, segundo o nosso coração, nossa alma e nossa mente? Mas, se quisermos ser semelhantes a Deus, devemos ser nós semelhantes a Ele, e não Ele semelhante a nós…, devemos nós ser segundo o coração de Deus e não buscar um Deus segundo o nosso coração… O que acontece com a nossa busca de Deus, se tudo que queremos amamos, desejamos e buscamos com a nossa felicidade e a felicidade do próximo justamente encobrisse o modo de ser próprio de Deus? A pergunta nos faz perceber que amamos a Deus e ao irmão, o irmão em Deus e Deus no irmão, com e na medida em que amamos a nós mesmos. Mas, então, Deus e os irmãos, Deus no irmão e o irmão em Deus, aparecem positivos ou negativos, agradáveis ou desagradáveis, bons ou maus conforme o seguinte critério: se eles correspondem ou não à medida com que e em que amamos a nós mesmos? Quer isto significar que só amamos a nós mesmos, quando pensamos que amamos a Deus ou ao próximo? Que só a nós amamos menos, quando pensamos que amamos a Deus ou ao próximo menos, com pouco empenho? Certamente, eu, na maioria dos casos me amo a mim mesmo. Amo muito pouco a Deus e ao outro irmão. Até acontece que odeio o meu irmão. Por que? Porque não me é agradável, porque me é incômodo, porque me prejudica, ofende etc. O meu pouco interesse, o ódio por ele são relacionamentos resultantes da medida do amor que tenho a mim mesmo? Isto significa que só posso relacionar-me com o outro na medida do amor que eu tenho para comigo? Que o outro, Deus ou o irmão é próximo ou longínquo, conforme a envergadura da medida do amor que tenho para comigo? Se eu me quero como egoísta mesquinho, só preocupado comigo, então tudo quanto não está a serviço do egoísmo e da minha preocupação por esse pequeno eu é longínquo, não me é próximo?

Então, se eu me amar com grande medida, Deus e o irmão, o outro se torna mais próximo a mim mesmo? Sim!

Ora, o Primeiro Mandamento nos convidou a buscarmos de todo o coração atingir, querer para si, a suprema felicidade, a suprema realização, a saber: ser semelhante a Deus. Querer uma tal realização para si é amar a si mesmo de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente. É amar a si maximamente, é buscar para si, é propor a si o máximo de medida.

Como é, no entanto, essa medida?

O segundo mandamento que é o mesmo do primeiro responde: Imagine você uma pessoa cujo amor é tão grande, tão grande que todas as coisas, todas as pessoas, tudo se torna seu próximo. Ali, nada há que lhe seja longínquo. Querer ser uma tal pessoa, portanto, querer ser como Deus, semelhante a Deus é a suprema medida que o homem pode querer para si.

Dentro dessa explicação, o que é portanto: amar ao próximo como a si mesmo? É um convite. É um apelo que nos diz: ama a ti mesmo, busca para ti como realização, como felicidade uma medida tão grande, tão generosa de amor, como a Deus: sê tão grande que todas as coisas, todas as pessoas, tudo te seja próximo… O primeiro e o segundo mandam e dizem o mesmo, esse Grande Mandamento do Senhor é, pois, apelo e provação, desafio para a Vida Fraterna Universal.

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (IX)

  1. O Grande Mandamento do Evangelho nos manda: ama a ti mesmo, busca para ti como realização, como a suprema felicidade uma medida tão grande, tão generosa e cheia como a do coração de um Deus: sê tão grande que tudo te seja próximo, teu irmão.

Este mandamento é convite para o fraternismo universal.

O que aciona essa ambição é a vontade de querer ser semelhante ao Pai, ao Deus de Jesus Cristo. Essa vontade é a dinâmica, o móvel, a Vida da Vida Fraterna. Se recordamos, o que indicamos nas reflexões sobre a Vida Comunitária como o comum, como o fundamental da Vida Religiosa é exatamente essa dinâmica, essa Vida da Vida Fraterna, proposta como a condição necessária para a nossa suprema felicidade, pois: “inquieto está o nosso coração até que repouse em Ti” (Santo Agostinho).

  1. Tudo isso nós já sabemos antes dessa reflexão. Agora, depois dessa reflexão, o nosso coração não sente o toque. Tudo parece lógico. Mas nada de novo nos afeiçoa. Tudo isso já sabíamos à beça. No entanto, por que, apesar de sabermos tudo isso à beça, não sentimos nenhuma ambição em buscar de todo o coração uma tal realização? Por que não sentimos o gosto da Vida Fraterna? Por que achamos esse Mandamento do Evangelho – que é a condição suprema a nossa salvação, da nossa libertação – algo utópico, sem a possibilidade real de se praticar?
  2. É costume, hoje, dizer que tudo isso não cola, tudo isso não toca, porque é intelectual. No entanto, essa mania de colocar o intelecto como o primeiro e o único bode expiatório para a nossa falta de vigor na busca do Amor do Deus de Jesus Cristo, seja talvez uma solução cômoda, preguiçosa. Seja talvez uma fuga, busca de um álibi para encobrir a nossa anemia espiritual que nem sequer no intelecto consegue se animar a buscar o verdadeiro e fascinante apelo do Grande Mandamento.

