Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

IX – Nasce a “Ordo Minorum”

10/02/2021

 

Término do processo individual

LTC 9,30-35 Início do processo comunitário

Primavera 1208 Sócios cum-munus -> uma Família, uma Raça, um Povo

CERTO SACERDOTE CHAMADO SILVESTRE. O interesse do biógrafo ao falar do apego de Silvestre ao dinheiro e sua conversão consiste em mostrar a força edificadora de frei Bernardo.

NÃO DISPONDO DE MORADA ONDE PERMANECER. A pobreza destes frades não é meio para um fim, como por exemplo ficar pobres para dar testemunho, por solidariedade. Por outro lado eles estão quase competindo: buscam formas sempre mais duras de pobreza; não admitem que alguém seja mais pobre do que eles. A pobreza dos pobres é real e de coação, mas é diferente da pobreza destes frades. Os pobres socioeconômicos parecem mais pobres de quem pode se permitir luxo de ser pobre. Por outro lado ai pobreza escolhida por livre opção fica mais dura do que a deles! Como isso é possível? É que estes frades se colocam na pobreza de coação livremente: é pobreza que surge do “Encontro”.

Nossa compreensão de liberdade humana, já desde a infância, é que liberdade é “liberdade de escolha”; que liberdade é não estar obrigado, é ter outra possibilidade; ser livre é ser espontâneo; ser livre é ser livre das dificuldades. Então tudo o que é imposição diminui a liberdade e a dignidade humana e é duro e difícil. A compreensão usual de liberdade não admite a dureza de uma situação em que não se pode escolher. Precisamos ser mais exatos sobre o que é a liberdade humana.

Na tradição quando se fala de liberdade se pensa na liberdade como “disposição para”, isto é, vontade de se engajar de corpo e alma; como uma mãe que de corpo e alma se dispõe para aquilo que lhe é imposto pela essência dela: a maternidade; quando optou por ser mãe, não foi ela que escolheu, mas o amor a tomou! Então para mãe, liberdade não é ser “livre de”, mas ser obrigada “por dentro”, isto é, se dispor para a maternidade.

Pessoa que entende a liberdade assim fica adulta, fica de fato livre. A verdade vos libertará: a liberdade vos engajará, vos comprometerá. Uma pessoa que é pobre pelas circunstâncias socioeconômicas, não está “livre” na pobreza, pois está engajada na busca de uma saída de sua situação socioeconômica. Mas quem é coagido, convidado por uma força de engajamento, libera todas as forças para a pobreza “livre” como “necessidade de ser pobre”. São duas pobrezas diferentes. Assim se o franciscano pudesse se livrar da pobreza material não o faria, porque para ele pobreza não é carência.

Que evidência tem estes frades para buscar com tamanha selvageria aquela pobreza? Não foi Francisco que escolheu a pobreza, mas ela foi que escolheu a ele, foi abraçado por ela. Ghandi não foi ele que escolheu aquela causa, mas aquela causa tomou conta dele, assim que não é mais livre de, mas livre para a causa. Isso é encontro. Na existência humana, quando o humano fica sério, se dá este fenômeno: não há mais liberdade de escolha, mas só liberdade para, isto é, liberdade de necessidade. O cristianismo veio anunciar que se alguém não tiver possibilidade de escolha, com isso não acabou a possibilidade humana, pelo contrário, ali começa. Houve escravos que se tornaram grandes personalidades. Esse tipo de liberdade é que é apanágio do homem. (Aí como fica, por exemplo, a questão de ser sacerdote “ad tempus”…? Só transferindo para dentro da “vocação” o fenômeno “empregado”!).

A liberdade de necessidade só é possível depois de ter-se exercitado longamente na liberdade de escolha. No processo de itinerário a grande dificuldade é passar a liberdade de escolha, para a liberdade de necessidade. A liberdade religiosa só pode ser liberdade de necessidade. O itinerário religioso é tão exigente que quase não basta nem a liberdade de necessidade! Hoje se está na vã glória de heróis como Ghandi, Che Guevara… Mas examinando os escritos deles se vê que de seus seguidores exigem liberdade de “necessidade”.

