- Diz Heidegger: “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande”.
(…) O perigo iminente é o homem de hoje ficar surdo à linguagem do caminho, cabendo-lhe nos ouvidos apenas o ruído das máquinas que se lhe afiguram, então, como a voz de Deus. E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado, o simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta. O simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu (versiegt).
Nesse trecho onde no caminho do campo se fala do simples, para nos prepararmos a falar mais diretamente do Simples que guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande, conversamos longamente sobre a situação do que na fenomenologia poderíamos denominar de desolação da desertificação do nihilismo europeu e ao terminarmos o encontro, foi proposto pelo coordenador do nosso círculo fenomenológico, frei Marcos Aurélio que nos preparássemos para o seguinte encontro, cada qual de nós, tentando responder a pergunta: “haveria uma ligação mais íntima entre a compreensão mais própria do simples e essa desolação? E, se houver, em que sentido?”
Essa proposta foi feita para que a nossa compreensão do que seja simples não se incline e decaia na compreensão antropológica, psicológica, mas permaneça com rigor: ver simples e imediato o surgir do fenômeno.
Usualmente, achamos tudo isso um tanto ridículo ou exagerado. Para que essa acribia sofisticada da fenomenologia, a qual nem sequer os próprios fenomenólogos conseguem manter assim nesse modo “purista”. O nosso bom senso nos diz: por que não pode ser psicológico? Antropológico? Não tenho as coisas imediatamente diante de mim, não é tão simples admitir a coisa ela mesma ali como ela me aparece? Por que tanto medo sofisticado do realismo simples, aqui e agora, concreto?
Essa maciça evidência da captação da realidade em si, anterior a toda e qualquer captação nossa, essa crença na realidade não é para ser negada. É para ser admitida. A questão não consiste em admitir ou negar, ter certeza ou duvidar da existência da realidade. Trata-se simplesmente de examinar se o que vejo é evidente ou não. Se aparece ou se oculta. E trata-se de ver suas implicações. Trata-se de ver simples e imediato ou deixar ser o ente no seu ser: E-videri (voz medial, indica a dinâmica da presença, da vigência de e para si nela mesma). O que aqui foi dito é terrivelmente insuficiente e mal dito para dizer de que se trata. A tentativa de mostrar na e-vidência deve ser repetida sempre de novo. Tentemos pois dizer a questão de um outro modo. E isso repetindo o que já foi dito muitas vezes, a saber, indicando o que nos bloqueia de ver simples e imediatamente. Um dos itens que nos bloqueia e impede de ver simples e imediatamente é isso que nós pensamos ser simples e imediato, mas que de fato, longe de ser simples e imediato, é altamente complexo e mediado em várias camadas. Com outras palavras, confundimos facilmente o grosso modo e o em geral com simples e imediato.
- Suponhamos que os entes sejam como que novelos de linhas tão infinitesimalmente finas que estão enroladas em si e então, vistos de fora parecem este rolo, aquele rolo, indefinidamente. Cada qual diferente no sentido de um está duro como uma pedra, outro cheio de fiapos pontudos como um ouriço, outro achatado como figo esmagado, outro fofinho etc. Alguém que quer esses novelos todos como fios enrolados e quer os desenrolar e recuperar os fios para fazê-los feixes e fios mais grossos e resistentes e assim tecer tecidos etc., pega a ponta do fio que aparece num lugar do novelo e então seguindo esse fio condutor vai desenrolando todo o novelo. Nesse trabalho paciente vai ter que desembaraçar nós, cruzamentos de fios, fios rompidos que se enrolam com outros fios de uma camada mais funda etc. etc.
Esse trabalho de desenrolar o novelo cada vez enrolado, compactado e emaranhado de modos diferentes, seguindo a condução que está sugerida na ponta do fio da meada é o movimento de de-construção, para se chegar ao simples elementar de toda e qualquer coisa já constituída. Se compararmos os entes que nos cercam e inclusive a nós mesmos com os novelos enrolados de acima, os entes não aparecem neles mesmos a partir deles mesmos, mas já de alguma forma defasados, emaranhados por extrapolações, hipostatizações indevidas, entulhados sob categorizações de outras dimensões etc. e principalmente já fixados e congelados num determinado sentido do ser que não deixa ser o ente no próprio do seu ser como mundo. Isto significa que supostamente, no realismo usual, o que pensamos que se dá de imediato, direta e simplesmente não se dá de modo algum direta e imediatamente, mas necessita de um cuidadoso e paciente trabalho de desconstrução para que a coisa ela mesma se apresente à evidência no seu próprio. A maior parte do trabalho da fenomenologia é essa desconstrução que prepara o evidenciar-se do fenômeno. Mas aqui para poder trabalhar na desconstrução se é necessário que todo esse processo de decostrução se dê no médium do ver simples e imediato que é a pura disponibilidade de receber, que Husserl chama de transparência.
