Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Encontro de estudos dos votos: castidade, obediência e pobreza na vida consagrada franciscana

16/04/2021

 

(2005)

Introdução

Anualmente, nos encontramos para estudarmos juntos os votos. Vamos fazê-lo também nesse ano de 2005. Fazer é uma ação humana. Por isso, esse encontro é uma ação.Mas ação de estudo. Estudo é pois ação de um trabalho humano que pertence à dimensão chamada vida da necessidade livre. Por isso, para que o encontro tenha bons frutos, é necessário que todos nós, i. é, cada um de nós, tome desde o início uma postura de quem está na vida da necessidade livre.

Essa ação humana do trabalho na vida da necessidade livre é um encontro. Encontro é uma realidade humana que pertence ao convívio de uma comunidade fraternal. Somos fraternos porque somos unidos por e para uma única causa, através do mesmo sangue, recebido do nosso Pai comum, do Pai de Jesus Cristo, do qual nos vem a nossa vocação, a saber, a vida consagrada franciscana. No convívio de uma comunidade fraternal, chamada vida consagrada franciscana, não há hierarquia de postos, nem de autoridade, nem do saber. Há uma causa sagrada que é o Seguimento de Jesus Cristo no espírito de São Francisco de Assis. Portanto nesses dias estejamos inteiramente livres, i.é, dispostos, dedicados unicamente ao estudo dos votos, castidade, obediência e pobreza.

  1. A necessidade urgente do estudo dos votos

Em si, é ou parece exagerado insistir a vocês que estão para emitir votos temporários ou perpétuos que é urgente a necessidade de estudar os votos. Talvez seja o tema que mais ouviram durante o tempo da sua formação inicial. Talvez seja o que você, de tanto saber, está enjoado de estudar ainda mais. No entanto, os votos, que fizemos ou vamos fazer, temporária ou perpetuamente, são “coisas” da vida consagrada que mais nos causam problemas no cotidiano do nosso viver. Por que não posso eu escolher onde quero viver, com quem e como? Por que, se de repente me apaixonar por alguém, no percurso da minha vida consagrada, não posso namorá-lo/a e quem sabe contrair matrimônio com ele/a, e ser feliz? E por que não devo me apropriar das coisas que são minhas, ganhar o meu salário, e usá-lo como qualquer pessoa adulta, para prover as minhas necessidades? Você dirá: mas que coisa, que perguntas e dúvidas! Esse nível de colocação, esse nível de questionamento nós já o deixamos para trás: embora noviças, junioristas, não somos mais crianças na vida consagrada. Ensinam-nos, porém, certos mestres espirituais acerca dos votos da castidade, obediência e pobreza que eles dizem respeito a e tocam nas necessidades dentro de nós muito poderosas, tão poderosas que se nós não as compreendemos e as assimilamos bem, podem ser causa de uma vida insatisfeita, fracassada e infeliz. Essas necessidades fundamentais internas nossas se chamam: necessidade da sexualidade, do poder e da posse. Isso significa que ao emitirmos os votos de castidade, obediência e pobreza não estamos por assim dizer fazendo coisas espirituais, sublimes e belas, mas sim estamos nos metendo num estilo, no modo de pensar, agir, de nos ter e de nos formar, nos metendo numa existência que, como profissão e vocação, mexe a fundo com essas necessidades fundamentais acima mencionadas. A nossa vida consagrada pertence pois a um tipo de existência humana que não vai assim, não se realiza naturalmente, mas requer uma boa compreensão, assumida e querida, e exercitada numa vontade firme e clarividente de nos malharmos na habilitação de nós mesmos para essa existência que escolhemos. Porque a nossa existência consagrada é assim, porque é isso a realidade da vida consagrada, é que se torna urgente, a necessidade de estudar bem os votos, não somente ontem, hoje, mas cada vez para sempre. É dentro dessa seriedade existencial que queremos nesses dias nos concentrar num estudo bem feito dos nossos votos da vida consagrada. Por isso, logo de início, vamos antes de mais nada nos perguntar: a) Temos consciência da urgência da necessidade de estudar e bem assimilar o nosso saber sobre os votos? b) Quais são as dificuldades que temos de sentir e tomar a sério esse tipo de seriedade existencial em referência à nossa vocação e profissão? c) Todo o jovem, toda a jovem, depois de certa idade, principalmente depois que deixou para trás o ninho da vida de convívio da família no lar onde nasceu e cresceu, começa a encarar o futuro, e quer entrar no desafio, na ventura e aventura da vida na sociedade, buscando um emprego, uma vocação, digamos, uma vida futura de realização. Você, quando escolheu viver a vida religiosa consagrada, teve essa consciência de uma escolha livre e autônoma, para sair de uma vida que vivia num ambiente de família, para entrar numa nova maneira de viver, para dentro de uma sociedade que não é mais família, mas sim uma existência nova, com sua meta, seu ideal e projeto de vida toda própria, dentro da qual devo estudar, aprender, ser provado, examinado e tornar-me competente na vocação e profissão que escolhi?

  1. A necessidade vital e a necessidade livre

Há duas maneiras de ver e viver a vida humana: a) como necessidade natural; b) como necessidade livre. De que se trata, e como isso tudo tem a ver com os votos e a vida consagrada? É que os votos e a vida consagrada somente podem ser entendidos se os considerarmos como pertencentes em cheio à necessidade livre. O seu modo de ser não pode ser assimilado, se penso, sinto, compreendo e vivo como se fosse da necessidade natural.

Para compreender bem de que se trata quando se fala da necessidade vital e necessidade livre, vamos dar um exemplo. Definindo assim, a grosso modo, a necessidade vital é tudo quanto necessitamos naturalmente para a sustentação da nossa vida física. P. ex. a necessidade de comer, de beber, de respirar, de higiene, de dormir, de descansar, de se expandir, de se recolher etc. Esse tipo de necessidade é natural, i. é, é-nos dada pela natureza, e por isso não necessitamos a despertar e cultivar, pois ela aparece espontaneamente, sem esforço, exigindo-nos satisfação. E, mesmo que tenhamos que nos esforçar muito para satisfazer a essa necessidade, não temos nenhuma dificuldade de sentir, de ter e manter aceso, interessado e exigente, a sua exigência e ao seu desejo de ser satisfeita. Essa necessidade se nos impõe. Portanto, essa naturalidade, espontaneidade e facilidade da iniciativa imediata nos são dadas como exigência da vida física e da sua sobrevivência. Aqui, na necessidade vital, a força de imposição do desejo e da exigência de ser satisfeita é tão grande que ela nos pode levar a crimes, se não a satisfizemos. P. ex. na fome, posso até matar o outro para tirar dele o alimento e me satisfazer.

No ser humano, no entanto, juntamente com essa necessidade, existe outro tipo de necessidade que recebeu o nome de necessidade livre. A expressão, à primeira vista, nos parece contraditória. Se é necessário, não pode ser livre, dizemos. Tentemos, portanto, estudar bem o que essa expressão quer nos indicar, e tentar ver de que se trata. Um animal, quando sente a necessidade vital de fome, lança-se sobre a comida, para satisfazer a sua necessidade. Pode até atacar seus companheiros, para lhes tirar o alimento. Mas uma vez satisfeito, se aquieta, a sua necessidade, a sua carência foi preenchida, está cheia. O homem não. Mesmo satisfeito, procura modos para aumentar a satisfação. Ele quer ser mais do que natural, quer transcender-se no gozo. E usa todas as suas potencialidades, p.ex. a inteligência e vontade para aumentar cada vez mais quantitativa e qualitativamente o gozo da satisfação. Assim, tem a tendência de exacerbar, de potencializar, de levar à sofreguidão a sua necessidade natural e vital. Assim, transforma o que é natural ao animal, o que é natural à sua necessidade vital, em vícios e perversidades. Para permanecer na satisfação natural da sua necessidade vital, ele deve usar a sua capacidade de compreender e de querer, portanto, a sua liberdade, para se conter dentro dos limites naturais da sua necessidade vital. Aqui, agora, nesse item, fiquemos de olho, bem atento no seguinte ponto: não é a necessidade vital que quer sempre mais, quer exacerbar-se e ir para além do seu estado natural, pois como natural, uma vez satisfeita ela se aquieta, permanece naturalmente no seu limite. O que exacerba a necessidade vital e a transforma em vício e perversidade  é outra necessidade existente no ser humano que se chama a necessidade livre, i. é, o impulso, o vigor, a vigência de uma força de transcendência.  Essa força quer mais, quer o melhor, quer a excelência, seja de que for. Essa força de transcendência não é natural como o é a necessidade vital, não é espontânea, não nasce, cresce e se consuma por si, instintivamente. A impressão de que ela seja espontaneamente fortíssima, a tal ponto de tomar conta de nós, vem de uma falsa interpretação que fazemos da sua atuação, quando a necessidade vital, recebe a influência da necessidade livre e é exacerbada e potencializada por ela na exigência e na cobiça e no desejo do gozo e da satisfação da necessidade natural,  a ponto de todo o ser do homem se tornar impregnado da exigência cada vez mais desmedida de sofreguidão, transcendendo-se sempre mais a cobiça da satisfação das suas necessidades vitais. Haja vista, p. ex. aqui, o sacrifício imenso de empenho, trabalho e risco que se corre, para tomar droga. Essa simbiose da necessidade vital com a necessidade livre num exercício viciado da necessidade livre, nos engana a respeito também da necessidade livre, dando-nos a impressão de que a necessidade livre tem o mesmo modo de espontaneidade e ímpeto natural a modo da necessidade vital. A necessidade livre é o que usualmente chamamos de necessidade espiritual. O modo de ser da necessidade livre é diferente do da necessidade vital. Ela não é natural, espontânea, instintiva e impetuosa, mas é livre, i. é, deve ser feita, atuada livremente no conhecer e querer. P. ex. num naufrágio, no bote salva-vida resta ainda um único lugar. Pela necessidade livre, teria o direito e a possibilidade de pular para dentro do bote, pois estou bem próximo dele. Mas movido pela necessidade livre, cedo o lugar para outra pessoa e morro congelado no mar. Essa atuação, essa mobilização da necessidade livre não acontece espontânea e “necessária” como no caso da necessidade livre. Eu devo saber de que se trata e querer fazer o ato livremente. E isso aqui contra a tendência e o impulso vital de salvar a minha pele, custe o que custar. Mas para que numa tal situação, eu possa querer livremente e realmente agir, devo estar me exercitando nesse modo de ser da liberdade já há um longo tempo. E não somente estar me exercitando, mas devo ter como convicção de que ser humano, a vida humana, a existência humana não consiste somente em satisfazer as exigências da necessidade vital, mas para além dela, nós participamos da realidade usualmente denominada de espiritual, para a qual nos transcendemos as nossas próprias necessidades vitais, como sentido do nosso viver. Por aqui não se trata de algo espontâneo e natural, algo instintivo, necessito de empenho, trabalho para me perfazer e tornar-me capaz de agir na necessidade livre.

Uma pessoa que vive num ambiente, onde o satisfazer a necessidade vital é único ou principal valor do existir, e além disso exacerbou o gozo e a satisfação de plenificá-la na sofreguidão, atuada pelo mau uso da liberdade humana, é penoso, difícil, sim quase impossível achar que a necessidade livre é uma força, uma necessidade muito maior do que a própria necessidade vital. Assim, considera o exercício e a efetivação da necessidade livre como algo irreal, inútil, ou muito penoso e trabalhoso, de tal modo que não sente nenhum gosto nem necessidade de despertar para ela, de a cultivar e se perfazer nela. E, no entanto, é a necessidade livre que faz do ser humano o que ele é, i.é, a transcendência, o ser que sempre de novo se supera a si mesmo, para se expor cada vez novo e livre para a criatividade de ser. Repetindo, o que no Ocidente se denominou desde a antiguidade de espírito e o espiritual, pertence totalmente à necessidade livre. O mesmo se pode dizer do que hoje denominamos éthos e ética. Assim, a nossa vida religiosa e tudo que a ela pertence, portanto também o nosso encontro e o nosso trabalho para tentar ver de que se trata, quando falamos dos nossos votos da vida consagrada, está dentro do que denominamos acima necessidade livre. A seguir, em vez de necessidade livre usemos a palavra espírito e espiritual que nos é mais familiar, na vida religiosa. Ou melhor, usemos a expressão  necessidade livre como sinônimo do espírito ou do espiritual.

