A formação permanente na Vida Consagrada Franciscana é viver a nossa vida de todos os dias, permanecendo, diligentemente, no cuidado e no interesse de ser cada vez mais Irmãos Religiosos Franciscanos.
Por isso, a formação permanente, quando referida à Vida Consagrada Franciscana deve ser entendida num sentido todo próprio, diferente ao do sentido usual. No entanto, entender a formação permanente num sentido todo próprio, diferente ao do sentido usual, requer trabalho de reflexão, principalmente nos dias de hoje, onde temos um outro conceito de formação.
O conceito usual da formação permanente é a formação que recebemos depois de completada a formação inicial. Por isso, a formação permanente nesse sentido é uma formação complementar, que continua a formação recebida, atualizando-a, completando-a, aperfeiçoando-a, para não se ficar atrasado e obsoleto. Nesse sentido há pessoas que não gostam da expressão “formação permanente” e preferem a formulação “formação continuada”. Formação aqui se entende, antes de tudo, como cursos de aquisição do saber teorético e prático, na cultura, na profissão, na aptidão técnica. E o meio usado aqui para a aquisição do saber é a informação e treinamento, ou melhor, adestramento.
O sentido da formação na formação permanente da Vida Consagrada é todo próprio. Por isso vamos tentar caracterizá-lo bem, com precisão.
Forma da palavra formação, é palavra latina. Não significa fôrma no sentido de moldura, encaixe ou mesmo configuração exterior. Significa essência. Essência é aquilo que constitui o próprio de um ser. Formação significa, portanto, essencialização, isto é, ser ou tornar-se próprio. Nesse sentido, formar-se irmão religioso quer dizer ser realmente, tornar-se irmão religioso naquilo que ele tem de mais próprio como religioso.
Examinemos melhor o que e como é o ser próprio, tornar-se próprio. Aparentemente ser e tornar-se são opostos. Dizemos: ser é estático. Tornar-se dinâmico. Ser é sem movimento. Tornar-se é movimento, é devir. Esse modo de sentir o verbo ser e tornar-se não é adequado à realidade. Na realidade nada há que não seja a dinâmica de um mover-se. Há mil e mil diferentes modos do movimento. O movimento físico de deslocamento de um lugar para o outro é um tipo de movimento. O estar parado num assentamento bem colocado, tinindo por assim dizer na dinâmica do estar ali é um outro tipo de movimento. Na realidade, ser e tornar-se dizem a dinâmica, o vigor de diferentes modos de movimentos, em cujo sentir percebemos a realidade como sendo ao mesmo tempo contenção do vigor e sua expansão: ser e tornar-se, isto é, “sendo” ou “em sendo”.
Por isso, para entender o que significa ser e tornar-se no sentido de ser e tornar-se próprio, é necessário examinar cada vez: de que movimento e movimento de que ente ou “sendo” se trata.
O movimento de uma pedra lançada no ar, que percorre do ponto de partida até o ponto de chegada uma distância, é ser e tornar-se: chama-se ocorrer. Sua dinâmica é ser ali simplesmente. Aqui há certamente um movimento. Mas o modo de ser do movimento é estar ali simplesmente a modo de ocorrer da pedra, lançada no ar.
O movimento de uma planta, que da semente se desenvolve numa árvore, é ser e tornar-se: chama-se vegetar. Sua dinâmica é evoluir.
O movimento de um animal, que nasce, cresce e se consuma, movendo-se conforme a necessidade seu instinto, na busca da sobrevivência, é ser e tornar-se: chama-se viver. Sua dinâmica é sentir.
A compreensão e o modelo de formação como treinamento, adestramento, disciplinamento de encaixe, de fôrma tem como pressuposição, não analisada de sua ‘teoria’ formativa, o modo de ser e tornar-se do ocorrer. Trata o ser humano como matéria física e sua informação.
A compreensão e o modelo de formação como desenvolvimento e “crescimento” espontâneo e natural tem como pressuposição, não analisada da sua ‘teoria’ formativa, o modo de ser e tornar-se do vegetar e sentir. Trata o ser humano como evolução, como vitalização.