O slogan, porém, é esse: “fora o intelecto”: o que importa é a vivência!”. E nos lançamos a organizar encontros de vivências fraternais. Tudo isso é bom, contanto que sirva para despertar e aumentar a realidade da busca. No entanto, há ou pode haver nessa busca da vivência fraterna um equívoco pernicioso que na badalação e na euforia das fraternizações nos podem drogar e com o tempo podem enfraquecer o gosto e o vigor da nossa identidade, a tal ponto de a nossa busca se tornar uma droga aguada de sonhos e desejos da compensação eufórica e ingênua do nosso coração insatisfeito.

Não é assim que nossos encontros em favor da animação da Vida Fraterna tendem a se embalar na festiva troca de amabilidade e de belos chavões, de crítica abstrata contra as estruturas, em fugas e crendices numa determinada organização e técnicas comunitárias, sem entrar numa reflexão responsável, bem trabalhada, para abordar com total sobriedade e realismo essa imensa tarefa, difícil e dura da Vida Fraterna?

Quando um grupo de engenheiros se reúne para por exemplo abordar o problema da construção de uma usina que é um desafio à engenharia, não perde o tempo em desejos e veleidades, em troca de afabilidades e confraternizações, mas tenta concentrar-se de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente no único trabalho do exame da construção. O mesmo fazem os artistas, os operários, os esportistas, etc., justamente porque a tarefa é difícil e exige economia de tempo e concentração. E é nesse trabalho e nessa concentração que então surge por si, sem badalação, sóbrio e real o elo de união fraternal.

Talvez não abordamos a Vida Fraterna com a suficiente sobriedade de um trabalhador diante de uma grande, árdua tarefa de toda uma vida.

  1. Mas parece que na falta de vigor e sobriedade operária na abordagem desse magno trabalho da Vida Fraterna há um ponto nevrálgico a considerar.

Quando abordamos o problema da Vida Fraterna, a partir de onde o fazemos? Não é a partir do desejo e sonho de felicidade do nosso coração? Não é assim que sonhamos com a felicidade da Vida Fraterna, o sonho da compreensão mútua, de ajuda mútua, assim como imaginamos e desejamos numa atmosfera de um lar feliz? Não é assim que no fundo de nós mesmos já dissemos, já determinamos, que, se não se puder alcançar na Vida Fraterna comunitária a realização de um tal desejo, a minha vida Religiosa não tem sentido? Não o fazemos assim, mesmo quando enfaticamente proclamamos que Deus é Amor?

Com outras palavras, de antemão, não estamos querendo impor à realidade, à Vida, a Deus (?) o sonho e o ideal de satisfação de nosso desejo? Não estamos querendo a Vida, a Deus conforme o nosso coração, esquecendo-nos que o nosso coração só se satisfaz, se nos tornarmos segundo o coração de Deus? Usando a formulação tradicional: ao buscarmos na Vida Comunitária, no cotidiano, a felicidade da Vida Fraterna, como a buscamos? Fazendo a própria vontade ou a vontade de Deus?

Não basta portanto dizer: faço a vontade de Deus, se amo o meu irmão. Pois, depende da medida com que amo a mim mesmo para poder amar o meu irmão. E a vontade de Deus expressa no Mandamento do Senhor nos diz: ama a ti mesmo com uma tal generosidade e grandeza que tudo te seja teu próximo.

  1. 5. O estranho é que, ao ouvirmos a voz desse convite, nos sentimos oprimidos! Tudo isso nos soa como uma exigência desumana. Surge no nosso ser uma objeção, sim uma espécie de revolta: afinal, não tenho o mínimo direito de ser feliz segundo a minha vontade? Por que devo abnegar de mim mesmo, me negar e me forçar a amar tudo? Por que não tenho o direito de buscar na Vida a satisfação, a compensação, o lenitivo, a alegria do meu próprio eu? Não tenho afinal o direito e a necessidade de uma felicidade pessoal, individual? Por que devo me sacrificar pelo Universal, pelo Kathólico, pela coletividade?

Essa objeção não deve ser abafada. Pois ela nos leva a refletir melhor, para evitar um grande equívoco. É que, hoje, se fala muito da necessidade de despertar o interesse pela coletividade, criticando severamente o ensinamento individualista. Fala-se então da necessidade de abandonar a espiritualidade tradicional mais individualista em favor de uma espiritualidade mais virada ao social.

A nossa reflexão não se situa no nível dessa discussão hoje muito comum nos encontros dos religiosos. Pois para tomar posição numa tal discussão seria necessário examinar e esclarecer com maior rigor do que o fazem tais discussões, o que é o fenômeno chamado individual, social e principalmente o que é o significado do espírito no termo espiritualidade. Para esse exame e esclarecimento que, aliás, é importante para a compreensão mais profunda do que é a universidade da Vida Fraterna, seria necessária uma bem trabalhada e árdua reflexão que consistiria num tema próprio de todo um curso.

Aqui, na nossa reflexão, tudo quanto falamos, se refere estritamente ao individual-pessoal. E mesmo lá onde se fala da coletividade, do social, falamos do individual-pessoal de cada membro da coletividade. Por isso, quando falamos do convite do Grande Mandamento para a abertura universal da Vida Fraterna, não estamos falando no sentido da exigência da coletividade em oposição ao individualismo, mas sim no sentido de uma busca, maior e mais profunda da própria sorte do individual-pessoal. E isto, pelo simples fato de que o Mandamento do Senhor nos diz que a universalidade da Vida Fraterna é essencial à constituição da minha felicidade, realização, da minha individualização pessoal. Mas um tal tipo de individual-pessoal não coincide com o individual do individualismo, contra o qual combate a posição que acentua o social.

