Leonardo Ulrich Steiner
Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia
“O senhor… Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra montão.”1 Vamos mudando, transformando, responsabilizando-nos, com as iluminações, aberturas, inspirações, que nos atingem. É graça! Iluminações, inspirações, nascidas das trilhas, das veredas, que o espírito suscitou e suscita no coração de seus amados. “No trilhar, as veredas levam ao seu destino os habitantes da Terra”2, abrindo-lhes cada vez de novo paisagens ainda não visitas, não experimentadas.
Não estamos prontos, estamos sempre a caminho! Caminho que o Senhor concede e faz fazer. Faz fazer em dialogando com o mestre e os companheiros da mesma busca. A mesma busca que nasce do encontro!
1. Da inacessibilidade
Diz o Apóstolo: esta manifestação será realizada, a seu tempo pelo bem-aventurado e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos Senhores, o único que possui a imortalidade, que habita numa luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver! (1Tm 6,16).
O pivô da questão é entender que os textos espirituais, o Evangelho, só falam do encontro. Os textos espirituais, o Evangelho não estão falando de fatos-coisas, não é narração das histórias do passado! São Histórias de encontro!
O Pai habita numa luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver! O Pai habita numa luz inacessível?3 O que quer dizer que Deus habita numa luz inacessível? Não é acessível, não é tocável, não se pode alcançar?
Usualmente, quando falamos de inacessível, estamos representando um lugar ou uma coisa que está longe, bem longe ou de difícil acesso. Inacessível eram os doces que nossa mãe fazia e escondia em cima do armário quando éramos crianças e não podíamos alcançar; a lua até os anos sessenta; os estudos na universidade quando morávamos no interior; o velho distante. Inacessível como contrário do acessível, do próximo, do possível, do alcançável, tocável, do poder dominar e possuir. Acessível como poder relacionar-se com a pessoa que na sua aparência é distante. Inacessível significa, então, algo que por estar longe de mim ou no lugar a onde eu não consigo chegar, torna-se impossível de ser pego, ser possuído ou ser tocado por mim, a partir de mim. Mas que se eu tivesse uma escada ou houvesse um modo, um caminho, eu o alcançaria, eu tocaria.
A inacessibilidade de Deus seria, então, como o ainda não possível, mas um dia possível, pelo menos depois da morte.
Esse tipo de inacessibilidade na realidade não é o inacessível do qual fala Paulo de Tarso e afirmado por Francisco de Assis. Esse tipo de inacessibilidade a partir de mim, de fato, poderia ser alcançado. Só não o é de fato, por não ter no momento uma possibilidade. Nesse caso dizemos: é inacessível. Mas quem sabe um dia agente chega lá, se conseguirmos um dia abrir um caminho. Esse tipo de inacessível é ainda acessível ao homem como possibilidade. O texto de 1 Timóteo está falando de outro tipo de inacessibilidade. É a inacessibilidade do encontro.
O encontro do qual, na dimensão do espiritual, se fala da inacessibilidade, é outro do que aquele que costumamos chamar de: encontro de jovens, encontro de família, encontro dos presbíteros, encontro de paróquias, e assim por diante. Esses encontros são sinais e memória do encontro do qual falam os textos espirituais.
Encontro como inacessibilidade é um modo todo próprio de abertura da pessoa humana. Encontro como inacessibilidade não tem divisão e poderia ser descrito no encontro da relação eu-tu. Martin Buber busca demonstrar o encontro do na fala encontro entre o tu-eu.4 Entre o eu-tu, o encontro é sem proximidade e sem divisão. O outro é somente tu e enche o céu e a terra. Não porque não existe nenhum outro, mas porque tudo vive na luminosidade do tu.5 Viver na luminosidade do tu é nem mesmo pronunciar o nome tu.
corpo e do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Atesta-o pessoalmente o Altíssimo quando diz: “Este é o meu corpo e o sangue da nova Aliança” (cf. Mc 14,22); e: “Quem comer a minha carne e beber o meu sangue terá a vida eterna” (cf. Jo 6,55). Por isso é o Espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor (cf. Jo 6,62). Todos aqueles que não participam desse espírito e, no entanto, ousam comungar, “comem e bebem a sua condenação” (1Cor 11,29). Portanto, “ó filhos dos homens, até quando tereis pesado coração?” (Sl 4,3). Por que não reconheceis a verdade “nem credes no filho de Deus” (Jo 9,35)? Eis que ele se humilha todos os dias (Fl 2,8); tal como na hora em que, “descendo do seu trono real” (Sb 18,5) para o seio da Virgem, vem diariamente a nós sob aparência humilde; todos os dias, desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote. E como apareceu aos santos apóstolos em verdadeira carne, também a nós se nos mostra hoje no pão sagrado. E do mesmo modo que eles, enxergando sua carne, não viam senão sua carne, contemplando-o contudo com seus olhos espirituais creram nele como no seu Senhor e Deus (Cf. Jo 20,28), assim também nós, vendo o pão e o vinho com os nossos olhos corporais, olhemos e creiamos firmemente que está presente o santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro. E desse modo o Senhor está sempre com os seus fiéis, conforme ele mesmo diz: “Eis que estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20).
