Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Diferença entre o psicológico e o espiritual e entre a terapia e a orientação espiritual – II

16/04/2021

 

Introdução

O tema é muito vasto.  É, pois, necessário delimitá-lo. Propriamente são dois temas distintos, mas com mútuas implicações. E isto principalmente se se confirmar a suspeita de que na vida espiritual o que denominamos de orientação espiritual, em sua grande maioria, tem o estilo de uma ‘orientação’ a modo de terapia psicológica. Mas, antes de examinar se há ou não diferença entre a terapia e a orientação espiritual, é necessário falar da diferença entre o psicológico e o espiritual. Só que, este último tema é ainda muito vasto. E isto, certamente de modo demasiadamente indeterminado. De tal sorte que, se não impossível, é ao menos muito difícil estabelecer alguma delimitação útil e válida para podermos iniciar os nossos exames. Aqui, de antemão se percebe que se entrarmos nessa de estabelecer distinções e diferenciações possivelmente ‘cabíveis’ sob o tema “a diferença entre o psicológico e o espiritual”, jamais terminaremos a nossa tarefa. Por isso, comecemos as nossas reflexões, partindo de uma determinação em uso entre nós, religiosos, quando falamos do psicológico e espiritual, que poderia ser mais ou menos do seguinte teor de explanação.

  1. O psicológico e o espiritual

De imediato e na maioria dos casos, o tema “o psicológico e o espiritual” está dentro da maneira usual de compreender o ser humano como uma ‘composição’ de corpo, alma e espírito. Como a palavra ‘psicológico’ contém a palavra grega psyché, que usualmente se traduz como alma[1] (psyché + lógos), concluímos sem mais que o psicológico se refere à alma nessa divisão tripartida do ser humano.

No entanto, no tema proposto, o termo psicológico diz respeito à determinação, expressa na composição do próprio termo, a saber, psyché e lógos, portanto, à logia da psyché, à ciência moderna denominada Psicologia e ao seu uso dentro da nossa formação cristã, como meio e subsídio para o crescimento do(a) cristão(ã) na sua propriedade[2] chamada espiritual.

O termo espiritual parece indicar de imediato a última ‘realidade’ que compõe o ser humano, nessa divisão tripartida, a saber, o espírito. Mas aqui de fato, ele se refere à realidade, a partir e dentro da qual se move a espiritualidade cristã, e é dita na expressão usada por São Francisco “o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar[3]. Essa realidade da nossa vida cristã, religioso-consagrada[4] e leiga que se denomina também o Seguimento de Jesus Cristo ou também o Discipulado de Jesus Cristo, soa inteiramente formal, se não a concretizamos de modo bem elaborado e detalhado. Mas, como todos aqui somos cristãos já há muito tempo, e assim todos possuímos uma pré-compreensão operativa do que seja essa propriedade em questão, nós a podemos pressupor.

A seguir, o nosso trabalho consiste em precisar melhor algumas observações acerca dessas ‘definições’ feitas tanto do psicológico como do espiritual.

  1. O psicológico

Como foi dito acima, o psicológico se refere à ciência positiva, chamada psicologia. Há várias escolas de psicologia. No entanto, enquanto ciência, todas elas participam do modo de ser das modernas ciências positivas.

As ciências se chamam positivas, por que elas partem de posição ou colocação inicial-básica, da qual tiram os seus conceitos fundamentais, a partir e sobre os quais constroem e desenvolvem todo um conjunto de conhecimentos certos, concatenados entre si sistematicamente. Nessa construção sistemática o posicionamento inicial-básico é algo como lance prévio a modo de hipótese, algo como pro-jecto de uma interpelação produtiva da realização da realidade, i. é, do processamento e da transformação da realidade[5]. O projeto interpelativo-produtivo é sempre de novo testado na sua validade em repetidos experimentos. E na medida em que se comprova a sua viabilidade, o projeto hipotético provisório adquire a função de teoria. E tão logo, quando se verifica, pelos experimentos, a não possibilidade de seqüência coerente da validez da hipótese que virou teoria, a não possibilidade seqüencial adquire a função de correção reversiva da hipótese inicial, na tentativa de ampliar, aprofundar e purificar o posicionamento inicial-básico. Essa maneira de contínua re-fundação e afundamento corretivo da posição inicial, faz com que as ciências na sua raiz sejam avessas a todo e qualquer dogmatismo e toda a sua teoria jamais é doutrina, afirmação ou negação, absoluta e definitiva.

Nesse sentido, os conhecimentos das ciências positivas jamais são enunciações de decisão acerca da totalidade, mas sempre relativas e ‘parciais’, de tal modo que todo e qualquer posicionamento das ciências positivas diz sempre de novo e continuamente: sob a pressuposição dada, na situação atual das pesquisas, podemos dizer isto e aquilo como resultado provisório da validez de um projeto hipotético inicial. Esse saber da coerência de conhecimentos, concatenados entre si, é a explicitação da implicação do lance inicial hipotético. Embora tenha o seu início no posicionamento da pressuposição básica, está suspenso no seu todo, tanto no início como no meio e no fim, sempre aberto à recolocação, de tal modo que nas ciências, toda e qualquer enunciação acerca do todo e do ab-soluto, se torna inválida como não científica e dogmática. Pascal[6] denominou esse modo de ser do saber e conhecer científicos de espírito de geometria. Encontramos a mais límpida e coerente formulação desse modo de ser geométrico nas ciências naturais, portanto ciências do estilo físico-matemático.

Na psicologia, esse modo de ser geométrico aparece primeiramente na psicologia experimental, depois na psicologia comportamental behaviorista, e em diversas modalidades variantes do estilo mecanicista, depois vitalista e cibernética. Na assim chamada redescoberta da alma e da totalidade-humana, reivindicada pela psicologia analítica e pelas suas inúmeras modalidades, na sua explicitação a psicologia tornou-se certamente muito mais diferenciada, refinada, principalmente na compreensão fundamental do que seja a energia psíquica. Mas na sua estruturação científica, na maneira de abordagem, no método e suas inúmeras reduções e terapias, a psicologia permanece de modo sempre mais sofisticado no ser geométrico das ciências positivas. Isto aparece hoje no ecletismo funcional metódico do processo terapêutico, onde se usam vários tipos de psicologias de diferentes escolas, conforme as conveniências terapêuticas.

Em todas essas modalidades de atuação das psicologias, embora haja grandes diferenças nas suas impostações, valências dos valores e medidas usadas e apreciadas, parece haver na compreensão do psicológico dessas psicologias um momento comum. A esse momento comum, na perplexidade de não o poder dizer de modo mais adequado, o chamemos de redução à concepção antropológica naturalista. De que se trata, quando se denomina essa suposta base comum das psicologias de redução à concepção antropológica naturalista?

A qualificação naturalista se refere aqui ao que Edmund Husserl[7] denominou no seu opúsculo “Filosofia como ciência de rigor” de naturalismo, indicando a mundividência[8] que jazia na pressuposição da psicologia experimental de então. Essa mundividência recebeu o nome de psicologismo, depois de biologismo e nós hoje, poderíamos por fim chamá-la de fisicismo. Trata-se da mundividência que toma o modo de ser das ciências naturais positivas do tipo físico-matemático como modelo, medida e critério para determinar a cientificidade do saber científico.  A questão principal desse confronto de Husserl com o naturalismo reinante na psicologia experimental da época era a interrogação surgida em relação à cientificidade própria da psicologia, se ela em querendo ser um saber de exatidão sobre a psyché e intencionando-o a modo da abordagem e método das ciências naturais, não estava, na sua impostação de base e no seu método, se afastando do rigor científico próprio da sua busca, cujo tema e objeto é psyché, i. é, o ser-humano. O conceito-chave que está na base desse modo de agir das ciências naturais era o conceito natureza como ele era usado nas ciências naturais e as dominava. Daí, Husserl denominar esse tipo de mundividência de naturalismo, e naturalista. Em contraste com esse modo naturalista, se estabeleceu como o conceito básico que dá a qualificação do modo de ser do saber que lida com o ser humano e suas variações o conceito de história[9].

