Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fenomenologia da Religião – I

20/04/2021

 

Introdução

Como indica o título, esse trabalho gostaria de se caracterizar pelo ponto de interrogação. Sem a interrogação, o título promete um trabalho que fale sobre a disciplina  filosófica denominada hoje Fenomenologia da religião. Na perspectiva, porém, do ponto de interrogação a Fenomenologia da Religião indica um interrogatório a que esta disciplina vai ser submetida. Aqui, na presente reflexão, a expressão Fenomenologia da religião assinala uma disciplina do saber filosófico que costumamos chamar de Filosofia da religião.Por sua vez, o termo Religião indica, não religião em geral, mas especificamente a religião cristã. E religião cristã implica e teologia cristãs.

Assim determinado o título Fenomenologia da religião?, o que está sob a interrogação é o relacionamento entre Fenomenologia e religião cristã. O que há entre a fenomenologia, um saber filosófico que quer ser radicalmente teorético-racional, a ponto de achar insuficientemente teorética toda a compreensão que se tem na filosofia do racional e a religião cristã, que tem tudo a ver com a fé e crença? Eis a questão.

Nossa colocação da questão, onde o relacionamento entre fenomenologia e religião cristã é questionado, o interrogatório já encontra dois “réus” demarcados de antemão como Fenomenologia e religião cristã. Surge assim uma pergunta anterior: o que é fenomenologia; e o que é religião cristã? Na medida em que essas perguntas forem respondidas e divisarmos assim cada vez melhor o perfil de ambas, a pergunta pelo seu relacionamento se resolve por si mesmo… Mas talvez seja exatamente o contrário: na medida em que começamos a distinguir nitidamente o que é fenomenologia e o que é religião cristã, o relacionamento de ambas é colocado no crisol do questionamento, pois a diferença entre elas se torna tão acentuada, que o próprio conceito de relacionamento entra em questão.

O ponto de interrogação que fecha o título desse trabalho, na realidade, atinge e abre cada termo componente do título, de sorte que poderíamos exagerar o formato do título, escrevendo <Fenomenologia (?) da (?) religião (?)>? Mas, se assim, tudo é interrogado, a própria pergunta entra no lance da questão, por não saber o que pergunta. É que por não saber o que pergunta, o próprio perguntar começa a girar vazio em si mesmo, sem saber o que é a pergunta, sem onde, como e o que começar. O ponto de interrogação do título desse trabalho, indica portanto uma questão que não questiona apenas sobre isto ou aquilo, mas em fazendo esse interrogatório, busca captar o início da própria questão, na acribia de não deixar intacta nenhuma posição, sobre cuja base se comece, se cresça e se consume na questão. Esse empreendimento é comparado muitas vezes com a façanha impossível do Barão de Münchhausen que, a cavalo, ao se afundar na areia movediça, levanta conjuntamente a si e à montaria, puxando-se pelos cabelos para fora do perigo. É que para isso seria necessário um ponto de apoio fora dele mesmo, para de lá então se acionar, como a partir de um fundamento apriori, anterior, inteiramente diferente dele mesmo. Essa tentativa impossível de querer começar tudo de novo, a tal ponto de querer começar a própria possibilidade de começar, a saber, começar o que já começou como se a possibilidade de começar e de ter começado pudessem ser começadas a modo de um primeiro passo do processo, nos faz cegos  para perceber que só podemos pretender começar tudo de novo, porque já  “!estamos começados”: só se pode ser a radicalidade da novidade do começo, em sendo radicalmente dentro, até o abismo mais profundo do que ali já está começado. Não se trata, pois, de sair do perigo da areia movediça, mas sim, antes, nele se  afundar ou se apro-fundar.

Fenomenologia e religião cristã já começaram há muito tempo. A pergunta que pergunta pelo relacionamento de ambas está até ao pescoço ‘enterrada’ nisso que já, há muito tempo, começou e se chama  fenomenologia ou filosofia e religião cristã.