- A seguir, tentemos dar um exemplo de desconstrução, não diretamente, mas como que assim de tabela, falando da coisa ela mesma, que é uma expressão que entra no slogan que caracterizou a fenomenologia, a saber, Zur Sache selbst, à coisa ela mesma. Examinemos pois rapidamente o que entendemos por coisa, pois para entender o que é coisa temos que lidar com o processo de deconstrução.
Se perguntarmos: O que é a coisa, ela mesma, de imediato, no cotidiano, respondemos: coisa é isto e aquilo que está ali diante de nós, dado de antemão como objeto, à disposição da ação de visualização e de manipulação. Nessa ação, lidamos com uma porção de “coisas”. Os termos afins ao termo coisa que também indicam uma porção de “coisas” são ente, objeto, algo. Quando dizemos uma porção de coisas, queremos dizer uma infinidade de coisas. Coisa, portanto, indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, sem exceção, na sua totalidade. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação, inclusive o sujeito humano ele mesmo. E até ao nada podemos chamar de coisa, enquanto ele é passível de ser nomeado como coisa. Assim, dizemos: aquela coisa chamada nada não está com nada. Assim, coisa, objeto e ente são usados ordinariamente como sinônimos. Enquanto tais, indicam, ao mesmo temo, o conjunto todo do que é e pode ser, na sua generalidade abstrata e formal e ao mesmo tempo cada ente real e possível, em concreto, aqui e agora. Nesse sentido, coisa, embora indique também a generalidade abstrata e formal, se inclina para a direção de cada coisa, em concreto aqui e agora. Assim, nessa inclinação coisa ela mesma parece dizer: esta realidade concreta e real e nada de abstração, fantasia ou imaginação de “coisa” que é longe do que é de fato. Em português, na gíria do uso popular, p. ex. em vez de coisa, temos os termos troço e trem. Neste, aparece de modo mais palpável a ambigüidade acima conotada pela palavra coisa. Mas, quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “perplexo”, pois nos soam tão concretos e vivos, de tal modo que se tem a sensação de ter “a coisa ela mesma” diante da gente. No entanto, quando se pergunta de que se trata, nada dizem a não ser um indeterminado “algo”, indefinido, mas a modo todo e bem concreto, vagamente! Na fenomenologia, usualmente os termos acima mencionados como similares ou iguais à coisa, todos eles de alguma forma, embora cada qual a seu modo, dizem o que na filosofia se costuma denominar o ser e o ente, e a questão do sentido do ser e suas implicâncias. Na fenomenologia, pode ser que o slogan Zur Sache selbst se refira de alguma forma ao retorno a essa questão, como coisa ou causa da filosofia.
3.1. Coisalidade
Entrementes, como dissemos acima, há coisas e coisas, em diferentes modos. A expressão “há coisas e coisas”, no entanto, quer nos dizer que a coisa possui sua coisalidade. Para compreender de que se trata nesse “negócio” de coisa e sua coisalidade, vamos à mão de dois textos, digamos banais, tentar ordenar e fixar melhor que coisas e quantas coisas nos vêm à mente quando falamos de coisa, usualmente.
