Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Introdução à Leitura espiritual, hoje

22/04/2021

 

Algo sobre leitura e espiritual

Leitura espiritual é uma das atividades recomendadas para o fomento da vida espiritual. Trata-se na leitura espiritual primeiramente de leitura, que tem o caráter de ser espiritual.

Leitura é uma das atividades exercidas e exercitadas pelo ser humano como manifestação do seu espírito. Usualmente o que lemos recebe o nome de livro.

Na era da computação, fala-se muito de que o livro tem vida já contada, pois vai ser substituído pelo computador. Independente de se isso vai acontecer ou não, é de inter-esse observar que o modo de ser do livro e da sua leitura, tem propriedade específica dele, de tal sorte que, quem consegue ver essa especificidade sempre apreciará a leitura do livro e, embora seja inteiramente afeiçoado à técnica da computação, não irá substituir simplesmente, como se fossem coisas iguais, a experiência da leitura de um livro pela ‘leitura’ de um ‘texto’ do computador.

Existem livros escritos sobre uma porção de coisas. Os livros que foram escritos sobre uma coisa, mesmo que essa coisa se chame espírito não são Pois, escrever ou falar sobre uma coisa, e correspondentemente ler ou ouvir sobre, tem um modo de ser todo próprio, que é diferente do modo de ser do escrever, falar, ler ou ouvir espiritualmente.

No caso do escrever ou falar, ler ou ouvir sobre não se tem propriamente o modo de ser do encontro, mas sim um modo de colocar a coisa sob o ponto de vista do projeto do meu interesse. Por isso a primeira coisa que me toca ali é o horizonte, é a perspectiva a partir e dentro da qual olhamos para uma coisa, sobre uma coisa, ordenando-a, ajeitando-a, submetendo-a ao meu ponto de vista. Esse modo de ordenar, de encaixar a realidade à perspectiva do ponto de vista, se chama modo de ser

Muitas vezes usamos os termos objetividade e objetivo para indicar realidade e real. Essa identificação da objetividade com a realidade e do objetivo com o real não possui a precisão crítica. Assim, o real não é igual ao objetivo; a realidade não é igual à objetividade. Objetividade, objetivo, objeto; realidade, real, res (latim = coisa) são categorias usadas a partir de duas situações de todo próprias do sentido do ser que decide a epocalidade das épocas denominadas na história da humanidade de Modernidade e Antigüidade.

Se mantivermos com precisão a distinção acima feita entre objetividade e realidade, não mais estranhamos quando dizemos que a objetividade, o objetivo, o objeto é o que aparece na perspectiva do enfoque da subjetividade.

Subjetividade indica, não este ou aquele sujeito, este ou aquele grupo de sujeitos, mas sim o modo como um determinado sentido do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como ser sujeito e agente de suas ações e estas como interpelações produtivas, e a realidade como o conjunto de produtos (pro-jectos) das atuações do agenciamento do perfazer-se desse ser sujeito nessas interpelações produtivas.

Realidade indica, não esta ou aquela coisa (res em latim), este ou aquele grupo de coisas, mas sim o modo como um determinado sentido do ser vem à fala, compreendendo o ser humano como uma das intensidades de ser substância, cujo ser é entendido como um em si, por e para si. Aqui, a realidade e suas coisas não são produtos da interpelação projetiva do inter-esse do sujeito e agente homem, mas sim vigência do ser que se realiza em diferentes níveis e densidades da sua presença como ordens e esferas das entidades ou coisidades.

Aqui observamos que o como do falar, escrever e ler da subjetividade é sobre objeto. O como do falar escrever e ler da realidade é o em participando da vigência do ser em diferentes níveis da sua densidade como substância.

Nessa diferença do modo de ser epocal, tanto da Antigüidade como da Modernidade, surge sempre a questão, “entre” essas duas totalidades há ligação, continuidade, ruptura ou complementação? Há “entre” elas algo de comum, geral? Se não houver, como podemos nós, hodiernos, ler um livro da Antigüidade?