Interrogar o relacionamento entre fenomenologia e religião cristã e perceber que, para interrogar o relacionamento é necessário antes ou ao mesmo tempo perguntar por aquilo que os relacionados são realmente, parece ser um procedimento óbvio, sem problemas mais fundamentais. Pois, por mais dificuldades que nos cause tal pesquisa interrogante, trata-se aqui de constatar fatos: fato fenomenologia, fato religião cristã, fato relacionamento entre ambas. No entanto, a interrogação que fecha o título do nosso trabalho, que ao fechar atinge, abrindo para a sua raiz de fundo desconhecido, a cada um dos componentes do título, nos mostra que aqui a interrogação, ao interrogar pelo fato, já está afetada por uma busca de aprofundamento, cujo fundo não tem mais o modo de ser do saber usual, mas sim o modo de um não-saber todo próprio. Talvez a clareza do próprio indagar, a clareza do que seja fenomenologia e religião cristã e a clareza do que seja o relacionamento entre elas, venha desse fundo do não-saber, em cuja profundidade a compreensão dos componentes do título do nosso trabalho, portanto, nós mesmos que colocamos o ponto de interrogação estamos ‘enterrados’ até o pescoço.

Se fosse uma interrogação que pesquisa e verifica o relacionamento entre fenomenologia e religião cristã, deveríamos começar ‘definindo’, i. é,  demarcando limites, o contorno do fato fenomenologia e do fato religião cristã, para então constatar como é e como se dá o relacionamento entre elas. Tal pesquisa seria um ingente trabalho. Pois a fenomenologia e religião cristã já se iniciaram há muito tempo e estão emaranhadas inteiramente em implicações e pressuposições de tudo quanto delas se tem de interpretações. Defini-las, realçá-las desse fundo emaranhado de complicações criticamente, i. é, a modo de distinção e nitidez de diferenciação entre uma ‘coisa’ e ‘outra’ exige muito conhecimento, acuidade e pulso na captação do essencial. Essa segurança da crítica científica na constatação de fatos falta inteiramente a esse trabalho. Além disso, já de antemão, o ponto de interrogação, colocado no seu título, cria hesitação em iniciar de forma assim tão clara e segura, na vontade de ir construindo sem mais nessa positividade, constatando fatos. Isso porque a própria vontade de averiguação da realidade está minada pela desconfiança de que para além, ou melhor, para aquém dessa acribia crítica de distinguir entre coisa e coisa, há um outro rigor de menor saber, mais tateante, mas talvez mais vivo, mais nascente, que vislumbra na e-vidência finita o tênue fio de diferença, não mais entre coisa e coisa, mas sim de inter-ferência de um médium, de um entremeio da coisa com a sua causa, do ente com o sentido do seu ser.

Considerações finais sobre a ciência das religiões

  1. Os títulos como ciência das religiões, ciência sistemática das religiões, ciência comparada das religiões, “fenomenologia” das religiões são de alguma forma sinônimos. Esta última, a “fenomenologia” da religião não deve ser identificada com uma outra disciplina chamada fenomenologia da religião que é uma disciplina filosófica. Portanto, distinguir bem a “fenomenologia” da religião, como disciplina científica, e a fenomenologia da religião, como disciplina filosófica.  A fenomenologia da religião própria do curso de filosofia é uma disciplina filosófica. O que viemos falando até agora como “fenomenologia da religião” é uma disciplina da ciência positiva que recebe também o nome de ciência das religiões.  Até agora falamos somente sobre a “fenomenologia” da religião no sentido de ciência positiva, porque muitas vezes se confundem essas duas disciplinas.  Assim, à guisa de introdução  preparatória à disciplina filosófica fenomenologia da religião e informação de cunho cultural, demos uma visão panorâmica da ciência das religiões (“fenomenologia” da religião), para evitar confusão e para, uma vez que seja, ter ouvido falar dessa ciência, que, ao lado da antropologia cultural, história das religiões, psicologia e sociologia, começa a ter muita importância na busca de uma compreensão mais global do ser humano.
  2. Como conclusão dessa introdução preparatória à fenomenologia da religião propriamente dita como disciplina filosófica, podemos enumerar algumas características e pressuposições da ciência das religiões (“fenomenologia” da religião), quando ela aborda e analisa uma determinada religião ou um determinado grupo de religiões.
  3. Tudo isso aula vale também com maior razão, quando a ciência das religiões aborda e analisa o fato religioso como tal, que está presente como algo comum em todas as religiões.