3.1.1: O primeiro exemplo é uma descrição acerca da pesca, escrita por Tokaishige Sadao, um chargista japonês, hoje bastante conhecido na mídia do seu país. No pequeno livro “Visão nipônica do Sr. Jooji”, na primeira estória, intitulada “Modinha pesqueira do Pacífico” implica ele:
Antigamente, era só sair um “tantinho” fora do subúrbio, havia riacho, lagoa e lago. E uma porção de pequenas lojas de secos e molhados, onde se podiam comprar bem barato, anzóis e varas de pescar e chapéu de palha. A gente se munia desses apetrechos, e um, dois, três!, se abancava à beira do riacho, e, pronto, tinha-se a panca de um pescador. A pesca, hoje em dia, não vai assim tão facilmente. Não dá para ir pescar, assim, sem mais nem menos. É domingo. Você dormiu bem, acorda tarde. O sol está já há tempo a aquecer a varanda. Depois de ter lido o jornal do dia, de repente, dá-lhe a vontade de ir pescar. Ajeita a camisa, desabotoada, enfia os pés num par de velhas sandálias, e lá vai você à loja de materiais de caça e pesca, comprar anzóis, vara e chapéu de palha e pedir conselho do vendedor. E, então, é ali que você sente na carne a vergonha de ter sido tão descuidado, frívolo e superficial nas coisas da vida humana. E vem o interrogatório: “O que o Sr. quer pescar?” “Ora, quero pescar peixes! A pesca não é para pescar peixes?” Com dignidade grave e solene, o vendedor especializado e perito inquire: “Peixe do mar? Peixe do rio? De lagos? E se peixe do mar, numa embarcação grande, ou na canoa, ou simplesmente à margem do lago e do rio? E que espécie de peixes, o Sr. quer pescar, salmão, atum, pescado, enguia?, lambari?”. Você um tanto deprimido sob a pressão de tantas perguntas, envergonhado pela ingenuidade e despreparo na abordagem da pesca, um tanto ferido no seu brio, tenta se salvar, timidamente: “Pois, eu quero só pegar peixes…, pode ser bem pequeninos, pensei só pescar assim, assim … e comprar anzol e vara de pescar…!” O vendedor competente, com rigor e precisão, não me vende nem anzol nem vara, assim sem mais nem menos: “Há anzol e anzol, vara e vara, linha e linha e isca e isca, conforme que peixe o Sr. quer pegar, onde e como quer pescar. Por isso, o Sr. que é o sujeito e agente da pesca, se não determinar com maior precisão e responsabilidade a mira e meta de seus atos e projetos, e não me disser o que, como e onde quer pescar, não lhe posso ajudar em nada, nem sequer vender-lhe os materiais de pesca e seus acessórios. Hoje, não é mais possível, nem é permitido pescar, sim viver a vida, considerando a vida e o mundo assim tão facilitados, numa postura vaga de “quero pescar apenas peixes!”
Nessa descrição da pesca temos o peixe, o anzol, a vara de pescar, o chapéu de palha. Portanto uma porção de coisas. Mas essas coisas para o pescador amador estão diante dele assim de modo geral, embora de modo concreto e vivo, no seu cotidiano como dentro da sua perspectiva, assim mais ou menos, na medida do uso, segundo o escritor, dentro da existência amadora japonesa de antigamente, de tal sorte que perguntado acerca de todas essas coisas, o amador, pescador do fim de semana, não sabe responder com exatidão, o que, como, onde pescar. Pois na paisagem da existência amadora de antigamente, no pescar peixes, com anzol, linha, vara de pescar e com chapéu de palha, todas essas coisas, recebem seu significado óbvio, cada coisa no seu lugar, nesse modo de ser solto, meio espontâneo, mas muito bem adaptado à realidade. O que, porém, não haveria de acontecer, se mesmo na existência japonesa de antigamente, se tratasse de uma pesca profissional, embora por sua vez o caráter profissional de antigamente tivesse o seu modo de ser todo próprio artesanal, cunhado pela existência japonesa de antigamente e bem diferente à da existência cunhada pelo profissionalismo técnico científico, insinuado pela estória de Tadao. Aliás, profissionalismo técnico científico não permite ser solto e descuidado mesmo no amadorismo.