Na nossa formação estamos apelando para coisas muito exigentes (inserção…), mas usamos um instrumental “burguês” e por isso dá caricatura. De cair-fora. Há aqui no itinerário de Francisco o método de como se mover, passo a passo, dentro da liberdade de necessidade.

O que diferencia os hereges de Francisco em sua fidelidade à Igreja é que, enquanto os hereges não eram “religiosos” porque ainda permaneciam dentro da liberdade de escolha (entre esta e aquela verdade, entre Igreja-sim e Igreja-não…), Francisco é “todo católico”, por liberdade de necessidade. É por isso que na hora da profissão, o professo se ajoelha e pede a profissão: não está mais na escolha, mas na necessidade, recebendo. O trabalho de quem “foi escolhido” é fecundo. O de quem “escolhe” não o é, por mais barulho que faça na hora. É por isso que a obediência é fundamental no itinerário religioso: é o sensorial desta caminhada. Nossa época quase mais não entende isso!

AS MULHERES MAIS JOVENS… FUGIAM APAVORADAS. As moças têm um ver estético; aquelas tinham medo dos frades, pois a vida deles tinha algo de selvagem. O franciscanismo, visto a partir do “olhar de mocinhas”, assusta. É como se um capuchinho entrasse numa roda de “madamas” sofisticadas. Este olhar “estético” hoje não é tão incomum!

O que nós, hoje, chamamos de selvagem, não é o mesmo dos medievais, porque o nosso entendimento de selvagem é uma espécie de saudade estética, pois o sofisticado não está mais agradando; mas bem por isso não é “selvagem” real, e portanto ele mesmo pertence ao sofisticado! O selvagem de Francisco é conquista (e portanto real), é luta e não idílio. Tudo o que é espontaneístico não entendeu o que é o “corporal” e por isso não dá certo.

ALGUNS DIAS DEPOIS, CERTO CIDADÃO DE ASSIS, CHAMADO EGÍDIO, VEIO TER COM ELES. Como é o entrar e crescer na Vida Franciscana? Na vida não se entra como se entra num quarto, num rio, num clube, num tanque. Trata-se antes de começar a experimentar todo um mundo de valores, conhecimentos, hábitos, comportamentos, atitudes, exigências, deveres e compromissos emanados de uma determinada revelação do sentido da vida.

Entrar na vida significa abrir-se para um sentido da vida, assimilá-la, tornar o mundo constituído e estruturado límpida e coerentemente como concreção desse sentido da vida. E assim ser o lugar, o corpo do desvelamento de um sentido da vida. Ser assim é o próprio do homem, é o humano. Esse modo de ser, o humano não se dá como ocorrência de um fato (pedra, coisa, objeto), não se dá como vitalidade biológica (plantas, animais) nem como energética psíquica (força “espiritual”), mas sim como história: como tarefa da liberdade da busca do sentido da vida.

Os textos espirituais são manuais onde podemos aprender a intuir e compreender as características essenciais desse modo de ser próprio do homem.

Entrar na vida franciscana é iniciar o crescer e consumar-se no processo de uma história toda própria, altamente pessoal, isto é, comprometedora de todo 0 nosso ser, mas não privativa ou individualista, pois trata-se de comprometer-se com e participar da busca e experiência historial e transcendente. Historial significa: o que vem à fala como obra da colaboração de esforços os mais intensos, nobres e originários da humanidade através dos tempos e gerações. Transcendente significa: o que vem de encontro a nós, a partir de uma dimensão anterior a nós e que ultrapassa todo e qualquer poder e saber humano. Trata-se portanto de um modo de ser-humano todo próprio.

É a exigência desse modo de ser humano todo próprio que é descrito na LTC quando ela traça o esquema de crescimento da busca de São Francisco: antes como busca de um ideal humano nobre e bom (universal, comum) e 0 seu engajamento totalmente interesseiro nele; depois como transformação dessa busca interesseira de um valor e ideal humano numa busca de tipo inteiramente diferente: atingimento, afeição e envolvimento de “enamoramento” com o encontro comum tu absoluto, que ultrapassa na radicalidade e originariedade a universalidade de todos os valores humanos e universais.