Nessa tarefa, a ciência das religiões procede da seguinte maneira:

  1. a) Tenta descobrir em todas as religiões linhas mestras, em torno das quais gira o resto dos aspectos religiosos, que, devidamente realçados, dissipam a primeira impressão de um emaranhado confuso, que apresenta ser a história das religiões. Busca assim visualizar a estrutura comum a todas as religiões.

Essa descoberta da estrutura é, na linguagem husserliana, a redução eidética, i . é, a busca do eidos (Gestalt, configuração básica, typus) de um fenômeno obtido pela comparação de suas manifestações.

  1. b) Uma vez obtida essa configuração ou estrutura comum, há um segundo momento, para além da redução eidética, que é o ponto o mais importante na pesquisa da ciência das religiões: o de constituir uma compreensão concreta do fenômeno religioso. É o que na linguagem husserliana se chama constituição.

Trata-se mais ou menos do seguinte:

O fato religioso (enquanto humano) não contém simplesmente uma estrutura do tipo, p. ex.,  de cristal ou mesmo de um organismo vivo. Pois ele é fato, mas não um fato físico no sentido usual, mas uma factualidade toda própria humana.  O fato humano, a fortiori religioso, constitui uma estrutura, digamos, significativa, i. é, um conjunto de elementos certamente materiais, mas portadores de uma significação ou uma intenção humana significativa existencial.  Nesse sentido, nenhum fenômeno humano religioso se esgota nos elementos que uma análise puramente empírica pode descobrir, por mais detalhada e aguda que ela seja.  Assim, o fato humano religioso se inscreve num mundo específico, determinado pela intenção que o sujeito põe no jogo de relacionamento com ele. Dito na linguagem da fenomenologia de Husserl, cada fenômeno está constituído por um noema (o aspecto objetivo descoberto, iluminado e determinado pela intenção humana) e por uma noesis (a pregnância intencional).  Aqui não existe um fato objetivo simplesmente ali presente, independente de referência à intencionalidade do homem. Aqui todo o fato já é um material constituído, dentro da significação existencial, que o impregna como um momento significativo do todo, chamado a presença do homem no mundo (a intencionalidade). Noema e noesis, juntos,  ambos os aspectos numa única fusão concreta, determinam os distintos mundos, as diferentes regiões da experiência humana.  Assim, uma mesma realidade material pode dar lugar a diferentes fenômenos, conforme à intenção humana que a descubra.  A referência dos aspectos materiais de um fato (realidade) à intenção específica do homem proporciona a significação ou sentido do mesmo.  Daí, a busca da  estrutura do fenômeno, juntamente com a atenção sobre a intenção que a especifica, tornam  possível, para a “fenomenologia” da religião ou ciência da religião, a descoberta da estrutura significativa do fato religioso através de suas múltiplas manifestações historiais.

  1. c) Tudo isso, esse aspecto constitucional do fenômeno traz uma tarefa toda própria ao pesquisador, a saber, dar uma atenção toda específica e própria à dimensão intencional do fato: a pura descrição deve se converter em compreensão verdadeira do fato. Aqui não basta pois a fidelidade de um espectador neutro. Não basta, de fora do fato, analisar objetivamente todos os aspectos e realizar uma visão empírica panorâmica. Exige do intérprete a capacidade de comunhão com a intenção religiosa determinante do mundo específico no qual se inscrevem todas as suas manifestações. É penetrar numa outra existência, deixando suspensa a atividade do simples espectador. Exige-se aqui pulso e finura da “consonância” (Stimmung, Eifühlung, feeling). É conviver com o movimento genético e estruturante dos mundos.
  2. Tal colocação e abordagem faz questão de se contrapor à filosofia da religião e à teologia. Rejeita a colocação filosófica e teológica como sendo dogmática e especulativa. Faz questão de ser radicalmente positiva e empírica num sentido mais vasto e profundo do que o empirismo e positivismo do passado, quando a ciência das religiões estava no início de suas pesquisas. Por isso, em vez de ciência, se denomina “fenomenologia”. E se permanecermos na compreensão da ciência como usualmente a temos,  a partir do modelo das ciências físico-matemáticas, a “fenomenologia” da religião não pode mais ser chamada de ciência no sentido estrito. Mas,  pode ser que, no modo de ser da “fenomenologia” da religião, esteja aos poucos sendo mostrado como o conceito da ciência evoluiu e se transformou num modo de abordagem muito mais fino, diferenciado, dinâmico e concreto  do que os modos que tivemos com o conceito “tradicional” da ciência até hoje.
  3. Examinemos como a ciência das religiões enquanto “fenomenologia” da religião, depois de marcar a sua emancipação da filosofia da religião e da teologia, tenta demarcar a sua diferença diante de ciências particulares dentro da ciência das religiões.