Assim, dizer, por exemplo, como na caracterização da coisa acima, que “coisa é isto que está ali diante de nós, dado de antemão como objeto, à disposição da ação de visualização e de manipulação”, parece se tornar insuficiente, parece não dizer muita coisa, e ao mesmo tempo dizer tudo, mas de um modo assim e assim. O mesmo se pode dizer da outra caracterização acima mencionada da coisa. “Coisa indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, sem exceção, na sua totalidade. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação, inclusive o sujeito humano ele mesmo.” Se observarmos a diferença da impostação diante da coisa chamada pesca e acessórios, entre a mirada do vendedor especializado de hoje e do pescador amador que brinca de pescador, como antigamente, descrita na estória acima, as características dadas por nós acima acerca da coisa parecem muito semelhantes à captação vaga e indeterminada do pescador amador de antigamente. Para que a captação do que seja coisa tenha a precisão e determinação da maneira de captar a pesca e seus acessórios, conforme a do vendedor especialista e competente da estória, é necessário mirar a coisa, enquanto esta coisa e aquela coisa, a partir do ponto de vista, da sua finalidade, da sua utilidade, e a distinguir dentro de determinados padrões de classificação que são derivados segundo o ponto de vista da sua finalidade e utilidade. Entrementes, aqui no que se refere à precisão e determinação a partir da finalidade e utilidade, se necessita de uma especificação mais acurada. Pois o que foi dito da determinação da coisa a partir da finalidade e da utilidade, segundo a descrição feita da pesca por chargista japonês, vale sem dúvida para os materiais de pesca como anzol, linha, vara, isca etc., portanto para as coisas confeccionadas para a pesca, mas não para o peixe propriamente dito. Pois peixe é uma coisa que pertence à natureza e não à cultura ou à técnica. Peixe é peixe, independente de finalizações e miras que lançamos sobre ele. Isto, como já foi mencionado antes, significa que a infinidade de coisas, por diferentes que sejam, podem ser divididas a grosso modo em coisas feitas pelo homem e coisas pertencentes á natureza, portanto coisas culturais e coisas naturais.
Mas que coisa é essa que especifica e determina a coisa, a partir e dentro de uma definida finalidade e utilidade? De repente, nos damos conta de que entre as coisas que acima foram mencionadas, digamos, divididas de modo bem geral em coisas feitas pelo homem e coisas pertencentes à natureza, aparece uma coisa toda estranha, denominada homem e suas ações. E a coisa homem pertence certamente à natureza, mas ao mesmo tempo parece ser de alguma forma produto feito por ele mesmo, portanto coisa que é da cultura. Não é a partir dele, nele e para ele que as coisas são colocadas, nas classificações, conforme o interesse, a determinação específica de suas finalidades e projeções?
3.1.2: O segundo exemplo é um trecho, citado por Foucault e atribuído por ele a Jorge Borges, que fala de “uma certa enciclopédia chinesa”, onde está escrito que
os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, f) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas[1].
Acima, assim de passagem, distinguimos coisas e coisas, classificando as coisas em coisas culturais e coisas naturais, coisas produzidas pela indústria humana e coisas pertencentes à natureza. Tentemos ordenar as coisas chamadas “animais”, classificadas na acima mencionada enciclopédia chinesa, em coisas produzidas pela indústria humana e coisas pertencentes à natureza.
Provisoriamente, à primeira vista, são coisas, produtos da indústria humana: b) animais embalsamados; h) incluídos na presente classificação; k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo.
Pertencem diretamente à natureza: d) leitões; i) animais que se agitam como loucos; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas.
Mas, e os animais, a) pertencentes ao imperador; c) domesticados; f) inumeráveis; l) etcetera? Certamente todas essas coisas são animais, e como tais não foram fabricados pelos homens, mas a referência que eles têm para com o homem, não os tira da região dos animais selvagens, portanto do reino das coisas que surgiram diretamente da natureza ainda não tocada pelos homens? E g) os cães em liberdade? Certamente vivem soltos, na natureza, mas podem ser também cães domésticos que se soltaram e se tornaram selvagens. E mesmo que sejam, desde o início, selvagens, o fato de serem classificados como selvagens, não é porque já são vistos a partir do ponto de vista do homem que divide os animais em domesticados e selvagens?
Mas, e) sereias, f) fabulosos são certamente “animais”, produtos da imaginação humana, portanto fabricados pelo homem?! Mas, mesmo que sejam imaginados, não são imaginados como pertencentes à natureza, e não fabricados pelo homem? Por outro lado, seja como for, seja desse ou daquele jeito, no momento em que se usa o termo animal para indicar todas essas coisas, não se está indicando que ao menos na última instância se está apontando para o bicho no sentido de coisa que não foi fabricado pelo homem mas, que pertence à natureza virgem? Mas que coisa é essa que chamamos de cultura e natureza, coisa fabricada pelo homem e coisa proveniente da natureza, toda essa divisão, classificação, não diz simplesmente referência ao interesse do homem? Tudo isso somente tem o seu sentido, a realidade do seu ser, se de alguma forma está referido ao homem!? É possível ser algo em si, independente da referência ao homem? Se não é propriamente ao homem, mas a um sujeito, seja ele homem, espírito, Deus etc.? A própria coisa em si, independente de toda e qualquer referência ao sujeito, não é uma referência ao sujeito, pois somente nele, a partir dele, com e para ele, a coisa tem sentido, a realidade, chamada independente, em e para si?