Voltando à objeção feita acima pelo desejo do nosso coração, podemos dizer numa formulação um tanto paradoxal: Fazer a vontade de Deus é fazer a vontade própria de uma forma mais radical e mais clarividente do que fazer a vontade própria…

Como entender tudo isso?

A objeção revoltada do nosso coração diante da exigência do Mandamento do Senhor dizia: Por que devo abnegar a mim, me negar e me forçar a amar tudo? Não tenho afinal o direito de buscar na Vida Comunitária a satisfação, o consolo, o lenitivo e a alegria do meu próprio eu?

Certamente que tenho um tal direito! É só buscar!

Mas eu não encontro tudo isso que procuro! É por isso que estou insatisfeito, frustrado… Já o busquei suficientemente? Ou estou esperando que tudo me seja dado, sem esforço? Claro que já o busquei demais! Fiz tudo o que podia, mas sempre me foi negado. O que vou fazer agora? Resignar-me? Amargurar-me? Rebentar tudo? Abandonar tudo? Apagar-me, porque tudo não tem mais sentido?

O Mandamento do Senhor pergunta: É isso que você deseja a você? É isso que você ama em você? Não se consegue amar mais, colocando a si mesmo uma medida maior? E eu respondo: Não é isso que eu procuro, não é isso que eu amo em mim. Eu quero, amo uma outra coisa. É por isso que estou frustrado…

Mas o que quer você? O que é essa outra coisa a que você ama? Não é uma felicidade segundo a sua própria vontade? Você quer, você ama um eu para você que só quer viver a felicidade, procurar a realização como você a imagina para si. É esse eu, amado por você que lhe traz a frustração… Não haveria a possibilidade de amar e desejar para você um eu que sabe e pode amar algo mais, que ame uma outra coisa do que aquilo que o seu coração deseja e acha bom para você?

Se eu busco no convívio comunitário a Vida Fraterna, imaginando-a e desejando-a como lar, tudo quanto não corresponde a essa minha representação deixa de ser próximo. No lar, na minha casa, cada um se interessava por mim, todos partilhavam dos meus sentimentos, segredos, da alegria e do sofrimento. Na Vida Comunitária tudo é diferente… Cada qual vive o seu trabalho, a comunicação fica no nível objetivo do ofício, não há intimidade familiar etc. etc. Digo amargurado: eu não encontro num tal ambiente nenhuma realização, tudo isso não tem sentido. Por quê? Porque não é como o lar que desejo. Assim tudo me é longínquo, frio, não está próximo de mim.

Querer assumir tudo isso à força, apelando ao sacrifício, não me adianta muito, pois eu não agüento tanto sacrifício sem sentido, tudo isso me amargura… Tudo isso que dissemos é uma caricatura e exagerado. Mas estamos muitas vezes em tais situações de amargura. Diante de uma tal posição, o convite da Vida Fraterna Universal, o convite do Grande mandamento nos diz: ama a ti mesmo de tal sorte que tudo, e também uma tal situação te seja próxima.

Mas enquanto não mudarmos a nossa mente, não é possível que tudo isso realmente se torne próximo. Mudar a mente é conversão. Converter todo o meu ser significa, porém, querer, amar mais a mim mesmo.

  1. Mas amar mais a mim mesmo, o que significa?

Significa tentar mudar a situação, o estado de coisas? Significa impor à força a perspectiva e a expectativa do que desejo à realidade, à Vida? Não! Isto seria não amar suficientemente a mim mesmo!

Mas então o que significa? Significa uma guinada no modo de ver e sentir a Vida e a minha própria identidade. Em que sentido? No sentido de experimentar ou ao menos perceber, que há uma maneira bem diferente de ver e interpretar, amar a Realidade, a Vida.

Talvez um exemplo nos diga como é essa maneira bem diferente:

Digamos que eu sou aquela pessoa que vivo insatisfeita com a Vida Comunitária, porque ali não encontro o ideal da Vida Fraterna como o que imagino e desejo, como a vida feliz de um lar. Ao meu lado, vive um confrade que parece o ver e sentir a realidade diferente de mim. Não é que ele seja indiferente. Não é que ele seja um otimista ingênuo, para quem tudo está bom. Talvez mais do que eu, é sensível à realidade nua e crua, aprecia talvez mais do que eu a beleza e a grandeza, a ternura daquilo que eu desejo. Mas parece ter uma outra atitude diante daquilo que para mim é negativo, diante da rotina, diante da sobriedade de relacionamento no cotidiano, da ausência de compreensão e afeto, diante dos defeitos e das faltas, a mediocridade e imbecilidade das pessoas que compõem a Comunidade, inclusive de si mesmo. Ele mesmo parece não esperar da Vida e da Comunidade o que eu sempre de novo exijo e espero da Vida e da Comunidade. E no entanto, gratuitamente, tenta dar aos outros, muita atenção, se interessa por eles, na medida em que isso lhe é possível.

