1. Nas nossas reflexões, na tentativa e tentação de adentrar a compreensão de que se trata, quando falamos da fenomenologia, decidimos aprofundar tudo o que até agora viemos refletindo, à mão da conferência pronunciada por Prof. Carneiro Leão no XII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e I Encontro de Fenomenologia Centro-Oeste, em Goiânia – GO, maio de 2006. O título da conferência soa A fenomenologia de Edmund Husserl e a fenomenologia de Martin Heidegger. No nosso encontro passado de 22 de maio, lemos e comentamos os dois primeiros parágrafos da conferência.
2. A tarefa da conferência é de falar da fenomenologia. De Husserl e de Heidegger. E isso, referido à evolução da fenomenologia de Husserl à fenomenologia de Heidegger. Para mostrar em que consiste essa evolução, a conferência observa: Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia. Essa observação é o que nos nossos encontros anteriores viemos falando de vários modos acerca do que denominamos ver simples e imediato. Trata-se, pois de um princípio. Esse princípio mostra que: No aparecimento e desaparecimento, no desvelamento e velamento, da sua (i. é, da fenomenologia) vigência a fenomenologia passa a recolher o ser e acolher o nada de suas diferenças e referências a si mesma e a todos os demais fenômenos. Trata-se, pois, da passagem da fenomenologia em e através de todo e qualquer fenômeno. A evolução da “fenomenologia” de Husserl e “fenomenologia” de Heidegger, de um para outra, em uma e em outra, é um momento dessa passagem da fenômenologia em e através de todo o fenômeno: Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia.
3. Se quisermos ilustrar o que foi dito com um exemplo, poderíamos talvez formular assim: toda e qualquer nota musical é música. Toda e qualquer nota ou composições, a partir de uma única nota, e se você quiser, de parcela infinitesimalmente ‘atômicas’ (Stockhausen: música eletrônica erudita), ou a partir de conjunto de notas, é sempre e cada vez música ou melhor musicalidade, que atravessa todas essas realizações de composições musicais e está presente em todas elas, passa, é passagem, na e pela qual as notas vêm a si como musicalidade. Nessa passagem, nessa vigência da musicalidade ou do ser da música, ela recolhe o ser e acolhe o nada de suas diferenças e referências a si mesma e a todas as demais notas e possibilidades de nota. A música ou musicalidade não é cada uma das notas, nem dos seus conjuntos. A(s) nota(s), seja(m) ela(s) como for(em), não é (são) musicalidade. Mas uma não é sem outra. Trata-se de uma relação, de um encontro todo próprio, anterior à distinção entificada e entificante a esta nota, aquela nota, a este ou aquele conjunto de nota, a esta ou aquela música. Esse encontro, essa relação anterior, não é encontro ou relação ao lado de outro tipo de encontro ou de relação, mas sim dinâmica de e-vento, um destinar-se, um historiar-se, do vir à fala da musicalidade em todas as coisas, diferenciando-se de e ao mesmo tempo se identificando com elas como referida a elas, nelas e por elas.
4. Depois dessa ilustração, o que significa: Em Husserl, é pela intencionalidade que a consciência está sempre passando continuamente do fenômeno para a fenomenologia e a intencionalidade lhe serve de ponte de ligação e passagem. Sem consciência intencional não se dá fenomenologia.
Isto significaria que em Husserl a fenômeno-logia vem à fala na diferença e referência a si mesma e a todas outras ‘fenomenologias’ na possibilidade e impossibilidade do sentido do ser que perfaz uma realização da fenomenologia enquanto conhecimento e suas inúmeras teorias?, a saber, consciência intencional?
Mas essa colocação não é idêntica com o que a conferência critica ao dizer: “…está inteiramente fora de propósito pretender identificar a fenomenologia de Husserl com a análise intencional dos feitos e atos da consciência e a fenomenologia em Heidegger com a análise existencial da pré-sença, como se ambas, consciência e presença, fossem determinados objetos de conhecimento”?