A Vida Franciscana, neste momento de desenvolvimento da busca de Francisco, é o encontro com o Tu absoluto. Aqui o Tu absoluto deve ser entendido de uma maneira toda própria, adequada com a experiência descrita na LTC. A tradição do pensamento ocidental também costuma chamar esse Tu absoluto de “o radical outro” ou também o “non-aliud”, o não-outro, uma realidade tão “outra” de tudo quanto nos é possível que nem sequer podemos dizer que ela é “outra”.

Não se tratava de uma pessoa, um sujeito, um ente supremo, de uma força ou energia misteriosa. É o que superficialmente chamamos de Deus ou o Transcendente. A experiência ainda ocidental dos medievais a respeito de Deus conserva toda a riqueza de profundidade e vastidão implícitos nessa palavra.

DEPOIS DE ALGUNS DIAS, ACHEGARAM-SE A ELES OUTROS TRÊS HOMENS. Os capítulos 8 e 9 da LTC mostram como o espírito encontrou em Francisco uma brecha e começa a gerar um modo de viver e uma prática que atrai a outros. No jeito de se ajuntar dos companheiros aparece uma maneira estrutural de sociabilidade que nos diz o que é comunidade na dimensão religiosa. Francisco e companheiros se encontram a partir da afinidade que anteriormente foi chamada de “justiça divina”; esta passa a ser o princípio de autoridade (de crescimento), o princípio constitutivo do grupo. Esta força que anima o grupo nós a chamamos de competência” do grupo, que aqui aparece bem nítida: eles são afeiçoados por um tesouro que os move a todos; o determinante do grupo é este tesouro e quem está mais afeiçoado ao tesouro mais está na comunidade.

Francisco e companheiros tem um vigor de ser que se manifesta como bem querência simples e pobre, mas muito grande; esta se esparrama para onde passam e mostra o tesouro que anima o grupo. Trata-se de afinidade de busca, de inspiração… Todos gostam de um frade simples: o que é esta simplicidade? Este fascínio pelo simples vem do fato que nele está aprisionado o espírito que reúne e move a comunidade. O simples é unidade do diferente. Se estes primeiros frades não tinham xícara para oferecer um cafezinho, ofereciam-no numa escudela, mas com tanto “cuidado” que era muito mais que oferecê-lo numa xícara. Simples é o imediato corporal que aqui aparece como selvagem: as moças fugiam. (Hoje o nosso modo de pensar o simples é muito sofisticado!).

TENDO PERCORRIDO AQUELA PROVÍNCIA, VOLTARAM AO LUGAR CHAMADO SANTA MARIA. Começa a se configurar uma das caracterizações das origens da Ordem franciscana: o capítulo. A palavra capítulo vem de “caput”, cabeça. Como a cabeça está em cima, capítulo acabou sendo entendido como uma reunião de cúpula. Os primitivos franciscanos, porém, quando pensam em capítulo, pensam diferente, pois representam o homem como uma árvore virada de cabeça para baixo, tendo a cabeça como fundamento. Imagine a árvore e um galho brotando; é o “postulante”, fazendo parte do todo, ligado a toda a árvore. No todo há pessoas tão diferentes e há setores: formação, comunidade de missão, comunidade urbana, colégio… Pode ser que um galho esteja até indo bem, mas a ligação com o todo esteja fraca por não participar do vigor da árvore; pode ser que outro esteja sofrendo, muita luta, mas que tenha muita ligação com o todo.

Capítulo é “voltar” para o todo, é convocação para a raiz; para o que chamamos de espírito da Ordem. Capítulo é momento de pensar na pertença à comunidade e à província, não só no sentido jurídico, mas no sentido de cada um, como cristão e religioso, se perguntar de novo, como faziam estes frades, ao voltarem” juntos: em que consiste realmente o meu projeto de vida? Se trata de retomar, repensar, ponderar, avaliar de novo e melhor o que nós já estamos fazendo. Nessa pertença pode ser que um galho até comece apodrecer, mas o tronco não apodrece e mesmo que eu não seja o galho que começou apodrecer, este galho que está ao meu lado, é meu também; assim se quem está a meu lado não assume o projeto, eu 0 faço no lugar dele.