  1. Natureza e história

Os termos natureza e historia, na realização da realidade, não indicam o que usualmente é captado na compreensão geral. A saber: as duas regiões, que subsumem, de um lado os entes que surgem, permanecem e findam, a partir e dentro do horizonte das coisas naturais, coisas cujo modo de ser denominamos de espontâneo, portanto, das coisas que ainda não foram tocadas pela ação da indústria do homem; e por outro lado, os entes que dizem respeito ao homem e suas conquistas, portanto aos produtos da sua realização, a saber, coisas culturais, coisas que são feitas através do destinar-se, do historiar-se do homem. Nessa acepção natureza e história indicam duas grandes áreas específicas do ente, nas quais se podem dividir os entes, considerados sob o seu sentido geral de entidade simplesmente ocorrente, em área dos entes naturais e em área dos entes culturais. Esse tipo e o modo de ser da divisão e subdivisão dos entes e sua classificação geral e específico, ao ordenar os entes, é caracterizado na filosofia como divisão ôntica do ente. Esse tipo de divisão dos entes debaixo de um modo de ser geral pressuposto e determinado como entidade ou como ocorrência simplesmente dada possibilita as divisões e subdivisões dos entes em classificações padronizadas das ciências positivas. Aqui, como pressuposição, a mais geral e básica de todas as ordenações dos entes em classificações e padronizações está um sentido do ser bem determinado, acima denominado de entidade ou ocorrência simplesmente dada. Esse sentido do ser como entidade dá a todos os entes o cunho de neutralidade e generalidade, uma ‘comunidade’ abstrata e formal, a partir e dentro da qual o próprio e a qualificação de cada ente não vêm à fala e se retraem, como que encobertos pelo sentido preestabelecido e unívoco do ser e seu modo neutro e indiferenciado de ser. Esse achatamento neutral do sentido do ser próprio é o tom dominante e fundamental do saber que caracterizamos como ciências positivas. Aqui o sentido do ser da natureza e da história enquanto dimensão diferencial, velamento e abertura de todo um mundo da possibilidade de ser, não aparece na sua propriedade nasciva, na sua percussão própria. A tonância do sentido do ser, aqui, se torna neutra, opaca numa objetivação indefinida e generalizante. Essa neutralidade reduz a diferença e a concreção do ente dentro e a partir da indiferente generalização da entidade e não consegue entoar a identidade da diferença e diferença da identidade do sentido do ser, cada vez novo na sua propriedade e no seu destaque originário, enquanto o sopro vital da sua gênese que impregna o ente. O homem, ao despertar para a novidade simultânea da identidade e da diferença do sentido do ser como o salto originário do surgir, crescer e consumar-se de todo um mundo da realização da realidade, se percebe, em sendo, ser ele próprio a aberta do toque fontal do sentido do ser de todas as coisas.  Então ele compreende que esse seu destinar-se, essa sua tarefa de ter que ser assim aberto, livre na soltura da recepção e responsabilização do sentido do ser, é a história. Na grande tradição do Ocidente, esse ser do homem como história, ou destinar-se da ausculta do sentido do ser se chama espírito.

  1. O espiritual

No início, na tentativa de, ao menos formalmente, determinar o que se entende pelo termo espiritual aqui nessa nossa reflexão, dissemos que por espiritual entendemos o próprio da espiritualidade cristã, a saber, o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar” ou “o Seguimento de Jesus Cristo” ou “o Discipulado de Jesus Cristo”. Só que essa ‘definição’ não nos serve quase para nada, pois ela já é entendida por nós dentro de uma padronização prefixada, chamada espiritualismo que desfigura bastante, para não dizer inteiramente, o sentido do ser do que chamamos espiritualidade cristã. Aqui apenas mencionemos, e isso de modo ainda muito formal, um desses pré-conceitos sob o qual é classificado o espiritual, i. é, o Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar, a saber: “O espiritual é o que diz respeito à vida interior, em contraposição ou em complementação à vida exterior. A vida interior tem então a conotação de: subjetiva, particular, privativo-pessoal, passiva, receptiva, ensimesmada, em contraposição à vida exterior que tem a conotação de objetiva, comum, social, ativa, generosa, dadivosa etc. Esse preconceito, se bem analisado, é qual a pequena ponta visível de um iceberg e oculta no seu bojo subterrâneo todo um mundo imenso de pressuposições, cujo sentido do ser toca nas questões fundamentais do pensar, cuja formulação p. ex. na filosofia toma formas de binômios como p. ex. o subjetivo e objetivo; o transcendental e o empírico; o ontológico e o ôntico; liberdade e necessidade; carisma e instituição; existência e ocorrência etc. Por aqui percebemos que essa nossa questão proposta no tema da nossa reflexão não se resolve sem mais nem menos, a não ser que com firme decisão, paciência e tenacidade, comecemos a nos ‘conscientizar’ que questões aparentemente banais e ‘concretas’ do cotidiano da nossa vida espiritual exigem de nós uma perspicácia mais aberta e ao mesmo tempo mais concentrada e mais fundamental, mais generosidade e volume em estudar, em pensar, em examinar toda a nossa situação histórico-epocal, na qual vivemos, nos movemos e somos, hoje. O que aqui estamos fazendo, embora muito apoucado e modesto, é despertar para esse trabalho de assumirmos a tarefa proposta pela nossa situação de cristãos, hoje.

Aqui, para esse começo, vamos nos concentrar no seguinte ponto:

Nós partimos na nossa reflexão, da colocação usual tripartida do ser do homem como corpo, alma e espírito. E referimos a psicologia à alma, por ser ela a ciência da alma (psyché+logia). No entanto, dissemos que a psicologia no seu modo de ser pertence às ciências. E caracterizamos a ciência como um saber positivo, que a partir e dentro de um fundamento previamente dado na vida, edifica todo um sistema de conhecimentos certos, mutuamente concatenados entre si numa coerência lógica, numa exatidão toda própria.

Vamos melhorar esses dados e os precisemos ao ponto de nos servirem de fio condutor, para levar adiante a nossa reflexão sobre o tema “a diferença entre o psicológico e o espiritual” e “a diferença entre terapia e orientação espiritual”.

  1. Dimensão científica e dimensão pré-científica

Na perspectiva das características dadas acerca do saber científico, no entanto, estabeleceu-se um pré-conceito, uma fixação indevida de um estado de coisa. Por isso é útil precisar com mais rigor essa colocação acima mencionada. Dissemos acima que o saber científico constrói a partir do posicionamento prévio. Essa posição com o seu positum é realizada e então destacada, na e da experiência da vida. E a partir dali se monta todo um sistema do saber, coerente, fundamentado logicamente, constituindo um conjunto de conhecimentos, certos, confirmados e verificados na sua certeza e validez. Essa colocação, se não for mantida limpidamente sob o rigor de uma atenção toda própria no exame da ação constitutiva das ciências, facilmente deixa que se contrabandeie a suposição e a conclusão que não estão no primeiro e originário toque e repercussão da colocação, a saber, o pré-conceito de que a experiência da vida, a assim chamada dimensão pré-científica[10] é primitiva, não elaborada, subjetiva, não objetiva, vaga, confusa e indeterminada, portanto inexata e irracional. De tal sorte que, nessa dimensão pré-científica, os conhecimentos são infantis, de menos valia, necessitando da elaboração e explicitação objetiva, feitas nas ciências, para que esses conhecimentos cheguem ao status do conhecimento certo, assegurado que nos pode dar a medida universal do nosso saber.  E o que, segundo esse preconceito, nos pode libertar de todo e qualquer erro e permanência na ignorância ou queda num saber ainda irracional, supersticioso, mítico, sem critério objetivo esclarecedor da realidade é o saber científico, exato e verdadeiro.

Toda essa maneira de ver o relacionamento entre a dimensão pré-científica e a dimensão científica é no fundo a mundividência do positivismo evolucionista. É a ideologia dominante no nosso saber usual do que seja o saber científico.

A captação simples e direta do fenômeno, porém, nos faz ver outra coisa. A dimensão pré-científica, onde nos movemos vivemos e somos, de imediato e na maioria dos casos, é lá, donde nos é dada a determinação inicial, da qual as ciências tiram o seu posicionamento ou o positum do seu construir sistemático. Longe de ser vaga, primitiva, subjetivo-particular ou confusa, ela é antes a pré-jacência, a imensidão, profundidade e liberdade da densidade criativa da vida, qual uma imensa e abissal possibilidade de ser. Ela é matriz, a mãe-terra, da qual tudo que surge, cresce e se consuma recebe o seu vigor de ser, sua lógica de coerência e originariedade próprias e multifárias, sua abertura e consistência, o seu assentamento e sua fundamentação. Essa dimensão da vida é a morada de mil e mil possibilidades do desvelamento do sentido do ser na sua novidade e criatividade, que cada vez, por sua vez, se abre em leques de estruturação como mundo, como universo de entes.