De início, atribuo tudo isso ao seu caráter feliz, ao talento, à sua virtude, à sua educação. Com o tempo percebo que ele sofre e luta, que lhe custa muito ser assim. Tudo isso não vai de graça, paga o preço de um empenho repetido e cotidiano. Descubro também que ele não é melhor nem pior do que eu. Não é mais nem menos forte, mais nem menos virtuoso do que eu. No entanto, há uma grande diferença entre mim e ele. Para ser feliz, eu sonho num lar como eu desejo na minha mente, no meu coração. Ele não somente sonha, mas quer e busca de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente, uma outra coisa. Busca como sua suprema felicidade, como o seu íntimo lar, tornar-se um eu que seja semelhante a Deus, semelhante à imagem de Deus, imagem essa que lhe vai aparecendo aos poucos, na medida em que ele busca na luta e no sofrimento, na vitória e nos fracassos de todos os dias.

Ele como eu tornou-se religioso para buscar a felicidade, a realização. Ele como eu, ao entrar na Vida Religiosa, tinha uma idéia da felicidade. Mas, aos poucos, começou a perceber que a felicidade como ele a imaginava e queria era muito pequena. Começou então a buscar adquirir uma idéia de felicidade maior, mais profunda, mais real e mais firme. Na busca, sempre de novo teve que abandonar o sonho que enchia a sua mente. Esse abandonar-se não era, porém, nenhuma resignação, nenhum desânimo amargurado, mas sim um pulo decidido na busca de algo mais. E através da experiência de sofrimentos e vitórias, de conquistas e fracassos, começou a vislumbrar como e o que poderia ser um homem, se nele entrasse o vigor do Deus de Jesus Cristo. A imagem de um tal homem tornou-se então o ideal de felicidade que o afeiçoava, o chamava sempre de novo. Começou então a colocar como o objetivo de sua busca da felicidade essa imagem que não era uma idéia fixa, mas que mais e mais, sempre de novo e sempre nova crescia nele. E assim começou a encarar e a enfrentar tudo, o positivo e o negativo, o agradável e o desagradável como chance de nova experiência e de crescimento na busca dessa felicidade, para tornar-se cada vez mais claro, profundo, aberto e seguro na compreensão desse ideal. Não havia entre mim e ele grandes diferenças no tocante às dificuldades, às lutas, aos sofrimentos e fracassos. Havia, porém, uma enorme diferença nisso que eu procurava medir tudo a partir da medida do eu fixo e bitolado em mim mesmo, e sofria muito se a realidade não correspondesse a essa minha medida, ao passo que ele colocava toda e qualquer medida do eu, sempre de novo, sob a provação da medida daquilo que se lhe desvelava aos poucos como a identidade que ele devia buscar e amar.

Essa diferença de atitude na abordagem da realidade é o que determina a viragem, a mudança de mentalidade, a transformação no modo de ver e sentir a Vida e a minha própria identidade.

  1. A que conclusão nos leva a nossa reflexão na compreensão do que é a Vida Fraterna?

– A Vida Fraterna não é uma das atividades da nossa vida ao lado de outras atividades. É o modo de ser, a atitude que abrange todos os nossos comportamentos em relação a tudo.

– Essa atitude é o que o Grande mandamento do Evangelho nos propõe como a nossa própria identidade: o homem só se torna feliz e realizado, se coloca o seu próprio eu a serviço da busca constante no crescimento dessa grande identidade.

– O crescimento dessa Grande Identidade significa amar verdadeiramente a si. Esse amor a si, no entanto, me dá condições e possibilidades de ir ao encontro de tudo como a desafios e convites de maior crescimento no amor a si. E na medida em que crescemos nesse amor, todas as coisas, todos os eventos, todas as pessoas começam a se aproximar de mim, se tornam meus próximos, não de modo sempre igual, não de modo sempre agradável ou positivo, mas sempre de modo a ser para mim convite e desafio para o crescimento.

– Esse crescimento na Grande Identidade de mim mesmo, no entanto, não é outra coisa do que o empenho de me assemelhar cada vez mais ao Deus de Jesus Cristo: amá-lo com todo o nosso ser, de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente.

– Esse crescimento, então, faz brotar em mim uma força de afirmação da Vida, a alegria de viver. Essa alegria é a Vida Fraterna. Alegria de ser, que me faz irmão de todo o universo, na Graça e na Alegria de ser do Deus anunciado por Jesus Cristo, do Deus Criador gratuito de todas as coisas.

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (X)

  1. A Vida Fraterna como nós a viemos considerando é um desafio. Desafio de empenho. Mas, ao ouvimos tudo isso que foi dito acerca da Vida Fraterna, não conseguimos nos livra de uma sensação de tudo isso toda exigência, toda essa busca um tanto forçada, voluntariosa, irreal. E surge a pergunta: Mas que tem a ver a Vida Fraterna assim compreendida com a nossa vida cotidiana e real da Comunidade?
  2. Na vida cotidiana da Comunidade, nos relacionamos com coisas: com acontecimentos alegres e tristes, simpáticos e antipáticos, agradáveis desagradáveis; com o tempo, frio ou quente, chuvoso ou seco, escuro ou claro; com co-irmãos, com seus defeitos e virtudes, seus caracteres, educação, nacionalidade, com o nosso trabalho, com as nossas orações, com os horários da casa, conosco mesmos, com tudo de bom e tudo de ruim que há em nós, tentações, desejos, vitórias e fracassos, nossos desânimos e esperanças; com a história; com a cultura; com ideologia etc.

