Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fragmentos de reflexões fenomenológicas XII

05/02/2021

 

  1. Tentamos estranhar de modo mais adequado a afirmação de Heidegger de que na fenomenologia é mais importante (in-portar) se exercitar do que ler Hegel.

Foi dito que aqui não se está opondo o exercitar-se contra o ler, mas o que nos im-porta, i. é, nos carrega para dentro é: exercitar-nos na leitura. E a leitura, ler, legere em latim, lesen em alemão, vem do légein colher, recolher, ajuntar. No Denkerfarungen (Experiências do pensar, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1983, p. 61) diz Heidegger:

O que evoca ler?

O que evoca ler? O que importa e conduz no ler é o recolhimento. O recolhimento aonde se recolhe? Ao escrito, ao dito na escrita. O ler propriamente é o recolhimento ao que, sem nosso saber, uma vez já apropriou a nossa vigência, quer aí lhe correspondamos ou falhemos.

Sem o ler, propriamente também não podemos ver o que nos mira e ver simples e imediatamente o que aparece e transluz[1].

  1. Exercício é ação de se exercitar. É, pois, verbo que vem do latim: exerceo, -es, cui, citum, cere. É formado de ex e arceo. (arceo, –es, ui, ctum, ere = L. Quicherat, Novíssimo Dicionário Latino-Português, 11a. Rio de Janeiro: ed. Garnier, 2000, refere o verbo arcere aos verbos gregos érgo ou arkéo[2]; exercere significa acossar, perseguir, inquietar, molestar, vexar, ocupar e gastar o tempo em, fazer trabalhar, não dar folga nem repouso. Ora arcere significa conter, proteger, ajudar afastando os impedimentos. Então, ex+arcere, i. é exercere significa tirar alguém do ninho onde se instalou, onde se acastelou, para que se deslanche na dinâmica de uma busca, na ação, no exercício de sua liberdade. Essa é a dinâmica da autonomia da ação livre e se chama querer. Exercício é pois a dinâmica, a vigência do querer: a volição. Na linguagem comum dizemos: ter vontade. Na questão “vontade” e “pensar”, conferir o Feldwegsgespräche.
  2. Na fenomenologia, quando dizemos é importante se exercitar, não conseguimos ver simples e imediatamente o que dizemos, se não de-construímos os pré-conceitos com os quais entulhamos o nosso nos-compreender ou o ver simples e imediato[3]. Entre esses pré-conceitos, os que mais dominam são o fato de nós designarmos o querer como ato de volição a modo da ação irracional (irracionalismo) ou voluntarista (voluntarismo). E no fundo desses dois “ismos”, a dinâmica do querer é representada a modo da atuação da força da energia coisal, sob a norma do princípio categorial “causa-e-efeito”. E juntamente com essa pressuposição preconceituosa representamos o ato de intelecção dentro do esquema do que os alemães denominam de Bildstheorie, i. é, a intelecção como mecanismo de captação a modo da fotografia. Aqui seria necessário mostrar tudo que acima dissemos com mais detalhes e mais vagar, o que deixamos para a iniciativa e o interesse do grupo do nosso círculo fenomenológico nas discussões das nossas reuniões semanais.
  3. Nós que somos acadêmicos podemos achar, e com razão, tudo o que acima foi dito como uma tremenda simplificação caricatural do que com seriedade buscamos, cada qual na área da sua especialização, acerca da compreensão desses temas como volição e intelecção e outros temas afins. E na filosofia já fomos informados sobre tudo isso, no saber adquirido pela teoria de conhecimento, epistemologia, história da filosofia, já lemos e estudamos sobre o cogito de Descartes, sobre o problema da metafísica em Kant, sobre a vontade para poder de Nietzsche, sobre a fenomenologia do espírito em Hegel e sua lógica, sobre o esquema sujeito – objeto etc. E quando então nos confrontamos com o que está mais próximo de nós mesmos, com a minha intelecção de todas essas coisas que estudamos e sabemos, e com a vontade de querer mais e mais ver simples e imediato, ficamos