  1. O espiritual como a dinâmica da disposição na espera do inesperado, na liberdade da gênese do sentido do ser

Para podermos nos mover, divisar e ganhar clareza a partir, na e para dentro dessa dimensão pré-científica e ali captar as modalidades diversificadas e multifárias das possibilidades de ser-mundo, é necessário conservar, cuidar e exercitar-se no iluminar-se inato, nascivo em nós que a grande tradição do Ocidente denominou de espírito.

Embora, a espiritualidade cristã, na propriedade todo sui generis, seja única, essa unicidade ou singularidade, esse ser una, não indica exclusividade de fechamento, de prioridade elitista, mas a generosidade da liberdade de soltura de doação, que tudo inclui e acolhe na entrega livre de si a todas as coisas. E isso de tal modo que, sempre do mesmo único modo da fidelidade incondicional, serve a todas as coisas, i. é, a cada coisa, como se, nessa pré-sença ab-soluta, ela fosse apenas modalidade de cada coisa. Nesse sentido, o ‘Espírito do Senhor e o seu santo modo de operar’ é e se torna cada vez coração do modo de todas as coisas, se encarna e se insere, a serviço e no serviço, como propriedade desta e daquela coisa, de tal maneira que nos é permitido dizer aqui: a espiritualidade cristã está a serviço e assim pertence no seu ser a esse modo de ser do espírito. Por isso, uma espiritualidade, e a fortiori a espiritualidade cristã que ignora ou se esquece da sua pertença a essa dimensão matriz da vida, e negligencia por muito tempo o cuidado e o cultivo próprio de si para dentro dessa dimensão, torna-se cega, árida e neutra ou inteiramente indiferente para a originariedade e originalidade da sua própria vitalidade diferencial[11]. É interessante observar que a nossa linguagem usual de dizer a coisa do cristianismo é de afirmar em primeiro lugar o caráter originário, primeiro e absoluto do que é cristão para dizer que as outras dimensões de alguma forma pertencem ao cristão e somente tem sentido, na media dessa pertença. O modo de ser cristão aqui refletido, porém, diz: o modo de ser primeiro, originário e absoluto do ser cristão não possui essa prioridade, esse ‘ranking’, esse caráter de uma medição a modo de excelência e do poder. Pois em tudo que dá e recebe, é simplesmente, de imediato o modo de ser do serviço, no qual se torna cada vez, de novo o último de todas as coisas, para de alguma forma poder receber do outro a permissão de poder se lhe doar e lhe ser útil na dádiva gratuita e grata de si. É nessa maneira de se doar ao outro no jeito de serviço, que esse modo de ser cristão é único, necessário, eterno, todo poderoso e onipresente, numa palavra ab-soluto, i. é, solto, espontâneo, fontal e nascivo na imensidão, profundidade e liberdade da entrega de si. É o que denominamos antes o abismo da possibilidade de ser, i. é, a dimensão da Vida cujo sopro, cuja vitalidade, cuja vigência se chama: a vida divina do Deus de Jesus Cristo, i. é, a vitalidade da deidade da Encarnação. Chamamos de espírito o modo de ser do ‘encosto’ imediato e simples, sem mais nem menos, portanto, do contacto corpo a corpo, na disposição do ser, pensar, querer e sentir, com a vitalidade dessa deidade da Encarnação. E a concreção da deidade da Encarnação se chama Jesus Cristo, ele enquanto corpo, alma e espírito e o seu modo. E esse seu modo, cuja concreção possui a dinâmica do modo todo próprio do serviço na Encarnação coincide com o que acima denominamos de dimensão vida, que na tradição do Ocidente surge, cresce e se perfaz como o que acima se chamou de espírito. A essa dimensão do espírito, Pascal, o grande pensador e místico da nossa Idade Moderna denominou de espírito de finura, cujo protótipo aparece, segundo ele, como revelação cristã, cuja ciência da positividade de uma afirmação generosa de tudo na graça e na beleza do sentido do ser da deidade encarnada, se chama teologia. Nós diríamos: espiritualidade cristã.

Tudo isso que dissemos tem por corolário a seguinte suspeita e observação: o que de inicio denominamos de concepção usual tripartida do ser humano em corpo, alma e espírito como composição, não se refere com esses termos (corpo, alma e espírito) a três entes da entidade, a três coisas, empírico-ônticas, mas sim a três modos de ser-humano, cada vez uma totalidade una. Espírito é o modo de ser-humano na sua plenitude, no seu originário; alma, o mesmo, mas na plenitude diferente à do espírito, no seu originário, cujo ser diferencial consiste em não se perfazer na plenitude a modo do espírito; corpo, o mesmo mas na plenitude diferencial, no seu originário, distinta da do espírito e da alma. Aqui, sem tentar examinar mais profunda e detalhadamente em que consiste esse modo de ser na identidade do mesmo na diferença, apenas observemos o seguinte: o modo de ser da plenitude chamada espírito se dá na dinâmica da ambigüidade. Uma vez se refere ao que está presente tanto no modo de ser espírito, como no modo de ser alma, como também no de ser corpo, numa presença de retraimento para dentro da plenitude do abismo insondável da possibilidade inesgotável de ser, sempre de novo tornando-se, na concreção do mesmo diferencial corpo, alma e espírito. É como a possibilidade do toque na percussão e nas repercussões da repetição do mesmo. Outra vez, na alegria e gratidão de poder ser cada vez a concreção, a repercussão da percussão da sempre fiel doação do sopro vital da potência, do toque da possibilidade do abismo inesgotável da gratuidade de ser. No momento em que essas concreções como modos de “ser o mesmo do ser humano” se esquecem dessa misteriosa presença-retraimento do toque da possibilidade abissal do ser, os modos corpo, alma e espírito se reduzem ao ente-coisa como três entes da entidade, proporcionando-nos a concepção defasada do ser-homem como composição de três coisas diferentes[12].

  1. Diferença entre a terapia e a orientação espiritual

De tudo quanto viemos falando até agora, deduzamos, assim de modo bastante provisório e formal, as seguintes colocações:

  1. Há uma diferença essencial entre a terapia psicológica e a orientação espiritual.
  2. A terapia psicológica possui o modo de ser da ciência positiva. Por isso, quando fala do ser-humano e sua vida ou seu ser-no-mundo e fala de si como saber objetivo sobre ele, opera na pré-suposição do seu modo de ser, ora naturalista, ora vitalista, ora humanista ou personalista, mas sempre predominantemente projetivo hipotético, a partir e dentro de um posicionamento prévio. Nesse modo de ser, a meta funcional de sua ação ou atuação sobre o ser-humano é o que a psicologia interpreta como realidade, a saber, a realização de re-condução do ser-humano à normalidade, pré-estabelecida a partir e dentro do seu projeto hipotético de realização da realidade como ela como a ciência positiva lança diante de si. Assim, a terapia não diz respeito ao sentido do ser do destinar-se da vida no seu perfazer-se como história de uma existência humana. O que a terapia psicológica chama de projeto de vida, saúde, normalidade, não se refere ao sentido do ser, mas sim ao prévio do projeto da sua realização, enquanto interpelação produtiva de uma medida assumida e posta como projeto. Aqui se trata de corretivo dos desvios, trata-se de dirigir para a normalidade, para a correção ou retificação ideal, como o dever-ser. Mesmo ainda no seu princípio de deixar ser cada qual na sua naturalidade própria, há o dirigismo para um ideal projetado que é posto como o que e como pode e deve ser. Aqui ela opera a partir e dentro de um ponto cego na sua impostação, de tal sorte que a partir dela não pode captar o sentido do ser de seu projeto científico enquanto um determinado destinar-se da existência humana. Embora parta de um posicionamento tomado da dimensão da vida, falsifica a vida como objeto de seu projeto hipotético, de tal sorte que obstrui na sua vigência o contato de retorno à fonte do seu vigor. Desse esquecimento da sua origem, surge o estilo de objetividade formal, neutro, generalizador que achata todas as diferenças, reduzindo-as a fugidios eflúvios momentâneos de vivências subjetivas.
  3. A orientação espiritual é algo bem diferente da terapia psicológica. Ela não se refere ao projeto de vida, nem é uma condução ou direcionamento de alguém a um determinado ideal. É antes orientação. É algo bem sintomático que a palavra orientação para nós, hoje, signifique em primeiro lugar ação de dirigir, de conduzir para uma determinada meta de um projeto, e no caso de desvio, para sua correção. Orientação, orientar ou orientar-se tem tudo a ver com oriente, com o verbo latino oriri (orior, ortus sum,oriri), i. é, nascer, originar-se, surgir, e por conseqüência, crescer e consumar-se. Surgir, crescer e consumar-se são momentos da dinâmica do perfazer-se como história, ou destinar-se da existência humana. Não é, pois, fato, ocorrência, não é um prévio dever ser, é concreção da disponibilidade cordial e obediente, na plena atenção em captar e seguir o historiar-se do sentido do ser que nasce, cresce e se consuma como possibilidade livre de ser, constituindo a vida, i. é, a ‘dynamis’ e a ‘enérgeia’ de cada ente, principalmente da existência humana. Orientação nessa acepção é a vigência de co-nascimento, cada vez novo e de novo, na autoconstituição do ente, no nosso caso, da pessoa humana no seu perfazer-se como história de uma existência. Na espiritualidade, até há pouco tempo, diríamos: como história de uma alma.
  4. O elemento, o vigor fontal desse “originar-se, crescer e se consumar”, se chama espírito, a saber, sopro vital. É a sua vigência que perfaz toda a imensidão, profundidade e liberdade, e creatividade da dimensão vida, anteriormente denominada de pré-científica.