Na realidade, essa é uma questão dificílima de ser respondida adequadamente, a partir das impostações que fazemos com nossas problemáticas. Mas, em todo o caso, percebemos que no fundo do modo de ser do todo chamado subjetividade (falar, escrever e ler sobre) e realidade (falar, escrever e ler conascendo) há um fundo anterior, algo não dito, oculto qual abismo do não saber insondável e sem fundo. Com outras palavras, ambas as colocações epocais, no fundo partem do retraimento de onde, a partir de que e de que coisa?

Estar aberto a essa questão, a essa busca, não por curiosidade de que tipo for, mas sob o toque de uma profunda afeição e necessidade de uma “vida Severina” de “encontro” é o que a grande tradição do Ocidente denominou de Espírito ou

Seja quem for, analfabeto ou letrado, criança ou adulto, são ou enfermo, santo ou pecador, cada qual como ele é facticamente, se quer fazer uma leitura espiritual é necessário que ele o faça a partir e dentro dessa aberta, dentro e a partir dessa nuvem do não saber.

Essa leitura a partir da nuvem do não saber é como se a própria coisa escrevesse, falasse, lesse ou ouvisse acerca de si mesma a partir de si. E isso com suas próprias palavras, sem querer se encaixar em nenhum ponto de vista que não seja a própria coisa ela mesma. Aqui toda a atenção e todo o cuidado devem estar concentrados em deixar ser, dar espaço livre para que a coisa ela mesma apareça a partir dela, nela mesma, à vontade. Aqui o eu que escreve, fala, lê ou ouve não é sujeito e agente de uma ação interpretativa, projetiva, impositiva de condição para a coisa aparecer (cf. o primeiro modo de escrever, falar, ler e ouvir sobre) mas é pura e límpida abertura de recepção cordial e afinada ao surgir, crescer e se consumar da coisa ela mesma, é ser como que caixa de ressonância da coisa ela mesma.

Esse modo de ser do espaço aberto à ressonância da coisa ela mesma é o que se denomina muitas vezes de ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro. Mas, como na nossa maneira usual de entender, fixamos o ver como julgar ou lançar perspectivas, em vez de ver, auscultar, ouvir atentamente, talvez fosse melhor dizer esperar o inesperado. Esse ver simples e imediato, esse auscultar, esse ouvir não é passividade. Pelo contrário, trata-se da máxima atenção plena de acolhimento, é o grau mais alto e denso do conhecimento, entendido como conascimento (em francês conhecer é con-naître, conascer). Esse modo de ser de acolhimento se diz em grego antigo légein, donde vem a palavra Logos, que se traduz geral e usualmente por conversa, discurso, pensamento, espírito, razão, mas cuja tradução mais originária seria talvez acolhida, colheita. Por isso os gregos antigos definiam o ser humano como sendo o vivente, o ânimo, como coragem de ser atinente e pertencente ao Lógos (Tò zôon lógon échon). E essa definição foi então traduzida para a língua latina e ficou animal rationale que em português é: homem é animal racional. Mas essa definição é entendida de modo inteiramente inadequado, quando se interpreta a palavra animal como bicho, bruto e racional como racionalista, cerebral. Animal, na definição clássica do homem, significa coragem criativa de ser, o ânimo vivo; racional, referido ao Logos, à plena atenção de colheita do ser, de acolhida da coisa ela mesma.

Quando usamos a expressão leitura espiritual, podemos entender o adjetivo espiritual de diversos modos. Podemos entender o espiritual como indicando o objeto da leitura. Por exemplo, posso classificar um objeto como pertencente à classe dos objetos do espírito, por exemplo, votos religiosos, virtudes, Deus, anjos, alma, encontro, amor; à classe dos objetos físico-naturais (da natureza), por exemplo, pedra, animais, plantas; dos objetos da cultura, por exemplo, obras de arte, monumentos etc.

Quando a leitura é classificada conforme o seu objeto, então, temos o modo de ler, descrito lá em cima como leitura sobre. E assim podemos denominar esse tipo de leitura sobre de leitura historiográfica, leitura psicológica, leitura sociológica, leitura prática, técnica, leitura literária, estética, religiosa, moralizante, fundamentalista, espiritual, espiritualista etc.