Na nossa época, temos uma grande dificuldade de entender, gostar e assumir o espírito, o espiritual, o éthos e o ético. Por isso, no trabalho do espírito, e da ética, quase sempre estamos subdesenvolvidos. Vivemos a exacerbação da satisfação e o gozo da necessidade vital. É o que chamamos de consumismo, hedonismo. Por isso, ao sentirmos a dificuldade de perseverar no trabalho do espírito, ao não sentirmos pouco para não dizer nenhum gosto em nos empenharmos livremente com ânimo nas coisas do espírito, nos surge a pergunta decisiva: como fazer para termos mais interesse, ânimo, gosto e entusiasmo para as coisas do espírito e as coisas da ética, e para não as considarmos como um trabalho penoso, seco, duro, digamos contra a nossa natureza espontânea e vital.

Essa questão nos pega como que de surpresa, já tarde. É como se, depois de ter negligenciado muito tempo em fazer exercícios de musculação, depois que estou sem nenhum tônus muscular, eu me perguntasse como faço para gostar de fazer os exercícios de musculação, de me entusiasmar por isso e de perseverar nos exercícios. A resposta direta e simples nesse caso é: jamais deixar chegar a tal ponto que não tenha mais nenhum tônus muscular. Dito com outras palavras, cuidar desde o início do espírito, do espiritual, do éthos e do ético.

Aqui, teoreticamente, devemos nos livrar de um preconceito, ou melhor, de uma compreensão defasada da necessidade vital humana. É que, quando falamos da necessidade vital, pensamos que a criança, até certa idade, vive apenas ou inteiramente em satisfazer a necessidade vital. Haja vista p.ex. nos bebês. E pensamos que o ser humano, até certa idade, tem o modo de ser de um animal, tudo nele é instinto. E, mutatis mutandis,  aplicamos essa maneira de pensar também para a idade posterior, a infância. Pensamos que a criança infante é ainda uma espécie de bichinho, é instinto, espontaneidade, não compreende o modo de ser do espírito, do espiritual. Por isso, nada de empenho e trabalho, mas tudo gozo, satisfação, imaginação, brincadeira etc. E não perguntamos por que, nem estranhamos que a criança, quando gosta e se entusiasma por uma coisa, se lança toda inteira sobre ela. E é capaz de ficar ali horas a fio. Confira p. ex. nos jogos, na brincadeira, nos games do computador etc. E não percebemos que esse modo de gostar, esse modo de a criança estar toda inteira na coisa e ali permanecer nada mais é se não o próprio modo de ser do espírito e da ética! Mas no espiritual, na ética, não é assim que não se deve assumir um trabalho, pelo gosto e não gosto, só pelo espontâneo, mas é necessário enfrentar o árduo, o duro, e exercitar-se tenazmente no compreender e querer na conquista do espiritual e do ético? Essa objeção, esse modo de pensar não vem da própria intuição do fenômeno, da coisa ela mesma, mas sim da experiência do modo de ser da necessidade livre, portanto do espírito e da ética já defasados no seu ser, por não terem sido cultivados desde o início, na infância. Dito com outras palavras, a necessidade livre, o espírito e o ético no ser humano, estão presentes em cheio desde a infância, na criança. E o modo de ser da criança, quando gosta, quer satisfação da sua necessidade, não é instinto, não é sem espírito, mas sim é um modo de ser humano ainda intacto, onde o espírito atua e aparece inteira e integralmente, e quiçá na sua excelência como disposição, cordialidade, sim como a boa vontade, ou melhor, vontade boa. Por isso, que no Evangelho, o modo de ser da criança é indicado por Jesus como o modo de ser próprio de como entrar no reino dos céus. Vamos chamar esse entusiasmo, esse gostar, esse engajar-se da criança como afeição primeira. É o que chamamos de primeiro amor ou afeição, amor do início.

O que denominamos de vigor de espírito nasce, cresce e se consuma e se firma a partir e dentro desse primeiro amor. A criança, quando é bem orientada e conduzida, seja em que vocação e em que profissão, a partir dessa primeira afeição, cresce, se realiza e se perfaz naquilo que ela ama. E não considera o empenho, o esforço, o “sacrifício” exigido sempre mais, na transcendência da necessidade livre como algo imposto, algo injusto, algo desumano, mas como pertencente à satisfação, ao gozo da realização no espírito, no ético.

Por isso, em nossa vocação, em nossa profissão, se a coisa não anda, devemos voltar ao primeiro amor, à primeira afeição e examinar se no início da nossa vocação e profissão realmente tivemos a primeira afeição, o primeiro amor, ou tudo isso realmente não existiu ou nos iludimos acerca dele.

Problema todo, porém, é que nós, mesmo fazendo essa sondagem do nosso passado, ou nada descobrimos, não nos lembramos de nada, ou mesmo descobrindo que tínhamos tido o primeiro amor, agora não sentimos nada de tudo isso e temos dificuldades enorme de cordial e decididamente continuar o nosso caminho. Seria, portanto, muito útil, você nesse encontro de estudos dos votos, examinar esse ponto nevrálgico da nossa caminhada humana vocacional. Só que você já examinou tudo isso, e é por isso que está aqui para fazer votos ou renová-los. Então, para o nosso encontro, não há problema. Mas se você jamais faz ou fez esse tipo de sondagem de si mesmo, pode ser que você fique angustiado, pois, agora, decidir que não vai fazer votos, tendo já tudo marcado, é tarde demais. É bom lembrar que ninguém de nós aqui, vai fazer os votos perpétuos. Ou já os fizeram ou ainda vão examinar bem se vão fazer os votos perpetuamente, durante todo esse tempo da formação inicial. Por isso, se alguém está na perplexidade de estar assim vago, e não muito decidido, vamos nos decidir de meter a cara em entrar de sola na formação inicial, para depois de um ano, ter saído dessa perplexidade, seja para continuar ou para deixar a vida religiosa. De contrário, eu estou perdendo tempo na minha formação.

Acima dissemos: o que denominamos de vigor de espírito nasce, cresce e se consuma e se firma a partir e dentro desse primeiro amor. Aqui, nesses dias de encontro do estudo dos votos, vamos contemplar, i. é, ver bem, sem preconceitos ou tramas, de que se trata, nos votos, no seu modo próprio e único, como eles vieram ou vêm de encontro no momento em que estávamos ou estamos ou estaremos no elã do primeiro amor. Mas isto é utópico? Não, é tópico, i.é, a única maneira de colocar os votos no seu lugar próprio, pois os votos são somente assim como os vê o nosso primeiro amor.

III. Votos não são outra coisa do que sim à vocação de seguimento

Vocação não é nem talento nem inclinação nem dom, mas simplesmente e no duro chamamento. Chamamento que vem de Jesus Cristo e me atropela dizendo:Vem, segue-me. Por isso, Jesus Cristo na nossa vocação da vida consagrada é tudo. Sem um relacionamento da afeição, do primeiro amor com Jesus Cristo não há nossa vocação. Por mais valiosa, profunda, sublime, útil que seja a nossa vida nessa vocação, sem esse relacionamento da afeição, do primeiro amor com Jesus Cristo, a vida consagrada se torna outra coisa. Talvez humanamente maior, melhor, mas sempre outra coisa. Aqui, em concreto, tudo fica muito difícil de entender. Pois não conhecemos Jesus Cristo em carne e osso; a primeira afeição com Jesus Cristo foi talvez na nossa infância, digamos no tempo da primeira comunhão, onde ele aparece sob a figura daqueles quadros melosos, kitsch, do estilo barato nazareno; ou a minha experiência de Jesus Cristo é de uma conversão, depois de adulto etc. etc. Como ter certeza, como garantir a objetividade do meu primeiro encontro com Jesus Cristo? Essa pergunta não tem resposta. Pois é uma pergunta que não se percebe no seu perguntar. Mais ou menos como alguém que se pergunta se realmente está respirando, ou como alguém que se pergunta, como seria eu se eu não existisse. É uma pergunta que pergunta como se o eu que pergunta fosse o chão a partir e dentro do qual lança a pergunta. Com outras palavras, é uma pergunta que pergunta como se estivesse fora da sua própria história, como se fosse um ponto absoluto, sem mediação. Por isso, se pergunta: como tenho certeza, como garantir a objetividade do meu primeiro encontro com Jesus Cristo…  eu não devo perguntar assim formal e abstratamente, como que numa posição fora da paisagem, pairando acima dela, numa vista panorâmico-historiográfica, nem em relação à própria vida, nem em relação à própria história, mas como alguém que está até o pescoço dentro da paisagem, e sonda, sente, analisa os fatos da sua facticidade, como quem ausculta a história de amor na sua vida com Jesus Cristo. Isto significa: o relacionamento seu com Jesus Cristo deve ser examinado no seu viver a partir da sua estadia e inserção na vida consagrada, dentro dessa congregação ou ordem, remontando à origem da história da sua vida, e perguntar onde aparece algo como encontro com Jesus Cristo. E ali dentro perguntar se tem ou não tem a primeira afeição, o primeiro amor a Jesus Cristo, seja ele como ou o que for objetivamente. Se você ainda não fez esse tipo de exame, vai ter que fazer para o futuro, se quiser viver a vida consagrada como realização e com sentido próprio.

A nossa vocação como sim ao seguimento de Jesus Cristo pode aparecer na nossa vida desta ou daquela maneira, mas no momento que isso tudo entra na afeição primeira ou do primeiro amor, o meu modo de ser deve ter o característico de enamoramento. Enamoramento que, se fosse no casamento cristão, nos levaria a unir-se com a outra pessoa (masculino-feminino, feminino-masculino) como marido e mulher, como mulher e marido na doação de corpo e alma a(o) outra(o), em todas as vicissitudes da existência, até que a morte nos separe, no caso do matrimônio, e no caso da vida consagrada, por toda a eternidade, de tal sorte que nem a morte nos separa, mas nos une cada vez mais. Por isso, na Grande Tradição do Ocidente a vida consagrada foi sempre explicada a modo de um relacionamento de intimidade esponsal (mística esponsal). Por isso, também, no direito canônico, quando a Igreja fala da vida consagrada, o primeiro voto que é examinado é a castidade ou, numa outra formulação, talvez mais adequada, a virgindade consagrada.

  1. A virgindade evangélica – O celibato ou o não-matrimônio por causa do reino dos céus

1 Reflexão

A leitura desse trabalho será um tanto árdua, porque o pensamento descreve grandes arcos e a expressão dos pensamentos se tornou bastante desajeitada. Talvez fosse inconveniente gastar tanto papel para dizer uma realidade muito simplex, mas as reflexões intensivas talvez digam alguma coisa a alguém que tem problemas de ordem “intelectual” em ver o sentido do celibato. Para quem não precisa de “teoria” para viver, as reflexões são completamente inúteis, acadêmicas.

Como a palavra “celibato”,  hoje, tem uma conotação um tanto pejorativo do celibatário, em conexão com a Sagrada Escritura, intitulo a essas de: Reflexões sobre “o não-matrimônio por causa do Reino dos céus”, inspirado por um livro do teólogo holandês Schillebex (die Ehe-losigkeit um Himmelreiches willen). A palavra celibato no entanto é uma palavra muito antiga. Vem do hindu antigo e significa: plenitude da vida.

Reino dos céus aqui não significa o além-mundo, como o local de felicidade em oposição ao inferno. Não vamos aqui pensar nas categorias da mentalidade de uma compreensão tradicionalista, por sua vez mal entendida de “Salva a tua alma!”, pois tal mentalidade falseia o sentido originário da Boa-nova de Cristo. Ela nos faz incapazes de compreender a sua grandeza, o seu alcance.

Se o Reino dos céus deve significar o feliz além-mundo, então a exigência de não contrair o matrimônio não tem muito sentido, pois os casados, exatamente como nós, alcançam a vida eterna, se viverem bem.