-Para estes frades o capítulo convocava a pensar de novo o projeto de vida de sua vocação, e não de forma abstrata, mas bem concreta. Isso vale para nós, pois um dia fizemos um ato de juramento diante de Nosso Senhor na mão do prelado, como diz São Francisco. O modo de ser da Vida Religiosa é de subir montanha e não de viver na planície. Não será que estamos sofrendo muito, perdendo energia, tendo desgaste, porque embora digamos que estamos subindo montanha, a imagem ideal que nós temos não é de montanha, e sim de planície?

SE POSSUÍSSEMOS HAVERES SER-NOS-IAM NECESSÁRIAS ARMAS PARA A NOSSA PROTEÇÃO. Hoje a tendência é tratar a instituição religiosa a partir do sociológico. A compreensão moderna de vida comunitária é de comunidade como afinidade psicológica (com um acerto afetivo prévio) ou como afinidade sociológica (homogeneidade de trabalho, idade…) ou como afinidade ideológica (mesma línea”) ou como afinidade “previdenciária” que acha que a força da comunidade está nos meios, na técnica… (Se, por exemplo, uma dependência da casa tornou-se pequena, se constrói, mas com “folga” e visto que o material está barato, renovamos a casa velha também! O imediato corporal construiria a partir da necessidade, com muito carinho. Dinheiro é meio de nos afastarmos do imediato das coisas e empreguiça; por isso Francisco tem horror do dinheiro; vou no restaurante e pago a comida: o dinheiro impede o contacto imediato do fazer comida. Para “ter mais tempo para a vida comunitária”, coloca-se isso ou aquilo na comunidade; mas o que se entende por vida comunitária e o que se faz neste “mais tempo livre”? Sentamos, conversamos e alimentamos mais nossas emoções, afeições, psicologismos, nos embananando mais ainda no nosso eu). Tudo isso leva a uma definição abstrata da instituição religiosa, porque se perde uma das dimensões fundamentais dela.

A prática que institui a comunidade franciscana é a confrontação com o imediato corporal, como prática de pobreza e simplicidade; atrás dessa convicção há a experiência primária-elementar que nós somos reais só no aqui-agora. A prática do imediato-corporal faz acontecer uma intensa vida comunitária. Onde se evita o imediato corporal, se evita lidar com o outro. O que institui a Igreja não é a reunião da CNBB, mas a catequista que ensina 4 crianças e as prepara para a comunidade eucarística. A catequista que escreve um texto de catequese não é real, real são as 4 crianças a quem se dá catequese. O imediato corporal para a modernidade parece sem ação; é como se quiséssemos publicar um livro sobre estas reflexões, com o pretexto que alcançariam a muitos, ao invés de ficarmos aqui num grupinho, cultivando o nosso discurso. O distanciamento dá a ilusão de possibilitar muita coisa, por ser geral e indistinto, mas é ilusão; mas para afeiçoar alguém, se deveria fazer este mesmo trabalho que estamos fazendo: reunir-se num grupinho e fazer a leitura de textos. O imediato corporal é uma força muito mais originária que tudo o resto.

Se fossemos nós, modernos, a cuidar do leproso no Fioretto 25, buscaríamos “recursos”; recorreríamos por exemplo a um psicanalista para analisar sua história… Francisco ao contrário foi rezar: o imediato-corporal desperta nele a percepção de sua insuficiência diante do que vai fazer. O moderno não reza porque acha que o que vai fazer é de sua competência e se reza, “usa” da oração para aquilo que vai fazer. Convidar o leproso a se converter também não é o imediato corporal; o imediato corporal é: o que queres que eu faça?

Não tanto ver – julgar – agir, mas admirar – con-nascer – cuidar.

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