Tanto a “fenomenologia” da religião como as ciências particulares que compõem a ciência das religiões têm a preocupação de manter-se em contato com os dados positivos oferecidos pela história religiosa da humanidade. Para ambas o método é empírico.

Mas: as considerações de cada uma não são empíricas no mesmo grau nem na mesma maneira. Há diferenças consideráveis quanto à compreensão do ato e no nível de interpretação do fato e do que seja o fato.  A “fenomenologia” da religião busca intensamente constituir-se como ciência sistemática que dá uma interpretação cada vez mais global do fato religioso a partir dos dados colhidos pela história das ciências; considera a totalidade, tentando fazer aparecer o concreto do todo em suas manifestações; ao passo que as ciências particulares dentro da ciência das religiões se ocupam de um aspecto parcial do fato religioso: do devir histórico (história das religiões); do aspecto social (sociologia das religiões);  do aspecto psíquico (psicologia religiosa) etc.  Ocupam-se de cada aspecto, nitidamente diferenciado a modo de diferença entre um ente e outro ente.

  1. Assim colocada, a “fenomenologia” da religião (a situação em que se acha a ciência das religiões), embora rejeite a colocação da filosofia da religião, pode estar se aproximando, sem se confundir com ela, da verdadeira impostação da filosofia da religião. E isto, da filosofia da religião, não enquanto ela fala sobre a religião ou sobre as religiões, mas enquanto, em interrogando a religião, busca o sentido do ser da religião. Não se aproxima dessa busca do sentido do ser diretamente, mas enquanto o modo de compreender o fato, o modo de abordar e analisar a finura de diferenciação dos fenômenos.
  2. Coloquemos a seguir uma tabela de divisão das diferentes colocações do saber sobre o fenômeno religioso:

Estudos positivos do fato religioso: ciência das religiões:

– Nível científico: estudos analíticos a partir de diferentes perspectivas:

– História das religiões

– Sociologia das religiões

– Psicologia das religiões

– Nível fenomenológico: estudo sintético, global do fenômeno religioso:

– “Fenomenologia” da religião.

Reflexão normativa sobre o fato religioso: “filosofia” da religião e teologia.

Reflexão ontológica na busca do ser da dimensão religiosa: filosofia da religião; fenomenologia (filosófica) da religião, ontologia regional (teologia natural ou teodicéia).

Reflexão ontológica, enquanto questão do ser, e o momento onto-teológico da precompreensão metafísica do ser: ontologia fundamental.

  1. Colocação da questão:

As ciências positivas distinguem entre ente e ente a partir de uma diferença (critério geral): generalização. É o positum em diferentes níveis de generalização.

  1. a) ente entre outros entes; b) área própria, regiões toda especial de entes; c) Deus como positum, o fundamento da área religiosa; d) Deus como fundamento do universo; como a profundidade absoluta; como a causa primeira; e) a colocação onto-teológica da questão do ser: meta-physica; ontologia; ontologias regionais: cosmologia, antropologia filosófica, teologia natural; f) O ser como o que é digno de ser pensado: o pivô mais radical da questão do ser.