O dizer, o descrever, o pintar, vem depois da experiência do encontro. O eu e o tu apenas se encontram, apenas estão aí. Por isso, a verdadeira relação entre o eu e o tu nasce do encontro. Não existe uma pré-compreensão. É somente encontro, onde cada um é iluminado e ilumina o outro, dando sentido de totalidade, isto é, cria todo o universo. No encontro não existem momentos, nem antes, nem depois. É! O antes e o depois são a partir do encontro. Nesse sentido o encontro tem um sentido de absoluto, sem momentos, puro movimento, puro acontecer, onde tu e eu não são o eu e o tu, mas ao mesmo tempo não deixam de ser na diferença.
Nesse sentido, o encontro é puro toque, puro golpe, é tudo num toque, num só golpe. No tudo, tudo é, o cada um, no que é, sem nada deixar de ser, o é, sem ainda saber que é. E, em sendo, o homem é somente toque de encontro. E tudo é sustentado na gratuidade do mistério do próprio toque, que se deixa tocar e se desvela numa unidade onde tudo apenas é.
O encontro, como foi descrito, pode ainda dar a impressão de termos a possibilidade de fazer acontecer o encontro. Na experiência cristã, encontro significa uma impossibilidade da nossa parte: a iniciativa é de Deus, não nossa. Ao abrimos a Sagrada Escritura nos surpreende o modo da narrativa.
No Evangelho de Lucas o primeiro encontro é o do anúncio do nascimento de João Batista. Lá está Zacarias no exercício de suas funções oferecendo o incenso no santuário do Senhor. E apareceu-lhe um anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso. Ao vê-lo Zacarias se perturbou e teve medo. Mas o mensageiro lhe disse: Não tenhas medo, Zacarias, porque foi ouvida a tua oração. Isabel, tua mulher, vai dar à luz um filho a quem darás o nome de João (Lc 1,5-18).
E no sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado da parte de Deus para uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem, prometida em casamento a um homem, chamado José da casa de Davi. O nome da virgem era Maria. Entrando, disse-lhe o anjo: Alegra-te, cheia de graça. O Senhor é contigo. … O anjo lhe falou: Não tenhas medo Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberas em teu seio e darás à luz um filho e lhe darás o nome de Jesus… (Lc 1,26-34).
E poderíamos perpassar todos os evangelhos e, surpresos, poderíamos numa frase repetir: Não fostes vós que me escolhestes, fui eu que vos escolhi. A iniciativa é sempre de Deus que nos amou primeiro! (1Jo 4,19). Não fomos nós que amamos a Deus, mas ele nos amou primeiro. Nisto consiste a sua inacessibilidade.
É a narrativa do encontro onde a iniciativa não está na possibilidade da pessoa. No encontro somos encontrados, não encontramos. No encontro chegamos sem depois, chegamos sempre tarde.
Essa impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nos achegarmos a ele diz uma realidade absolutamente positiva: O Senhor nos amou antes de toda e qualquer possibilidade nossa; que ele veio a nós a partir dele mesmo; que ele nos tocou; que ele nos veio livremente ao e de encontro. Nenhuma possibilidade da nossa parte de buscarmos; ele nos buscou, nos tocou, isto é, ele nos amou primeiro. A inacessibilidade de Deus como encontro está no amor.
O encontro, como antecipação de Deus, aparece na homilia 79 de Mestre Eckhart quando pergunta:
“Então podereis dizer: ‘Onde está este Deus a quem todas as criaturas perseguem, de quem possuem seu ser e sua vida?’ Falo com gosto da deidade, pois toda nossa bem-aventurança eflui dali – O pai diz: ‘Meu filho, vou gerar-te hoje no resplendor dos santos’ (Sl 109,3). Onde está esse Deus? ‘Eu estou detido ali na plenitude dos santos’ (Ecl 24,6) Onde está esse Deus? No Pai. Onde está esse Deus? Na eternidade. Ninguém jamais poderia ter encontrado a Deus, como diz o sábio: ‘Senhor, tu és o Deus abscôndito’ (Is 45,15) Onde está esse Deus? Exatamente como um homem que se esconde, mas aí tosse de leve e com isso denuncia a si mesmo, assim também fez Deus. Ninguém jamais poderia ter encontrado Deus; mas agora ele mesmo se denunciou”6.
A inacessibilidade como denúncia de Deus de si mesmo, é o que Nicolau de Cusa assim expressa: Deus est non aliud (Deus é não-outro)7. Isto é: Deus é tão diferente de e ao mesmo tempo não é diferente de, tão próximo de nós, tão um de nós, tão anterior a nós que dele nem sequer podemos dizer que ele é inteiramente diferente, outro que nós mesmos! Deus est non-aliud = Radical-Outro! O radical-outro diz do modo da antecipação de Deus. Não apenas toma a iniciativa, não apenas se antecipa, não apenas nos amou primeiro, mas até nos espanta o modo como ama por primeiro. Na antecipação do amor ele se fez não-outro.