O movimento do ser humano é todo próprio. Não pode ser compreendido por nenhum ser e tornar-se do outro tipo de movimento. Pois, o movimento próprio do ser e tornar-se humano é liberdade.
Mas, a liberdade, usualmente não é compreendida adequadamente. Pois, toda a dificuldade de compreender o modo de ser próprio de nós mesmos, isto é, a liberdade como essência do ser humano está no fato de, há muito tempo, termos entendido a liberdade a partir do modo de ser e tornar-se da ocorrência, ou no melhor dos casos, a partir do modo de ser do evoluir ou do viver vitalista, acima mencionados. Nessa maneira ‘tradicionalista’ de entender, a liberdade é antes de tudo estar livre de impedimentos; e se entendemos a liberdade como a dinâmica e força de espontaneidade e expansão natural para um determinado fim, entendemos a espontaneidade a modo de planta ou animal, portanto, a modo de evolução ou a modo de vitalidade.
Assim, se quisermos entender o que e como é a formação humana como essencialização, é necessário definir bem nitidamente em que consiste o movimento próprio do ser e tornar-se humano, chamado liberdade.
Portanto, definamos: o modo de ser e tornar-se da liberdade é o modo de ser e tornar-se do espírito. E a essência, isto é, o vigor todo próprio de ser do espírito consiste em CONHECER E AMAR. Portanto, o quê e o como da liberdade é conhecer e amar.
Conhecer e amar é o modo de ser e tornar-se que caracteriza o ENCONTRO. No encontro o conhecer não é propriamente saber. Não é possuir a certeza do saber. Portanto, não se trata de informação, de know how, de habilitação ou de competência. Não se trata de “saber é poder”, de “pode quem pode”. Trata-se antes de se dispor à revelação, trata-se de abrir-se à afeição do toque primeiro, anterior a mim, diferente de mim, que me vem de encontro, se desvelando na intimidade do seu mistério: é conascer para dentro do movimento condutor desse desvelamento.
No encontro amar não é cobiça da posse. É antes a atinência pura e afinada à grata recepção do que me vem de encontro como o inesperado do desvelamento do mistério e lançar-se de corpo e alma na disposição de identificação com o radical Outro.
Conhecer e amar, portanto, pressupõe como condição da sua possibilidade o OUTRO.
O Outro não é nenhuma coisa à mão, ou nenhum prolongamento de nós mesmos, mas sim PESSOA.
A essência da pessoa é TU. Quem é e como é Tu como Pessoa, isto é, o Outro, só se pode “saber” com precisão na radicalidade do encontro corpo a corpo, isto é, imediato com Deus.
É que o modo o mais evidente e intenso, sim claro desse modo de ser do encontro se dá no relacionamento pessoal de Deus com cada um de nós. Deus é o RADICAL OUTRO, que é “o mais íntimo do que o meu mais íntimo”, por Ele nos ter amado primeiro (1Jo 4,19).
Todos os outros variantes de encontro, mesmo na sua forma a mais deficiente e ‘decadente’, recebem o seu fascínio e o seu atrativo, porque de alguma forma são ecos e repercussões do Encontro, no conhecer e amar, do Radical Outro com cada um de nós.
Assim, no ser humano, FORMAÇÃO significa, na sua última instância, ser e tornar-se de corpo e alma “conhecer e amar” a Deus, recebendo com gratidão o “CONHECER E AMAR” do Deus que vem ao encontro de nós, se dando a nós inteiramente, amando-nos primeiro, para que fôssemos e nos tornássemos como Ele no “CONHECER E AMAR”.
Essa identificação, no “conhecer e amar”, com Deus implica “conhecer e amar” todos os homens, isto é, cada um, um por um, isto é, o próximo como mim mesmo, isto é, como Deus me “conhece e ama”. Daí o mandamento universal que expressa o ser e tornar-se próprio do homem: “Amarás ao Senhor teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente” e “amarás o próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-40).
Esta última parte “amarás o próximo como a ti mesmo” pertence ao ser e tornar-se próprio do homem no sentido geral. No ser e tornar-se próprio do ser CRISTÃO, ela se radicaliza e se transforma no Novo Mandamento: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Cf Jo 13,1-5; 12-17; 34-35). Esse ser e tornar-se próprio na radicalização cristã se chama Seguimento de Jesus Cristo como o processo de identificação com o Deus de Jesus Cristo. Sua aprendizagem se chama Discipulado.