O grande mandamento nos diz: ame de tal maneira tudo isso à semelhança de Deus, para quem tudo isso seja próximo por causa da grande medida de acolhida do seu amor.

Talvez, afeiçoado por esse convite, faz o bom propósito de tudo acolher na cordialidade de ser do Deus de Jesus Cristo. Digo decididamente; eu quero assim tudo acolher!

No entanto, um tal propósito não funciona. Permanecem as diferenças do positivo e do negativo, do simpático e do antipático, do agradável e do desagradável. Forço a vontade, faço sacrifícios, engulo os negativos, os antipáticos, os desagradáveis, à força. Até o meu estômago começar a rejeitar tudo.

E ainda por cima de tudo isso, assalta-nos o sentimento de culpa e de má-consciência de não estarmos amando como devemos…

É isto, essa má-consciência, o sentido do grande e libertador mandamento do Senhor?

Respondemos: Não pode ser amor de Deus e do próximo, pois é libertador. É necessário amar com mais jovialidade. Vamos lá! Sejamos positivos! Paz e amor…

Mas torcida otimista também não agüenta muito tempo. Pois a realidade tenaz e dura do negativo na nossa vida cotidiana nos faz ver que um tal otimismo eufórico é irreal e não toma muito a sério a realidade. O que fazer, pois, para viver o grande mandamento da vida fraterna universal?

É difícil dizer o que se deve fazer. Pois a pergunta e a resposta aqui devem ser cada vez na sua situação, dentro da história e do processo de uma vida concreta.

Aqui, no entanto, nessa reflexão, queremos acentuar apenas um ponto de grande importância para a vida fraterna, sejam quais forem as situações concretas de sua realização!

O ponto essencial que queremos acentuar é o seguinte: é necessário, numa reflexão bem curtida e experimentada, recordar-se, sempre de novo, que a vida fraterna é uma busca. Portanto, o nosso fazer a vida fraterna deve ser realizado, operado, correspondendo ao modo de ser todo especial da busca.

Sobre esse modo de ser da busca, favor ler e estudar tudo o que dissemos na reflexão nº (v).

Não é possível você galgar uma montanha, como se estivesse andando em passeio num jardim. Para galgar a montanha você se tem de se adaptar ao modo de ser dos caminhos íngremes, dos atalhos complexos e tortuosos da montanha. Assim também, se a vida fraterna é uma busca, você deve se adaptar ao modo de ser de uma busca. Por isso é de máxima importância você assimilar, experimentar e compreender na prática da vida cotidiana como é esse modo de ser da busca, explicado na reflexão n v.

Aqui, apenas como repetição, vamos tentar ilustrar esse modo de ser da busca que a vida fraterna é, à mão de um exemplo.

  1. Digamos que sou responsável pela formação de jovens confrades neoprofessos da Província. Digamos que com o tempo, percebo que há entre esses confrades uma pessoa que causa problemas comunitários. Digamos que esses problemas comunitários bem graves e que com o tempo criam um ambiente muito pesado. Digamos que a agressividade daquela pessoa em questão é contra todos e tudo, de sorte que toda a tentativa da parte dos outros em suportá-la acaba perdendo a paciência, Surge para mim a pergunta: como agir nessa situação, segundo o Grande Mandamento do Evangelho; como entender nessa situação concreta, o apelo do Grande Mandamento da vida fraterna que me convida a ser semelhante ao Pai, para quem tudo, os bons e os maus, os justos e os injustos, os simpáticos e os antipáticos, os cômodos e os incômodos, os fáceis e os difíceis são o próximo?

Experimente responder a essa pergunta você mesmo, em concreto: Como a sua mente está operando nessa tentativa de responder a está pergunta? Não está a buscar um critério, uma norma para poder agir certo?

De quem você espera o critério, a norma para você agir certo? Dos outros? Da instituição? Da Igreja? De Deus?

Em geral, numa tal situação, nós não sabemos o que fazer, o que pensar. E então, ou deixamos correr as coisas, ou interferimos com violência precipitada, ou tentamos sem nenhuma orientação, improvisar soluções imediatistas para simplesmente adiar o problema.

Em todas essa atitudes há uma coisa comum: estamos fugindo da responsabilidade de assumir e tomar a sério o modo de ser da busca na realização do Grande Mandamento da vida fraterna. Pois não há busca, lá onde já existe norma ou critério fixo. Mas também não há busca, quando se desanima, se precipita, se age de qualquer jeito, como vem, se a coisa na indecisão indiferente do deixar acontecer.

O modo de ser da busca exige uma atitude bem diferente: Antes de tudo ele exige que eu mesmo responda às perguntas que faço. Com outras palavras, exige que não fuja da responsabilidade de eu mesmo dever responder às perguntas, sem esperar que uma norma vinda de fora me tire essa responsabilidade. Por isso, toda resposta que eu der, está sob a minha responsabilidade, de tal sorte que eu devo assumir a responsabilidade e as conseqüências.

Em seguida, o modo de ser da busca exige que eu aceite como normal a desagradável situação de saber o que fazer, de saber o que pensar numa determinada situação de impasse. Que me acostume a permanecer sereno, sem me precipitar, sem desanimar, na busca e na atenta ausculta de uma resposta.

Como se daria tudo isso no exemplo acima citado?