Conclusão

Se isso que acima de modo muito grosseiro e provisório foi insinuado é orientação espiritual, como se deve configurar a espiritualidade cristã em todas as suas normas, proibições, disciplina, instituições, doutrinas e exercícios, no que ela chama de aprendizagem do Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, ou do Seguimento ou do Discipulado de Jesus Cristo? O que é, pois, na sua essência a formação cristã?

Eis, colocada a questão do nosso encontro.

Apêndice

1 O psicológico no sentido da psicologia e o psicológico no sentido do uso cotidiano

  1. Quando falo do psicológico em afazeres cotidianos não penso na ciência chamada psicologia. Penso sim em mim como que me sentindo por dentro. Esse “sentido por dentro”, porém, não se refere à captação do dentro de mim. Pois aqui não estamos falando de mim e do seu dentro e fora, como: essa coisa vista por meus olhos, palpada por meus tatos, auscultada por meus ouvidos e degustada por meu paladar; e ainda mais, conscientizada pela minha consciência, querida por minha vontade, e compreendida por minha inteligência. E tudo isso, esteja esse interior localizado dentro do corpo, dentro da alma, dentro do espírito; ou dentro das sensações dos 5 sentidos, dentro das vivências ou da consciência.
  2. Sentido por dentro” é uma expressão de perplexidade para dizer que ela deve ser entendida, suspendendo todo e qualquer esquema de objetivação. Mas ao dizermos isso, devemo-nos logo corrigir dizendo: suspender não significa eliminar, ou não dar atenção a ela, mas sim em operando a objetivação, ser todo inteiro objetivação, em assim sendo, tornando-se a pura presença da operação de objetivação ela mesma. Essa autopresença em sendo, esse captar-se em sendo, onde captar e ser é o mesmo, essa “interiorização” é a suspensão. Esse modo de autopresença de si a si mesma na autoevidência de si a si mesma é o “sentido por dentro[13]. A língua italiana indica esse modo de ser da presença como automostração[14], quando usa o verbo sentire também para dizer compreender, no sentido de perceber. Mas esse perceber, justamente porque é dito no verbo sentir, dá ao verbo compreender e perceber uma tonância toda própria, digamos, única que a língua alemã expressa pelo verbo innewerden (inne = dentro, íntimo, familiarizado; werden = tornar-se). Nós usamos na gíria o verbo morar para indicar esse perceber aqui descrito, quando perguntamos a alguém se captou o “tchan” da coisa[15], se se iluminou por dentro, se lhe caiu a ficha, se teve uma intuição (in = intus = para dentro; ire = ir). A essa autopresença, chamou Descartes de espírito, ou bona mens, e a famosa expressão: cogito ergo sum se refere a essa autopresença. Na fenomenologia essa presença se chama Da-sein (ser-o-ali), a aberta (das Offene), a clareira (die Lichtung) e indica o ser, ou a essência do homem. Essa aberta é o que denominamos: o sentido do ser.
  3. Aqui, digamos o que foi dito acima no n. 2 com outras palavras, agora através da tentativa de explicar a expressão o sentido do ser. Com essa expressão não estamos falando da significação do ser, conceito do ser, adequação do nosso saber ao objeto, representação dentro de nós, a saber, na nossa mente, do objeto, diante, ao redor, fora de nós. O ser entendido como verbo, dinamicamente, sugere de imediato e originariamente viger, viver, animar-se, perfazer-se, surgir-crescer-consumar-se, liberar-se, desprender-se, soltar-se nasciva, espontânea e livremente no que é o seu próprio. E isto apesar de no nosso cotidiano dominar o uso do verbo ser, na significação de estar ali como algo ocorrente diante de mim, à mão, ali parado, estático, à disposição do uso, ou como objeto-bloco permanente em si, do qual tenho da minha parte subjetiva impressões, sensações, representações etc. A dinâmica da espontaneidade da liberdade do próprio de si mesmo, portanto, o ser é expresso também por a presença, o vir à fala, o vir à luz, o manifestar-se. Trata-se, pois, de um movimento, no qual há e do qual vem uma condução, um ductus, um fio condutor, qual subtil tração do sabor e gosto, da graça e beleza, portanto do fascínio da coisa ela mesma, ou melhor, da causa da propriedade de ser. Esse ductus que nos toca, vindo de e nos induzindo para a dinâmica do ser, se chama sentido do ser. Assim, repetindo, sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências está presente: o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um a priori, para que se receba. Mas aqui não se dá, não há o quê que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo. Aqui o receber e o constituir-se do mundo dos entes é simultâneo. O receber é sentido por dentro. O dar-se do mundo como eclosão da possibilidade de ser é por fora. Ou melhor: sentido é o dentro. Mundo é dentro. Dentro e fora são correlativos. Mas não assim que exista primeiro dentro e fora e depois se relacionem entre si mutuamente como duas entidades em si, mas dentro é simultaneamente fora e fora, dentro. Esse simultaneamente é que é o aprioridado simplesmente”, não como ocorrência de algo, mas como presença, autopercepção, que Husserl chamou de Selbstgegebenheit, ou Wahrnehmung e Heidegger de Da na expressão Da-sein.
  4. Acima dissemos que no n. 3 estamos dizendo o mesmo que foi dito no n. 2. Nós hoje temos dificuldade de perceber essa simultaneidade, porque entendemos a objetivação como relacionamento do sujeito e objeto e não como concreção da diferença na identidade a modo de um surgir, crescer e consumar-se, p. ex. de uma obra de arte.
  5. O ente, quando se torna objeto de uma intencionalidade científica, vem ao nosso encontro como o concreto do projecto hipotético de um determinado interesse da interpelação produtiva. É a intenção construtiva. O movimento que, em se construindo objetivamente, se constitui como ente objetivado não necessariamente tem o modo de objetivação científica. Mas seja qual for o modo de ser das diferentes modalidades de objetivação, o movimento constitutivo é ao mesmo tempo o movimento “deconstrutivo” de retorno à proveniência, a partir e dentro da qual se torna. Essa origem, esse a priori é o toque originário e originante da percussão do abismo da possibilidade de ser. A disposição ao toque dessa percussão é a autopresença do ente, ou do em sendo, sentido por dentro, a saber, o sentido do ser.
  6. O que acima tentamos expor de modo muito imperfeito e simplificado a respeito do sentido do ser tem referência ao que expusemos no texto Araraquara 6, onde falamos da dimensão da vida, a assim chamada dimensão pre-científica. Aqui, o exercitar-nos na maneira de nos movermos, nessa paisagem da imensidão, profundidade e vitalidade matriz da possibilidade de ser, se torna necessário.  Daí, a importância de nos exercitarmos muito em sermos sempre de novo e continuamente no modo de ser do “sentido do ser”.
  7. O psicológico que então surge nesse contato imediato e simples da nossa percepção, na concreção do ser a partir e dentro da dimensão-vida, se sedimenta em mil e mil manifestações do historiar-se na vida como existência humana. É o que chamamos de “psicológico”, assinalado na literatura, arte, poesia, e experiências existenciais. Essa “psicologia” nos pode ensinar muito em proveito da espiritualidade.

2 Questão dos níveis de interpretações

A questão da acima mencionada objetivação com seus diversos modos e o mútuo relacionamento desses modos de objetivação entre si recebe o nome de questão de interpretação, a hermenêutica.