Fenomenologia da religião como disciplina filosófica

  1. Tentemos caracterizar o próprio da disciplina filosófica chamada fenomenologia da religião. Como disciplina filosófica, o que a diferencia da fenomenologia da religião como ciência das religiões é o seu caráter filosófico. O que é pois o filosófico, o que caracteriza a filosofia como um saber todo próprio diferente do saber da ciência positiva?
  2. O que caracteriza a filosofia é um modo de conhecer, ou melhor, um tipo de busca teorética (cf. a reflexão acerca do que é theoráo), que na tradição do Ocidente recebeu o nome de metafísica. O vigor essencial e fundamental da filosofia é metafísica. A metafísica contém em si a essência da filosofia.
  3. Mas metafísica aqui não coincide diretamente com a disciplina escolar ou matéria chamada metafísica no ensino usual da filosofia. Diz sim respeito ao modo de ser que desde o início da filosofia com Platão e Aristóteles anima e impulsiona o Ocidente até hoje, tomando diferentes formas em diferentes épocas da história.
  4. Tentemos compreender melhor em que consiste esse modo sui generis do saber teorético que se caracteriza como metafísico ou filosófico.

No I século cristão, houve uma tentativa de ajuntar, colecionar, ordenar e publicar escritos de Aristóteles. Classificaram as obras, seguindo a divisão de disciplinas filosóficas, estabelecida pelos estóicos: epistéme logiké; epistéme physiké; epistéme ethiké: lógica, física e ética. Entre os escritos (preleções e reflexões = akróasis) aristotélicos, havia um grupo de escritos que falava dos temas sobre coisas da física, mas ao mesmo tempo pareciam ir aquém ou além desses temas. Na perplexidade diante dessa dificuldade de entender bem de que se tratava, colocaram-se esses escritos depois dos escritos que falavam das coisas da física, i. é,  depois de tà physiká. Como depois, em grego, se diz metá, surgiu então a expressão metà tà physiká, que empacotada dá metafísica. Mas logo depois, a palavra metá ou  post, cuja significação era apenas físico-espacial de localização dentro de uma série de classificação dos livros, recebeu um significado  indicativo de conteúdo. Metá então foi interpretado não mais como post, depois, mas sim como além, trans. Assim, os livros metafísicos de Aristóteles  tratariam de coisas que estão para além das coisas físicas (tà physiká), a saber, das coisas supra-sensíveis, supra-mundanas, sobre-naturais. Essas coisas sobre-naturais, transcendentes, foram aos poucos fixadas, principalmente com a Idade Média, como alma, espírito, Deus e tudo que se refere a ele. Assim, a inquietação originária que impregnava esses escritos metafísicos de Aristóteles e que aparecia na ambigüidade de suas colocações, sempre incompletas e abertas ao questionamento, foi esquecida. Em vez de perplexidade e espanto de um indagar o ser, a metafísica se transformou numa doutrina sobre os entes espirituais, principalmente sobre alma, espírito, imortalidade, Deus etc.  Temos assim o esquema da disciplina escolar chamada metafísica (o núcleo do ensino da filosofia) que se divide em metafísica geral, que fala do ente enquanto ente,  e em metafísica especial, que fala da natureza, do homem e de Deus (cosmologia, psicologia racional e teologia natural ou teodicéia). É da cosmologia que fala da natureza, que surgiram então, depois, da emancipação das ciências da filosofia, as ciências naturais; e da psicologia  natural e da  teologia natural, surgiram as ciências humanas. Numa tal colocação, a filosofia, no nosso caso a teologia natural ou teodicéia, que é uma subdisciplina da metafísica especial, não se diferencia fundamentalmente da ciência das religiões.  Para captar a diferença, do que é o próprio do filosófico ou metafísico, é necessário recuperar de novo, de alguma maneira, a inquietação e a perplexidade da colocação originária de Aristóteles, quando falava de um tema estranho que parecia falar das coisas físicas, mas que, no entanto, implicava em algo diferente, mais profundo e misterioso.  Para captarmos essa diferença, vamos primeiro entender melhor o que significam propriamente as coisas físicas, tà physiká.