O encontro, como antecipação de Deus, por ele nos ter amado primeiro vem dito por Nicolau de Cusa como: Deus est non aliud. Deus é não-outro8. Isto é: Deus é tão diferente de e ao mesmo tempo não é diferente de, tão próximo de nós, tão um de nós, tão anterior a nós que dele nem sequer podemos dizer que ele é inteiramente diferente, outro que nós mesmos! Deus est non-aliud = radical-outro! O radical outro diz do modo da antecipação de Deus. Não apenas toma a iniciativa, não apenas se antecipa, não apenas nos amou primeiro, mas espanta o modo como ama por primeiro. Na antecipação do amor, ele se fez não-outro.
O não-outro é palpável, perceptível, no mistério da encarnação. Deus nascido da mulher torna-se tão papável, tão visível, tão audível que já não falam mais profetas, mas o Filho como nosso filho. A criança envolta em faixas e deitada numa manjedoura é o não-outro! O menino envolto em faixa e deitado numa manjedoura é a luz que brilha nas trevas, na escuridão da noite do medo, das incertezas humanas, dos conflitos e desânimos. A criança envolta em faixas e deitada na manjedoura é singeleza de Deus, simplicidade de Deus, pobreza de Deus, nobreza e ternura de Deus. O recém-nascido, carne da nossa carne, osso dos nossos ossos, sangue do nosso sangue, é antecipação, é o amor livre e gratuito, visibilizado no meio de nós: não-outro!
O não-outro é a inacessibilidade! Ele se tornou acessível, tão acessível a ponto de nós o podermos chamar de Abba, o podermos pegar na mão e comer, fazer Dele o que bem quisermos. Se assim nos é dado fazer é porque ele gratuitamente, livremente se nos deu, na nossa humanidade e fragilidade. Essa gratuidade não é nossa conquista, não é nosso domínio, não o é porque ainda de fato não encontramos um meio de dominá-lo, mas porque pertence à essência íntima da gratuidade da liberdade de encontro.
Inacessibilidade de Deus porque amou antes que fosse amado, desejou antes que fosse desejado, tocou antes que fosse tocado, veio ao encontro antes que fosse percebido. E tudo gratuitamente, sem desejo de ser correspondido, sem cobranças, sem obrigações, sem arrependimentos, sem cobranças de ser amado, sem nada que não conotasse apenas que livremente, gratuitamente ama.
A impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nos achegarmos a ele diz, então, uma realidade absolutamente positiva: que ele nos amou antes de toda e qualquer possibilidade nossa; que ele veio a partir dele mesmo; que ele nos tocou; que ele nos veio livremente ao e de encontro. Isto é: que, se ele se nos tornou acessível, tão acessível a ponto de nós o podermos chamar de Abba, é porque ele gratuitamente, livremente se nos deu. Essa gratuidade pertence à essência íntima da gratuidade da liberdade de encontro. Nesse sentido: a resposta que nós vamos dar a Deus, o nosso sim do encontro é também inacessível ao próprio Deus, pois, o amor do encontro jamais pode ser possuído, conquistado como uma coisa sobre a qual tenho a partir de mim um poder e domínio! É inacessível, pois trata-se de doação livre de benevolência.
Diante da doação livre de benevolência, São Francisco diz: Portanto, “ó filhos dos homens, até quando tereis pesado coração?” (Sl 4,3) (Adm 1). Como se dissesse: será que não se percebe que a única possibilidade nossa de ver a Deus inacessível é gratidão profunda diante desse amor humilde de Deus que vem de encontro?
Gratidão é próprio de quem se apercebe agraciado, cuidado, acolhido. Gratidão nasce em quem foi e é amado gratuitamente. Um amor sem porque, sem para que, sem justificativas, sem saber por que amou. Ama! Quem se apercebe de tal cuidado, de tal graça, de não ser merecedor de tal graça e de tal acolhida, da gratuidade do amor, é tocado pela gratidão que o não-outro suscita. A suavidade do coração-doação de livre benevolência busca a correspondência amorosa. Correspondência como busca do mesmo modo de amar na liberdade, na gratuidade.
Com outras palavras: a inacessibilidade num sentido rigoroso e absoluto só pode se referir ao fenômeno de encontro de pessoas: na doação da liberdade.
Por isso atitudes como essa: prove que eu creio; quero ver como é isso; é impossível de compreender, desânimo etc. etc… são todas atitudes de quem acha que é de sua competência poder fazer o encontro acessível a partir de si. O encontro só é acessível na recepção grata e humilde de amor.
Tu Senhor, palavra eterna e criadora, esperança e o esperado das nações, o implorado por todas as gerações és agora, hoje e sempre o Emanuel, Deus conosco; palavra visível, princípio, início, s
entido de tudo o que somos e temos! Palavra não mais anunciada pelos anjos, nem pelos profetas, mas viva e visível, audível, no meio de nós como palavra criança. Palavra sem força, sem poder, sem grito, sem som, apenas gemido e silêncio na criança que dorme.
Tu Senhor, palavra eterna criança, criadora de um novo céu e uma nova terra não mais te imploramos, nem sequer te buscamos, nem mesmo te nomeamos. Silenciosamente apenas te olhamos, te admiramos, te cuidamos, te reverenciamos. Pois, como a um filho te ouvimos e te carregamos com nossos olhos, em nossos braços, em nosso regaço.