Também não se deve pensar que o não-matrimônio nos outorgue uma posição mais alta, mais sublime no céu ou uma bem-aventurança maior. Tal pensamento é fruto de uma supervalorização ingênua, falsa e infantil do não-matrimônio. O não-matrimônio não nos dá o direito para o título de nobreza no céu. A medida da perfeição é o Amor. Não, o não-matrimônio.

Se atrás da supervalorização do não-matrimônio se oculta o menosprezo, a infravalorização do matrimônio ou do corpo, então tal concepção é anticristã. Não vamos esquecer: o matrimônio é um sacramento. A “consagração” virginal nem sequer é sacramento…

Poder-se-ia pensar: o não-matrimônio é a renúncia a uma das mais belas, ditosas e sublimes possibilidades do homem, por causa do Amor de Deus, maior e mais feliz. Esta concepção é um tanto melhor do que as precedentes. Ela, porém, não atinge o verdadeiro núcleo da virgindade evangélica, do não-matrimônio por causa do Reino dos céus. Pois o que nós denominamos ditoso Amor de Deus é também atingível no matrimônio. Sim, ele é propriamente o último fim, o objetivo do matrimônio cristão. Pois a medida da perfeição é o Amor. Não, o não-matrimônio.

Mas não tenho mais amor a Deus se eu renuncio ao matrimônio? Mais amor do que aqueles que vivem uma vida de casados, agradável, feliz?

Mas, aqui, poder-se-ia virar a pergunta: não tenho mais amor a Deus se eu, num amor de abnegação de mim, me abro a uma outra pessoa, assumo o peso, a responsabilidade, todas as dificuldades de vida matrimonial e através desse sacrifício me esforço para amar a Deus? Não tenho assim, mais amor a Deus do que aqueles que se aninham numa vida de convento, cômoda e instalada?

Mas! Diz você: a vida do convento não é cômoda. É dura, muito sacrifício, renúncias, abnegação…

Talvez seja melhor ser cuidadoso em falar de sacrifício e renúncia, diante dos casados! Sob esse aspecto, tenho a impressão de que a vida claustral acaba perdendo… É, pois, uma charlatania piedosa fazer como se a nossa causa fosse melhor, como se amássemos mais a Deus, porque o nosso estilo de vida é mais “difícil”… Não é verdade. Tanto o não-matrimônio como também o matrimônio têm suas dificuldades e suas felicidades, sua possibilidade de amar a Deus. Nessa perspectiva uma possibilidade não é superior ou inferior, melhor ou menos boa do que a outra. Nós deveríamos definitivamente pôr fim à ilusão de que, para nos adormecermos nos “nina”, cantando o acalanto de que a vida religiosa seja melhor, mais sublime, mais nobre, mais agradável a Deus do que a vida no matrimônio. Ambos os estilos de vida são bons, sublimes, nobres, agradáveis a Deus. A única e verdadeira medida da Perfeição é o amor.

Mas, se o amor é a única medida de perfeição, não escolho a melhor parte, se eu amo a Deus “sem partilhar o coração”, portanto sem me casar, para que possa dá-lo todo e inteiro só a Deus? Se eu estou “ligado” a uma pessoa humana no matrimônio, não posso amar a Deus “exclusivamente”.

Este argumento é razoável. Contra ele em si não se pode dizer nada. Ali, porém, há um dente de coelho. O argumento somente funciona se aceito a pressuposição sobre a qual ele se constitui.

Em geral, não se questiona essa suposição. Pois nós a engolimos sem a perceber, como se ali tudo fosse óbvio e verdadeiro. Infelizmente essa pressuposição, tacitamente aceita, não está isenta de imprecisão. Sim, ela é até “falsa” se nós a enfocarmos na óptica cristã.

  1. Reflexão

O que é, como é esta pressuposição?

Esta pressuposição é por assim dizer uma pressuposição “pagã”. Vem de um ocular pré-cristão, que ainda desconhece a Novidade da boa-nova de Jesus Cristo. Pois essa pressuposição diz: aqui o homem, lá Deus. Estabelece um conflito de amor: Deus contra o homem. No entanto, o Evangelho diz algo bem diferente dessa pressuposição: cf. Mt 22,35-40.

Aliás, o que Jesus diz aqui não é nada de novo. Isto era um mandamento que já havia também no judaísmo e implicitamente no paganismo. Jesus somente aproveita o que já vigorava no seu tempo, para dar-lhe uma nova interpretação. Esta nova compreensão começa ali onde Jesus se identifica com “meu irmão”, sem um “mas”, sem um “porém”, sem o condicional, inexoravelmente.

No último juízo, Cristo diz aos homens: “Vinde, benditos de meu Pai… tive fome e me destes de comer…” – “Mas quando foi que te vimos faminto?” – Cristo: “Em verdade eu vos digo que todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos a mim o fizestes” (Mt 25,31-46). Seria bom ouvir essas palavras de Cristo, límpida e nitidamente. – Os homens, então, surpresos: “Mas, quando é que te fizemos tudo isso? Nós jamais te vimos, nunca nos encontramos!?!” Cristo jura: “Em verdade eu vos digo – isto é. com todo o meu poder, toda autoridade, verdade, sustento esta minha afirmação!

“Jamais nós nos encontramos. Nós nunca te vimos”… Esta objeção vale também para nós. Quando oramos, quando nos extasiamos perante a beleza da natureza, quando nos comove o sentimento sublime, quando falamos de Deus, nós representamos a Deus de alguma forma “lá em cima” ou “diante de nós”. Mas nos encontrarmos com Ele, por assim dizer em carne e mente no “meu irmão”. Para isso, temos a garantia do juramento de um Deus. Todo o resto, mesmo que tenhamos a vivência mística extática de Deus, não é seguro, justamente porque nós sempre ainda podemos suspeitar se o vivenciado, no fundo, não é uma elevada “possibilidade” de mim mesmo. Talvez tenhamos então adorado uma idéia sublime, um nobre sentimento.

Sem dúvida, Deus revela-se também em tais vivências. Deus pode revelar-se em todas as coisas. Mas nisso não está a Novidade do Evangelho. No que se refere à mística, os budistas, por exemplo, possuem tão grandes místicos como nós cristãos, se não forem maiores. A novidade da boa-nova não consiste em fomentar a mística. Isto fazem todas as outras religiões superiores. O Novo do Evangelho está no anúncio da incrível identidade: Deus e homem: que Deus se fez homem, e que só por isso eu me posso encontrar com Deus no meu irmão de carne e osso.

Dessa novidade, tira a Escritura a conseqüência: “A Deus ninguém viu; se nós nos amamos mutuamente, Deus permanece em nós, e seu amor em nós é perfeito. Quem não ama o seu irmão, a quem vê, não é possível que ame a Deus, a quem não vê” (1Jo 4).

Como essa identidade misteriosa deve ser esclarecida pelo pensamento, mostra em que sentido e até onde está em íntima ligação com o Mistério da Encarnação – Deus e homem –, isto é tarefa da teologia. Essa tarefa até hoje foi bastante negligenciada, justamente porque, para tal realidade dinâmica e dimensão de profundidade, não possuímos um modo de pensar adequado.

As explicações que, em geral, possuímos sobre esse ponto também trabalham dentro de uma estrutura que ainda representam a Deus e o homem de alguma forma “coisista-objetiva”. E nisso se perde a nitidez e a seriedade dessa identidade dinâmica e viva. O amor ao homem é por assim dizer prejudicado, empalidece, torna-se inibido em favor do Amor de Deus “sem partilhar o coração”. Se essa “exclusividade” que separa Deus e homem aparece aqui explicitamente ou não ou numa forma camuflada ou abertamente, não muda a estrutura da separação coisista.

O modo de pensar que coloca o amor ao próximo como o ideal da vida cristã e da  vida religiosa, como p. ex., eu amo o meu próximo, porque Deus assim o quer, ou, eu amo o meu irmão, porque Deus também o ama etc., não é, quiçá, falso, mas não atinge exatamente a realidade do amor de Cristo-no-meio-de-nós. Pois ainda imagina o Amor de Deus e o amor ao irmão como duas possibilidades separadas.

No sentido de Cristo, um amor a Deus, no qual o amor ao irmão fica diminuído não é verdadeiramente amor a Deus no sentido cristão, porque não toma a sério o amor de um Deus humanado. É naturalmente supérfluo observar que um amor ao próximo, que ama o próximo somente por causa do mérito e recompensa, não é amor, mas sim algo como “egoísmo sobrenatural”.

A tão freqüente angústia na vida religiosa, de amar o próximo de mais e assim ferir o amor a Deus, vem de uma concepção falsa e superficial do amor de Deus, concepção essa que nada tem a ver com a atitude cristã evangélica.

O que nas diferentes constituições das ordens e congregações foi dito sobre a “amizade particular” teria certamente um sentido aceitável se fosse feito com um melhor conhecimento da psicologia moderna. Mas, mesmo assim, tudo isso pertence às medidas de precaução contra uma possível falta de maturidade e desvios na vida psíquica afetiva. Propriamente nada tem a ver com a amizade no sentido libertador e límpido da palavra. E muito menos então com o amor de Deus e o amor ao próximo. As observações superficiais e inúteis de tais constituições sobre a amizade particular, devido a sua total ignorância da psicologia, devido à sua falsa concepção do amor de Deus, acabam envenenando tudo com um pan-sexualismo-negativo, nos fazem cegos para o profundo amor do próximo, formam personalidades inibidas, duras ou anêmicas, que de tanto “Amor a Deus” nem sequer são capazes de amar verdadeiramente aos homens.

Como poderemos nós amar a Deus invisível, se, de tanto medo, de tantas concepções falsas e “frieza” do coração, não conseguimos amar os seres humanos? Tal confusão não está a serviço do amor de Cristo. Pelo contrário, ela mata o Amor-de-Cristo-no-meio-de-nós. Em si, não teríamos caído em tal equívoco se tivéssemos haurido nosso modo de pensar e nossa espiritualidade diretamente do Evangelho.

No Evangelho, para que não houvesse nenhum mal-entendido, para que não delimitássemos com o nosso “mas”, “se”, “porém” a profundidade, a largura, o comprimento e a altura do amor ao próximo, Cristo deu como seu testamento um novo Mandamento: “Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 15,12). A medida do amor, que Cristo nos impõe é: como eu vos amei. Com isso somos pro-vocados a realizar algo que supera a nossa possibilidade humana. Quem de nós pode amar o outro tão profunda, tão forte e intimamente – até a morte – como Cristo nos amou? Aqui percebemos claramente a diferença nas pressuposições. Nós perguntamos na vida religiosa: é-me permitido amar o meu próximo como eu amo a Deus?

A pressuposição de Cristo, a sua atitude fundamental é de uma outra grandeza, está na dimensão, diria, oposta: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Enquanto nós perguntamos temerosos “é-me permitido amar o meu irmão tanto quanto ou mais que Deus”, diz Cristo: ama o teu irmão como eu o amo, ama tanto quanto, ama assim como só um Deus pode e sabe amar! O perigo está, portanto, não no “de mais”, “mais do que”, mas sim no “pouco de mais”. Jamais podemos amar “demais” o próximo. Ficaremos sempre no “muito pouco”, porque a medida de Cristo é algo de mais.

Se agora, sem nos contentarmos com a vaga generalidade como, por exemplo, o amor de Cristo pela humanidade, dissermos bem concretamente: amar assim como Cristo amou a Pedro, João, Lázaro, Marta, Maria etc., todos os homens, cada vez em singular, se nós nos recordarmos da sua morte e das palavras “ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a vida por seus amigos” (Jo 15,13), se nós, sem restrições e condicionais, dissermos conseqüentemente: assim deves amar o teu irmão, então a escala de valores da minha vida religiosa experimenta uma versão total, sentimos vertigens perante tal provocação.

Ora, esta medida de amar é uma missão, que Cristo nos deu na última ceia, a ceia de despedida, como seu Testamento e aliança. Através do cumprimento desse Novo Mandamento se torna realidade a presença do como do reino dos céus.

Quando definimos o Celibato na vida religiosa como “não-matrimônio” por causa do reino dos céus, pelo reino dos céus, entendemos esta presença do amor de Cristo no meio de nós.