Mas na expressão leitura espiritual o adjetivo espiritual pode não estar se referindo ao objeto, mas à leitura. Nesse caso leitura espiritual significa ler espiritualmente. E se a gente pergunta: qual é exatamente esse modo todo próprio de ler espiritualmente, a gente agora pode responder: é exatamente aquele modo de ler, de colher, de receber, vivo e cordial, grande e profundo, infinitesimalmente diferenciado que está exposto acima nos ns. 13, 14, 15 e 16. Aqui a abertura ao encontro não deve ser confundida com o olhar sem mais nem menos imediatista, conforme o uso padronizado dos nossos ajuizados, pré-conceitos ou opiniões. O ver simples e imediato na disposição de abertura ao encontro é a evidência que se dá no fundo de nossa alma, e na maioria dos casos está entulhada por outros tipos de saber que não possui esse caráter de limpidez e imediatez do ânimo e da prontidão pura. Por isso, deve-se trabalhar duramente para que esse entulho seja afastado e que apareça com todo o esplendor e pureza a clarividência de fundo da alma.

Essa nossa reunião se chama encontro e não tanto curso. Pois no curso se acumulam informações e saberes sobre objetos do tema das nossas reflexões. Chama-se encontro pois em tudo que fazemos na reunião não fazemos outra coisa do que exercitar-nos em verde modo simples e imediato, na disposição de abertura ao encontro. Em nos exercitando longa, tenaz e cordialmente nessa disposição, aos poucos nos vamos abrindo para a recepção agraciada do que a grande tradição do cristianismo chamou de Espírito do Evangelho. E o Espírito do Evangelho é o sopro vital da espiritualidade cristã, a Vida Espiritual.

O nosso modo de compreender usualmente a nós mesmos e os nossos atos está bastante defasado. Por isso, quando nos reunimos e nos concentramos para um período de leitura de fontes, começamos a ter dificuldades, antes nunca sentidas. É que o nosso modo de estudar, aprender é de se informar sobre as coisas e entendê-las conforme parâmetro e tabela de programação que temos na nossa mente. Ler e pensar e descobrir o que está sendo dito ali nós quase nunca fazemos. Porque raríssimas vezes exercitamos o pensar, sem perceber, vivemos desde há muito tempo numa inércia e preguiça mental muito grande. A nossa não compreensão vem dessa inércia, e não tanto porque somos analfabetos, não estudados. Quando começamos a leitura espiritual e nos exercitarmos com maior volume e intensidade, vamos sofrer muita frustração e tédio e a inércia da nossa mente. Vamos sub-portar, sustentar com boa disposição esse tipo de dificuldade e sofrimento. Sem passar por esse tirocínio, não podemos ser espirituais. Quando eu descubro uma defasagem dentro de mim, não devo me satisfazer em corrigir somente essa defasagem.

Para que a leitura espiritual possa ser feita adequadamente, hoje, e não permaneça apenas uma leitura espiritualista, da qual pode vir muito consolo e vivências ‘emocionais’, sem transformação da nossa existência, é necessário redescobrir e retomar a dimensão onde direta e imediatamente se dá o espiritual e o espírito, e então exercitar-se longa e tenazmente nessa ‘área’. Para essa retomada e redescoberta, é útil e necessário entender até certo ponto bem, com precisão, a nossa implicação com o saber científico e o saber usual. Por isso, vamos rapidamente refletir sobre esse tema.

Algo sobre o saber científico e o saber usual

Muitas de nossas questões, perguntas e respostas podem ser ambíguas. Ambíguo é diferente de equívoco. Este último se dá quando a pergunta não atinge a questão, dela está inteiramente por fora, está de todo enganada. Resposta à questão equívoca não é complicada, pois basta mostrar que a pergunta está por fora da questão. Pergunta ambígua é quando nela estão implícitas, digamos, empacotadas várias perguntas, de diferentes pressuposições, com diferentes níveis de compreensão. E, em geral, esse empacotamento não é percebido, tanto por quem pergunta como por quem quer responder. Há ambigüidade no sentido lato e estrito. No sentido lato é quando a simultaneidade significativa vem do empacotamento de significações diversas, num único termo, por exemplo, o termo entre pode significar: pode entrar e também o permeio existente entre duas coisas. O nosso professor de inglês nos contou que havia uma pessoa que queria mostrar que sabia inglês. Assim, quando alguém bateu à porta, gritou: between! Ambigüidade, em sentido estrito, temos quando o sentido de um termo ou de uma frase nos evoca uma realidade, cujo modo de ser contém em si profundidade e densidade de ser que não se deixa explicitar num ou mais termos.