2. Da jovialidade
Diz o apóstolo: Embora fosse de divina condição, Cristo Jesus não se apegou ciosamente a ser igual em natureza a Deus Pai. Porém, esvaziou-se de sua glória e assumiu a condição de um escravo fazendo-se aos homens semelhante. Reconhecido exteriormente como homem humilhou-se, obedecendo até à morte e até a morte humilhante numa cruz. (Fl 2,6-11)
A cruz como jovialidade da gratuidade na finitude – O cristianismo anuncia o sentido da cruz. Como? Pelo “mysterium paupertatis”, que é a encarnação, eucaristia e cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. O rei da glória não achou coisa mais preciosa do que a condição humana-cruz, por isso deixou tudo o que era glória, onipotência…, se fez homem.
A pobreza “evangélica” é o sentido do ser amado, vivido, realizado e ensinado por Jesus Cristo confirmado pela morte na cruz. Esse sentido se chama pobreza porque o seu modo de ser pode começar a ser descrito como: “sine proprio”, sem o próprio. Costuma-se entender esse sem o próprio como nada possuir, isto é, nada ter, nada poder, nada ser. Essa compreensão usual deixa escapar um ponto essencial, pois “sine próprio” não diz nada ter, nada poder, nada ser. Diz antes: tudo ter, tudo poder, tudo ser “sine próprio”, isto é, somos tudo porque tudo recebemos; estamos na imensa fluência do Pai, somos unos com ele; inteiramente dispostos, abertos, embalados, sustentados por, pulsando, agindo, pensando, sentindo, sendo nele, com ele, por ele. Essa sintonia, essa união, esse com-o-Pai, esse ser-no-Pai, é a essência, a identidade do homem, a sua grandeza, a sua imortalidade. É a inocência originária, Adão no Paraíso, total obediência à vontade do Pai.
A nossa dificuldade é entender com precisão esse modo de ser originário, pois o entendemos já a partir do modo de ser onde não há mais essa obediência paradisíaca. Entendemos esse ser-no-Pai como se fosse a realização plena do estado de onipotência, onisciência, do bem-estar material e “espiritual” do humanismo super-homem. Pensamos: Adão não morria, não adoecia, não precisava trabalhar, podia tudo o que queria. Era realizado! … E se a “coisa” fosse bem diferente? Se a realidade fosse assim que o homem originário morria, se machucava, envelhecia, tinha que trabalhar, se não comia tinha fome… Mas, então, onde está a sua grandeza, a sua imortalidade se ele era mortal como qual quer um de nós? A sua grandeza, a sua imortalidade estava em ele ser-um-com o Pai, com todo o seu entendimento, com toda sua vontade, com todas as suas forças, com todo o seu sentimento, com todo o seu ser.
Com infinita gratidão e amor tudo recebia como graça de amor do Pai. Esse encontro com o Pai, buscado, querido, trabalhado, acolhido e conquistado sempre de novo era a sua imortalidade; “Sine próprio”, isto é, nada ser, nada ter, nada poder a não ser pura e limpidamente encontro com o Pai. Essa existência interpretava todos os seres, todos os acontecimentos, todas as necessidades da vida e do universo, os trabalhava, os elaborava, os transformava, os dominava, os coordenava para um mundo e uma humanidade cada vez melhor: um novo céu e uma nova terra. Essa existência era força e dinâmica do encontro como Pai.
Um dia, porém, o homem quis mais. O encontro com o Pai era pouco. “O que me adianta o amor do Pai que me amou primeiro, se eu continuo morrendo, se continuo na dependência da minha mortalidade, se não sou como deuses imortal a meu modo? Ele não é amor? Por que me dá uma porcaria de encontro que não enche a barriga de nenhum mortal? Que ele me faça imortal, que ele me tire da cruz da mortalidade e assim prove que ele me ama realmente; só então acreditarei nele e o amarei”.
Foi então que a pobreza, isto é, a existência-encontro com o Pai começou a ser desprezada como indigna do homem, como algo que deveria ser combatido, até o dia em que Jesus Cristo carregando todas as “cruzes” (negatividades) do universo, esmagado sob o peso de mortalidade, na cruz, gritou ao Pai que o ama incondicionalmente.
Não é esta a identidade perdida do homem, muito querida por Deus? Não é em Jesus Cristo, na cruz, que o homem se encontra com a sua origem mais originária: a semelhança com Deus? Pois então se alguém quiser ser discípulo dele, está na necessidade de negar-se a si mesmo, tomar sua cruz todos os dias e seguir o Senhor Crucificado.
A cruz é o símbolo fundamental do viver cristão!
Símbolo aqui não significa tanto um sinal, uma indicação, mas sim o vigor de identidade da realidade ela mesma. Como entender isso? Símbolo vem do verbo grego syn-bállein. Syn significa: recolhimento, ajuntamento no vigor do uno, na dinâmica do uno. Syn é a unidade interior de um movimento. A palavra bállein está na palavra moderna ballet, balística e significa lançar. Lançar como no movimento do ballet. Os elementos do ballet se lançam em diferentes movimentos, posições, abrem-se, fecham-se em círculos, formando sempre de novo diversos caminhos, novas constelações de movimento. É o movimento do lance, da jogada, o bállein.