  1. O que e como é a questão da hermenêutica e a sua situação?

A palavra hermenêutica é um adjetivo substantivado, tirado da expressão grega ermhneutkή tέcnh (hermeneutikè téchne) que significa arte interpretativa. Na exegese bíblica, hermenêutica indica, no sentido técnico, a investigação, a fundamentação e a formulação dos princípios e regras válidas para a interpretação da Sagrada Escritura. Hermenêutica seria a arte de interpretar a Bíblia ou, quando mais organizada sistematicamente, disciplina científica que nos habilita teorética e praticamente no método da interpretação da Sagrada Escritura[16]. No entanto, na medida em que se constitui sempre mais como uma ciência autônoma, a Hermenêutica começa a abranger um campo muito mais amplo do que o foi até agora dentro do contexto, diríamos, técnico-prático, do ensino da exegese e da teologia bíblica. Mencionemos algumas dessas abrangências. São problemas que implicam na relação entre razão e fé na interpretação da Bíblia, entre história e teologia e na relação entre um possível “mito” escriturístico e a pré-compreensão filosófica contemporânea, em várias teologias hodiernas que derivam do contato do texto sagrado com as diferentes escolas filosóficas e ideológicas contemporâneas[17]. Segundo vários autores, principalmente depois que se transformou numa disciplina própria de cunho investigativo-científico do método de interpretação, a hermenêutica começou a sentir a necessidade de se confrontar com problemas referentes ao valor e à interpretação da tradição humanística, à teoria do conhecimento e epistemologia, à historicidade da verdade, ao papel do sujeito na interpretação, à diferença entre a historiografia e a História real, a várias compreensões da essência da linguagem, à relação entre as filosofias e as ideologias. Dito em outras palavras, a hermenêutica foi obrigada a ocupar-se de problemas gnosiológicos, ôntico-ontológicos, históricos e lingüísticos, assumindo indiretamente também reflexões que dizem respeito às discussões sobre a diferença de método e modo de ser das ciências naturais e humanas, a diferentes modelos de explicação do processo histórico etc., de tal modo que falar da hermenêutica hoje é como entrar numa emaranhada floresta de questões ainda obscuras e não bem colocadas[18].

Envoltos dentro e ao redor de nós em todas essas implicações, diante de um texto  ficamos perplexos, sem saber o que pensar e o que fazer, assoberbados que nos sentimos pela tarefa quase impossível de pesquisar, ordenar e relacionar tantos pontos de vista diferentes numa fundamentação que nos dê um fio condutor de compreensão para um todo unitário. Mas, ao mesmo tempo, como que por uma reação, no fundo de nós mesmos sentimos um ímpeto e uma ânsia de deixar de lado todas essas complicações hermenêuticas e ler, se são relatos de experiências diretas da vida, os relatos, histórias e estórias diretamente, fruindo-as, acolhendo-as simplesmente como elas nos falam, na total inocência, ou melhor, na simploriedade de alguém que não tem e nem pode ter todas essas sofisticadas acribias e escrúpulos de indagações; de alguém que é, move-se e vive a realidade concreta ali presente como é dada, singela e imediata; sem se preocupar com os problemas do intermédio entre o sujeito e a realidade, com o problema da interpretação.

  1. O a priori da interpretação, a participação dialogal.

Existe um poema do pensador chinês Chuang-Tzu[19] que reflete o dilema e a perplexidade do problema da interpretação. Talvez, o poema possa nos dar dicas de como orientar-nos nessas dificuldades da questão da hermenêutica.

Chuang-Tzu e Hui-Tzu atravessavam o rio Hao. Disse Chuang: “Veja como os peixes pulam e correm tão alegremente. Isto é a sua felicidade!”

Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?”

Chuang respondeu: “Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?”

Hui argumentou: “Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem”.

Disse Chuang: “Um momento! Vamos retornar à pergunta primitiva. O que você me perguntou foi: como você sabe o que torna os peixes felizes? Nos termos da pergunta, você sabe, evidentemente, que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço as alegrias dos peixes no rio através de minha própria alegria, à medida que vou caminhando à margem do mesmo rio”[20].

“Conheço as alegrias dos peixes no rio através da minha própria alegria, à medida que vou caminhando à margem do mesmo rio.” Nessa resposta de Chuang-Tzu aos questionamentos de Hui-Tzu, que dicas podemos tirar como orientação para nos situarmos na perplexidade diante de complexidade e intermináveis indagações lançadas à pesquisa e nossa busca da verdade?

À primeira vista, na questão da interpretação, a resposta de Chuang-Tzu a Hui-Tzu parece contentar-se com a experiência pessoal, privativa e subjetiva.

Parece nos dizer: “Não é possível saber com objetividade qual a interpretação mais válida, pois eu jamais capto o objeto ele mesmo como ele é, mas somente enquanto experimentado e vivenciado por mim, do meu ponto de vista particular, alienado e parcial”.

No entanto, Chuang-Tzu não entende a interpretação da realidade como uma compreensão apenas pessoal, privativa e subjetiva. Pelo contrário, antes ele propõe que interrompamos o pseudomovimento de cadência de sucessão de interpretações e nos concentremos em ver com maior imediatez, rigor e precisão o que estamos experienciando, quando estamos referidos à realidade, sentindo, vendo e pensando nela[21]. Com isso diz: Pare! Um momento! Vamos retornar à pergunta primitiva. E a pergunta primitiva é: Como você sabe o que torna os peixes felizes? Mas o que significa precisamente o que segue, a saber: Nos termos da pergunta, você sabe, evidentemente, que eu sei o que torna os peixes felizes? O que de decisivo e importante, Chuang-Tzu está a nos mostrar; e sobre o que nos orienta na questão da interpretação? O decisivo, o importante consiste em se perceber que nossa situação anterior à pergunta já é uma caudalosa compreensão, extensa e abundante como o rio Hao. Mas como? Se pergunto, é por que não sei, e só sei depois de buscar resposta(s) à pergunta. Mas o que queremos dizer com buscar resposta(s) à pergunta? Pergunta é lugar onde buscamos e encontramos respostas? Portanto, os termos da pergunta já têm em si as respostas? Nos termos da pergunta moram as respostas? Ou talvez melhor: os termos da pergunta, e tudo o que a pergunta implica, nascem, crescem e se consumam dentro e a partir do imenso campo previamente aberto e ali prejacente…?! Assim, Chuang-Tzu nos propõe que paremos, olhemos para nós mesmos e ao nosso redor, portanto, o nosso assentamento na terra, a nossa situação concreta[22], pois, se o fizermos, evidencia-se, i. é, abre-se-nos de dentro, desvela-se-nos todo um mundo, toda uma paisagem que somos nós mesmos. Nessa paisagem que somos cada vez nós mesmos, aparecemos eu, nós, tu, vós, ele, ela, eles e elas, o em sabendo, os peixes, o movimento de cada ente ser e tornar-se, a felicidade etc. E tudo isso não simplesmente numa justaposição ou num amontoamento de “coisas” a modo de “objeto”, “substância”, isto e aquilo, atomizado, neutro, sem rosto, mas numa riquíssima e diferenciada rede de relacionamentos em multifário nascer, crescer, consumar-se e retrair-se de mundos, numa simbiose e sinfonia de entes na totalidade. O pensador e poeta francês Antoine de Saint-Éxupery chama essa totalidade de terra dos homens. De maneira um tanto vaga e abstrata, chamamo-la também de realidade, vida, ser ou, mais especificamente, de realidade concreta pré-científica ou pré-predicativa[23]. Essa dimensão pré-predicativa, viva, concreta e prévia, no entanto, de imediato não se mostra na dinâmica do seu ser e do seu devir, mas, antes, como que se dissimula numa realidade a modo presença-superfície ou espaçamento, ora maciço e opaco, ora nebuloso ou vazio, onde estão localizados, inclusive nós, os diversos entes que nos cercam como entidades pontuais, átomos e conjuntos de átomos, a modo de coisas físico-substanciais. É a realidade representada, em uso, como a óbvia e assegurada, banal e mediana do nosso mundo de afazeres e conhecimentos, quer na vida, quer nas ciências. Assim, quando perguntamos, fazemo-lo usualmente como que colocados e nos movendo sobre a plataforma, sobre a base já fixa dessa superfície opaca, constituída como a realidade mediana do mundo cotidiano. E na perspectiva dessa colocação, o problema da interpretação é distorcido desde o início. Pois nessa pré-compreensão da realidade representada, na obviedade do uso, tomamos como dado evidente básico o que, por assim dizer, é excrescência aparente de superfície fixa e congelada como coisificação do mundo, e caímos na impostação, tão comum em certas teorias de conhecimento, de colocar o homem como sujeito-eu de um lado e a realidade ao redor dele como objeto(s), como se fossem duas ilhas ou duas coisas-“átomos” discrepantes, separadas, cada qual, digamos, fechadas em si em sua identidade e se comunicando, referindo-se à outra, saindo de si, para fora, de encontro à outra[24]. E nesse esquema, entramos no vai-e-vem de uma discussão sem fim: como eu, sendo Chuang ou Hui, estando eu em mim, posso saber o que o peixe, esse objeto vivo que está diante e fora de mim, sabe e sente. Como posso ter certeza de objetivamente captar e compreender o outro que não sou eu, que está fora de mim? Dito em outras palavras: as inúmeras e tão diferentes interpretações de um texto, conseguem pegar o sentido objetivo e real do que está sendo dito em si?