Há usualmente confusão de compreensão mútua, quando se discute, mormente, entre pessoas estudadas e especializadas. Isto porque cada qual fala e escuta a partir de pressuposições de sua própria disciplina, na qual é especialista.

Nessa questão a maioria de nós pensa mais ou menos o seguinte:

a) Certamente, existem colocações e perspectivas que vêm da especialização. A especialização tem a sua terminologia, a sua linguagem própria. Assim, a fala especializada das disciplinas de especialização tem a sua língua própria. Por isso, a economia tem o seu economês. A filosofia tem o seu filosofês. E assim adiante: matematês, sociologuês, psicologuês, pedagoguês, teologuês etc.

b) Mas para além ou por cima de todos esses ‘especializês’ há a fala geral, comum, compreensível a todos que falam a mesma língua. Por exemplo, termos como número, globo terrestre, pensamento, idéias, Deus, homem, cachorro, cachorro-quente, quente de mais, átomo, molécula, célula, celular, trânsito, lei de trânsito, multa, guarda de trânsito caolho, papa, Igreja Católica, a espiritualidade franciscana, o Colégio Bom Jesus etc. etc., todo mundo entende. Para compreender todos esses termos a gente não precisa ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano. Mas é aí que nos enganamos redondamente.

Em nossas reflexões, distinguimos duas grandes áreas da compreensão da realidade que denominamos compreensão científica da realidade e compreensão pré-predicativa ou pré-científica da realidade. Aqui, podemos relacionar o que acima falamos há pouco no n. 25 b) a respeito da compreensão pré-científica da realidade. Essa compreensão é o que está na linguagem comum, usual do cotidiano, e é entendida por todos, pensamos nós. E há pouco dissemos: Para entender todos esses termos a gente não precisa ser especialista, nem fazer um curso especializado. Basta o uso cotidiano.

Aqui reside uma grande ambigüidade, a qual, se não for esclarecida, nos leva à equivocação. É o seguinte: O que de imediato experimentamos como realidade pré-científica e sua compreensão e identificamos com a vida usual, comum, cotidiana de toda a gente, de todo mundo é na realidade um abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser que na perplexidade diante de sua imensidão, profundidade e ‘abissalidade’ denominamos de Vida, Ser. Nós nos movemos, vivemos e somos a partir da Vida e nela, a partir do Ser e nele. Vida e/ou Ser nos antecede, nos abrange, nos impregna, nos compreende; mas a partir de nós não o compreendemos, pois é nele, com ele, a partir dele que tudo compreendemos, tudo somos, a tudo pertencemos. O que sabemos, o que compreendemos, o que fazemos, desejamos e podemos, em resumo, o que somos, é in-stante da entoação desse abismo da possibilidade de ser. A nossa percepção desse nosso situar-se a partir e na Vida, capta a Vida e/ou o Ser como Nada (Abismo), Escuridão, Simples Fato de ocorrer, Algo que sempre de novo nos escapa e se nos retrai. O que o ser humano é no fundo dele mesmo é ser percepção desse abismo da possibilidade de ser, chamado Vida e/ou Ser, é ser percutido pelo toque desse abismo e repercutir como eclosão cada vez nova de um mundo. Essa disposição de ser passagem da possibilidade para a realização, cada vez como surgir, crescer e consumar-se de um mundo, os gregos a denominavam de psyché; e a possibilidade ou a dinâmica de receber o toque do abismo insondável da possibilidade insondável de ser e se adentrar nesse abismo, i.é, nele se abismar, de nõus: e a concreatividade de conascer e se constituir como mundo e ser-no-mundo, de lógos. Mais tarde psyché foi posicionada como alma; nõus como espírito e lógos como razão.