No entanto, em tão diversas modalidades de movimento, em tantas diferenças há sempre uma coerência que une, ordena todos esses movimentos na unidade dinâmica, precisa e graciosa que não é nenhuma coisa, não é nenhuma norma, mas sim o vigor reinante na totalidade do ballet: o syn. Syn é, pois, o fundamental da vida do ballet.
Nossa vida é também um ballet. Fazemos isso e aquilo. Lançamo-nos nisso e naquilo, de vários modos, de diferentes posições… O que une todas essas diferenças na unidade interior do fundamental da nossa vida, como seguidores de Jesus Cristo? A jovialidade da cruz!
Jovialidade aqui não deve ser entendida como alegria do sorriso da publicidade, nem como aquilo que se opõe a tristeza e a dor. É antes sinônimo de cordialidade.
Jovialidade vem da palavra jovial + idade. “idade” significa: a essência, a força, o vigor de alguma coisa. Jovialidade é, pois, o vigor, a essência do ser jovial.
Jovial por sua vez não deve ser entendido no sentido de um sujeito sempre sorridente, uma espécie de bobo-alegre. Jovial vem de Jovis. Jovis é Deus, o divino. Pois Jovis é o Deus supremo dos gregos, o Deus da força do dia.
A palavra juventude vem também de Jovis. Juventude aqui não deve ser entendida como qualidade de uma idade biológica. Antes devemos interpretar a juventude a partir da jovialidade. É jovem não aquele que tem idade nova, mas sim aquele que tem o vigor de Jovis, o vigor de Deus. E nesse sentido que Deus é aquele que alegra a nossa juventude, isto é, a vitalidade do nosso ser.
Jovialidade é, portanto, o vigor de Deus, o modo de ser específico de Deus, a qualidade de Deus. Como é esse modo de ser de Deus, o modo de ser da jovialidade? É como a cruz de Jesus Cristo.
Como é a cruz de Jesus Cristo? O que nos diz a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo?
A cruz consiste na condenação da parte de Deus do próprio empenho da cruz. O Crucificado se sente rejeitado por Deus: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?
Mas, é nessa terrível e cruel condenação que está a jovialidade? O que se deu então na cruz de Jesus Cristo para ser recordação, isto é, o reviver da cordialidade, participação da jovialidade?
No momento da rejeição, Cristo nada mais tem de si, tudo nele é sem valor, a própria autenticidade, o próprio sacrifício. Nessa total pobreza, sem direitos, sem méritos, Jesus Cristo tenta doar-se ao Pai que o condena. Suspenso entre o céu e a terra, sem terra e sem céu, sem Deus, ele tentando só amá-lo, gratuita, cordialmente, apenas atraído pela afeição, sem por que, sem nada saber, só, amor: Nas tuas mãos eu entrego o meu espírito.
Imitar assim, re-produz o modo de ser de Deus; amar assim do mesmo jeito que Deus ama todos os seres. Deus nos ama, não porque somos bons, não porque lhe retribuímos o bem, mas apenas, simplesmente, porque ele e bom. No instante em que Cristo imita o Pai e o ama apesar de, por causa da condenação, Deus diz: Eis o meu filho que tem o mesmo modo de ser do meu amor; eis o meu filho que ama como eu amo, na jovialidade, na gratuidade, na cordialidade de ser. Eis a revelação do meu amor.
É esse amor que é a jovialidade, é esse amor que dá o ser, a vida a todas as coisas, que tudo conserva, faz crescer, se consumar no mistério de ternura e benignidade da Vida, que dá sentido à morte, ao sofrimento, salvando tudo como a manifestação do amor de Deus. Essa jovialidade de amar nada exige, de nada se faz senhor, não se eleva, apenas ama, livre, gratuitamente como a mãe ama o seu filho. Esse modo de amar é humildade de Deus, a servidão, o servir, a submissão de Deus no amor. Por isso, Deus é o servo e o súdito de toda humana criatura. E aquele que o imita, que tenta ser do mesmo jeito, é o servo, o submisso, o humilde, o irmão menor de todas as coisas.
A cruz é o desabrochar da ex-sistência de Jesus Cristo, o radicalmente sem por que, sem para quê, abertura originária como o medium da acolhida, a gratuidade. Esse medium, a gratuidade é o medium do Pai: Eu e o Pai somos um.
Mas o que é afinal a gratuidade? Não é possível responder a essa pergunta, porque a gratuidade não é como algo, alguma coisa. Ela só é na concreção como vigor e pudor da própria concreção: a jovialidade. Na impossibilidade de dizer o que é a gratuidade, deixemo-nos referir ao aceno da jovialidade como o risco de dizer demais ao nada dizer.
