- Fenomenologia é arte de ver. Husserl a chama de vontade para evidência. Evidência, evidentia em latim, vem do verbo evideri. Evideri significa aparecer a partir de si, evidenciar-se. E o que assim aparece a partir de si nele mesmo é o que chamamos de fenômeno da fenomenologia.
- Fenômeno: É comum, representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido atrás ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.
O aparecer do fenômeno, no entanto, não diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrás dela. Refere-se antes à autoapresentação ou autopresentação ou à intensificação de uma presença. Nesse sentido é algo como luzir, incandescer. É tomar corpo, crescer no sentido da expressão cresça e apareça. É, pois surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presença. Para podermos ver melhor, de que se trata quando falamos do fenômeno como auto-presença ou intensificação de uma presença, examinemos brevemente o que Ser e tempo nos diz da expressão grega phainómenon:
A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha– como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou que pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com ta ónta (o ente)[1].
O verbo do qual deriva a expressão fenômeno é medial. Como em português não há a forma medial, phainómenon é traduzido no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ação do verbo medial não é nem ativo nem passivo. Não seria, porém, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinâmica toda própria, um médium atuante, anterior à divisão em disjunção ativo e/ou passivo. Usualmente, quando falamos de ação e atuação, representamos alguém ou algo causando uma força sobre um alguém ou um algo. Assim quem causa uma ação e a própria força atuante é ativa; quem ou o que recebe padece ou sofre a ação é passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se dá o reflexivo: o agente é ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo não coincidem. Aqui o ser da iteração entre ativo e passivo e reflexivo é de tal feitio que é sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ação do verbo medial não pode ser captado, reduzindo-o à unidirecionalidade de flecha na iteração ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato é o que está dito na expressão: fenômeno, i. é, o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato são: em vindo ao dia, à luz, em colocando-se às claras, em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se[2]. O abuso do gerúndio, na forma em <…>ndo é proposital. Tenta insistir na consideração de que é necessário captar esse modo de ser da ação medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ação medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato, por ser simples. Só que o imediato e o simples não podem ser percebidos no seu ser, a não ser que a percepção ou melhor a recepção seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ação pede a captação imediata da realidade, antes da sua divisão e classificação em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo de tal sorte que a ação ou ato é “anterior” ao sujeito e objeto, é a dinâmica do todo, em sendo[3]. Esse modo de ser imediato e simples deve se tornar centro de nossa atenção, quando na fenomenologia falamos de intencionalidade como ver imediato e simples, e do Da-sein como a aberta. Aqui, o que pode nos dificultar a perceber de que se trata é a conotação que todas essas expressões trazem consigo de visualização[4]. Aparecer, mostrar-se à luz, vir à claridade do dia, no entanto, não têm primariamente muito a ver com visualização. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepção do que é em se mostrando a ele mesmo, é anterior a toda e qualquer visualização. Visualização é a maneira projetiva da objetivação interpelativa, pela qual colocamos o fenômeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.
Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivação interpelativa, não percebemos que o que nos vem ao nosso encontro como objeto, coisa “em si”, “real”, não coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas é algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivação interpelativa é uma das modalidades da objetivação.
- Embora um tanto “forçado”, usemos a palavra mira para explicar como devemos entender fenomenologicamente a palavra fenômeno. Em geral, quando entendemos mira como ponto de vista, perspectiva do foco, impostado para a meta, objetivo etc. etc., estamos falando somente de uma das modalidades da mira. Mira, mais propriamente, pode ser entendida como o atônito de um espanto ou de admiração, embora nesse espanto e na admiração já esteja de alguma forma implícito o início de lance, pois espanto e admiração está por assim dizer impregnado de luz clara, digamos abertura de alguma forma “escancarada”. Amaciemos a tonância da mira a modo de um luzir como o de madre-pérola, da luz das folhas de oliveira, da luminosidade de certas paisagens que não são propriamente iluminadas, mas como que abrindo-se de dentro para fora numa luminosidade cada vez mais intensa, mas a modo de um transluzir. Uma tal trans-aparência ou trans-aparecimento não é oposto da escuridão, mas sim é como o vir à fala de uma realidade abissal que em vindo à fala, em vez de esgotar a profundidade abissal, traz à tonância exatamente a imensidão, a intensidade da profundidade, o inesgotável abismal no seu ocultamento (escuridão) cada vez mais íntimo.