Tudo quanto vem à fala e vem a si e se constitui como entonação do abismo, uma vez surgido do abismo, se constitui como mundo, se estabelece como uma realização da realidade e se firma como posição ou pré-suposição.

Pré-suposição assim se firma e se coisi-fica como fundamento, como base de todo um sistema de explicitação do que ali jaz contido como fundo do fundamento. As ciências positivas erguem o seu edifício a partir e sobre tais pré-suposições ou fundamentos coisificados. O nosso saber pré-científico, parte de tais posições das ciências, as aprofunda, as ‘des-constrói’, afundando-as para dentro do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser.

Há várias modalidades de adentrar-se na pais-agem dessa dimensão-matriz pré-científico, que alguém como Antoine de Saint-Exupéry chama de Terra dos Homens. Só que, a partir do saber científico, essa dimensão-matriz pré-científica somente aparece à raiz de suas pressuposições fundamentais como terra inculta, ainda não suficientemente evoluída, dimensão irracional, popular, mítico, metafísico, como “nuvens do não-saber”.

É somente quando a existência humana adentra o toque desse não-saber que começa a habitar a Terra dos homens. A coragem de ser à luz das nuvens do não-saber, da assim denominada ‘douta ignorância’, i. é, de ser psyché, nõus e logos, era chamada pelos gregos de virtude dia-noética.

A virtude dianoética e o não saber

Dizendo-o assim de modo banal, virtude dia-noética é a virtude intelectual. Usamos o termo grego, porque a autocompreensão do termo intelectual, hoje, está bastante defasada. Mas para compreender com precisão o que é dianoético, comecemos com essa compreensão banal usual para ir aos poucos adequando a nossa compreensão à dinâmica dianoética.

Virtude dia-noética é o que usualmente denominamos de vigor, força da inteligência.

Vigor, força da inteligência é algo de grande importância para uma instituição, cuja missão é ensino, aprendizagem, pesquisa e investigação. Por isso, a nossa pré-compreensão ou pré-conceito do que seja vigor ou força e inteligência não nos pode ser indiferente, neutro e óbvio-geral. Todo o ingrediente de dogmatismo, por menor que seja, aqui nesse ponto, pode se tornar fatal para o ser do progresso e desenvolvimento humano, conforme o que observa Sto. Tomás de Aquino no seu famoso opúsculo De ente e essência, a saber, que um pequeno erro no início se torna um grande no fim[1] (cf. citação direta).

O pequeno erro, que no fim se torna grande, no nosso caso, consiste em que, para nós, a compreensão do que seja a excelência do vigor da inteligência está se tornando uniforme, bitolada e unidimensional. E esclarece-se isso, tomando as ciências positivas como modelo do saber verdadeiro (certo, seguro), e, mormente, a modo de ciências naturais. Verdadeiro, a saber, assegurado, certo, objetivo, portanto real.

Essa unilateralidade fez com que considerássemos um ‘tipo’ de racionalidade como critério de cientificidade e racionalidade como tal; reduzindo todo outro modo de saber e conhecer ao reino do saber subjetivo, vivencial, instintivo-espontâneo irracional. Com isso, a compreensão do que seja vigor da inteligência se tornou defasada, e assim, começou a proliferar e a se exacerbar a ‘cultura’ toda própria, astênica, do racionalismo e espiritualismo e sentimentalismo esteticista.

Com isso, o que a grande Tradição do Ocidente denominou e experimentou como psyché – alma, nõus – espírito, lógos – razão foi reduzido à energia bio-neuro-física; e as três grandes fontes e vigências da criatividade humana, a saber, crer (religião), poetar (arte) e pensar (filosofia), se defasaram como espiritualismo, esteticismo e cientificismo.

Vivemos, nos movemos e somos numa grande entropia do espírito (psyché, nõus, logos). Essa entropia epocal é chamada muitas vezes de esquecimento; ou também de ocultamento, ou mesmo de retraimento.

Esquecimento, ocultamento, retraimento do espírito é epocal, marca a nossa época, aponta para a nossa época, como sinal dos tempos.