Digamos que a tensão aumenta. Ninguém mais suporta aquele jovem irmão em questão. Pedem-me que eu como educador responsável faça alguma coisa. Experimento excogitar a aplicar uma porção de planos. Digamos que nenhum desses planos funciona: p. ex. de pedir tolerância dos outros, pois suas paciências estão esgotadas; de pedir que a pessoa em questão se corrija, pois se ele conseguisse se corrigir, não haveria problema; de colocar a pessoa em uma outra Comunidade, pois com isso apenas se deslocaria o problema; de excluir a pessoa da ordem ou da província, pois a tal solução me prece ir contra o Grande Mandamento da vida fraterna universal.

Estou, portanto, num beco sem saída. O modo de ser da busca me adverte: não desanime, não desespere, não lance mão de qualquer solução, mas escute bem o que a situação desvela.

Tento escutar e descubro:

– Estou preocupado comigo mesmo. Não quero ser considerado pelos outros como um educador incompetente. Tolerar uma tal situação é uma péssima atuação. Incapacidade minha e dos outros em agüentar uma situação comunitária.

– Os meus defeitos e dos outros confrades: impaciências, sensibilidade, sonho de lar feliz, intolerância, para o que não gosto nos outros, preferências etc. etc.

De repente, eu percebo que os outros também, éramos fariseus, e nos colocando como justos em oposição àquela pessoa difícil, condenando-a como pecadora.

Penso então ter entendido o Grande Mandamento, tomo a decisão de ser mais fraternal e tento agüentar a pessoa. No entanto, não funciona. A atmosfera se torna sempre mais densa, e ao mesmo tempo cresce em  mim e na Comunidade a consciência de não conseguir ser fraterna. Antes, condenava-se a pessoa difícil como culpado, agora a Comunidade começa a condenar a si mesma como culpada e pecadora! E a situação real não melhora…

As pessoas desgastam-se em autoacusações, em má-consciência, toda a atmosfera se exacerba numa agressividade oculta, subterrânea que corrói toda a cordialidade de viver…

Em vez de sair do impasse, entro mais e mais nele! Não sei o que fazer, o que pensar. Nem se quer compreendo como se deve entender o Grande Mandamento da vida fraterna. Desânimo, confusão, frustração…

Num tal impasse, o modo de busca me adverte de novo: não desanime, não largue a busca, não se precipite, conserve o sangue frio, recolha-se em você mesmo, escute, escute, ausculte…

E de repente, descubro o seguinte:

– Estou com medo de intervir, de fazer alguma coisa. Cada qual de nós espera do outro que faça alguma coisa. Mas eu não me arrisco a fazer algo, pois tenho medo que os outros pensem que eu não sou fraternal, que eu sou egoísta; tenho medo de eu mesmo perder a certeza e a autojustificação e estar sendo fraternal, caridoso, tolerante para com aquela pessoa, tenho de não ser justo, mas sim pecador, incapaz de realizar com generosidade o Grande Mandamento da Vida fraterna.

Mas, em vez de agredir como antes, agora vejo e sinto medo, essa minha incapacidade, sim toda a minha maneira de ser com mais humildade. Acolho a minha incapacidade como fez o publicano do Evangelho, sem me justificar, sem querer criar um alibi, e digo para mim e a Deus: Tende piedade de mim, que sou pecador diante do teu grande convite da V. Fraterna.

De repente percebo que, sem o mérito, entrou em mim a serenidade. Serenidade, livre do espírito de agressividade contra mim, contra o confrade difícil, contra a situação. E diante dos meus olhos serenos agora se descortina toda situação como ela é: defeitos, boas-vontades, diferenças, empenho de cada um, medo, frustração, sonhos e desejos de cada um, vêem a realidade em toda sua complexidade. Vejo também o imenso desejo de cada confrade em se realizar, em ser feliz. Vejo também as incapacidades de cada um e da Comunidade em suportar uma dada situação.

Decido então a tomar uma atitude, a intervir: com coração sereno, sem ressentimento, sem agressividade, com coração contrito, sabendo-me limitado e pecador. Tomo uma atitude clara, firme, totalmente autoresponsável diante do problema. Mas que atitude?

Não é possível responder a essa pergunta. Pois cada vez será diferente a atitude como decisão pessoal minha de toda essa caminhada acima mencionada. A atitude tomada na decisão pode ser bem dura, como fora a atitude de São Francisco que na regra recomenda o afastamento de irmãos, da Ordem. Pode ser também o contrário do afastamento, portanto a acolhida incondicional no seio da Comunidade, desta vez, porém, sem ilusões, sabendo claramente das dificuldades que virão.

No entanto, tanto na atitude dura de rejeição, como na atitude bondosa de acolhida, há um momento duro, nítido, bem religioso: onde tomar essa atitude numa decisão clara, firme, que vem não de uma norma, não de uma busca de segurança e certeza da medida do eu, mas da experiência humilde da aceitação do próprio limite e da declaração, i, é da confissão nítida que somos pecadores.

Essa confissão da própria incapacidade, no entanto, vem como a compreensão nítida de como é grande a medida do Amor fraternal do Deus de Jesus Cristo; vem como admiração que proclama: Como és grande, Senhor, ensina-nos aos poucos a sermos semelhantes a Ti.

  1. Mas você dirá: o que adianta tudo isso, essa confissão da própria incapacidade, a confissão da grandeza de Deus, se a pessoa em questão é afastada da Comunidade? Não é ela rejeitada? Não é ela afastada como não-próximo, como não-irmão? Como pode uma tal decisão ser fraternal? Como pode justificar-se diante do convite da vida fraterna universal?