Por conseguinte, porque nós de corpo e alma estamos engajados nessa medida suprema do amor do “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, não contraímos matrimônio. A virgindade evangélica, portanto, haure o seu sentido e a razão de ser, não do “não-matrimônio”, não do “amor a Deus sem a partilha do coração”, não do “amor exclusivo a Deus-lá-do-céu”, mas unicamente da máxima intensidade do amor: amai-vos uns aos outros como EU vos amei.

  1. Reflexão

A partir dessa perspectiva, podemos dizer: Só a Deus do céu não podemos amar. Depois do Acontecimento da Encarnação só podemos encontrar a Deus, amá-lo no “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.

E, do ocular do novo Mandamento de amor, se nos torna claro que o nosso “não-contrair-o-matrimônio” difere estruturalmente de outros tipos de celibato, p. ex., não casar por causa de um grande ideal como ciência, arte, pátria, justiça social, o mundo melhor, paz, humanidade etc.

Certamente, a virgindade evangélica por causa do Reino dos céus pode ter a sua concretização em tais ideais. A motivação formal no entanto é sempre o amor personal e a sua máxima medida: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Por isso, não atinge o âmago da questão um argumento como esse: nós não nos casamos para que possamos nos engajar total e incondicionalmente. Certo, o Reino dos céus exige um engajamento total. Mas esse engajamento ainda não me dá o específico, o sui generis do nosso celibato. O específico vem do “Amor-de-Cristo-no-meio-de-nós”.

Por isso, quem imagina o não-matrimônio por causa do Reino dos céus como uma espécie de entusiasmo para uma boa e justa causa, sem compreender profundamente que esta causa é o amor personal entre os homens na sua máxima potencialização, vive a sua causa como um cientista ou um assistente social que se sacrifica totalmente para o seu ideal.

Portanto, “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” não deve ser interpretado com as categorias do ideal humanitário ou de beneficência social. A missão, a causa que Cristo nos deu tem o seu específico no amor personal.

Vamos considerar mais de perto esse específico do nosso celibato. Por causa da comodidade terminológica, vamos usar a palavra virgindade evangélica e o “não-matrimônio” por causa do Reino dos céus e celibato como termos sinônimos.

A virgindade evangélica é explicada muitas vezes à mão da relação esponsal entre Igreja e Cristo, portanto, à mão da tipologia de relação Esposo-Esposa. O amor personal radiante íntimo e ardente entre a esposa (Igreja) e o esposo (Cristo), como é decantado no Cântico dos Cânticos, representaria, portanto, a característica fundamental da virgindade evangélica.

Portanto, a intencionalidade que anima o amor da virgindade cristã não teria a estrutura do relacionamento filial, nem de amizade-camaradagem, mas sim a estrutura do amor, diria, esponsal.

Aqui há perigo de simplificar a questão e interpretar a virgindade evangélica como esponsais místicos entre a alma virgem de Cristo, e Esposo das almas! Assim, temos a espiritualidade nem sempre sadia da “mística esponsal”.

Cristo, no caso, seria um substituto para o marido. Como a mulher casada está ali, fiel e sem partilhar o coração, para o marido, assim também a religiosa se consagra exclusivamente para o seu divino esposo… Fosse talvez útil investigar até onde tal “mística” está radicada na estrutura da psique feminina, em que medida o mecanismo de sublimação exerceu o seu papel.

É óbvio que tal “espiritualidade”, aplicada aos religiosos, que se engajam para o Reino dos céus, cria uma situação um tanto penosa, impossível e grotesca!… Como a virgindade evangélica vale não somente para as religiosas, mas também para os religiosos, segue-se desse simples fato acima citado que tal concepção do celibato como a “mística” esponsal não pode funcionar muito bem.

Como já mencionamos, antes de mais nada o nosso entusiasmo e “consagração” não têm como “objeto” da sua intencionalidade o “só-Cristo-Deus-nos-céus”, exclusivamente. Longe de excluir o homem, inclui-o essencialmente na máxima potencialização do amor: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

No entanto, o “erro” da citada “mística” esponsal não está tanto no fato de ela dar uma grande importância ao amor personal, mas sim no fato de simplificar o “objeto” desse amor personal e identificá-lo exclusivamente com Cristo-Deus-lá-nos-céus. Pois, se nós tomarmos a sério nítida e radicalmente a dinâmica identidade Cristo E homens, anunciada por Cristo mesmo, não devemos mais dizer simplesmente: o “objeto” do amor personal da virgindade evangélica é “exclusivamente” Cristo-Deus-nos-céus. Antes seria mais correto dizer: o “objeto” é o irmão TU na minha frente, pois Cristo só se torna presente no “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.

Vamos fixar bem esse ponto, portanto, seguindo a Escritura: “A Deus ninguém viu. Se nós nos amamos mutuamente, Deus permanece em nós, e seu amor em nós é perfeito. Quem não ama seu irmão, a quem vê, não é possível que ame a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,11-21).

“Amar a meu irmão visível” não é somente uma condição para que possamos amar a Deus invisível. Mas sim: o irmão visível é o único lugar, onde eu posso encontrar o amor a Deus. O meu irmão, por conseguinte, não é um trampolim, com o qual eu possa saltar a Deus, trampolim que deixo atrás de mim como um meio para o fim: amar meu irmão visível é propriamente amar a Deus.

Esta tese fica de pé através de todas as nossas reflexões seqüentes, sem “mas”, sem “no entanto”, dura, nítida, no seu conteúdo capital, a saber: na identidade dinâmica sui generis “Deus e homem”.

Aqui devemos evitar alguns mal-entendidos. A identidade acima mencionada não deve ser aplainada num naturalismo barato. Não devemos dizer com facilidade eu amo meu irmão; logo, eu amo a Deus. Pois “eu amo meu irmão” está sob a medida e exigência do Novo Mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Não é assim que nós deixamos de lado o amor de Deus para nos contentarmos simplesmente com um amor meramente “humano”. Pelo contrário, trata-se de amar o irmão tão profunda e intimamente, como nós deveríamos amar a Deus, ou melhor, como Cristo nos amou. Não se trata, pois, de nivelamento, mas sim de potencialização.

Outro equívoco deve ser evitado, a saber, de pensar que nós possamos amar os homens em geral. Pertence à essência do amor personal, que nós não podemos amar a humanidade, mas unicamente esta pessoa. Um amor geral não existe. O amor vai diretamente ao único, ao singular, ao particular da Pessoa. Pessoa é cada vez singular, particular, única. E o amor está na dimensão da Pessoa.

O que acabamos de dizer pode ser de novo malentendido como “individualismo”. Se quisermos ficar fiéis ao fenômeno, ele-mesmo, é necessário cuidar de não “aguar”, isto é, de tornar inofensiva, insossa, com um modo de pensar abstrato e horizontal esta dura singularidade do amor personal. A acusação de individualismo, que vem muitas vezes da parte das ciências como sociologia, pedagogia, teologia etc. contra esse caráter “singularizante” da Pessoa, passa por assim dizer ao lado do alvo da questão, não a atinge em cheio, porque fala ainda a partir do mundo categorial de uma ontologia horizontal, que está incapacitada de detectar a dimensão vertical chamada pessoa, por não possuir categorias adequadas para isso.

Pelo fato de eu afirmar a singularidade do amor pessoal, não posso concluir necessariamente para a negação de que esse amor personal numa estrutura sui generis de “cada-vez-o-todo-no-singular” possa de fato abranger toda humanidade, cada vez personalmente como este, aquele tu. A pergunta de como seja possível essa universalidade singularizante vamos deixar aqui de lado, pois para isso precisaríamos de uma exposição especial muito detalhada.

Deixemos, porém, mencionada como tese, que justamente a singularidade do amor personal como a estrutura de um novo modo de ser universal, isto é, como uma nova dimensão de relacionamento indivíduo-sociedade, parte-todo, é propriamente o fundamento da socialidade. As ciências acima mencionadas ainda não possuem “categorias adequadas” para conseguir captar essa dimensão. E porque essas ciências trabalham dentro do modo de pensar da ontologia horizontal-transcendental, reduzem a realidade concreta como socialidade, humanidade, comunidade, comunhão, amor etc. a idéias gerais. Mas deixemos esse problema de lado na nossa reflexão.

  1. Reflexão

Através dos pensamentos que viemos seguindo até agora, aos poucos uma suspeita vai abrindo seu caminho: se é assim, não seria o matrimônio cristão a mais ideal realização do Novo Mandamento, portanto, do Mandamento do Amor da Nova Aliança, a mais alta realização do Reino dos céus?

Nós sabemos que o Novo Mandamento “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” vale para todos os cristãos, portanto, também para os casados. Nossa reflexão parece nos mostrar que este Mandamento Novo não somente vale também para os casados, mas antes: precisamente os casados são aqueles que têm a possibilidade de realizar esse amor de maneira mais profunda, mais autêntica e mais alta. Pois no que se refere à profundidade, intimidade, à paixão, à doação do encontro pessoal, a verdadeira realização parece se dar de maneira mais intensa e pura no Encontro “corpo e alma” entre um homem e uma mulher na “exclusividade” do matrimônio cristão.

Se é assim, é necessário virar a nossa concepção de cabeça para baixo: o ideal não é o não-matrimônio por causa do Reino dos céus, e sim: matrimônio por causa do Reino dos céus. Mas, então, se a situação é essa, que sentido tem o não-matrimônio por causa do Reino dos céus?

Portanto, isto é a pergunta!

Deixemos de antemão claro que não é nenhuma solução eu “abaixar” o matrimônio cristão, diminuí-lo, para elevar e engrandecer o celibato. No matrimônio cristão está de fato a mais alta chance para realizar o amor de Cristo no meio de nós. Certamente, grande parte dos matrimônios não são ideais. Eles alcançam raramente a culminância da plenitude cristã e humana. Mas não devemos confessar a mesma coisa da virgindade evangélica? Quantos de nós alcançam a plenitude dessa possibilidade? Portanto, quando falamos do matrimônio na nossa reflexão, entendemos por matrimônio a sua mais alta realização-ideal.

Acima dissemos: O matrimônio é um lugar privilegiado para a realização do Reino dos céus. Por “Reino dos céus” entendemos: o Amor de Cristo no meio de nós pelo Novo Mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. A partir desse enfoque torna-se claro que a expressão “não-matrimônio” por causa do Reino dos céus não é muito feliz. Se o matrimônio é o lugar privilegiado para a atualização do Reino dos céus, não deveríamos definir o nosso “estado” pela negação do matrimônio. Isto dá sempre a impressão, como se o celibato significasse “mais” engajamento pelo Reino dos céus do que o matrimônio.

A situação é antes a seguinte. Tanto na virgindade evangélica como também no matrimônio trata-se do “reino dos céus”. De ambos se exige total engajamento. Ambos tendem ao Reino dos céus, portanto, ao amor de Cristo no meio de nós; não ao “só-Deus” ou “só-homem”. Ambos amam “sem partilhar o coração” o Reino dos céus. Portanto, “sem partilhar o coração” significa para ambos: total dedicação e “consagração” ao Reino dos céus.

Mas, então, em que consiste a diferença? Enquanto engajamento para o Reino dos céus não há diferença. Enquanto amar o homem como “Cristo presente no irmão”, também não há nenhuma diferença – para ambos vale absolutamente num sentido profundamente íntimo e personal: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Por outro lado, porém, visto “externamente” é óbvio que há diferenças. A primeira e quiçá a principal diferença salta-nos aos olhos: o não-matrimônio. Esta diferença é tão conhecida que talvez não perguntamos seriamente: o que significa o não-casamento como o constitutivo da virgindade evangélica?

Vamos resumir brevemente o que dissemos até aqui para que essa pergunta se destaque com maior nitidez. O Reino dos céus significa a Presença de Cristo no meio de nós através da realização do Novo Mandamento do Amor: amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Dentro do âmbito da realidade humana parece que o lugar onde esse Mandamento do amor pode se realizar de forma mais profunda, íntima e intensiva, encontra-se na relação do amor homem-mulher na doação mútua “corpo-alma” no matrimônio cristão. Se isto é correto, então a situação de “não-matrimônio por causa do Reino dos céus” é bastante absurda. Pois nesse caso “renunciamos” justamente à máxima possibilidade de atualização do Reino dos céus por causa do Reino dos céus.