- Aqui é necessário deixar bem claro que fenômeno jamais é um objeto ou uma coisa. É cada vez mundo. Dito com outras palavras, é o ente na sua totalidade ou no seu todo. É de grande importância a gente ver essa diferença entre objeto e mundo. Mundo não é conjunto de objetos. Ou um espaço onde estão objetos. Mundo é paisagem. Mas como se abre a paisagem como caminho do campo? Diz o texto: “O apelo do caminho do campo acorda um sentido que ama a liberdade e, no lugar oportuno, suplantará as aflições numa última jovialidade. Esta se opõe (…) (…) (…) (…) (…) Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz morar de novo uma origem distante, onde a terra natal nos é restituída” (cf. p. 47-48 (327-328)). Diante dessa paisagem, exclamamos atônitos: Mas isso não é paisagem! Nem descrição da paisagem. Não é interpretação da paisagem a modo de uma metáfora ou alegoria para dizer certos processos subjetivos humanos e sua história. Ou não seria exatamente isso mesmo, uma metáfora, uma alegoria, uma comparação para, usando a paisagem natural referir-se ao humano e sua história, quer em particular, quer em geral? E, no entanto, em toda essa fala tudo que achamos ser natural, está impregnado de antropomorfismo[5]. E quiçá de um antropomorfismo altamente poético lírico!
Mas então o que é Anthropos, anthropomórfico, anthropológico: o que é homem, o humano? Mas, quando perguntamos e respondemos “o que é o homem?!”, dizemos que é diferente, oposto, igual à natureza, a partir e dentro de que sentido do ser é que estamos dizendo e negando tudo isso? Em que consiste pois o sentido do ser do homem, do anthropos, anterior ou diferente do sentido do ser comum, tanto ao homem como à natureza, de tal modo que todo e qualquer ente, seja natural, seja humano possa ser tocado pelo sentido do ser que acorda um sentido que ama a imensidão, a profundidade e a jovialidade da liberdade? Numa paisagem, onde o humano tocado pelo sentido do ser que acorda um sentido que ama o amor da jovialidade da liberdade, todas as coisas deixam de ser coisas e objetos, para ser cada vez, sempre de novo, mundo, em cujo médium e estruturação, homem e mundo, pensar e ser são o mesmo.
- Embora não tão bom e claro como o caminho do campo, tentemos dar um exemplo de um mundo, onde as coisas não são objetos, mas estruturações do mundo. Na Idade Média uma das categorias fundamentais para a compreensão do ente no seu todo era substância. A palavra substância é tradução latina do hypokeímenon grego.
Para nós hoje, sujeito indica o ente humano. Na gíria, juntamente com o cara, sujeito significa um individuo humano determinado, mas numa denominação “neutra”. Na Idade Média sujeito, subiectum era equivalente à substantia, substância, à coisa.
Nós temos dificuldade de entender de que se trata, quando o texto chama o subiectum, i. é, a substância de hypokeímenon. Isso porque, hoje, entendemos tanto o subiectum como também o obiectum medieval (substância-coisa) não a partir da substantia, da hypokeímenon, da pre-jacência, mas a partir da compreensão da substância como objeto da representação do homem enquanto sujeito, no sentido da nossa época moderna. Tentemos brevemente nos livrar desse pré-conceito moderno da compreensão da substância, pois compreender bem, com mais precisão de que se trata, quando o medieval dizia subiectum, substantia a modo do hypokeímenon, nos pode facilitar ver o que na fenomenologia quer dizer essa coisa que é descrita como fenômeno ou o em se mostrando a ele mesmo, o aberto, que os gregos chamavam também de ón, i. é, o ente.
A nossa compreensão usual da coisa como substância e acidente, mesmo em certos manuais de filosofia medieval, parece ser uma mistura de uma compreensão, bastante defasada, da substância medieval como hypokeímenon e da compreensão no nível defasada do objeto moderno, de “o contra-posto existente de experiência das ciências naturais”. Pois entendemos substância como um quê permanente, imutável, núcleo, cerne, que está sob (sub-stância), debaixo de um conjunto de acidentes, que vêm e vão, que são propriedades não essenciais, passageiras e mutáveis. Esse quê-núcleo é algo como um ponto abstrato, duro, compacto, o atômico. Essa compreensão é o último resquício da compreensão da substância já deficiente como essa ou aquela coisa maciça, o bloco, algo espesso, denso, substancial.
Se, porém, tentarmos compreender o subiectum a partir da substância medieval sem a pré-conceituosa mistura do antigo e do moderno, ambos defasados, ouvindo o que a palavra grega hypokeímenon nos quer dizer, percebemos que coisas não são blocos, núcleos, isto, aquilo, ali, lá, acolá, mas sim pre-jacência.