Ela não pode se justificar. Não somente isso, declara que por mais que façamos nós jamais podemos nos justificar diante da medida imensa de Deus. Mas, também, com isso não se justifica, dizendo que fez tudo que podia, mas que é fraco, e que por isso está justificado!… E à pessoa difícil, a quem não consegue suportar, essa decisão pede desculpas, se confessa mais pecadora do que ela, e lhe pede que vá por um outro caminho, porque eu, na situação atual não consigo agir se não dessa maneira como agi. Não é essa atitude mais sincera, sem máscara, portanto, fraternal e próxima diante dos outros?

Com o tempo, se assim nesse empenho bem experimentado até ao limite, de decisão em decisão, no fracasso e na retomada busco no possível da vida fraterna, tentando compreender mais e mais a grandeza do amor fraternal de Deus, então cresce em mim o imenso desejo de imitá-lo. Mas, nesse desejo, nesse empenho, não banco mais o todo poderoso, não banco mais o onipotente, liberto-me da vanglória de minha próprias virtudes. Aprendo a pedir sempre de novo a misericórdia de Deus. No meu querer começo a entregar o sentimento. E um dia, começo a conseguir o que antes jamais pensava poder realizar.

Essa luta de humildade e de busca, sempre no possível de uma situação bem experimentada, constitui o que chamamos de vida fraterna universal.

Se é assim, então a vida fraterna, o Mandamento do Evangelho, não serve para dizer o que devo fazer numa dada situação impossível, se devo afastar ou acolher uma coisa, uma pessoa, um evento, mas nos diz com que atitude devo fazê-lo, ao me decidir pelo o afastamento ou acolhimento.

Se é assim, então a vida comunitária, a vida cotidiana da vida fraterna, todo e qualquer relacionamento com as coisas, com os eventos, com as pessoas que me vêm ao encontro, não são para o gozo da realização, não para o gozo da felicidade, mas sim desafio de uma busca, para aos poucos compreendermos o modo de ser do Deus de Jesus Cristo, o único capaz de ser católico, Kathólon, na vida fraterna.

  1. A vida fraterna é um convite, uma busca, uma grande e árdua tarefa da nossa vida, De todo o coração queremos ser semelhantes ao Pai de Jesus Cristo na sua medida cordial de acolhida universal.

Mas no empenho da realização dessa nossa máxima felicidade, da nossa máxima identidade, vamos tentar dar tudo, sem porém, querermos bancar os onipotentes. É necessário sempre de novo dar tudo, dentro do limite do possível situacional de cada concreção. O tudo do limite do possível de cada concreção, na humildade, é o sentindo da totalidade, Kathólon, do universal.

Exigir dos outros e de si, abstratamente como tese onipotente, a vida fraterna, só serve para exacerbar o nosso orgulho ferido e envenenar a situação. É muito mais busca e empenho, acolher com humildade e contrição a limitação, sentir-se profundamente pecador, e dentro desse limite, tentar dar tudo, na busca paciente de crescimento, sem inflação.

Portanto, o convite da vida fraterna universal jamais deve e pode ser uma tese abstrata, alienada da possibilidade concreta e limitada da situação. Ele jamais se dá sem experiência, sem decisão, nascida de uma longa busca que chega sempre ao impasse. Por isso ele não diz sem responsabilidade de uma busca: acolher tudo como próximo, deixá-lo ser de qualquer jeito, na bondade indiferente e confusa…

Mas quem busca na experiência, na limitação, na paciência humilde, torna-se com o tempo muito fraternal, sem no entanto, ideologizar em abstrato, em normas fixas e moralizantes ou agressivas esta ou aquela opinião de como e o que se  deve fazer numa da situação.

Pode errar nas decisões que determinam para e o que fazer isso ou aquilo, mas cresce na sua identidade, aprende, busca, aumenta a experiência e o faro, torna-se sempre mais rico na compreensão do humano, torna-se mais humilde diante dessa grande medida da vida fraterna, e nesse crescimento começa a poder acolher aos outros com mais cordialidade. O importante, porém, é que, seja qual for a sua decisão, ele não mais envenena a realidade com ilusões, autojustificações, auto-agressões e camuflagens.

Quem assim se relaciona com os outros, mesmo na dureza de sua rejeição ou crítica, não fere os outros, mas os provoca a caminhar e a crescer na sua auto-identidade diante de si e de Deus. Um tal desafio é muito mais fraternal e próximo ao outro do que uma acolhida e bondade confusa na vaga medida dos nossos desejos, modos e das afeições.

VIDA FRATERNA DENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA (XI)

  1. Oração é um tema muito importante. Mas também muito vasto e complexo. Aqui, ao terminar nossa reflexão sobre a vida comunitária e a fraterna, vamos fazer uma rápida consideração a partir do que até aqui viemos refletindo. E vamos fazer essa consideração da seguinte maneira.
  2. Você certamente está numa noutra dificuldade comunitária, Talvez se ache num impasse a respeito da vida fraterna. Ao ler a reflexão n (x) a respeito do modo de ser da busca, você não está pensando em usar as observações ali feitas a favor da sua posição? Para justificar? Para argumentar a favor da sua atitude tomada?