Como se deve entender isso? Ao que “renunciamos” afinal de contas?

O que é isso, que o não-matrimônio por causa do reino dos céus tem ou não tem de “mais” em comparação com o matrimônio por causa do Reino dos céus? Como justifico eu essa “falta”, essa “privação” diante da ordem de Cristo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei?

Contra tal reflexão como a nossa, poder-se-ia objetar, que ela simplifica a realidade pluridimensional e muito vasta, que ela permanece numa faixa muito estreita e unidimensional, sem perceber que muitas outras possibilidades “possíveis” correm paralelas à possibilidade chamada matrimônio. Temos, por exemplo, a amizade, o amor ao próximo em diferentes modalidades das atividades caritativas, engajamento para a humanidade, amor aos pais, aos irmãos etc. Esta objeção, porém, permanece na superfície da problemática. Pois, ela não toma a sério o caráter específico da estrutura interna do amor no matrimônio, em contraste com as outras modalidades do amor acima mencionadas.

É necessário não esquecermos que a reflexão enfoca toda a questão a partir de um ponto bem determinado: a partir do AMOR PERSONAL na sua máxima intensidade. Aliás a nossa reflexão pressupõe sem mais nem menos que o amor de Cristo é a máxima potencialização e atualização do amor “humano” na sua profundidade, doação, compreensão, participação, paixão, ternura e madureza.

Nós perguntamos: se este amor é a nossa medida, como explicar o celibato? Não jogamos fora justamente aquela possibilidade humana, que a partir da sua própria estrutura nos possibilitaria alcançar de modo mais eficiente e intensivo o amor na sua máxima medida?

Embora seja uma repetição, para que diante dessa impostação da questão não caiamos na tentação de nos refugiarmos na antiga concepção, não inteiramente cristã, do “amar a Deus sem partilhar o coração”, vamos insistir, vamos obstruir esse caminho de evasão, recordando: a Deus somente posso amar no meu irmão. E Deus não está “atrás” do meu irmão. Este não é um meio para o fim, não é passagem, mas numa identidade dinâmica, misteriosa e sui generis: a presença de Deus ela-mesma.

A nossa reflexão foi, por assim dizer, encurralada. A única saída possível desse estreito parece ser a conclusão lógica: o matrimônio por causa do Reino dos céus é mais perfeito do que o não-matrimônio por causa do Reino dos céus. Esta conclusão é ainda precipitada. Simplifica o verdadeiro conteúdo do matrimônio e não-matrimônio por causa do Reino dos céus.

Vamos tentar buscar uma solução, que ressalta melhor o verdadeiro sentido desse encanamento no estreito do raciocínio que nos mostra a excelência, a superioridade do matrimônio. Isto é, a solução consiste em: buscar o sentido do não-matrimônio por causa do Reino dos céus na própria essência, no núcleo do matrimônio cristão, não fora dele, portanto. Mas, talvez, aconteça também o seguinte: que somente compreenderemos originariamente a essência do matrimônio cristão se o iluminarmos a partir da virgindade evangélica!…

Antecipando a reflexão posterior, podemos dizer: o matrimônio e a virgindade evangélica não são duas possibilidades diferentes colocadas uma ao lado da outra, uma em frente da outra como oposição, mas são antes, no seu cerne estrutural, dois momentos correlativos, ou melhor, duas variações de uma única realidade chamada Evangelho, isto é, a Presença do Amor de Cristo no meio de nós. Compreender essa afirmação é tarefa das considerações que seguem.

  1. Reflexão

A tarefa acima proposta vamos concretizá-la numa questão bem determinada, a saber: a que renunciamos nós no “não-matrimônio” por causa do Reino dos céus.

Antes de iniciarmos as reflexões seqüentes, algumas observações:

As considerações que seguem são certamente simplificadas, cheias de lacunas, muitas vezes ingênuas: elas traçam, em linhas gerais, a grosso modo a descrição do fenômeno sem muitos detalhes e precisão minuciosa. É necessário pois  ter-se a coisa-ela-mesma diante dos olhos para dali, corrigir, suprir, precisar a descrição. Mas a partir do fenômeno, as reflexões, embora imperfeitas, devem ser compreendidas com muita precisão. Para isso é indispensável que você, ao ler, controle criticamente os seus próprios conceitos pré-fabricados, com os quais opera sem perceber. Do contrário, essas considerações podem ser causa de mal-entendidos, erros e confusão.

Não me preocupo, nas reflexões, se o que se diz é realizável ou não. Se é imprudente, perigoso ou não. Trata-se simplesmente de ver mais claramente a estrutura da virgindade evangélica. A não-realização, o perigo pode não vir da coisa-ela-mesma, mas sim da nossa falta de madureza. O que se diz nas seguintes considerações sobre o amor no matrimônio e na virgindade evangélica mutatis mutandis vale também para todas as outras modalidades do amor humano. Nós nos limitaremos porém a considerar somente o amor no matrimônio porque o nosso interesse é de esclarecer o específico do não-matrimônio por causa do Reino dos céus.

A nossa pergunta diz: a que renunciamos por causa do Reino dos céus? Existem momentos na vida religiosa em que nos perguntamos: é-me permitido amar esta pessoa tão profundamente, sem que eu me torne infiel ao Amor de Deus e à minha “consagração”? Este problema já pode surgir em relação a confrades, a co-irmãs, a familiares, pais, irmãos, irmãs, parentes, amigos etc. A questão, porém, se torna aguda e existencial, se torna um problema específico, para nós, se a pessoa em questão é do outro sexo, e não é, pelo sangue, do círculo íntimo de nossa família.

Existe, aliás, uma amizade entre homem e mulher, a qual, embora profunda e pessoal, permanece na esfera de uma amizade, digamos, comum. Aqui temos antes uma amizade, cuja estrutura se caracteriza mais como companheirismo-camaradagem, parceria. Este tipo de amizade entre o masculino e feminino, como também o amor para com irmãos, pais e parentes não pertence ao âmbito da nossa questão. Pois, em todos esses casos, falta justamente aquele momento que constitui o núcleo do conflito: o específico do amor entre homem e mulher, que usando a terminologia de Dietrich von Hildebrand podemos denominar de “enamoramento”.

Certamente, poderia uma religiosa ou um religioso ficar indignado diante de tal questionamento: tal questão, como, é-me permitido amar tão profundamente esta pessoa, sem que eu me torne infiel a Deus e à “consagração”, nem sequer deveria entrar em consideração, em se tratando do amor de “enamoramento”. É a priori evidente que tal amor é “pecado”, contra a nossa consagração. Pois nós renunciamos ao matrimônio. Logo, também a tudo quanto tende, é ordenado ao futuro matrimônio, portanto, também ao “enamoramento”. Tudo isso não é questão para o nosso “estado”.

No entanto, a questão deve ser colocada. A renúncia ao matrimônio, tão óbvia nessa objeção, não é tão óbvia se nós a tematizarmos. A que, pois, renunciamos? A resposta comum que se recebe a essa pergunta em qualquer coisa de brutal-materialista e ingênuo-primitivo: nós renunciamos à relação somático-sexual, e tudo quanto está ordenado a ela. E se entende essa “relação” e tudo quanto está ordenado a ela, do ponto de vista do prazer e do agradável. Dali a palavra: renúncia…

Como tudo quanto uma mulher (ou um homem) “incorpora” pode ser, de alguma forma, ordenado para essa relação somático-sexual, cai esse modo de conceber a realidade masculino-feminino no Pan-sexualismo do “macho-fêmea”, cria aquela mentalidade dos antigos livros de usos, das constituições de tantas congregações e ordens ou dos manuais antigos de moral, nos quais se tentou determinar, em que proporção se poderia expor à vista dos outros o cabelo, a orelha, as mãos, os pés, para que se evitasse a todo custo a ocasião próxima de atuar como sex-appeal…

Sem o saber, essa mentalidade está envenenada de um pan-sexualismo grotesco e primitivo na sua pressuposição materialista. Enquanto tal, sob a máscara de uma espiritualização e castidade, essa mentalidade não se distingue fundamentalmente das revistas eróticas mundanas (Nietzsche, 2002, p. 55s).

O erro básico dessa concepção “espiritualista” está nisso: ela pensa a união corporal materialisticamente e ordena, interpreta todo o resto, também a esfera humana, nessa perspectiva materialista de macho-fêmea. O fenômeno, porém, nos diz outra coisa.

A união corporal e todas as suas outras manifestações “carnais” estão ordenadas para o Amor humano de duas Pessoas. Elas são a expressão viva, concreta, encarnada da realidade chamada “o amor humano” que não é puramente-espiritual nem puramente-animal.

O modo de pensar abstrato que falsamente denominamos de pensar concreto e vulgar (o verdadeiro vulgo não pensa vulgarmente, pois o pensar vulgar é uma metafísica fossilizada, camuflada de vida! Cf. a Introdução ao pensar contemporâneo) conhece somente duas categorias: animal ou espírito. O humano nessa perspectiva é: ou animal ou espiritual. A relação homem-mulher é enfocada ou a partir do animal ou a partir do espírito.

Este modo de pensar no entanto é cego para a totalidade da escala de uma dimensão real, extraordinariamente profunda, extensa e rica, chamada “o humano”. O humano não é uma mistura-coisa entre animal e espírito. É antes uma dimensão originária autônoma, que não se deixa reduzir nem ao animal, nem ao espiritual. Podemos até dizer: animal e espírito são abstrações, derivações racionalizadas ou até conceitos deturpados do “humano”. Para fazer mais visível essa dimensão humana, tomemos alguns exemplos já batidos:

Na manhã da ressurreição, Maria Madalena chora perdidamente no horto da sepultura. Este anelo pelo mestre, este desespero que vem do amor humano de uma mulher pelo seu mestre, onde você o classificaria, se você não admite a dimensão humana como uma realidade autônoma? Reação hormonal? Sublimação da libido? O fenômeno não é platônico-espiritual. Não é sexual-animal. É humano, concreto, apaixonado, é o amor de uma mulher.

Ou aquele grito, impregnado de alegria, saudade, amor, ternura, gratidão e admiração: Rabboni! (Jo 20,11-18). Não pulsa nesse grito todo o ser, o coração, a alma, o espírito, sim, todo o corpo de uma mulher? Isto é o humano. Ou a exclamação espontânea do Pequeno Príncipe, diante da Rosa, que se abre: “Que vous êtes belle!” Que realidade é essa, tão sensível, respeitosa, tanta simpatia, tanto amor? Isto é o humano. Não é porém necessário ficar nesses fenômenos de cunho “feminino”. Os fenômenos como o enfrentar o perigo da morte, a coragem, a explosão de ira devastadora contida, a êxtase da velocidade, figuras da literatura como o velho, o toureiro, o escravo, o dominador, a guerra, a vitória, são realidades que com outro cunho indicam a dimensão irredutível que se chama o humano.

Certamente, você pode explicar o humano a partir do animal. Reduzi-lo à categoria animal. Ou também ao Espírito. Com isso, porém, você passa de uma dimensão para a outra. O problema aqui é de poder ver no humano uma nova dimensão autônoma. Para quem não consegue ver, não há a possibilidade de argumentar, como não há a possibilidade de fazer ver o vermelho-quente a um cego de nascença. Aqui está uma das maiores equivocações das críticas oriundas das ciências naturais contra as ciências do espírito. Mas, sobre isso confira-se o último capítulo das apostilas: Introdução ao pensar contemporâneo.

Vamos, agora, tentar ver nessa dimensão autônoma do humano, mais concretamente no amor humano, dois diferentes momentos, que poderíamos denominar de momento solipsístico “agradável-para-mim” e o momento personal de abertura para Tu.

Para tanto, vamos começar com uma frase bem banal:

“Se um homem diz a uma mulher: você é bela, então, isto é um sinal de que ele a ama”. Não nos interessa se esta constatação é verdadeira ou não. Tomamos a frase somente como ocasião para uma reflexão. Nós podemos dizer, ampliando essa frase:

  1. Eu amo esta pessoa, por isso ela é bela.
  2. Eu amo esta pessoa, porque ela é bela.

No caso a) a flecha do meu interesse vai diretamente à pessoa, e então desse relacionamento surge, por assim dizer, a beleza. No caso b) a flecha do meu interesse vai diretamente à beleza e dali surge “o amor”.