Assim, a palavra coisa é habitada por uma chusma de entes, a palavra coisa se entoa cada vez e se repercute numa celeuma de significados.
3.2. Coisa e coisalidade, uma estranha implicância entre coisa e homem
Assim, se os escutarmos bem, coisa e todos os termos similares acima mencionados insinuam nuances de diferença. Desse modo, distinguimos coisa e coisa, ou melhor, coisa e sua coisalidade. Tentemos, pois, enumerar as coisas que já se desfilaram, p. ex., na estória da pesca, diante de nossos olhos, nas diferenças de sua coisalidade. Coisas naturais: peixe, minhoca, o homem pescador, o bambu, o rio, o barranco, vento, o céu aberto, as árvores à margem do rio, o sol causticante, etc. etc.; coisas que eram naturais mas entraram na perspectiva do uso: bambu®vara de pesca; pedra®banco para se sentar; árvore e sua sombra®proteção contra o raio do sol; minhoca®isca; sol®secador da camisa molhada; o homem®pescador®fornecedor e fornecimento de peixe para a cozinha da mulher, na preparação do jantar etc.; coisas feitas pelo homem: anzol, vara de pesca, chapéu, vestimentas para a pesca, óculos escuros etc.; e são também coisas, p. ex., os pensamentos que ocorrem dentro da cabeça do pescador?; seus sentimentos, vivências, os números, através dos quais conta quantos peixes pescou, quantas minhocas ainda restam como iscas?; a beleza da paisagem bucólica; a chateação diante do pedantismo técnico do vendedor de anzol, linha e vara; o sistema sofisticado da pesca e a indústria dos instrumentos de pesca e seus acessórios; a civilização tecnológica que domina o Japão e a sua cultura antiga, que aos poucos desaparece etc.?; a morte dos peixes que pesca, a qual o pescador associa à sua própria morte vindoura; a concepção budista da vida e da morte, da natureza, da civilização etc. que de alguma forma move o pescador, quando se deprime ao comparar o Japão de hoje, ao de ontem?; essa própria comparação que ele faz de hoje com ontem, o tempo, ontem, hoje e futuro etc., etc.? Em todas essas coisas, e suas coisalidades, no nosso uso da palavra coisa, coisa, geralmente indica objeto. Podemos talvez, “grosso modo” e à primeira vista, dizer que coisa, como objeto, está referida ao projeto da produção do homem[2]. Objeto é a coisa produzida pela ação da indústria humana. Ao passo que coisa se usa de preferência para indicar mais um fato da natureza virgem, ainda intacta da indústria humana. Portanto coisa da e produzida pela natureza. E quando queremos indicar indistintamente tudo que é e pode ser, seja no sentido do objeto como também no da coisa, seja se é produto do homem, seja se é produto da natureza, usamos o termo inteiramente geral algo. A coisa-objeto e a coisa-coisa, a saber, o fato natural, e a coisa-algo, o que é? Há algo anterior à coisa-objeto (produto do homem) e à coisa-coisa, ao fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas?[3] E onde se localizam todas aquelas coisas que acima enumeramos que não se encaixam com tamanha facilidade, nem à classe das coisas da natureza, nem à das coisas da cultura ou feitas pelo homem? Mas sejam como forem, todas essas coisas, e suas coisalidades, se acham numa ordenação classificatória da mais geral para a específica, e desta para a individual: p. ex. peixe, lambari, este lambari etc. O nosso interesse a seguir seria o de observar que aqui se dá uma pequena distinção, a saber: usualmente nós pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. E a coisalidade de cada coisa como que indica a classificação específica e geral que subsume sob sua classificação as coisas individuais. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisa a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. Isto significa que se dá aqui uma espécie de coisalidade das coisalidades das coisas. Assim, com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação” contém sob a extensão do seu modo de referência como “ser-algo” todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo homem”. À coisalidade da classe “coisa”, pertencem primeiramente as “coisas produzidas pela natureza, mas também os objetos produzidos pelo homem. Nessa última acepção coisa exerce a mesma função de algo. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou inteiramente vazios de conteúdo ou prenhes de possibilidades concretas de conteúdo.