5. Mas, e se agente considerasse consciência e pre-sença não como objetos, mas como sujeito? Não, porém como sujeito empírico, mas sim como subjetividade ou subjetidade ou consciência transcendental? Como fazer, porém, que consciência transcendental não seja conhecimento? Deixando ela ser ab-soluta, deixando ela ser o ser da consciência. Enquanto ser da consciência, a consciência transcendental é subjetividade-objetividade transcendental, a saber ab-soluta. É o modo como fenômeno-logia passa pela ‘fenomenologia’ husserliana, tocando-a no seu ser.
E em Heidegger? Diz a conferência: “Em Heidegger, não! O fenômeno já é sempre esta passagem e somente por isso se dá consciência e acontece intencionalidade.”
6. A palavra passagem aqui é ambígua. Uma vez pode ser entendida como a passagem da ‘fenomenologia’ de Husserl à de Heidegger; outra vez como o destinar-se, o historiar-se da fenômeno-logia, como a passagem da fenômeno-logia ao longo, junto de, em e através de, no processo do vir-à-fala, no seu aparecer e ao mesmo tempo no seu retrair-se como fenomenologias. Mas essa ambigüidade indica exatamente a implicação do relacionamento ou encontro entre a fenomenologia de Husserl e a fenomenologia de Heidegger não como evolução de uma para a outra ou variações específicas de um único e unívoco conceito geral de fenomenologia, mas sim como ressonância de repercussão do mesmo toque, em cuja tonância escutamos entoação de uma como silenciar do fundo da outra.
7. Escutar numa, o silêncio da outra se chama pensar. Assim “Pensar não é uma função tética de uma consciência transcendental. Pensar é acompanhar as peripécias, as vicissitudes e os percalços desta ininterrupta passagem. Para Husserl, pensar é exercer e exercitar a fenomenologia da consciência. Já para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”.
Mas então o que quer dizer encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”?
Prossegue a conferência: “Num primeiro contacto, a diferença entre um e outro filósofo estaria na distinção entre Bewusstsein (Bewusst+sein), consciência, de um lado, e Dasein (Da+sein), pré-sença, de outro, e a referência, a comunhão de ambos, estaria na maneira de lidar, no procedimento e método, com que se trataria da consciência e da pré-sença, num e noutro caso”.
8. De tudo que lemos e comentamos do texto do prof. Carneiro, seria possível colocar a questão, numa formulação como segue?
a) No que está em jogo nessa exposição, ao se falar da Fenomenologia de Husserl e Fenomenologia de Heidegger, não se trata de considera-las dentro do esquema de classificação a modo de gênero (Fenomenologia em geral) e espécies (F. de Husserl e de Heidegger) ou de espécie e seus indivíduos.
b) Não se trata de considera-las como evolução, aperfeiçoamento, complementação ou comparação. Pois numa comparação há sempre um comum, um geral que abrange os termos comparados.
c) Trata-se de colocar a relação dessas ‘duas’ fenomenologias como relação existente ‘entre’ ente e ser. Portanto não entre ente e ente, portanto não na diferença e identidade ôntica, mas sim na diferença e identidade ontológica. Sobre esse modo de se diferenciar diz Heidegger em Die Grundbegriffe der antiken Philosohie (Os conceitos fundamentais da Filosofia antiga), obras completas volume 22, no parágrafo 4 intitulado: A função crítica da Filosofia como separar e diferenciar entre ente e ser, pp. 7ss: “Crítico: krínein – “separar”, “diferenciar”, no diferenciar de algo contra algo, fazer visível ambos, o diferenciado e sua diferença. Diferenciar: triângulo de um quadrado, vertebrado de pássaro, epopéia de drama, substantivo de verbo, um ente de um outro ente, assim cada ciência distingue continuamente e com isso determina o diferenciado.