“A rosa é sem por quê. Ela floresce ao florescer”, é o verso de Angelus Silesius.10 A rosa aberta sem por quê no orvalho da manhã: a alegria que acolhe o coração do mortal no frescor e na nascividade da inocência matinal. Por que a rosa e útil ao homem, por que o homem descansa, por que se alegra na sua cercania? O mortal descansa, respira mais livre, se alegra, renasce, porque é acolhido e recolhido no desvelamento da inocência da natureza: no recato e na jovialidade de ser. A natureza aqui, no entanto, não é uma região do ente em oposição ao homem. natureza é a nascividade, a liberdade do mistério. E a própria estrutura da presença que constitui o frescor, a limpidez, a inocência, a transparência e a graça de todas as coisas. É, a partir dessa liberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, o rigor, a coragem, e sinceridade: liberdade do mistério e a jovialidade de ser.
A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa, não se ensoberbece, não é desconte, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor; não se alegra com a injustiça, mas compraz-se na verdade: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7). Isso é a jovialidade, o aceno de gratuidade, a referência da essência do mistério que perfaz a presença de Deus: a vontade do Pai. É só nisso que é tudo, apenas nisso que é o modo de ser de Deus, e nisso que consiste e pobreza evangélica ou pobreza em espírito.
Se é assim, a vontade do Pai, a vigência de Deus, a pobreza evangélica é como a rosa, sem por quê. O seu poder não é poder de dominação, mas a presença acolhedora da gratuidade que tudo libera e vivifica na ternura, no vigor e no recato de sua jovialidade. Por isso, ao se dar na gratuidade não humilha, não se gloria, não domina o agraciado como doador, como superior, mas ao se dar se retrai na sua humildade com recato, qual um servo para com o seu senhor! É a sua única “dominação” é a limpidez da sua gratuidade na inocência nasciva, que se expõe como graça, como liberdade da doação.
A revelação do mistério dessa jovialidade do amor de Deus, e Deus do de amor, é a cruz de Jesus Cristo. Portanto, longe de ser um “masoquismo” da passividade religiosa, a cruz é a exposição originária do manancial da vida, na limpidez e no vigor de sua inocência. Por ser a cruz exposição do vigor da inocência originária do mistério, ela está disposta simplesmente ali, sem nenhuma defesa, abandonada: a liberdade da gratuidade. E isto é o poder da autofidelidade do mistério, o poder de sua auto-identidade: ele pode ser ele mesmo e nada mais.
A acolhida da jovialidade do mistério é ser-criatura. Ser-criatura é ser irmão de Jesus Cristo, e saber, ser como ele, Filho do Pai, da vontade do Pai, isto é, do mistério da gratuidade na gratuidade do mistério. É ser a partir e dentro do medium de liberdade, ter a mesma natureza, isto é, nascividade, na qual o Pai e o Filho e a criatura são recolhidos na referência do mistério.
É na gratuidade do mistério que tudo floresce singelo na perfeita alegria de ser: na graça. E, na graça dessa jovialidade, a dor da Terra dos homens é acolhida como encarnação, como ósculo de reconciliação do céu e da terra, na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O que é a gratuidade? Na impossibilidade de dizer o que é a gratuidade, silenciemos dizendo na singeleza: Ela é a jovialidade, é cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, é pobreza evangélica.
3. Da casa da gratuidade
A palavra de Jesus no encontro e na jovialidade repercutem de modo todo próprio.
Um pai tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: pai dá-me a parte da herança que me cabe. E ele repartiu a sua herança. Poucos dias depois o filho mais novo reuniu o que era seu e partiu para um país distante, onde dissipou a sua fortuna, vivendo dissolutamente. Depois de ter esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele começou a passar penúria. Foi pôr-se a serviço de um dos habitantes daquela região, que o mandou cuidar dos porcos. Desejava fartar-se das vargens que os porcos comiam, mas nem mesmo isso lhes davam. Então caiu em si e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados”. Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro abraçou-o e cobriu-o de beijos. O filho disse ao pai: pai pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado de teu filho. Mas o pai disse aos servos: trazei de pressa a melhor túnica e vesti-o; colocai um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o; comamos e festejemos. Este meu filho estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi encontrado. E começaram a festa. O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que estava acontecendo. Ele explicou: teu irmão voltou e teu pai mandou matar um novilho gordo, porque o reencontrou são e salvo. Encolerizou-se e não quis entrar. Mas seu pai saiu e insistiu com ele. Então ele respondeu ao pai: Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou este teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado. Disse-lhe o pai: Filho tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado (Lc 15,11-32).
Acostumamo-nos à exortação, à convocação e à conversão que o texto provoca; e, assim, recordamos o distanciamento, o estar longe da casa, de ter esbanjado a herança de filhos de Deus que nos cabia; diante da narrativa somos conduzidos ao retorno, somos aqueles que no arrependimento de termos vivido dissolutamente agora voltam para o aconchego do perdão e da misericórdia. Mas dissemos tudo da parábola ouvida?
Jesus se encontra com os pecadores e faz refeição com eles, é misericórdia para eles. Jesus visita os pecadores e se senta à mesa com eles, se faz misericórdia. É diante dos pecadores e dos fariseus e mestres da Lei que Jesus conta a parábola do pai que tinha dois filhos.