Em alemão, como acima mencionamos na nota, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Por enquanto, provisoriamente sem muita precisão nem certeza, talvez possamos dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisalidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de obra artesanal, feita à “mão”; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse como “a coisa ela mesma”. Sache possui o mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heróica, mito, indicando a “coisa” toda própria, referida à tradição antiga, primitiva e originária no início da história.
Repetindo, observemos aqui que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que poderíamos chamar de entidade das coisalidades das coisas. São, portanto, cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não é muito preciso a gente chamar esses termos de classificatórios. Pois classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo” plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa e, no entanto, não se iguala a ela. Por isso, aqui, em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua entidade. Mas então, o que é horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado, talvez possamos dizer: Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm de encontro a nós, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinação de ser. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. É o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache, há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicâncias”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicâncias, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber, como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicâncias de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa auto-identidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa único singular perfilação do abismo insondável de ser. A referência do termo coisalidade ao horizonte e muito mais ao mundo, portanto, a coisalidade como horizontalidade ou como mundidade começa a mostrar uma implicação muito estranha na coisa, junto da coisa, tenha ela a acepção que tiver, seja qual for a sua significação dentre as acima mencionadas. Em que sentido?
De tudo isso que até agora, como que provisoriamente, refletimos da complexa acepção da palavra coisa, talvez possamos acentuar a observação de que o exame da coisalidade é de decidida importância para determinar melhor o que é a coisa ela mesma. E que o exame da coisalidade, i. é, do caráter do ser da coisa, nele mesmo, está intimamente ligado com o exame da sua referência ao interesse, a partir e dentro da qual, está implicada com o ponto de vista ora como classificação generalizante ou espaço vazio, aberto, ora como horizonte ou mundidade, que está intimamente ligada ao ser do homem. Ao homem a quem a coisa aparece ora como isso, ora como aquilo no modo de ser da sua presença como coisa.
Depois desses arrazoados bastante enrolados, fixemos ainda que provisoriamente a seguinte observação: à primeira vista, quando falamos de coisa ela mesma, da coisa e da sua coisalidade, tudo isso se localiza diante, ao lado, ao redor de nós, como a realidade em si, independente, sem referência imediata a mim ou a nós como sujeitos. E assim nós nos achamos usualmente, de “imediato”, virados para as coisas, com elas nos relacionamos como a objetos, i. é, a entes colocados diante de nós. E somente nos apercebemos a nós mesmos, enquanto também nos colocamos diante de nós mesmos como “objetos” da nossa captação. E quando me pergunto: quem capta a mim mesmo, quando me coloco diante de mim como objeto, o sujeito ele mesmo da captação de mim mesmo como objeto, como sujeito objetivado, se retrai, e não o capto enquanto sujeito, mas sempre de alguma forma como objeto. Assim, surge um estranho estado de coisas onde temos “diante” de nós coisas-objetos e coisas-sujeitos, dentro da totalidade que abrange esses dois tipos de coisas, como seu horizonte. E, no entanto, isso que aqui aparece como horizonte, como totalidade, como mundo, pode ser que não seja outra coisa do que a projeção do sujeito enquanto sujeito no seu ser que se retrai, objetivando-se como o espaço a partir e dentro do qual nos vêm ao encontro os objetos. Seria possível aqui suspeitar que toda e qualquer presença totalizante como horizonte, mundo, abrangência, imensidão, profundidade, e mesmo classe, setor etc. são projeções a modo de tematização do sujeito operativo que no retrair-se constitui a estruturação da unidade da “realidade” que vem ao nosso encontro como “objeto”? E usualmente, em nosso cotidiano banal, esse estado de coisas é colocado dentro do esquema de relacionamento sujeito e objeto, a modo de relacionamento entre coisa e coisa, embora coisas diferentes. Esse estado de coisa, que aparece na sua coisalidade, no e a partir do inter-esse, da referência ao homem, visto na sua dinâmica concreta, se chama fenômeno. Assim, a coisa e sua coisalidade, intimamente implicada com o interesse, com o ponto de vista, ora como horizonte, ora como mundo, tenha talvez muito a ver com fenômeno e sua fenomenalidade, na fenomenologia. É interessante observar que para os gregos, na antiga Grécia, donde provém a filosofia, a palavra variante para a coisa que é o ente (ón, –tis), se referia à mesma coisa a que se referia a palavra fenômeno (phainómenon).
- Depois de todas essas implicações com a coisa, perguntemos com grande concentração: Que coisa é o simples do caminho do campo?