Na história da humanidade, o que marca de modo decisivo e fundamental a inovação e a transformação do seu destinar-se, chama-se epocal. A palavra epocal vem do grego epoché que significa parada, suspensão a modo da contenção de um movimento ou impulso. O verbo do qual vem a epoché é epéchein, que por sua vez significa ter, manter, colocar sobre; segurar, estendendo em direção a; alcança, estacionar, ter uma estância, demorar; parar, impedir, manter-se contido, conter-se, hesitar; estender-se sobre, expandir, avançar sobre; ater-se a, assumir, tomar conta de. Todas essas significações, aliás, afins entre si, se referem de alguma forma a momentos, aspectos da suspensão contida na tensão do ponto de salto, no instante da eclosão do novo mundo. É nesse instante que se dá a decisão criativa do todo que se deslancha como real possibilidade do que permanece de próprio do novo mundo. É dessa suspensão dinâmica de concentração que surge, cresce e se consuma a nova possibilidade radicalmente outra, mas longamente preparada silenciosamente no subterrâneo da época anterior. Esse concentrar-se no ponto de salto e o início do novo mundo, no entanto, se dá na atualidade presente, não, porém, na superfície do tempo atual, onde o público e a sociedade estão tomados de anseios, inquietações, confusões acerca dos temas fundamentais da vida, ameaçados por infindas crises, convulsões, guerras, e-versões de costumes, de moral, por consumismo e perda de identidade humana; mas bem retraído da publicidade, bem no fundo do subterrâneo do tempo presente na tenaz e silenciosa labuta do pensar.

Esse modo de ser do Historiar-se da Humanidade chamada epoché, época, epocal se caracteriza como tempo de ambigüidade, que é interpretada como confusão, equivocação. Uma dessas ambigüidades epocais que acontecem na instituição do saber, aprendizagem, pesquisa, portanto, na escola, na formação humana é em referência à relação entre as disciplinas do ensino. A seguir, vamos dar um exemplo dessa equivocação que no fundo é ambigüidade epocal.

O exemplo trata da relação entre ciência chamada ciências positivas e ciência chamada filosofia. Assim, muitas vezes circula certo equívoco na compreensão da contribuição da filosofia às ciências positivas. E isto, no meio de nós todos, tanto na compreensão usual da nossa vida cotidiana, nos seus afazeres, como também, na compreensão acadêmica, especializada, principalmente quando o especialista é mais funcionário e usuário do status quo do saber padronizado, oficializado, do que alguém doado à busca da verdade em si e como tal. E isso vale, mormente, para a própria filosofia. O equívoco consiste em se representar a contribuição da filosofia como fundamentação positiva do saber das ciências positivas. É que filosofia, no seu ser, não é um saber positivo, nem positivamente sua fundamentação. Num sentido todo próprio, para ser determinado mais adiante, a filosofia mais afunda do que fundamenta, mais nadifica do que positiva. Talvez é nesse sentido que Nietzsche diz do filósofo no aforismo …..: Um burro, pode ele ser trágico? Carregar um peso que não pode suportar, nem lançá-lo para fora de si (Nietzsche, Götzen-Dämmerung).

Tentemos precisar bem em que consiste esse mais afundar do que fundamentar; mais nadificar do que positivar.

Fundamentar significa dar um fundamento, uma base, algo como uma laje firme e fixa. Afundar significa afundar, ir a pique. Aqui no ir a pique, afundar, devemos evitar de representar esse movimento de afundar como assentar-se na base fixa, no fundamento, mas sim perder-se no abismo insondável e inesgotável, sem fundo. Quando dizemos aqui sem fundo, é necessário cuidar para não fixar a representação do espaço vazio. Pois, com abismo insondável e inesgotável, sem fundo não se está apenas dizendo a negação da base e fundamento a modo de fixação, mas está-se acenando para a plenitude toda própria, inteiramente simples, total única e una, a qual na perplexidade diante da impossibilidade de dizê-lo, dizemos Ser, Nada, Vida. Mas, em assim o dizendo, na perplexidade e impossibilidade de dizer, poder, querer, fazer e ser essa “plenitude”, ela se nos desvela, e nesse desvelar-se se retrai como ab-ismo (ab-imo) próximo de nós, mais próximo de nós do que nós a nós mesmos, nos impregna em todas as fibras das articulações de tudo que somos e de tudo que não somos nós mesmos.