Aqui nesse caso b) devo ainda distinguir: pode acontecer, que “eu amo esta pessoa porque ela é bela” seja somente um estádio transeunte de um processo, que, em si, está orientado para a pessoa. Primeiro, eu amo uma pessoa porque ela é bela, agradável-para mim. Com o tempo, conheço melhor essa pessoa. O centro do meu inter-esse se desloca da “beleza” para o cerne-pessoa, eu deixo por assim dizer o “amor-agradável-para-mim” atrás de mim, e tomo morada na pessoa. Se a pessoa em questão, num desastre perde a sua beleza, o meu amor não se torna menor, pode ficar até mais profundo e forte, justamente porque a beleza agora desaparece. Se é assim, então o caso b) será um processo de crescimento, um caminho para o mais alto fim: o amor personal, e não difere no fundo do caso a).

No caso b), porém, a situação pode ser a seguinte: o interesse se dirige principal e exclusivamente à beleza, portanto, ao amor “agradável-para-mim”. Nesse sentido se diz: eu amo esta pessoa porque ela é bela. Isto é, o meu interesse é somente “parcial”. Eu amo essa pessoa enquanto ela é bela, enquanto ela possui beleza. A fascinação da beleza e esse amor “agradável-para-mim” pode ser muito intensivo, muito “apaixonante”. Pode estimular-me para grandes sacrifícios. Podemos, por causa desse amor, sofrer muito, de sorte que pensamos: “eu amo de fato essa pessoa, com ab-negação de mim mesmo”.

Mas, se examinarmos com maior precisão esse estado de coisas, descobrimos que nós não amamos esta pessoa-Tu, mas a beleza. Aqui pode muito bem acontecer, que o “amor”, por mais intensivo e ab-negado que “tenha sido”, de repente se torne “vazio”, desapareça, se, por ex., nos tornamos fartos da beleza (cf. o fenômeno da projeção do inconsciente da psicologia profunda). No fundo, esse amor tem a estrutura do “agradável-para-mim” e tem uma dose muito grande de solipsismo. O que dissemos não só vale para a beleza, mas também para os fenômenos que denominamos afeto, simpatia, gostar etc…

Como já mencionamos, esse momento do amor chamado “agradável-para-mim” pertence à dimensão humana. Aqui, porém, o acento está mais no “eu”, “para mim”, de tal sorte que a verdadeira e originária abertura para um Tu personal não acontece propriamente. Analisemos agora o primeiro caso a): eu amo esta pessoa, por isso ela é bela.

Aqui não há nenhuma diferença entre a pessoa e a beleza. A pessoa e a beleza são uma e mesma “pessoa”. Não é porém assim que, o que antes eram dois sejam agora conjugados numa identidade. Antes, se processa uma transformação na totalidade da concepção. Somente nessa transformação surge realmente o Tu personal. O que nós tínhamos antes não era propriamente uma pessoa, mas muito mais uma coisa-substância, chamada homem-com-suas-qualidades. Agora, porém, a totalidade do homem é “personalizada” para uma nova realidade: TU.

Embora não exista nenhum conceito adequado para o Tu, vamos tentar de alguma forma, de maneira muito imperfeita, captar essa realidade.

Nesse relacionamento a irradiação do inter-esse vai diretamente ao núcleo-pessoa. A palavra “núcleo” é infeliz, pois, insinua algo fixo, já pronto, feito, ali existente como coisa. A palavra só quer dizer que a meta do interesse está no íntimo do mais íntimo. Essa interioridade é, porém, algo como o ponto de sucção de um movimento-redemoinho do meu interesse, que jamais se fecha num ponto final conclusivo. Pelo contrário, ele se “abre” sempre mais, intensivo e concentrado, como a inesgotável profundidade da interioridade, fonte de dinâmica e energia.

Isto se mostra quando eu me pergunto: por que amo essa pessoa? Porque é bela? Não. Porque é útil? Não. Porque é rica, simpática, agradável? Não. Porque é boa, virtuosa, inteligente? Não. Isto é, cada vez que eu me pergunto sobre as suas qualidades, sobre algo que ela “tem”, percebo que a ponta do meu interesse avança sempre adiante, pra além de todas as suas propriedades, para o indizível abrir-se na profundidade da interioridade, na totalidade concêntrica e centrípeta, que constitui a Pessoa como Tu. E a partir de lá, da dinâmica, força, do calor que dali emana, se articulam, se ordenam e se fundem todas as suas qualidades, propriedades nessa concreção-totalidade-Tu.

As qualidades, as propriedades então não são mais motivações, por que eu amo essa pessoa, mas são nessa totalidade esta Pessoa-Tu, ela mesma. E é nesse sentido que a pessoa é o “sem porquê”. Ela é simplesmente, profundamente, realmente a facticidade, que eu a amo. E tudo isso não só acontece com as boas e agradáveis qualidades, mas também com os defeitos dessa pessoa. Assim como as boas propriedades não são motivações do amor, assim também os defeitos não são impedimentos ou diminuição do amor: pois também os defeitos se tornam, a partir da pessoa-profundidade, constituintes integrantes da própria pessoa.

Com isso, temos uma estrutura, que não mais se pode explicar na perspectiva do “amor-agradável-para-mim”. Não é mais “para mim” no sentido solipsista. Aqui nasce um relacionamento, pelo qual “sou” propriamente a “tua presença”. Eu me abro a ti. Eu não sou mais “solus ipse” no meu inter-esse. A flecha do interesse da minha total intencionalidade, que é minha própria vida, gira 180 graus, de mim para ti, tu tomas conta de mim, o meu centro se desloca para o teu centro. Através desse deslocamento do centro da gravidade, de mim para ti, nessa polarização ao teu redor, experimento uma transformação em mim. O âmbito do meu eu se dilata, se liberta, cresce e se torna uma estranha e libertadora identidade: Tu-Eu. Antes era uma “pessoa” diante de mim, como um ob-jecto de minha afeição. Agora, numa con-versão do eu para tu não existe tu diante do eu como ob-jecto diante do sujeito, mas sim, tu se torna a dimensão de profundidade, de largura e altura do meu eu. Tu és o “intimius intimo meo, superius supremo meo” (S. Agostinho): em-casa, na-morada, numa identidade viva pessoal.

Esta identidade, porém, não é uma “participation mystique” de uma fascinação sufocante que me assalta, que engole a minha autoidentidade, que me entorpece no “amor-agradável-para-mim”, mas pelo contrário, justamente agora, somente agora se torna realmente presente, cristal-clara, nítida e transparente cada personalidade própria como Eu e Tu.

Quanto mais eu me abro a ti, tanto mais me liberto na tua possibilidade, experimento a con-versão na “tua possibilidade” minha e ao mesmo tempo te liberto para minha possibilidade tua.

Nessa correlação personal não se trata, portanto, de um “apprivoisé” (O Pequeno Prícipe), que nos cativa, nos aprisiona, mas trata-se de aprofundamento na liberdade, que nos liberta mutuamente, nos faz nascer para a suprema possibilidade de cada um de nós.

Porque tu és a minha íntima dimensão de mim mesmo e eu de ti, tua libertação significa meu crescimento, minha libertação, teu crescimento.

Enquanto tal, dessa identidade personal, nasce um dever, uma exigência, de combater tudo quanto impeça esta expansão-dinâmica-libertação da própria possibilidade: portanto, defeitos, a mútua exigência do “agradável-para-mim”, preconceitos, desconfiança, mesquinhez, melancolia etc. Aqui se forma um “em-casa”, onde não mais está no centro a posse do outro como “meu”, “para-mim”, mas sim, um em-casa, onde habita o amor mútuo de libertação, que exige: seja tu mesmo e ainda mais, para que eu possa me livrar em ti e contigo.

É muito importante intuir que essa liberdade não é um respeito indiferente, ou melhor, indiferenciado, algo como um respeito “geral” humano diante da liberdade do indivíduo. Pelo contrário, é o interesse simpliciter, o mais radical interesse de amor personal, não geral, mas singular, exclusivamente, inclusivamente, intensamente orientado a Tu, a esta pessoa.

Mas, justamente desse inter-esse exclusivo singular salta aquela abertura, aquele céu aberto, através do qual e no qual a pessoa-Tu pode e deve se libertar, tornar-se, superar-se para a sua suprema possibilidade. E justamente nessa abertura que dá para a profundeza mais profunda da pessoa, para o abismo de intimidade do seu âmago, nesse céu aberto ao infinito, se “perde” sempre de novo a presença da pessoa amada, ela foge diante de mim, de mim, do “querer parar”, sempre para mais alto, para mais profundo, para dentro da superação e do aprofundamento da sua possibilidade. De tal sorte que eu devo procurá-la, correr atrás dela sempre de novo, con-correr, me renovar.

E aqui, de repente, se re-vela algo como trans-cendência, não uma transcendência horizontal-espacial, mas uma transcendência personal e concreta de interioridade profundíssima, onde me relampeja a compreensão da transcendência de Deus, como a profundíssima transcendência de Tu infinito pessoal e intensíssimo.

Esse amor personal é a essência e o núcleo do matrimônio cristão.

  1. Reflexão

Agora, voltemos à nossa pergunta: o não-matrimônio por causa do Reino dos céus significa renúncia a esse amor personal?

Resposta: a virgindade evangélica é a tematização desse amor personal no sentido do a), portanto, engajamento consciente, altamente conscientizado, livre e radical para este amor personal. Pois o amor personal é o que constitui o Reino dos céus, portanto, a essência do Novo Mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Mas, então, o que significa o não-matrimônio? Até onde e como se distingue a virgindade evangélica do matrimônio cristão?

Numa das reflexões anteriores, ao falarmos do fenômeno do amor entre o masculino e o feminino, destacamos uma esfera autônoma chamada “o humano”, distinguindo-o do animal e do espiritual. Ali dissemos que o animal ou o espírito eram abstrações, derivações, conceitos degenerados do “humano”. Vamos tocar brevemente nesse problema, justamente porque à primeira vista o matrimônio parece ter algo a ver com o corpo, portanto, de alguma forma com o “animal” e a virgindade evangélica com o “espírito”.

Tudo quanto, de alguma forma está em íntima ligação específica com a existência-humana tem a estrutura da vida. A vida está constituída de tal modo que ela vibre, pulse continuamente a partir da energia interna própria, que está sempre em movimento de contração e expansão. Ela é algo como campo energético em forma de anéis concêntricos, em viva pulsação.

Nesse campo percebemos um momento, uma tendência, através da qual a vida por assim dizer procura manter, conter a consistência, guardar o “estado” da coisa. Ela recolhe, dispõe tudo, segura junto, fecha-o numa unidade, concentra, contrai, cria aconchego. A sua intensionalidade é centrípeta, tendência ao redor de um conteúdo que permanece. É o momento contração.

Ao mesmo tempo, com-vibra um outro momento, que tem mais um caráter centrífugo. Essa tendência desagrega, dispersa, abre espaço livre, se expande em sempre novas possibilidades, liberta o estado de coisa, o conteúdo para novas situações, cria a vulnerabilidade para a novidade. Isto é o momento-expansão.

Estes dois movimentos simultâneos como expansão e contração constituem a vivacidade, o vigor da pulsação vital. Sem o movimento expansionista centrífugo, o todo murcha e se encolhe em si, para a fossilização da morte. Sem a contenção do movimento contrativo centrípeto, o todo se esvai na dispersão do vazio-aberto, volatiliza, se sublima ao nada.

Cada lugar desse campo-círculo em pulsação chamado vida é por assim dizer a tensão vital que resulta da correlação energética entre as forças de expansão e contração. Quanto mais nos aproximamos do centro do círculo, tanto mais temático e acentuado se torna o momento contração. Quanto mais nos aproximamos da periferia do círculo, tanto mais temático e acentuado se torna o momento expansão. Esta tematização ou acentuação não significa que na posição mais central haja menos movimento centrífugo ou na posição mais periférica, menos movimento centrípeto.