A família é tudo no tempo de Jesus: lugar de trabalho e sobrevivência, fonte de identidade, garantia de seguridade e proteção. Era muito difícil sobreviver fora da família. Mas também era muito difícil uma família subsistir isolada das demais. As aldeias eram formadas por famílias unidas por laços de parentesco, de vizinhança e solidariedade. Juntos preparavam os casamentos de seus filhos, se ajudavam mutuamente para as colheitas, para reparar os caminhos, se uniam para proteger a viúvas e os órfãos. Os problemas e os conflitos familiares repercutiam na aldeia. 11 Quando Jesus começa a falar, todos sabem das dificuldades, mas o pedido do filho mais novo é imperdoável. Ao exigir a parte de sua herança, ele está declarando a morte de seu pai, rompe a solidariedade da família e joga por terra a sua honra. Como um pai vivo vai repartir a sua herança? Como dividir a herança colocando em perigo a sobrevivência de sua família? O que o filho mais novo pede é uma loucura, um disparate.
E o pai? Nada diz. Respeita o pedido descabido do filho e reparte a herança. Que tipo de pai é esse que não impõe a sua autoridade, que não exige do filho que permaneça em casa? Como pode aceitar a loucura do filho perdendo a própria dignidade e colocando em perigo toda a família?
Num país distante, atingido pela fome, só, sem família, sem proteção, termina como escravo de um pagão cuidando de porcos. A sua degradação não poderia ser maior: sem liberdade, sem dignidade alguma, numa vida infra-humana em meio aos animais impuros. Ao trabalhar com animais impuros, nem pode comer o que comem esses animais impuros. A casa paterna, nesta situação, começa a receber contornos vivos e familiares.
Toca-nos profundamente a veneranda figura do ancião que vê o filho quando ainda está longe, distante do vilarejo e invadido de compaixão. A compaixão transformada em corrida de encontro. Esquecendo a sua dignidade diante das outras famílias da aldeia, abandona a casa, o recinto familiar, corre ao encontro de braços abertos e com beijos. Não deixa que o filho permaneça prostrado a seus pés, mas o beija efusivamente esquecido do estado de impureza em que ele se encontra. O amor não espera, corre, abre os braços, cobre de beijos mais que o amado a sua amada, a amada ao seu amado. São beijos conforme o Evangelho de pura compaixão, sem paixão. Uma mãe gerando novamente o filho.
Ao voltamos nossos olhos para a cena, vemos o filho distendendo a sua vida diante do pai; não humilhado, mas humilde. A transparência da veste do filho na pintura de Rembrandt deixa ver a alma desejosa do coração paterno.12 Não ouve do coração paterno nenhuma afirmação: finalmente você reconheceu, finalmente você voltou! Não! Nada! Nenhuma palavra de interrogação, nenhum porque, nenhuma satisfação, nenhuma cobrança, nenhum sinal de desgosto, nenhuma repreensão, nenhuma expressão de desapontamento, nenhuma interjeição, nem mesmo qualquer coisa que pudesse insinuar: por que fizeste isso? Não! Nada! Também não: como é bom vê-lo! Nada! Nem mesmo diz: eu aceito a você, que bom que você voltou, eu te perdôo. Nenhuma palavra ao filho. É que o amor não interroga, não sabe do por que, não tira satisfação, não cobra, não repreende, não expressa desapontamento. O amor é gratuidade, é jovialidade, não tem tempo para a interrogação.
E mesmo, porque todas as palavras seriam superficiais demais para dizer, expressar proclamar, cantar o transbordamento do coração do velho pai. O coração cheio de misericórdia, o coração que era só misericórdia. Ele, o velho ancião, nada diz ao filho. No amor, na jovialidade, na gratuidade a presença, a proximidade é tudo, mesmo a palavra chega depois.
Os beijos e abraços maternos, nascidos de entranhas, são diante de todo o povoado sinais de acolhimento, perdão, e, ao mesmo, tempo proteção e defesa.
E nós que ainda vemos como o pai corre, como abraça e como cobre o filho de beijos, ouvimos o silêncio próprio de Deus, onde tudo é somente acolhimento, receptividade, vida pulsando, puro encontro, amor, gratuidade. A palavra vem depois do silêncio, do encontro, depois do face-a-face, depois de olhos nos olhos. Só então, depois de tudo acolhido, recolhido, tudo abraçado, tudo beijado, depois de tudo ser somente amor-liberdade, gratuidade, rompe-se o silêncio:
Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver: estava perdido e foi encontrado.
A melhor túnica, anel no dedo, sandálias nos pés, novilho gordo… sim, tudo para restaurar a dignidade de filho dentro da família. A melhor túnica da casa, provavelmente a do próprio pai;13 o anel no dedo, pois lhe confere mais uma vez a dignidade de filho; e o calçado nos pés, porque é novamente um homem livre e não escravo. Mas também é necessário refazer a dignidade do filho, agora na família e na aldeia. Organiza a festa, um grande banquete para todo o povoado: matar um novilho. Matar um novilho entre a família camponesa da Galiléia era raro e muito dispendioso. Mas a dignidade do filho, a expressão ilimitada, infinita de contentamento, tudo vale. Tudo é celebração, das mais nobres, das mais finas, das mais delicadas, a celebração da gratuidade. Chegou o filho amado! Só o amor é capaz de fazer reentrar o filho na casa, na habitação da jovialidade. E na festa mais uma vez se sente como o pai sai de si, dá de si, se doa, se presenteia, não se resguarda, não se cuida, mas é todo cuidado, todo desvelamento, todo recepção, todo intimidade, todo dado, doado. É só gratuidade! Tudo porque este meu filho estava morto e tornou a viver: Estava perdido e foi encontrado.