perplexos e confusos, pois esse mesmo sujeito que sou eu mesmo por mais que diga que quer ver simples e imediatamente, não sabe nem quer muito se exercitar em si mesmo, não quer perfazer-se como o em se exercitando. Quando no estudo da fenomenologia começamos a assim entrar em perplexidade com todo o nosso saber, seja acadêmico, seja dos nossos afazeres banais e cotidianos, e realmente começamos a ser acossados, perseguidos, desinstalados das arcas e dos baús do nosso saber dentro dos quais nos acastelamos, perguntamos: como querer o querer, eu que tenho dificuldade de querer? Como me exercitar, se não tenho nem gosto, nem perseverança, nem o élan da busca? Aqui então recebemos da fenomenologia a resposta fatal: querendo, vendo simples e imediatamente ou sendo. Se ouvirmos essa resposta numa perplexidade total e dessa perplexidade perguntarmos: de que se trata? Estamos sob o toque da percussão da tonância (Grundstimmung) do exercício do ver simples e imediato.
  4. Quando esse problema, que aqui assim formulado soa artificial e não possui aquela necessidade que nos acossa de nossas arcas e nossos baús e que não mais nos deixa nem sossego nem repouso, voltar sempre de novo nas nossas interrogações e começar a nos irritar, a nos molestar e desanimar, e nos faz perder o gosto de estudar fenomenologia, pode ser que, quem sabe, estejamos começando a adentrar o exercício da fenomenologia.
  5. Então olhemos talvez para o que acima Heidegger disse do Ler propriamente com mais disposição e vislumbremos que esse ler, lhe correspondamos ou não, é exercício por excelência e que ali há o toque: a facticidade, a saber, o ver simples e imediato que na fenomenologia recebe o nome de Da-sein, Ex:sistência. Nós somos cada vez, sempre novo e de novo o lance, a facticidade do ver-simples-e-imediato, i. é, no recolhimento, no colher, no ser em sendo a aberta, simples e imediata da atinência à mostração: à fenômeno-logia.
  6. Esquecida de que era água e de que estava fluindo, disse a água corrente de um riacho à água corrente do mesmo riacho: “Ai, ai, como estamos longe das nossas fontes!” Disse o leito do riacho, em cujo fundo jaziam pedras redondas, que de quadradas se tornaram redondinhas de tanto ser desgastadas pela corrente: “Por favor, não fiques distraída a te enroscar, em querendo cavar covas e buracos, cavidades, salas, sim salões de luxo para te aninhar. Pois, para água corrente é mais importante fluir do que se estabelecer. Somente assim estarás junto da fonte que é o dentro de ti mesma, somente assim te podemos servir de leito”. Por isso diz Hölderlin: Pouco saber, mas muita jovialidade é dada aos mortais. É o segredo do sabor da fenomenologia.

[1] Was heisst Lesen? Was heisst Lesen? Das Tragende und Leitende im Lesen ist die Sammlung. Worauf sammelt sie? Auf das Geschriebene, aus das in der Schrift Gesagte. Das eigentliche Lesen ist die Sammlung auf das, was ohne unser Wissen einst schon unser Wesen in den Anspruch genommen hat, mögen wir dabei ihm entsprechen oder versagen. Ohne das eigentliche Lesen vermögen wir auch nicht das uns Anblickende zu sehen und das Erscheinende und Scheinende zu schauen.
[2] Cf. Pokorrny, Julius, Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. I Band, Bern/München: Francke Verlag, 1959, p. 1168: raiz de érgo = 1. uerg-, ureg-, concluir, encerrar, incluir, conter; 2. fazer, atuar Werk = obra; arkéo = proteger, ajudar, manter, raiz = arek = concluir, fechar, incluir, cf. arca.
[3] Dito com outras palavras, o que usual e comumente denominamos de ver simples e imediato é um monte emaranhado de preconceitos empacotados de tal modo, que parecem um bloco de diversos tipos de concreto. Por isso a acepção usual do que seja concreto ou concreção conota concreto armado, e quando ele se dissolve achamos o que se desfaz como abstrato e vago.
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