Para que o equilíbrio seja mantido como o conteúdo, como o sustento da pulsação, estabelece-se uma relação de tensão sui generis, que está situada de maneira cada vez diferente. Porque a nossa concepção-modelo trabalha com conceitos quantitativos como energia, força, campo ou movimento, não consegue mostrar o caráter especial dessa relação de tensão sui generis em suas diferentes densificações e situações.

Se olharmos, porém, para o próprio fenômeno, percebemos que justamente este “estar situado de maneira cada vez diferente” ou “cada vez em diferentes densificações” é o resultado da relação de tensão do movimento expansão e contração. Esta tensão proporciona a cada situação, a cada posição, a cada anel concêntrico uma peculiaridade específica qualitativa.

O nosso modelo “um campo energético de pulsação em círculos concêntricos” caduca, portanto, nesse ponto: ele não consegue fazer visível a diferença qualitativa das variações. Cada anel de pulsação é variação de uma e mesma realidade, chamada vida.

Como dissemos, a vida tem a estrutura: expansão e contração simultaneamente. Esta estrutura, porém, não se repete quantitativamente em diferentes esferas e níveis de realidade da existência humana, mas: ela varia em modificações qualificadas, cada vez de modo diferente. Isto é, em cada setor do humano, temos os movimentos centrífugo e centrípeto. Eles são, porém, coloridos, intencionados, qualificados de maneira cada vez diferente.

O que nós usualmente chamamos de “animal” ou “espiritual” são diferentes modificações da estrutura do “humano” no sentido da vida. Neles, no animal e no espiritual, encontramos portanto dois momentos: expansão e contração.

Porque cada esfera da realidade pulsa cada vez diferente na sua modificação como expansão e contração, temos no caso do “animal” uma simultaneidade toda peculiar de movimento centrífugo e centrípeto. O mesmo vale para o caso do “espiritual”. Em vez de diferentes esferas da existência humana, vamos agora tomar o humano na sua totalidade, como um grande todo. Na sua totalidade pulsa também em expansão e contração. Vamos enfocar exatamente o momento-contração nesse todo e perguntar: onde aparece o momento-contração de maneira mais plástica e palpável?

Resposta: naquilo que proporciona ao “animal” sua especificidade, o seu colorido qualitativo, a saber, em termos gerais: o conter em si, envolver-se em si, a introversão, o ensimesmar, a necessidade, o guardar o conteúdo do seu ser, o estar preso à materialidade da situação, o enrolar-se em si.

Vamos enfocar com precisão o momento-expansão no todo do humano acima mencionado e perguntar: onde aparece o momento-expansão de maneira mais plástica e visível?

Resposta: naquilo que proporciona ao “espiritual” a sua especificidade, o seu colorido qualitativo, a saber, em termos gerais: extroversão, abrir espaço, liberdade, abrir-se, dispersar-se, volatilizar-se.

Disso se segue: o que os termos “animal” ou “espiritual” indicam é propriamente o princípio de contração e o princípio de expansão da existência humana.

Com outras palavras: o animal é um conceito para designar um fenômeno-limite do movimento contrativo do humano. O espiritual é um conceito para designar um fenômeno-limite do movimento expansivo do humano.

Entre esses dois pólos-extremos-limites (que no fundo são abstrações) estende-se uma escala de variações complexas, variegadas na sua constituição e no seu arranjo interno, variações que em cada nível estão qualificadas de modo diferente, que estão compenetradas pela corrente do movimento expansão-liberdade e contração-necessidade. Toda essa escala é, portanto, o humano, com a colocação de diferente acentuação do peso, ora sobre o princípio da liberdade, ora sobre o princípio da necessidade.

Depois de assim, imperfeitamente, ter traçado as linhas gerais da estrutura “humano”, vamos brevemente examinar a esfera da realidade que denominamos amor entre homem e mulher, usando o tosco modelo de vida acima descrito.

Se visualizarmos o amor do matrimônio através desse ocular-modelo, descobrimos que também aqui temos um momento centrípeto-contrativo e outro momento centrífugo-expansivo.

  1. a) Momento-contração

O amor como abrigo na confiança, compreender e ser compreendido, isto é, aconchego na atmosfera de compreensão, abrir-se a um tu no amor de recepção, felicidade-ninho, plenitude, aceitação, saudade envolvente, contentamento, calor. Aqui pertencem todos aqueles fenômenos e vivências da união corporal, que é a expressão viva do amor contrativo-unitivo.

Todos esses qualificativos acima insinuados constituem o que denominamos de “em-casa”, “lar”, “caseiro” e “casa”, “morada” e tem o caráter de “interioridade”, “manutenção”, “ter”, “posse”, “aconchego”. O princípio de contração aparece portanto no amor como: conceber, guardar, proteger, recolher-se, conservar.

  1. b) Momento-expansão

O amor como: doação, abrir-se a um tu no amor de entrega, arriscar-se à alteridade do tu, libertar-se, vivacidade e busca da novidade, contínua renovação do amor, busca, jamais-parar etc.

Todos esses qualificativos apontam para o élan e o frescor do “enamoramento”, algo como aventureiro, corajoso, extático, algo como a paixão do primeiro amor. É justamente aquele momento do amor, no qual o amor a partir do seu núcleo sempre de novo se supera, numa contínua potencialização da revisão e renovação, onde ele como totalidade sempre de novo se coloca em jogo no encontro renovado.

Aqui pertencem aqueles fenômenos e aquelas vivências do “espírito” e da liberdade, que constituem a essência do entusiasmo na generosidade e gratuidade.

Tanto o momento a) como o momento b) devem con-vibrar numa pulsação totalizante do amor. O momento a), sem a liberdade do b), se encolhe, murcha e se apouca. A contração do “conservar-se” se transforma em “acastelar-se, aninhar-se”, instalar-se no pequeno mundo caseiro, torna-se um egoísmo mesquinho, rabujento, fossilizado ou um narcizismo ensimesmado “só agradável para mim”, uma viscosidade envolvente, sentimental, húmida que tudo engole e prende na asfixia “carnal”.

O fenômeno de decadência nessa linha tem o seu último limite no que chamamos de “animalesco” no sentido negativo, perverso e desumano da palavra.

O momento b), sem o sustento do a), e o seu aconchego de “em-casa” torna-se abstrato, frio-impessoal, fanático, violento, objetivo sem alma. O élan de libertação degenera em libertinagem violenta ou em dispersão boêmia de um lado, e de outro lado em angelismo desumanamente “espiritualizado” que estarrece toda vida com o seu frio hálito do “espiritual”.

As determinantes do amor como acima esboçamos não se limitam somente ao amor esponsal, mas são também determinantes de todo e qualquer amor humano.

Elas, porém, valem numa medida potencializada para o amor entre o homem e a mulher no matrimônio, porque este amor não é somente uma entre outras modalidades iguais do amor humano, mas sim um lugar, uma situação privilegiada, onde a estrutura fundamental do amor-como-tal se nos revela de maneira mais pura e nítida possível.

Se é assim, então podemos dizer que a estrutura, como a descrevemos no amor matrimonial, se encontra em diferentes variações em todas as outras modalidades do amor, de tal sorte que podemos tomar a estrutura do amor esponsal como o protótipo do amor humano.

Enquanto tal, este amor na sua estrutura como a descrita acima é também modelo-exemplar para a virgindade evangélica; as determinantes, a estrutura fundamental, que nós lá encontramos, devemos também encontrar aqui na virgindade evangélica.

  1. Reflexão

Após esse longo rodeio, coloquemos de novo a pergunta que ocasionou a nossa consideração: A que renunciamos? O que significa “não-matrimônio”? Que diferença existe, pois, entre o matrimônio e a virgindade evangélica?

Como uma tentativa de resposta a essa pergunta, comecemos essa reflexão, repetindo o que dissemos numa outra reflexão sobre a estrutura da vida, agora porém visando diretamente o fenômeno do amor.

Aplicando o modelo “campo energético em pulsação, em forma de anéis concêntricos” ao amor, podemos dizer: cada posição, cada situação, cada lugar desse campo-círculo em pulsação é por assim dizer a correlação de energias: entre a energia-expansão e a energia-contração. Quanto mais central a posição, tanto mais temática aparece e pesa a contração. Quanto mais periférica a posição, tanto mais intensiva aparece a expansão. A expansão se torna temática.

Essa tematização, porém, não significa, que na posição mais central exista menos movimento centrífugo ou que na posição mais periférica, haja menos movimento centrípeto. Significa sim: para que o equilíbrio como a conservação da pulsação possa ser salvaguardado, estabelece-se uma relação-tensão sui generis, que está situada cada vez de forma diferente.

Este “estar situada cada vez de forma diferente”, que resulta dos diferentes correlacionamentos de tensão energética, constitui a especificidade, ou melhor, a concreção de cada posição dentro da escala do amor-humano, que se estende no campo da existência humana, desde o “animal” até o “espiritual”.

Entre o matrimônio e o não-matrimônio por causa do reino dos céus não existe nenhuma diferença se examino a questão a partir da viva estrutura fundamental-amor. Ambos na sua estrutura podem realizar a mais alta e profunda possibilidade do amor. Mas existe a diferença de correlacionamento da tensão energética, se os examinamos a partir da sua posição, isto é, do “estar situado cada vez de maneira diferente”. “Como?

O matrimônio tematiza com maior intensidade o momento contração, ao passo que a virgindade evangélica tematiza com maior intensidade e momento expansão.

Como dissemos acima: tanto o matrimônio como também o não-matrimônio por causa do Reino dos céus devem conter em si ambos os momentos. Do contrário, decaem do vigor e da vivacidade do amor-originário para os fenômenos de decadência: animal ou espiritual em sentido negativo.

A diferença, porém, está nisso: que no matrimônio a expansão é vivida em função da contração e na virgindade evangélica a contração em função da expansão.

Essa colocação diferente no correlacionamento energético dá ao matrimônio e ao não-matrimônio evangélico o seu perfil concreto e específico.

  1. Reflexão

Embora seja uma espécie de repetição, vamos descrever esquematicamente o perfil do matrimônio cristão e o da virgindade evangélica.

O matrimônio: aqui domina o momento “em-casa”: como aconchego, lar, feliz presença do amor como plenitude, confiança, mútua posse. Toda a constelação de vivências corporais, o agradável-para-mim, a união corporal, tudo que está ordenado a ela como, por exemplo, moradia, ambiente do lar, afazeres caseiros, recebem o seu sentido, a vida, a meta e sua significação do caráter contractivo do “em-casa”.

A característica aqui é: incluir, acolher, fechar, segurar, conservar. O momento expansivo funciona nesse caso como a vivacidade do “em casa”: evita essa característica que “fechar-se” degenere em mesquinhez caseira, estreiteza egocêntrica, mundo monótono do sempre-o-mesmo. Conserva-lhe o frescor, o anelo, a busca do primeiro amor.

Como o amor esponsal está por excelência informado pelo princípio contração, ele se dirige a tu como esta pessoa, na exclusão das outras, ele se contrai no amor sem partilha de coração a esta mulher (ou a este homem) e isto na concreção da união corporal e do amor-agradável-para-mim, justamente porque esta forma de concretização contém de modo mais pregnante o caráter contrativo da posse e do “em-casa”.

Se, porém, esse momento contrativo for vivido isoladamente, sem a dinâmica libertadora da expansão, o amor se asfixia no mero prazer envolvente, na posse, cai no torpor, no tédio, no vazio monótono do cotidiano, na insuportável peso do caseiro.

Se no amor matrimonial, portanto,  o momento “agradável-para-mim” e o corporal exercem tão subida e essencial importância, então isto tudo vem da sua estrutura específica: o amor aqui torna-se temático na forma de contração-em-casa.

O momento expansivo portanto atua no matrimônio como função de conservar viva a contração-em-casa. Não somente conserva viva, mas também liberta, isto é, potencializa o amor do matrimônio. Por isso, um homem ou uma mulher no matrimônio só se torna livre, só pode viver o amor no frescor e na vitalidade irradiante do primeiro amor se ele (ela) procura a liberdade-expansão na sua própria parceira (parceiro), nesse Tu, como um momento, um constituinte dela (dele).