Physis indicava entre os gregos a totalidade dos entes no seu surgir, crescer e consumar-se, cada vez pleno, todo e concreto: cada ente no seu ser (i. é, na dinâmica do ser). Portanto, não se tratava de natureza entendida como o diferenciado do mundo humano, p. ex., a natureza virgem, ainda não tocada pela indústria humana. Não no sentido da natureza que se opõe à e se distingue da cultura e da civilização. Physis abrangia tanto a natureza  como a cultura, portanto, a totalidade do ente no seu ser. Por isso, a física ou as coisas da natureza ou tà physiká não é a física e natureza no sentido das modernas ciências físico-matemáticas (cf. Edmund Husserl, Filosofia como ciência de rigor, I capítulo, a descoberta  moderna da natureza: unidade do ser no tempo e no espaço, segundo as leis exatas naturais). Mas também não se tratava, como foi dito acima, da natureza no sentido cotidiano usual, em oposição à cultura e à civilização.

Mas, então, em que sentido? Num sentido muito mais abrangente e vital-concreto, no sentido antigo de kosmos, i. é, a totalidade dos entes no seu surgir, crescer e consumar-se, o sendo no seu ser, o ente no seu ser. Aqui não se trata apenas de colecionar dados, ajuntar os fatos, as experiências particulares, mas sim originariamente refletir, ponderar, pensar e sopesar a lei e a estrutura interna de cada área da imensidão variegada do ente no seu ser. Aqui, na física, nesse sentido originário, se pergunta: o que é vida? O que é a psyché? O que é genesis e phthora, nascimento e morte; o que é o movimento, o lugar, o tempo, o vazio, o movimento como tal no seu todo, o que é o primeiro motor, a última e a primeira causa. O saber acerca do ente no seu ser, enquanto a totalidade dos entes no seu todo, se chamava então epistéme physiké. Nessa investigação da totalidade dos entes no seu todo, a  totalidade, o todo é o tema, é o que se busca. Mas, se observarmos atentamente a compreensão do todo aqui operante, percebemos uma ambigüidade e perplexidade na determinação do que seja o todo. É que o todo, uma vez é entendido na direção do comum, geral, extensional, do abrangente de todos os entes sem excluir nenhum; e outra vez como o primeiro e o último princípio, a causa fundamental e básica,  a profundidade. O todo na linha horizontal do comum e geral recebe o nome de ón he ón; ens quatenus ens, i. é, o ente enquanto ente. O todo na compreensão vertical de profundidade recebe o nome de theion, daí o divino ou Deus. Essa ambigüidade inicial da filosofia, que expressa uma inquietação e um espanto diante da imensidão e da profundidade da vigência do ser, se caracteriza com  o adjetivo: onto-teológico. A totalidade, o todo ou a totalidade dos entes ou o ente no seu todo, é o que denominamos com o termo Ser. A inquietação e o espanto  diante do Ser, a paixão de busca do sentido, i. é, da dinâmica de desvelamento do todo (Ser) é a saudade, o móvel da filosofia como metafísica.

Essa saudade, essa paixão de busca pelo sentido do todo, portanto, pelo sentido do ser do ente se chama em grego ho lógos. O homem  é o vivente, a vitalidade, a vigência que está atinente, engajado ao lógos.  Nesse sentido o homem se define, i. é, se determina, se decide como tò zõon lógon échon; na tradução latina animal rationale.  Filosofia ou a metafísica indica então aquele modo de ser essencial do  homem que é estar inteira e continuamente  na disposição atenta e atinente ao todo, ao ser do ente, ao sentido desvelado e velado da totalidade dos entes no seu ser.

  1. É por isso que Novalis diz no fragmento 21 do 2. volume das suas obras completas (editadas por J. Minor, Jena 1923: “A filosofia é propriamente saudade, um impulso de estar em casa em toda parte”.

Saudade e impulso de estar em casa: saudade aqui  Heim-weh (Heim = o lar;  Weh = dor). Só se pode ter dor e saudade de ter impulso de estar em casa, quando se está ainda longe do seu lar. A filosofia somente pode ser uma saudade e um impulso, se nós que  filosofamos, em nenhum lugar estamos em casa.