O convite do Grande Mandamento da vida fraterna pode ser usado por cada um dos partidos para argumentar a favor de si contra o onipotente. No conflito, quando se começa a lançar uns contra outros a exigência da vida fraterna, esta se retrai e o que resta é apenas uma arma de agressão e defesa.

Mas, não esse Grande Mandamento para ser justificar ou se culpar, para justificar ou culpar os outros é muito difícil, principalmente lá quando se deve tomar uma atitude dura a respeito dos outros, na aceitação humilde das nossas limitações. Para não usar o Grande Mandamento para ataque e defesa, a nossa atitude deve ser realmente de aceitação humilde de nossas limitações. A aceitação humilde de nossas limitações não é uma tese justificativa da minha ação e não ação. Não deve ser usada para encobrir a falta de empenho ou de boa-vontade. Mas, também, não deve ser uma expressão camuflada de resignação e desanimo deve ser a expressão de rigor e de precisão crítica muito grande e diferenciada a respeito de mim mesmo e dos outros, mas sem agressividade, sem preconceitos, sem normas e categorias predeterminadas, sem posição. Deve ser, pois, uma atitude de suspensão, de não-saber, de não-poder, e no entanto ser toda boa vontade, ser todo ouvido de ausculta, ser toda disposição para o salto, ser a alerta, a força de gratuito, ser a prontidão.

  1. Para essa disposição se requer um coração puro, uma alma transparente, uma mente clara: todo o ser da pessoa deve ser vivo, na serenidade do recolhimento. Ser puro, transparente, claro: ser vivo na serenidade do recolhimento se chama: Paz. Paz é, porém, dom de um contínuo empenho. Esse empenho se chama: Oração.

Há vários tipos de oração: oração de petição, de adoração, de louvor, oração particular, comunitária, etc. No entanto, na raiz de todos esses “tipos” de oração está uma atitude indispensável e fundamental: o recolhimento de diálogo com Deus, de alma a alma. Nesse nível, tanto a oração comunitária como individual é pessoal isto é, se dá naquela profundidade de cada um de nós, onde cada qual está só, no silêncio da sua auto-responsabilidade, diante de Deus e diante de si. Com outras palavras, tanto a oração comunitária como individual é com-munis, isto é, doação total na busca da identidade profunda de nós mesmos.

É muito superficial a abordagem do tema oração que parte da divisão de oposição entre oração individual e comunitária. Pois, tanto uma como a outra devem ser rigorosamente responsáveis pela busca do crescimento da identidade profunda. Sem essa busca, a oração comunitária não passa de um ato grupal e a oração individual, de uma fuga alienada para o gozo de satisfação do pequeno eu.

  1. O que é, porém, a oração como o empenho de buscar a serenidade do recolhimento no diálogo com Deus?

É apenas isso: silenciar-me diante de Deus: nada fazer, nada pensar, nada querer a não ser ficar aberto em profundo silêncio diante de Deus.

Para que? Para ouvir a sua voz.

A voz do Senhor, porém, não é apenas o eco de idéias doutrinas, desejos, ambições e vivências do que gostamos e queremos. Não é a confirmação daquilo que é segundo o nosso coração, mas sim o convite a nos dispormos, sempre de novo, conforme a vontade do Seu imenso coração. Mas, como sei da vontade de Deus?

Não sabemos dela a partir da nossa pequena medida. A única coisa que podemos e devemos fazer é nos recolhermos todos os dias com grande boa vontade, no esforço paciente, repetido, em nos silenciarmos, em sermos apenas ouvido atento e afinado à espera da inspiração. Essa atitude, no entanto, é um contínuo desafio para purificarmos sempre de novo o nosso coração, a nossa alma, a nossa mente, de egoísmo e da pequena medida do nosso eu, para nos libertarmos à novidade de tudo que vem ao nosso encontro, do positivo e do negativo como no convite de um crescimento para e na idade madura da estatura plena de Jesus Cristo. Só quem assim procura todos os dias de novo se silenciar diante de Deus e olha o seu rosto no reflexo do confronto com a grande medida de Deus encontrará medida certa para agir não agir, no tempo oportuno, dentro da sua própria limitação, sem jamais contrariar o Convite da Vida Fraternal Universal.

  1. Hoje, na busca de uma forma melhor e mais autêntica de oração, de Vida Fraterna e de Vida Comunitária, há muita boa vontade. No entanto, há também muita dispersão, muita badalação de técnicas e vivências, que nos podem distrair de uma busca sóbria, concentrada, tenaz e simples do Essencial.

O essencial nos reconduz sempre de novo ao trabalho daquilo que podemos diretamente, sem muita badalação e sem grandes aparatos técnicos, exigindo de nós o empenho humilde, direto e simples da nossa boa vontade.

Serenidade do recolhimento no empenho de silenciar a nós mesmos, para ser apenas todo ouvido à inspiração, esse esforço pela Paz, é a condição fundamental para descobrirmos na rotina de todos os dias, a grande chance da busca aventureira e venturosa da nossa suprema felicidade, do fundamental da Vida Religiosa, da Vida Fraterna, da Comunidade: o Kathólon da Jovialidade do Deus de Jesus Cristo.

Terminamos as nossas reflexões com a frase já conhecida do Kierkegaard:

Senhor dá-nos olhos fracos

Para tudo quanto não tem importância.

E olhos claros, penetrantes

Para tua verdade toda.

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