- Tentamos estranhar de modo mais adequado a afirmação de Heidegger de que na fenomenologia é mais importante (in-portar) se exercitar do que ler Hegel.
Foi dito que aqui não se está opondo o exercitar-se contra o ler, mas o que nos im-porta, i. é, nos carrega para dentro é: exercitar-nos na leitura. E a leitura, ler, legere em latim, lesen em alemão, vem do légein colher, recolher, ajuntar. No Denkerfarungen (Experiências do pensar, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1983, p. 61) diz Heidegger:
O que evoca ler?
O que evoca ler? O que importa e conduz no ler é o recolhimento. O recolhimento aonde se recolhe? Ao escrito, ao dito na escrita. O ler propriamente é o recolhimento ao que, sem nosso saber, uma vez já apropriou a nossa vigência, quer aí lhe correspondamos ou falhemos.
Sem o ler, propriamente também não podemos ver o que nos mira e ver simples e imediatamente o que aparece e transluz[1].
- Exercício é ação de se exercitar. É, pois, verbo que vem do latim: exerceo, -es, cui, citum, cere. É formado de ex e arceo. (arceo, –es, ui, ctum, ere = L. Quicherat, Novíssimo Dicionário Latino-Português, 11a. Rio de Janeiro: ed. Garnier, 2000, refere o verbo arcere aos verbos gregos érgo ou arkéo[2]; exercere significa acossar, perseguir, inquietar, molestar, vexar, ocupar e gastar o tempo em, fazer trabalhar, não dar folga nem repouso. Ora arcere significa conter, proteger, ajudar afastando os impedimentos. Então, ex+arcere, i. é exercere significa tirar alguém do ninho onde se instalou, onde se acastelou, para que se deslanche na dinâmica de uma busca, na ação, no exercício de sua liberdade. Essa é a dinâmica da autonomia da ação livre e se chama querer. Exercício é pois a dinâmica, a vigência do querer: a volição. Na linguagem comum dizemos: ter vontade. Na questão “vontade” e “pensar”, conferir o Feldwegsgespräche.
- Na fenomenologia, quando dizemos é importante se exercitar, não conseguimos ver simples e imediatamente o que dizemos, se não de-construímos os pré-conceitos com os quais entulhamos o nosso nos-compreender ou o ver simples e imediato[3]. Entre esses pré-conceitos, os que mais dominam são o fato de nós designarmos o querer como ato de volição a modo da ação irracional (irracionalismo) ou voluntarista (voluntarismo). E no fundo desses dois “ismos”, a dinâmica do querer é representada a modo da atuação da força da energia coisal, sob a norma do princípio categorial “causa-e-efeito”. E juntamente com essa pressuposição preconceituosa representamos o ato de intelecção dentro do esquema do que os alemães denominam de Bildstheorie, i. é, a intelecção como mecanismo de captação a modo da fotografia. Aqui seria necessário mostrar tudo que acima dissemos com mais detalhes e mais vagar, o que deixamos para a iniciativa e o interesse do grupo do nosso círculo fenomenológico nas discussões das nossas reuniões semanais.
- Nós que somos acadêmicos podemos achar, e com razão, tudo o que acima foi dito como uma tremenda simplificação caricatural do que com seriedade buscamos, cada qual na área da sua especialização, acerca da compreensão desses temas como volição e intelecção e outros temas afins. E na filosofia já fomos informados sobre tudo isso, no saber adquirido pela teoria de conhecimento, epistemologia, história da filosofia, já lemos e estudamos sobre o cogito de Descartes, sobre o problema da metafísica em Kant, sobre a vontade para poder de Nietzsche, sobre a fenomenologia do espírito em Hegel e sua lógica, sobre o esquema sujeito – objeto etc. E quando então nos confrontamos com o que está mais próximo de nós mesmos, com a minha intelecção de todas essas coisas que estudamos e sabemos, e com a vontade de querer mais e mais ver simples e imediato, ficamos perplexos e confusos, pois esse mesmo sujeito que sou eu mesmo por mais que diga que quer ver simples e imediatamente, não sabe nem quer muito se exercitar em si mesmo, não quer perfazer-se como o em se exercitando. Quando no estudo da fenomenologia começamos a assim entrar em perplexidade com todo o nosso saber, seja acadêmico, seja dos nossos afazeres banais e cotidianos, e realmente começamos a ser acossados, perseguidos, desinstalados das arcas e dos baús do nosso saber dentro dos quais nos acastelamos, perguntamos: como querer o querer, eu que tenho dificuldade de querer? Como me exercitar, se não tenho nem gosto, nem perseverança, nem o élan da busca? Aqui então recebemos da fenomenologia a resposta fatal: querendo, vendo simples e imediatamente ou sendo. Se ouvirmos essa resposta numa perplexidade total e dessa perplexidade perguntarmos: de que se trata? Estamos sob o toque da percussão da tonância (Grundstimmung) do exercício do ver simples e imediato.
- Quando esse problema, que aqui assim formulado soa artificial e não possui aquela necessidade que nos acossa de nossas arcas e nossos baús e que não mais nos deixa nem sossego nem repouso, voltar sempre de novo nas nossas interrogações e começar a nos irritar, a nos molestar e desanimar, e nos faz perder o gosto de estudar fenomenologia, pode ser que, quem sabe, estejamos começando a adentrar o exercício da fenomenologia.
- Então olhemos talvez para o que acima Heidegger disse do Ler propriamente com mais disposição e vislumbremos que esse ler, lhe correspondamos ou não, é exercício por excelência e que ali há o toque: a facticidade, a saber, o ver simples e imediato que na fenomenologia recebe o nome de Da-sein, Ex:sistência. Nós somos cada vez, sempre novo e de novo o lance, a facticidade do ver-simples-e-imediato, i. é, no recolhimento, no colher, no ser em sendo a aberta, simples e imediata da atinência à mostração: à fenômeno-logia.
- Esquecida de que era água e de que estava fluindo, disse a água corrente de um riacho à água corrente do mesmo riacho: “Ai, ai, como estamos longe das nossas fontes!” Disse o leito do riacho, em cujo fundo jaziam pedras redondas, que de quadradas se tornaram redondinhas de tanto ser desgastadas pela corrente: “Por favor, não fiques distraída a te enroscar, em querendo cavar covas e buracos, cavidades, salas, sim salões de luxo para te aninhar. Pois, para água corrente é mais importante fluir do que se estabelecer. Somente assim estarás junto da fonte que é o dentro de ti mesma, somente assim te podemos servir de leito”. Por isso diz Hölderlin: Pouco saber, mas muita jovialidade é dada aos mortais. É o segredo do sabor da fenomenologia.