O texto da Escritura continua e encontra o filho mais velho fora de casa. O filho mais velho estava no campo. Ao voltar …encolerizou-se e não quis entrar.
Infelizmente faltava o filho mais velho. Chegou à casa ao entardecer, depois de um dia cumprindo fielmente seu trabalho. Ao ouvir a música e as danças e saber da volta do irmão, fica desconcertado. A volta do irmão não lhe traz alegria como a seu pai, mas ressentimento. Fica de fora, não participa da festa. Nunca tinha saído de casa como o irmão, mas agora se sente um estranho diante da família e dos vizinhos reunidos para acolher o irmão. Não havia se perdido num país distante, mas se encontra perdido em seu próprio ressentimento.
Incomodado com a medida sem limites do pai em relação ao irmão, rejeita o convívio amoroso e livre. Rejeita o amor próprio do pai e começa a reivindicar. Mora com o pai, mas não tem a magnanimidade do pai, o coração misericordioso do pai. Os anos todos passados na intimidade do pai não o fizeram como o pai na pulsação, na vibração de um amor-livre, na gratuidade, na cordialidade; gratuidade que enche e pervade todas as coisas e todos os momentos de encontro e desencontro.
E lá vai o pai mais uma vez! Mais uma vez deixa a casa, mais uma vez corre ao encontro, e convida o filho para que entre na casa. Não grita, não dá ordens. Como uma mãe, mais uma vez abraça e cobre de beijos, suplicando para que entre e participe da festa. Abraça e beija a estreiteza, a não liberdade do filho mais velho.
O filho não se deixou tomar pela medida da desmedida da gratuidade do pai:
Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou este teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado.
Uma explosão de rancor, dureza, fechamento, mesquinhez, apesar de trabalhar e participar cotidianamente da vida do pai. Acabou não vivendo em família, na familiaridade, não convive! Passou a vida cumprindo ordens do pai como um escravo, mas não soube desfrutar de seu amor como filho. A sua vida de trabalho sacrificado endureceu seu coração. Humilha o pai e denigre o irmão, denunciando a sua vida libertina com prostitutas. Apesar de tão certinho em tudo fazer, carece da alma paterna. Não entende a cordialidade do pai em relação ao irmão morto. Ele não sabe, como o pai, acolher e perdoar, isto é, não ama como ama o pai, na gratuidade, na jovialidade.
E o amor-liberdade o cobre, então, de abraços e beijos, lhe fala com uma ternura especial. O chama de teknon, que quer dizer “meu querido filho”, ou “meu menino”. Com o coração de pai ele vê tudo diferente, pois o filho que chegou de um país distante não é um depravado, um libertino, mas sim o filho morto que tornou à vida; não é o desgarrado, não é o esbanjador, não é o prostituído, ele é filho! Por isso, diz: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado. Nada é para mim, tudo é para ti. Nada me pertence, tudo é teu. Eu nada tenho, tudo é teu. Tomei do que é teu porque aquele que é teu, o teu irmão, o morto, voltou a viver; aquele que é teu, o teu irmão, aquele que se perdera foi redescoberto. Nas palavras do pai ecoa um silêncio que leva ao espanto, reverência e admiração! Perdemos as palavras, e vemos o amor das entranhas, a gratuidade, a jovialidade!
A parábola não fala dos dois filhos, nos fala do Pai dos dois filhos. Não fala das desventuras e fechamento dos dois filhos, mas da magnanimidade, da generosidade, da nobreza, da ternura, singeleza, cordialidade, da jovialidade, gratuidade, do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Com outras cores e gestos, o Deus amor-liberdade, sai sempre da própria casa, ora recebendo de braços abertos, estreitando ao peito e cobrindo de beijos o mais novo; ora saindo da casa para encontrar o mais velho, ensimesmado, e dizer: tudo te pertence; ora reconhecendo o filho quando ainda está longe, sentindo compaixão, correndo e estreitando-o junto a si, como se desejasse mais uma vez colocá-lo dentro de seu próprio seio e gerá-lo qual mãe; ora saindo da casa para acordar a quem está adormecido de sua pertença como filho.
Por mais que amássemos nossos filhos, nós não conseguiríamos ser essa explosão de afeto, cuidado, ternura; não seríamos essa arrebentação, essa explosão tão delicada e cuidada. Não seríamos jamais esse amor-liberdade, essa jovialidade, gratuidade! Só Deus pode ser assim. Talvez Lucas tenha dado um pouco de vida, cor, gestos, palavras, para entrevemos ali o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo: a gratuidade, a jovialidade que nos sustenta, revigora e deixa-ser. Deixa ser na gratuidade de ser!