Quando uma pessoa se perde em representações e se hipnotiza na sucessão de representação e cria todo um mundo fechado em si, pode voltar a si e acordar com um estalo de dedos. Assim faz Chuang-Tzu em relação a Hui-Tsu. Estala os dedos da realidade anterior às perguntas que disparam para longe da questão, i. é, da busca primitiva e elementar, dizendo: “Acordemos, olhemos o que realmente é: na travessia, a caminho, ao longo do rio Hao, somos, estamos dentro da grande paisagem do ser, como os peixes estão também imersos na vastidão, na profundidade e no abismo desse mesmo ser, dessa mesma vida que nos cerca, nos impregna, nos sustenta e nos oferece mil e mil possibilidades de sentido e abertura de mundos. Antes de nos comunicar, já estamos “comungando” na mesma vida, no mesmo ser. E se podemos perguntar pelo como disso ou daquilo, é porque já estamos comungando, relacionados, participando da mesma vida. Longe de sermos estranhos e alienígenas uns aos outros, todos nós, todas as coisas, todo o universo, desde as “coisas” mais sublimes até as mais insignificantes, ínfimas, constituímos um mesmo sangue, um mesmo hálito, uma família, uma fraternidade universal. Por isso, o que denominamos de à margem uns dos outros é uma ilusão de perspectiva. Na realidade, estamos todos juntos, dentro da mesma corrente, na fluência e no fluxo da vida. Isso significa que as diversificadas e incontáveis interpretações existentes de um texto, todas elas, desde as mais profundas e espirituais até as mais banais e mesmo até as mais materialistas, desde as mais científicas até as mais simplórias e ignorantes, todas elas, de alguma forma e a seu modo, participam do mesmo sopro vital, do mesmo espírito de que também participam os textos, cada um deles a seu modo, e assim podem dialogar entre si.

  1. Um modelo de como entender a interpretação

Esse modo de ser da paisagem interpretativa pode ser insinuado por meio de um exemplo: a sintonia do som na percussão e repercussão da musicalidade numa sinfonia. Aqui cada nota musical é interpretação do todo e de cada uma das outras notas e conjunto de conjuntos de notas como um modo de ser da percussão e repercussão da musicalidade que vem à fala. Uma nota, porém, só pode ser repercussão da musicalidade do todo, se na percussão da musicalidade, percute e repercute – cada vez e de novo, no seu limite e na sua possibilidade – a si, a outra nota e outras notas que fazem o mesmo, a seu modo. Aqui, cada nota, cada conjunto de notas, cada conjunto dos conjuntos de notas são interpretações do todo, de si e das outras notas mutuamente[25].

Apesar do desengonço da descrição acima, o modelo da estruturação sinfônica do som nos sugere um modo de entender a interpretação como participação dialogal no mútuo intercâmbio de posições concentradas, abertas e simul-concomitantes. Concentradas, como compreensão que se recolhe, se achega a si, vem a si no concrescer da sua identidade; abertas, como a mesma compreensão que, na medida em que se concentra e se identifica, cria diferença a/com outras compreensões, tornando-se expansão da abertura de possibilidade no sentido de confronto, concordância, colaboração, crítica e provocação mútuas, num contínuo jogo de mútua autoconcreção e mútuo autocrescimento.

Se entendermos a interpretação de um texto assim, então cada interpretação teria a sua valência, mas nenhuma delas seria certa ou errada, nem melhor ou pior, mas cada uma teria para dentro de si e a partir de si uma exigência de coerência  a ser seguida. Cada uma delas necessitaria da outra, no sentido de não existir jamais uma interpretação isolada, em si. Se assim parece, é porque só se está enfocando uma interpretação, em vista de si mesma, sem tematizar que ela é apenas um momento de toda a imensa, profunda e inesgotável possibilidade de a vida se estruturar em mil e mil diferentes mundos. A verdade da interpretação não seria nem objetiva nem subjetiva, mas sim maior ou menor perfilação do desvelamento e do velamento do todo. E o mútuo interrelacionamento das diferentes interpretações seria algo como imensa rede dinâmica de estruturação de cada vez novo surgimento de mundos, em diálogo mútuo de confronto, correção, provocação, incentivo e colaboração, conduzido pela saudade de estar em toda parte, em todas as interpretações em casa, como alguém que em todas as interpretações reconhece a presença retraída e oculta de um sentido de fundo, ali prejacente, não como um dado preestabelecido, mas como aceno cordial e generoso, para sermos, sempre mais, novos e dispostos, compreensão cada vez mais vasta, profunda e originária da possibilidade de ser humano.

  1. Uma parábola moderna acerca da interpretação

Embora de modo bem provisório e imperfeito, tentamos encontrar um modo de compreender a interpretação como disposição e boa vontade de entrar na fluência e no fluxo do que já antes de perguntar e questionar isto e aquilo nos envolve, nos embala, nos é compreensão prévia, em sendo. É a vida, nós mesmos e o mundo vital circundante. É a realidade como presença da vida, como possibilidade inesgotável do sentido do ser. Resumamos essa compreensão da interpretação, mencionando uma parábola, cuja autoria é atribuída a Descartes[26]. Ele tenta ilustrar o modo de ser do conhecimento denominado interpretação mais ou menos assim: Uma pessoa recebe de um desconhecido uma carta cifrada, cujo código de decifração ela desconhece. Depois de várias tentativas, consegue descobrir uma regra, cuja aplicação lhe permite montar um código que lhe possibilita ler a carta, de tal modo que ela traz à luz uma mensagem com sentido plenamente compreensível e até incontestável na sua coerência. Descartes, porém, especula: Poderia acontecer que, por ser um homem de grande habilidade, o autor da carta a tenha redigido de tal modo que, sob outro código de decifração, a mesma carta contivesse outra mensagem, inteiramente diferente da anterior. Com isso, em nada é alterada a primeira leitura da carta. Que alguém seja capaz de descobrir outro código de decifração é admirável. Mas a pessoa que fez a primeira leitura pode, tranqüilamente, deixar aberta essa questão da existência de outro código de decifração. A ela basta que, no seu modo de ler, a carta lhe dê sentido coerente de início até o fim. Mas a segunda leitura não lhe poderia dar um sentido melhor, mais próximo ao da intenção do autor? Sim, se o autor tivesse fixado como válido e melhor um dos códigos de decifração. Mas suponhamos que esse autor da carta é o próprio Criador, de quem se origina o universo e tudo o que ele contém, seja atual ou possível. Suponhamos que esse Criador cifrou a carta segundo um número interminável, infinito, de diferentes códigos. Segundo Descartes, essa parábola mostraria o relacionamento e a postura própria do pesquisador nas ciências naturais exatas para com o universo.