O Sentido da Vida Consagrada é Seguimento e Discipulado de Jesus Cristo.
Formação na Vida Consagrada não é outra coisa do que essencialização, isto é, ser e tornar-se próprio no Seguimento e Discipulado de Jesus Cristo.
Tudo que o religioso consagrado faz e não faz, é e não é, seja qual for o nível de ser em que se ache, está a serviço de, em referência a, ou melhor, não é outra coisa do que exercícios, concretizações, momentos do ser e tornar-se próprio desse Seguimento e Discipulado.
A formação permanente na Vida Consagrada é, portanto, permanência na forma, isto é, no vigor essencial do Seguimento e Discipulado de Jesus Cristo, no “conhecer e amar”. Permanecer, no sentido de entrar cada vez novo e de novo na ação de ser e tornar-se e firmar-se, assentar-se no crescimento para “idade madura da plenitude de Cristo” (Ef 4,13).
O que, porém, deve ser entendido definitivamente e com precisão é o seguinte: que formar-se assim, tornar-se assim propriamente seguidor e discípulo de Jesus Cristo no “conhecer e amar” é uma tarefa e um engajamento altamente pessoal, e em sendo altamente pessoal, doação livre de corpo e alma, incondicional à pessoa de Jesus Cristo e à sua causa na sua totalidade. E que essa doação, esse engajamento incondicional é a tarefa oficial, a incumbência pública, dada pela Igreja (Corpo Místico de Cristo) ao religioso através do ato público de juramento na profissão dos votos religiosos.
Portanto, na nossa vida, na vida consagrada, portanto em tudo que a ela pertence de espiritual e religioso, não se trata de uma devoção ou piedade. Antes, pelo contrário, é o nosso trabalho oficial, público e profissional dentro da Igreja. Isto significa que o nosso primeiro e fundamental trabalho não são atividades “pastorais”, mas sim ser e tornar-se religioso consagrado. A nossa ação pastoral originária dentro da Igreja consiste em ser e tornar-se próprio como religioso consagrado.
Isto significa, por sua vez, que todas as nossas atividades referentes à nossa vida espiritual religiosa, todas elas, as orações, meditações, a vida “interior”, relacionamento pessoal com Deus, a busca da perfeição, a aquisição das virtudes, tudo, são tarefas específicas, oficiais e públicas, sim profissionais do nosso engajamento social na Igreja e no Mundo.
No momento em que nós religiosos negligenciamos esses exercícios espirituais, por mais ‘pessoais’ e ‘interiores’ que eles sejam, estamos pecando contra a comunidade universal, contra a comunidade do Corpo Místico de Cristo.
Isto significa que os religiosos não possuem mais a sua vida privativa no sentido usual. Tudo, quer vida particular, quer vida comunitária, quer vida pública, tudo, não é mais privativo e “pessoal” no sentido de ser meu. Tudo é de Cristo, isto é, do Corpo Místico de Cristo. Ser em tudo assim comunitário é a nossa realização pessoal.
Hoje a compreensão da formação permanente é de preferência a da FORMAÇÃO CONTINUADA. Continuada, porque continua a formação inicial. Nesse sentido, ninguém chamaria a formação inicial de formação permanente. Enquanto formação continuada da formação inicial, a formação permanente é acionada como cursos e encontros de aggiornamento e revitalização. Essa maneira de entender a formação permanente como continuada e de agenciar a sua realização em cursos e encontros de aggiornamento e revitalização pode ser muito útil, sim até necessária sob diversos aspectos. Só que talvez com essa empostação e compreensão não consigamos renovar-nos essencialmente na nossa Vida Consagrada nos dias de hoje, de maneira bem profunda e duradoura. E se não ficarmos vigilantes, podemos até nos desviar da questão crucial e vital da essencialização na forma, isto é, na essência da Vida Consagrada.
Essa compreensão da formação permanente como permanência na forma, isto é, na essência da Vida Consagrada deve estar sempre presente, quando lemos os textos fontes de São Francisco de Assis e estamos diante dos desafios à Vida Consagrada.