Se, segundo o que dissemos Filosofia é ciência crítica, de tal sorte que “crítico” lhe perfaz o caráter que a destaca, então se trata de um diferenciar todo destacado. Mas o que ainda pode ser diferenciado de outro modo, do ente a não ser ente? O que podemos ainda dizer do ente? Que ele é e que somente é ente. Ele é, ele tem ser. Do ente e no ente é diferençável o ser. Essa diferença não se refere a ente e ente, mas a ente e ser. >Ser<!?, com isso nada se pode representar. Ente, com ele certamente o podemos; ser, mas com ser!? De fato, a razão comum e a experiência comum compreende e busca somente ente. Nele, porém, ver o ser e o captar e o diferenciar contra ente, é a tarefa da ciência diferenciante, da Filosofia. Esta tem por tema o ser e jamais o ente.
Ciências positivas: Ciência do ente. Isto que pré-jaz para a experiência natural e conhecimento. Ciência crítica: Ciência do ser. Isto que não pré-jaz para a experiência natural, mas que está oculto, que jamais pré-jaz e no entanto já e sempre compreendido, e isto até antes de todo experimentar do ente, ao mesmo tempo o que há de mais positivo e no entanto igualmente o que há de menos positivo. Ser >é< não. Filosofia é ciência crítica, não filosofia crítica, expressão esta indicativa da Teoria de Conhecimento, a saber, a critica dos limites do conhecimento”.-
9. No nosso texto, Fenômeno-logia está para o fenômeno, está para as ‘fenomenologias’ como ser para o ente.
10. Se, ao dizermos ente, logo pensarmos no mundo, é como ao falarmos de uma árvore, pensarmos na paisagem onde a árvore é momento constitutivo. Para ‘compreender’ paisagem e paisagem, devemos cada vez trilhar as sendas e veredas de cada paisagem. Devemos acompanhar as peripécias, as vicissitudes e os percalços das ininterruptas passagens do caminho. O percurso do caminho é diferente na paisagem do deserto, na paisagem do cerrado, nas avenidas das cidades, nos caminhos do campo. No entanto, o caminho cada vez abre sempre de novo e cada vez novo todo um mundo que é o uni-verso. Essa ponderação, nós já a fizemos anteriormente, quando lemos ao falar do método, o caminho do campo de Heidegger. Como podemos recorrer àquela experiência do caminho do campo, para podermos compreender melhor, de que se trata, ao lermos nos primeiros parágrafos da conferência do Prof. Carneiro as frases: Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia. No aparecimento e desaparecimento de sua vigência passa a recolher o ser e acolher o nada de sua diferença e referências a si mesmo e a todos os demais fenômenos. No logos, isto é, no recolhimento, no estar junto de si na finitude concreta do ser em sendo, no ser do ente, como vir a si, vir à fala no se evidenciar a partir de si, em si mesmo, na identidade e diferença de si, portanto como fenômeno, portanto na logia do fenômeno, a saber na Fenômeno-logia, todo o segredo consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, i. é, na aberta do ente, em sendo, com o ser da aberta que só é na concreção corpo a corpo do em sendo aqui e agora na situação.
11. Fenômeno e Da-sein dizem o mesmo. Fenomenologia e Existencialidade dizem o mesmo. Fato e Facticidade dizem o mesmo. O conhecimento do Da-sein não é conhecimento sobre ou acerca de, mas simplesmente Da-sein, o co- e re-nascimento: aqui ser e pensar é o mesmo.
12. O que tem a ver tudo isso com o nosso ver simples e imediato?
13. O que usualmente compreendemos como ente e ser é produto do conhecimento. Por isso o conhecimento que distingue o sujeito, ato de conhecer e o objeto conhecido não percebe que em tudo isso já está atuante o ser. Não percebe que já está ali em sendo, isto é, é ente, a mercê na alegria de ser. Ver simples e imediato não é ver isto ou/e aquilo, não é captar algo, é simplesmente ser, isto é, o em sendo.