Mas o que significa, estar em casa em  toda parte, em todos os lugares? Estar  em casa não somente aqui  e ali, hoje e ontem e amanham, em sucessivos lugares, um após outro, mas em  toda parte em  casa  significa: a cada momento e ao mesmo tempo estar no todo. Este todo, este ser  no todo, esta totalidade do ente, do sendo no seu ser é o tema da filosofia, sua busca, sua paixão.

Quem é propriamente – Deus?

A pergunta ”Quem é propriamente – Deus?” vem de Kurt Tucholsky. É uma pergunta do nosso tempo. Dificilmente ela é ainda pronunciada com ironia ou polêmica; ao contrário, é buscada por curiosidade ou interesse. Ela é colocada com cada vez maior freqüência. E é respondida com cada vez menor freqüência. Nos anos de 1920 e 1930 a pergunta merecia a atenção da Igreja. Hoje a da teologia.

“Deus” era uma vez um nome. Ele foi transposto num conceito. “Deus” era uma vez um endereço. Ele foi transmudado num objeto.  De um Tu tornou-se um algo. Isto é, um desenvolvimento, que não se deixa descrever com uma fórmula simples. Suas pressuposições e, antes de tudo, suas conseqüências são extremamente difíceis. É possível torná-las reversíveis?

A possibilidade de falar com Deus, chamando-o de Tu, continua a ser recusada justamente ao honesto. Talvez, assim pensa ele, a única maneira direta de falar de Deus é a indireta. Falar de Deus se pode somente quando se fala do mundo. O mundo é o horizonte de experiência dentro do qual se torna realidade o que é pensado, quando se fala de Deus. De outro modo, ele é alienado na esterilidade da transcendência. Aqui, se levantam perguntas sobre perguntas. Pois o mundo não é mais concebido como lugar de atuação do Deus infinito, atemporal, abstrato, assentado em si. Ele é um mundo de seqüência de fatos, do processo, das rupturas. O que há pouco ainda valia como moderno, já começa agora a mofar. A velocidade e a precipitação, com as quais as situações e condições da vida se mudam, tornam-se cada vez mais aceleradas. Como pode ser dada nessa experiência da história, acontecendo rapidamente, a possibilidade de considerar as questões do nosso tempo a partir de Deus, sem buscarmos refúgio na intemporalidade – que já no início coloca entre parênteses a problemática da contínua mutação? Como devemos fazer para apelar a Deus, sem deixar o mundo para trás, ou apelar ao mundo sem deixar a Deus para trás?

O homem tornou-se consciente da sua atuação historial. Há muito, não é mais apenas ator, mas (seja qual for o resultado) regisseur da história. Se a fé cristã quiser tomar a sério este fato, então não lhe será poupada a conseqüência aventureira: a saber, falar de tal maneira de Deus que ele apareça como autor, no pleno sentido, na mais estrita conexão com a obra do homem. O homem deveria portanto ter a coragem de falar de Deus como do cooperante, i. é, como do Deus mutável. Também Deus não está pronto. O que está pronto é morto. Nós não temos nenhum acesso a Deus, que como o imóvel move o mundo. Ele nos é estranho e distante. Mas, se a palavra “Deus” pudesse ser dita de tal modo a não excluir, mas incluir a palavra processo, então estaria na hora de ter ouvidos atentos e claros. Poderia então ter sentido falar não somente de Deus, mas até com  ele. Ele não dirige sozinho a história. História é trabalho comunitário. E os homens não são marionetes, mas parceiros, não crianças, mas adultos.

No entanto, com tais pensamentos, nós nos emaranhamos cada vez mais sem saída no matagal da crise em que nos encontramos. Pois a pergunta “quem é isto propriamente – Deus?” corresponde à pergunta não menos  aberta “quem é isto  propriamente – o homem?”

A resposta não pode sair furtivamente. A pergunta não pode sem mais ser despachada, tirando-se a resposta do depósito das categorias tradicionais. A resposta deve ser elaborada e experimentada, diante dos ingentes desafios e evidências, sobrecargas e responsabilidade da vida no nosso tempo. Nós não podemos contornar este tempo, mas devemos lidar com ele, se nós, homens, quisermos dar conta dele…

Hans Jürgens Schultz (Responsável  pela coleção de conferências com o título Quem é isto propriamente – Deus?

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