Aqui surge aquele momento do amor que numa outra reflexão já descrevemos como o amor personal do “abrir-se-para-tu”. Este amor está “para além” do “amor-agradável-para-mim”. E busca na presença do tu, sempre de novo, com saudade e paixão, um “outro” Tu, um tu maior, mais alto, um outro tu que não é algo outro da pessoa amada, mas um outro tu que propriamente constitui o eu autêntico, o eu-superior da pessoa amada, um tu que se abre na presença do tu-familiar, como infinita exigência e possibilidade de ainda melhor, ainda mais belo, ainda mais íntimo e profundo.

Aqui, justamente agora, nessa transcendência de “ainda mais”, nessa busca, nesse jamais parar, jamais se contentar e jamais se instalar, nessa doação, torna-se presente no outro Tu aquele a quem nós tão abstrata e “espiritualmente” chamamos de Deus: Deus cuja essência é o amor simplesmente, amor de Deus, que somente se nos revela no meio de nós na e como a interioridade do outro humano-tu. O não-matrimônio por causa do Reino dos céus toma o seu início justamente nesse ponto.

A virgindade evangélica: justamente esse momento-expansão do matrimônio, que liberta os casados para a liberdade, para a abertura “escatológica” do Amor de Deus no tu humano, se torna o tema para a virgindade evangélica. Se o matrimônio chega a essa abertura do amor de Deus, como a presença na busca do “primeiro amor”, a partir da contração-em-casa, a virgindade evangélica segue o mesmo caminho, por assim dizer, a partir da “direção oposta”. Aliás, o que acabamos de dizer é inexato, sim, até falso, pois esta ponta-transcendência do amor personal no matrimônio, que chamamos “amor de Deus”, não existe em si e para si como uma coisa fora da presença do humano.

“O amor de Deus” só se torna presente, se constitui no processo: amando. É pois melhor e mais preciso formular: a virgindade evangélica tenta atingir num salto aquela situação que o amor no matrimônio atinge na sua última ponta. E fá-lo, para fazer dessa “ponta” o seu tema, sentido e conteúdo da própria vida.

O que foi dito é de novo inexato, pois usamos a palavra “num salto”. Não é assim que possamos saltar sem mais nem menos por cima do humano, da felicidade, sofrimento e sacrifício que o matrimônio na sua concreta realização do amor em-casa vive e sofre, suporta. “Num salto” não deve ser entendido no sentido de “alienação” do concreto, humano e vivo. “Num salto”, porém, quer aqui assinalar um estilo de vida, estilo que caracteriza o não-matrimônio por causa do Reino dos céus. “Num salto” significa tematizar o último estágio do amor personal. Tematizar significa: fazer conteúdo, sentido, finalidade da minha vida. Mas isso num sentido digamos oposto ao matrimônio, ao movimento contractivo.

No estilo contractivo havia o acento na contração. O estádio-expansão e a sua ponta-transcendência eram como que a consumação de um todo, assentado, pleno, harmonioso e tranqüilo. A expansão era como que informada pela plenitude da contração. “Num salto” significa um estilo que coloca o centro de gravitação no momento expansão. Ele enfoca então todo o momento contrativo como p. ex. a união corporal, o “em-casa” contrativo, ter, posse, amor agradável-para-mim, consciente e tematicamente a partir da expansão.

Isto é, a virgindade evangélica faz do seu estilo: a busca, o jamais-ficar-parado. Em toda parte onde encontra o amor, ela procura nele somente (tematicamente) o momento dinâmico-transcendente do “primeiro amor”, o grande desejo e a paixão-expansão do “enamoramento”.

Assim, se no matrimônio, cujo âmago e missão é a contração, o signum correspondente a esse tema era o contrativo “em-casa”, união corporal, agradável-para-nós, na virgindade evangélica o signum correspondente a seu tema-expansão se chama: renúncia, isto é, não-união-corporal, não-contração.

As palavras renúncia ou não-união-corporal são muito infelizes e inadequadas para exprimir o caráter-expansão, pois insinuam a estrutura de ab-negação. A nossa reflexão no entanto mostra que aqui não se pode falar de ab-negação. Pelo contrário, em vez de negação, é afirmação. Afirmação radical do amor personal, que é também a fonte e o fim do amor matrimonial. Portanto, é afirmação, não ab-negação. Mas a afirmação do momento liberdade da expansão do amor personal. Essa afirmação determina pois o nosso estilo de vida.

Se a união corporal e tudo quanto está em ligação com ela é o sinal do “amor de Deus” no meio de nós na acentuação do momento contração em-casa, a nossa renúncia à união corporal e tudo quanto se ordena a ela são o sinal do mesmo amor de Deus no meio de nós na acentuação do momento dinâmica-expansão do amor que se chama liberdade, libertação. Sinal significa: expressão viva e concreta.

O amor se dirige, tende à pessoa singular, a esta pessoa: Tu.

Isto vale tanto para o matrimônio como também para a virgindade evangélica. Interpretar o amor da virgindade evangélica como um amor geral pela humanidade ou fraternidade é mal-entendido.

Enquanto, porém, o matrimônio concretiza o amor no tu singular, como a acentuação do momento contração em-casa, “familiar”, exclusivo como a posse do tu, procura o amor da virgindade evangélica atingir em cada tu singular o momento personal da expansão-liberdade do amor, a fim de libertar o outro como pessoa para a sua própria possibilidade-plenitude da transcendência.

Certamente, isto é também a finalidade do matrimônio, onde o amor deve culminar na transcendência-ponta do tu personal como a libertação da pessoa na sua própria possibilidade.

Pertence, porém, ao estilo da possibilidade humana chamada matrimônio que essa culminação se realize por assim dizer na encarnação “em-casa” com uma única pessoa na exclusividade da contração.

Na virgindade evangélica essa encarnação toma a forma de “dinâmica-escatológica do amor” que se chama: Liberdade.

Com isso, a pergunta “a que renunciamos?” perdeu o sentido, porque renúncia como abnegação não tem mais vez nessa nova dimensão, nesse modo de pensar.

  1. Reflexão

Gostaria de evitar com insistência um mal-entendido muito prejudicial. Poderia surgir um equívoco em alguém que pense ser a virgindade evangélica no nosso sentido uma espécie de amizade homem-mulher no estilo de matrimônio-espiritual entre duas “almas irmãs”, portanto, qualquer coisa de um “substituto” sublimado do casamento “carnal”.

Essa interpretação deve ser evitada.

A exposição pode ter dado ocasião para tal equívoco. Tal interpretação no entanto é um total mal-entendido da nossa posição. Tal interpretação não leu bem e com precisão o que até aqui foi exposto. No pensamento do “matrimônio espiritual”, justamente porque ele é espiritual, falta o momento corporal.

Mas, a ausência do corporal não faz do “matrimônio espiritual” a virgindade evangélica! Pois, no pensamento do matrimônio espiritual, permanece o acento sobre o momento contração em-casa e se esconde ali muito do amor-agradável-para-mim, que é a característica do matrimônio. Enquanto tal, o matrimônio espiritual não se distingue essencialmente do matrimônio.

O específico da virgindade evangélica é de concentrar-se no tema: dinâmica-expansão do amor personal. E a partir dali eliminar no seu estilo de vida, portanto também no seu estilo de amar, tudo quanto tem algo de “contrativo ao lar”, de peso-conservativo ao caseiro, ao envolvente cativante, para fazer aparecer a essência do amor no seu momento expansão, como a luz radiante da liberdade ao amor personal.

É necessário sempre de novo recordar que esse estilo não é melhor e mais evangélico do que o estilo contrativo. Ambos os estilos estão mutuamente em função complementar, a serviço do amor de Cristo no meio de nós, portanto, do Reino dos céus.

  1. Reflexão

Resta ainda um problema, referente à afirmação, que o amor, tanto no matrimônio como também na virgindade evangélica tende, se dirige a Tu, singular, único. Afirma-se, com isso, que o amor da virgindade evangélica só é possível com uma única pessoa?

Que esta única pessoa não é o Cristo-esposo-no-céu já vimos nas reflexões anteriores. Nossas reflexões mostraram que a virgindade evangélica procura tematizar e viver exatamente a transcendência-culminação do amor personal, como ela é também almejada no matrimônio em relação a uma única companheira (companheiro). Não prova isso que o amor da virgindade evangélica tende a uma única pessoa? Justamente aqui aparece mais nitidamente a diferença de estilo entre o matrimônio e a virgindade evangélica. A concentração sobre uma única pessoa aparece no matrimônio como a característica essencial do matrimônio na forma exclusiva da união corporal, porque o amor matrimonial tem como o seu momento essencial a contração-em-casa.

Sem diminuir a profundidade, a importância e o caráter personal do amor, com a mesma intensidade personal do matrimônio, dirige-se o amor da virgindade evangélica à pessoa singular.

Mas ele tenta atingir o amor personal cada vez, para cada pessoa em singular, nitidamente consciente em relação ao tema-expansão do amor, isto é, a libertação dinâmica da pessoa em direção à abertura-profundidade da transcendência. Devido a esse acento sobre a expansão, não há aqui, como já foi dito, a atualização da contração-carnal, da exclusividade contrativa que fecha para a encarnação.

Que isso possa suceder sem partilha de coração, pode ser que seja inimaginável para o modo de pensar entitativo-coisista que só opera em categorias horizontais. Existem, porém, fenômenos, como o nosso caso da virgindade evangélica, onde a totalidade pode tomar forma, cada vez, sempre de novo sem singularidade, sem de algum modo “se dividir”. A esse tipo de totalidade chamamos: universal (em oposição ao geral). Essa totalidade universal – em alemão all-je-mein –, onde a singularidade sempre nova, um relacionamento íntimo, personal, como o vínculo e articulação de pessoas, a formar uma comunidade, um todo vivo, é a idéia original da ecclesia, da sociedade na dinâmica do Amor-Liberdade: do Reino dos céus.

Sem entrar em detalhes sobre esse tipo sui generis de totalidade universal, vamos mencionar como ilustração um exemplo que talvez possa insinuar e que seja: a Dinâmica-Expansão do Amor, que cada vez como totalidade do Amor-sem-partilha se torna presente toda e inteira em cada pessoa singular:

Assim, o Pequeno Príncipe cativou a raposa!

– “Ah!?” disse a raposa, “eu vou chorar…”

– “É tua culpa”, disse o Pequeno Príncipe, “eu não quis que sofresses, mas tu quiseste que eu te cativasse”.

– “Certo…”, disse a raposa.

– “Mas vais chorar…”, disse o Pequeno Príncipe.

– “Sem dúvida…”, disse a raposa.

– “Então, nada ganhaste!”

– “Ganhei!”, disse a raposa, …”a cor dos trigais!”

E então acrescentou: “Vá ver de novo as rosas. Tu hás de compreender que a tua rosa é a  única do mundo”.

O Pequeno Príncipe foi ver as rosas.

– “Vocês não se parecem com a minha rosa, vocês ainda não são nada”, disse. “Ninguém as cativou e vocês não cativaram a ninguém. Vocês eram como a minha raposa. Ela nada era, a não ser uma raposa como milhares de outras raposas. Mas eu a fiz minha amiga e agora ela é a única no mundo” (Saint-Exupéry, 1999, p. 69).

Por meio de familiaridade da contração em-casa, fazer uma entre milhares de rosas a única no mundo inteiro e através dessa única Rosa fazer também das outras a amiga raposa, que na despedida está feliz porque descobriu a cor do trigal, isto é o mistério do matrimônio.

A virgindade evangélica é igual e diferente. Na dinâmica libertadora do Amor personal, ela quer fazer de cada rosa, também de cada uma das milhares de rosas, fazer da raposa, do caçador, do rei, do bêbado, do geógrafo, da serpente, cada vez na sua singularidade “a única”, “o único” no mundo inteiro, porque ela tenta assumir o inesgotável Amor-de-Cristo-no-meio-de-nós como o sentido e conteúdo, como a forma de sua vida. Isto é o mistério e a aventura do entusiasmo pelo Reino dos céus. Mistério e aventura, a justificação do “não-matrimônio” por causa do Reino dos céus: Amar assim como cristo nos amou.

Referências

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2002.

SAINT-EXUPÉRY, A. de. O pequeno príncipe. 47. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1999.

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