A palavra pre-jacência não existe em português. O verbo jazer significa o que o verbo medial grego hypokeísthai significa, a saber, estar assentado, bem repousado, fundado e ajustado ao todo de uma paisagem. Esse sentido ainda está vigente no adjetivo substancial em português. Casos de substância (hypokeímenon) nesse sentido seriam, por exemplo, montanha, imensidão que se estende como planície, o abismo do mar na sua profundidade, um filhote de porco que nasceu redondinho, perfeito, uma obra bem acabada, perfeita, uma pessoa bem assentada em si, madura, confiável, justa e reta. Portanto indica o assentamento, a integração, o ajustamento bem feito dentro de e como um todo, como atinência e pertença à totalidade prejacente da realidade ali estendida, imensa, profunda e bem consumada. Substancial é, pois, contrário ao avoado, ao “por a caso”. Substância, a prejacência não é algo projetado por um sujeito-homem como um caso da sua realização, mas coisa(s) destacada(s) de toda uma paisagem de um mundo que se abre e é sustentado como dádiva[6]. E o homem aqui não é um sujeito a que é dada a coisa como objeto, a partir e dentro da jogada do seu projeto de realização, não como dádiva, mas como produto da sua representação, mas ele mesmo é também substância, bem ou mal integrada e assentada dentro da imensa paisagem da prejacência. O seu destaque consiste justamente em ser uma coisa, integrada e assentada junto de e com outras coisas, mas de modo todo próprio e seu, ao qual se abre num lance toda a paisagem do ente no todo, e lhe é mantido uma imensa e profunda tarefa de ser concreativo junto do ente no todo da vigência da prejacência. A grande dificuldade de compreendermos a substância como sujeito no sentido medieval é porque objetivamos, representando, a substância homem ou como sujeito ou como objeto a partir e dentro do nosso modo atual da metafísica da subjetividade.
- Ao fechar por enquanto as nossas reflexões fenomenológicas acerca do methodo fenomenológico, expressão, aliás, que é um pleonasmo, talvez possamos provisoriamente concluir que método é caminho, e o seu modo de ser aparece no Caminho do campo, e se refere ao ser do homem. Com outras palavras, Caminho do campo é a própria essência do homem no seu ser, que na fenomenologia recebe o nome de existência ou Da-sein (liberdade e mundo, ou Ser-no-mundo): o aviar-se da existência para o seu ser se chama história. Enquanto história da existência, o homem é o movimento de retorno a si mesmo, à origem do seu próprio. A via-gem de retorno do Dasein, da existência à sua essência ou ao seu ser se chama errância, viagem cheia de vicissitudes, perigos, tentativas e tentações, na qual o sentido do ser que constituiu e constitui o ponto de salto da história da razão ocidental é colocado em questão. Em alemão, via, o caminho dessa viagem, se chama Holzwege, caminho da madeira.
Diz o pensador alemão Martin Heidegger no início do seu livro Holzwege (Caminhos do lenho): Lenho, assim, soa um antigo nome para mata. No lenho são caminhos. Deles a maioria decresce, cessa súbito no intransitado.
Chamam-se caminhos do lenho.
Cada qual percorre separadamente mas na mesma mata. Muitas vezes parecem ser um igual ao outro. Mas apenas assim parecem.
Lenhadores e vigias da mata conhecem os caminhos. Eles sabem o que evoca ser num caminho do lenho.
A palavra alemã Holzweg é composta de Holz e Weg. Holz é lenho, madeira e também mata, floresta. Weg é caminho. Holzweg significa: caminho falso, caminho que de repente se esvai e se perde no intransitado. Por que se chama caminho do lenho ou da madeira? Os lenhadores, depois de derrubarem árvores, as desgalham e então empurram o tronco montanha a baixo. Os troncos então descem para o vale, abrindo caminho e com a repetição do processo, com o tempo, formam pistas. Essas pistas parecem caminhos. Mas não o são e enganam os turistas inexperientes.
Desses Holzwege, diz Heidegger no Denkerfahrungen (Experiências do pensar, Vittorio Klostermann: Frankfunrt am Main, 1983, p. 41):
Ao homem vindouro, está eminente o confronto com a essência e com a história da metafísica ocidental. Somente nessa ponderação do pensar (Besinnung) se torna realizável a passagem para a existência planetariamente determinada do homem e alcançável esta existência historial-mundial como fundamentada.