Numa tal situação, caso consigamos decifrar a carta, descobrindo um ou mais códigos de decifração, qual dessas interpretações é válida, melhor, certa ou errada? Essa pergunta não pode ser respondida no caso da carta da parábola, porque ali existe um número infinito de diferentes códigos de decifração. Mas então cada interpretação tem igual valor? Todas elas são válidas? Mas, se é assim, não estamos permitindo na busca da verdade um relativismo total, no qual tudo é relativo; portanto, nada é absoluto? O decisivo aqui é entender com precisão o significado de relativo para o caso da interpretação. Relativo aqui deve ser entendido sem nenhuma conotação repreensiva, simplesmente como relacionado; como ente, cuja estruturação é referência, relação. Relação não tem o mesmo modo de ser da substância-coisa, em si, mas sim o da função de ser referido a outro. Como tal, jamais é em si, isolado de outros, mas sempre junto com, constituindo-se cada vez como momento de um conjunto, que por sua vez é momento de outro conjunto, em diferentes níveis e dimensões. Assim, cada vez, deve-se definir uma interpretação a partir da sua posição, e essa definição é, ao mesmo tempo, sua maneira própria de se relacionar com outras interpretações. Definir aqui significa mostrar o código de sua decifração, dar as coordenadas das suas pressuposições e pré-compreensões. Em assim se definindo, i. é, marcando seus limites, cada interpretação diz de si mesma: Essas pressuposições e pré-compreensões são as coordenadas demarcadas pela locação, a partir e dentro da qual estabeleço a possibilidade de rastrear o sentido de um texto. É a partir de tal posição que dou esta ou aquela explicação do texto. A interpretação é válida na medida em que ela percebe e clareia as implicações dessas pressuposições e pré-compreensões, de modo cada vez melhor concatenado e coerente, num todo coeso e fundamentado. Essa definição que a interpretação opera nela mesma em sendo interpretação já é o início do processo de intercâmbio e referência a outras possíveis interpretações com suas respectivas autodefinições, numa interação, quase sempre não temática, mas operativa, de mútua crítica, provocação, confirmação, de acolhida ou rejeição, mútuo aprofundamento e alargamento, em cuja co-agitação cada interpretação é levada a tomar conhecimento cada vez mais responsável e acurado dos seus limites, de seu nível e de sua dimensão.

Em repassando tudo o que aqui refletimos sobre a hermenêutica e os problemas que cercam a compreensão do que seja uma interpretação, apesar de provisoriedade e imperfeição dessas reflexões, possamos talvez concluir que o conhecimento chamado interpretação se move num nível de “realidade” anterior e mais concreta e vital-genética do que o saber já constituído em padrões, classificações, esquemas e modelos[27].

Deixemos essa reflexão sobre a interpretação nesse estado incompleto e insatisfatório.

  1. Hermenêutica, hoje.

Trata-se de uma questão que em nossas reflexões a seguir volta sempre de novo a nos a incomodar, a questão a respeito da verdade da interpretação. Pois, usualmente, verdade é entendida como certeza. Verdadeiro é o juízo, o conhecimento ou o saber certo, seguro, que não admite dúvida acerca de sua correspondência com a realidade. E a certeza está intimamente ligada com a averiguação. Como o que chamamos de realidade é imenso, ultrapassando todas as nossas tentativas parciais de captação, o que captamos da realidade sempre está dependendo do enfoque a partir e dentro do qual nos aproximamos da realidade. Isso significa que, para a averiguação, é necessário um critério, uma medida prévia, segundo a qual podemos averiguar o grau de certeza. Esse problema não aparece em geral em nossas averiguações, porque operamos numa representação da realidade em uso, já tudo estabelecido e classificado conforme o interesse dominante comum do nosso cotidiano. Nessa representação usual da realidade tudo é simples. A coisa, a realidade está ali diante de mim, bastando que eu a capte sob o meu ponto de vista, i. é, a partir da perspectiva em que me acho. Basta examinar o que capto e depois ver a coisa ela mesma e averiguar se o que capto da coisa corresponde à coisa, levando em conta que não capto a coisa em todos os seus aspectos, mas somente a partir e dentro do meu ângulo de visão. Sabemos que essa questão, exposta assim, grosso modo, quase caricaturalmente, é um grande problema da teoria do conhecimento na filosofia, que faz originar várias posições de explicações. Sem entrar em detalhes nessa questão muito difícil, para nós, é importante considerar que “as coisas espirituais”, “as coisas, ou melhor, as causas da espiritualidade cristã” não podem ser averiguadas a modo do saber da certeza. Mas, por quê? Usualmente se explica que isso é assim porque elas são “invisíveis a nossos olhos”, porque são realidades “supra-sensíveis”, porque não as captamos por intermédio dos cinco sentidos,  porque são espirituais e não sensorial-corporais etc. Mas talvez o pivô da questão esteja propriamente num outro lugar, a saber, o que costumeiramente denominamos “coisas espirituais”, “coisas sagradas” pode bem ser que pertençam, todas elas, na sua essência, à dimensão de vastidão, profundidade e radicalidade, anterior a todo tipo de coisificação e entificação a modo de uma realidade assegurada como coisas, objetos ocorrentes em si. Se são anteriores, se são de uma dimensão mais vasta, mais profunda e mais radical, se são de um sentido do ser “qualitativamente” diferente, então só podem ser apreendidas de modo próprio. E a compreensão da verdade aqui não mais pode ser a da verdade do saber, do conhecimento, do juízo a modo de cálculo, averiguação e asseguramento da certeza. Pode ser que, nessa dimensão, verdade signifique revelação. Digamos que essa dimensão anterior não é algo primitivo, ainda indeterminado, caótico e carente de elaboração, mas sim toda uma paisagem imensa e riquíssima de inesgotável possibilidade de surgimento de sempre novas totalidades, mundos novos.

Se for assim, então nossos pontos de vista, principalmente do saber, cuja acribia, cujo zelo pela objetividade nos faz buscar exatidão da certeza, portanto, nossos pontos de vista de fomentadores, de pesquisadores, de co-criadores das ciências naturais e humanas, mas também de seus funcionários e dos que delas usufruímos, de seus usuários, portanto, de todos nós, são convidados a se confrontar com os fundamentos de suas posições e analisar seus conceitos fundamentais, i. é, suas categorias básicas, toda vez que estão colocados diante de um texto sagrado e espiritual. E isso vale também e principalmente para toda a doutrinação religiosa e espiritual. Nesse confronto com os fundamentos e as categorias básicas de nossas posições, na medida em que penetramos cada vez mais para o fundo mais radical de nossos pontos de vista, de repente ou aos poucos, nos achamos colocados numa busca diferente, toda própria da ausculta do sentido do ser que, qual registro central de todas as categorias básicas mantenedoras de todo um mundo de compreensões, as vivifica, sustenta e coordena e unifica-as num sistema coeso e unitário. Entramos assim na via de uma radicalização da busca, já não funcionamos obviamente, sem questionamento de fundo, não mais a partir e dentro do horizonte do que ali está, na ocorrência de coisas, dos objetos, dos estados de coisa já constituídos como objetivações e entificações de um determinado sentido do ser de até agora. Começamos a nos preocupar com a busca do sentido do ser mais vasto, mais profundo e mais radical, em cuja nova dimensão de investigação, todos os fenômenos referentes à existência humana – portanto também a interpretação, o texto sagrado, as almas ardentes e seu olhar de fervor – podem se desvelar no seu sentido próprio diferencial, não somente diferencial onticamente, como ente, mas ontologicamente como um novo sopro vital, uma nova dimensão do ser de todas as “coisas, de todas as causas”. Em outras palavras, a existência humana, na sua auto e pré-compreensão do sentido do ser, em sendo, desperta para uma questão, na qual começamos a suspeitar que, antes de mais nada, é necessário perguntar se o sentido do ser de até agora consegue trazer adequadamente à luz, clarear o próprio do modo de ser da existência humana a ponto de, na busca do ser do modo de ser da existência humana, não mais estarmos fazendo antropologia ou diferenciando o ser do ente chamado homem e o ser dos entes não humanos, como entes diferentes sob a denominação comum de um determinado conceito geral do ser. Mas estamos tentando deixar vir à fala o sentido do ser diferente, anterior ao sentido do ser que nos dominou e domina a compreensão dos entes na sua totalidade. Essa investigação é feita mediante a análise da existência humana, rastreando as estruturações de seus momentos existenciais, nas quais pode aparecer o seu modo de ser específico, onde talvez se nos revele um novo sentido do ser, não somente do ser do homem, mas o sentido do ser de todas as coisas, de todas as causas na sua totalidade. Essa radicalização da busca da investigação pela compreensão do sentido do ser é a interpretação fundamental, a interpretação das interpretações, portanto, a hermenêutica das interpretações. Com tudo isso, nesse nível da hermenêutica, não mais estamos falando da arte ou ciência, da metodologia e técnica de interpretação de texto nem de problemas inerentes a ela, mas sim de uma nova ontologia[28].