Essa plenitude toda própria, dita Ser, Nada Vida, novamente, não deve ser representada como algo místico, uma divindade, um vazio cósmico, um ente supremo transcendente, metafísico, ou um ‘empírico físico matemático’, mas como o não-saber, pré-sente, ora como trans-parência do óbvio e-vidente, sereno e imperceptível, ora como escuridão opaca e impenetrável, qual paredão da ignorância, ora como enigmática profundidade insondável, em suma, como a amplidão, fundura e dureza da factualidade presente em toda parte como o a-priori realidade.

Certamente, talvez fosse útil, aqui, recordar novamente a necessidade de precaução em não confundir esse a-priori realidade com o caótico e irracional. Isso porque esse pré-vio do a-priori realidade é anterior ao modo como aparece, pois ele não é algo que aparece saindo por de trás ou do fundo de outro algo que ali está ou aparece, mas é a pré-sença retraída que tudo impregna como em-toação de tudo quanto é e não é. Assim o ‘quê’ assim tudo impregna e tudo envolve, na precisão da sua diferença que constitui a sua identidade, não é um outro ente do que o ente a que impregna e envolve, mas é o ente ele mesmo, sua vigência, seu ser, sua essência, enquanto ente, quer dizer, em sendo. Aqui, o ‘saber isso’, ou ‘disso’, o conhecer não é outra coisa do que contato imediato e simples, ‘corpo a corpo’, de ‘corpo e alma’, ‘pele a pele’ em sendo.

O verbo ser, o é, não é ativo nem passivo, não tem conteúdo, e segundo Kant, é pura posição. Só que quando nós dizemos hoje, pura posição, passamos por cima da palavra pura e pensamos: aqui se trata da ação pura, maciça, densa e volumosa de pôr, colocar, posicionar algo. Com isso pura adquire a conotação de densidade, de volume, atribuída ao conteúdo, ao algo, a ‘o quê’ do objeto posto. O pôr é compreendido a partir de ‘o que é posto’. Assim, a posição não é captada como pura posição, apenas posição, posição nua e crua, mas como “euponhoobjeto” (sujeito empírico). À pureza da posição somente se faz jus se posição significa condição da possibilidade de posicionamento de algo como objeto pelo eu-sujeito. A pura posição está em todos os elementos que constituem o ‘todo’  do ‘sujeito empírico’ não como um dos elementos, a modo empírico, mas transcendendo a todos eles, não, porém, constituindo um algo superior, fora da série, mas como que constituindo ‘pregnância’, ‘plenitude’ de ser onipresente em toda parte, lá onde acontece o ente, ou o em sendo. Essa presença que não aparece, por não ser algo, mas tudo faz aparecer, qual espaço livre de ressonância, qual tonalidade das tonâncias de todos os sons é o a-priori realidade, acima insinuado,  o abismo insondável e inesgotável, fundo sem fundo da possibilidade de ser. É o não-saber, a escuridão que se abre à raiz de toda e qualquer posições e pressuposições, seja em que nível e em que dimensão do ente se achar.

A assim chamada contribuição da filosofia às ciências positivas não consiste, portanto, em embasar as posições das ciências positivas numa posição mais vasta e profunda, visto ser considerada um saber mais profundo e mais fundamentando, mas em reconduzir primeiramente a si mesma, em todas as suas posições, e com isso também as pressuposições das ciências positivas, ao toque da percussão do abismo da possibilidade de ser que se recolhe à raiz de toda e qualquer posição e pressuposição, como abertura ao não-saber, afinado ao abismo da plenitude insondável e inesgotável do nada ou da possibilidade de ser.


[1] “Por que um pequeno erro no princípio é grande no fim, segundo o Filósofo no primeiro livro do Céu e do Mundo…” (TOMÁS DE AQUINO, De ente et essentia, edição latim-alemã, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1980, p.15).
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