[1] Psyché se traduz mais adequadamente como vida. Mas como nós entendemos também vida de modo tripartido, em vida corporal e anímica e espiritual, talvez fosse mais adequado traduzir psyché por existência, no sentido da fenomenologia da existência (= Da-sein = Pré-sença; o ser-aí; a existência ) com todas as suas implicações ontológicas.
[2] Propriedade aqui não significa tanto um ‘acidente’ essencial de uma substância, mas o que é o próprio de.
[3] Francisco de Assis, RB, cap. 10.
[4] A formulação ‘religioso-consagrada’ é para questionar o nosso modo muitas vezes impensado de interpretar a vida consagrada cristã dos religiosos e das religiosas com a categoria geral das ‘religiões’, e contrastando ou opondo à vida cristã secular dos leigos como ‘menos’ cristã. O ‘religioso’ das religiões indica antes o modo de ser sociocultural do que propriamente o modo de ser essencial do ser cristão.
[5] Nós costumamos identificar a realidade com o que encontramos diante e ao redor de nós como mundo fora de nós, i. é, com os entes. Esse ‘tipo’ de ‘realidade’, aqui na reflexão denominamos de realização. O que é a realidade ‘em si mesma’ nós não sabemos de antemão, a não ser a partir, dentro e através da realização, i. é, da dinâmica da existência ou presença, que sempre e cada vez se constitui como sendo, ‘em-sendo-mundo’. A realidade aqui então não aparece como ente, conjunto de entes, não aparece em si, mas somente e enquanto, cada vez como condição da possibilidade do surgir, crescer e consumar-se do mundo. Esse modo da presença retraída se chama Ser ou, na nossa reflexão, de imensidão, profundidade, liberdade do abismo da possibilidade de ser.  O seu adjetivo é ontológico. Cf. o que mais tarde se diz da dimensão pré-científica.
[6] Blaise Pascal (*Clarmont-Ferrand, 1623-+Paris, 1662).
[7] Edmund Husserl (*Prossnitz 1859-+Freiburg i. Br. 1938).
[8] É necessário sempre de novo distinguir entre a essência da ciência e as mundividências que se aninham nas autoexplicações que as ciências fazem de si mesmas nos seus operadores.
[9] Husserl chamou a mundividência que explica o fenômeno humano em contraste com o naturalismo, usando como o conceito base ‘história’, de historicismo. Mas como a história era ainda entendida no modo de ser da ciência historiográfica, que enquanto ciência positiva tinha o modo de ser das ciências naturais, o próprio do modo de ser da história na sua temporalidade existencial se tornava deformado e defasado.
[10] A expressão pré-científica já coloca o modo de ser da ciência e o seu reino como superior, como medida decisiva. E isto de tal maneira que o pré-científico não aparece como dimensão, mas como modo deficiente do científico, mais ou menos como a imensidão e o assentamento de uma base firme, donde se deslancha um salto, são considerados como modo deficiente do movimento de salto.
[11] Ilustrar concretamente esse modo de ser da onipresença do Ser através da presença da musicalidade em todas as notas, conjunto de notas, de melodias, de temas e constelações de temas, de toda a sinfonia em cada uma de suas partes e momentos como percussão, repercussão de generosidade e liberdade de doação como serviço a cada possibilidade da concreção musical.
[12] Uma defasagem desse teor pode acontecer p.ex. na terapia da psicologia analítica, quando a experiência da morte no nível do processo de individuação não se interpreta arquetipicamente, mas empírico-coisisticamente e assim, em vez de assumir o arquétipo “morte”, se suicida, entendendo que a morte aqui é aniquilação do corpo. No que toca ao tema do nosso encontro do ano passado, “masculino e feminino”, examinar se a mesma defasagem das dimensões não cria o problema do homosexualismo e das per-versões na área da sexualidade.
[13] Suspender é deixar que se vibre em suspensão, i. é, se recolha a e em si, não se deixando levar pela tendência de se pôr como isso ou aquilo.
[14] Em grego phainésthai, phainômenon = on, –tos.
[15] Aqui em vez dizer captou o “tchan” da coisa dever-se-ia dizer com mais precisão: se tornou, se é o “tchan”, i. é, a causa da coisa ela mesma.
[16] Cf. VÖGTLE, Anton, Sacramentum mundi, Enciclopédia Teológica, em 6 vols. Barcelona: Herder, 1984. vol. 3, col. 408.
[17] Cf. GRECH, Prosper. Dicionário da teologia fundamental. Aparecida e Petrópolis: Editoras Santuário e Vozes, 1994. p. 358.
[18] Cf. op. cit. p. 359.
[19] Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. FEIFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959, p. 47.
[20] CHUANG-TZU, Wai p’ien, Cap. 17. Águas Outonais, n. 26, na tradução portuguesa da versão inglesa de Thomaz Merton, A via de Chuang-Tzu, Vozes, p. 126-127.
[21] Quem diz p. ex. que tudo é interpretação, e diz que também dizer que tudo é interpretação é interpretação, aparentemente parece ter liquidificado toda e qualquer fixação numa determinada interpretação, mas na realidade está inteiramente fixo numa compreensão determinada, vaga e abstrata, mal analisada, do que é interpretação.
[22] Concreto/a vem de concrescer. O concreto é o concrescido. Pressupõe um conjunto de mútua implicância e implicação de relacionamentos no e como um todo, cuja característica essencial é ser um mundo.
[23] Pré-científico significa antes de entrar no processamento da tematização, proveniente da impostação das ciências. Como o conhecimento científico se constitui de uma concatenação coerente de juízos, cuja estrutura toma a forma de S é P (Sujeito = predicado), em vez de pré-científico se diz também pré-predicativo.
[24] A esse respeito, há uma anedota chinesa acerca do relacionamento entre um dragão e uma garrafa. Um certo senhor feudal, riquíssimo, foi consultar angustiado um velho mestre taoísta e lhe perguntou: “Mestre, o que devo fazer para resolver um terrível dilema mortal no qual me meti? Há tempo, prendi um filhotinho de dragão numa garrafa preciosa de jade. O dragão cresceu e ficou entalado na garrafa. Para tirá-lo, devo quebrar a garrafa de jade, que, para mim, além do seu valor por ser ela de jade, possui um valor inestimável, pois é lembrança do meu pai. Mas se não quebro a garrafa, o dragão morre asfixiado e de fome”. O velho mestre desdentado abriu a boca numa gostosa gargalhada e lhe disse: “Meu filho, eu nunca enfio um dragão numa garrafa”.
[25] Outro exemplo seria a presença da cor fundamental da paisagem de uma cena num vitral de uma igreja gótica medieval. Aqui, cada elemento figurativo da paisagem, em diferentes configurações e tonalidades cromáticas, forma o conjunto da paisagem de uma determinada cena. Mas, cada um desses elementos é como que a repetição, cada vez nas suas respectivas formas e cores, de matizes de fundo que por sua vez são concreções diferenciadas de uma cor fundamental. Essa cor fundamental não aparece como esta ou aquela cor, mas é como tonância de fundo que impregna e ilumina cada figura e o todo do conjunto, dando-lhe vivacidade, profundidade, suavidade próprias. Aqui, cada figura componente do quadro da cena é interpretação da(s) outra(s) mutuamente e nessa mútua interpretação vem à fala a paisagem do vitral. Outro exemplo do modo de ser da interpretação participativa e dialogal nos é dado por São Paulo, no modo de ser dos membros de um corpo em 1Cor 12,12-26.
[26] Descartes, René (ou De Quartis, Renatus Cartesius, Des Cartes, M. du Perron), 31.3.1596 – 11.2.1650, pensador, cientista e filósofo francês, considerado o pai da Filosofia Moderna. A parábola se encontra de modo muito mais rico e sugestivo em: ROMBACH. Heinrich. Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit, Freiburg/München: Verlag Karl Alber, 1971, p. 139.
[27] Poder-se-ia objetar que, segundo as reflexões aqui feitas, também padrões, classificações, esquemas e modelos são interpretação. Certamente, se reconduzirmos, como o fez Chuang-Tzu, todo esse saber assim estabelecido à sua gênese, de tal sorte que padrões, classificações, esquemas e modelos, no momento em que, “caindo em si”, perceberem que são modo deficiente de interpretação como foi explicitado acima, são interpretações.
[28] Ontologia aqui não deve ser entendida como ciência dos entes em geral, ou ciência dos entes que não são entes humanos. Portanto, ontologia aqui não está nem oposta nem ao lado da antropologia, mas sim na raiz da ontologia usual e da antropologia, como ciência do ser, cujo sentido é inteiramente novo, mais vasto, mais profundo e mais radical do que o conceito do ser geral da ontologia comum. Para expressar o sentido do ser assim insinuado na sua novidade, neste trabalho, usaremos e abusaremos da expressão sentido do ser do ente na sua totalidade. Leia-se a palavra ente literalmente como em sendo (ens, -tis = particípio ativo, indicativo, de esse = ser).
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