Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Como se fossem, Filosofia…

05/02/2021

 

Ensaios e anotações, amadores

Introdução

O que segue é coletânea de artigos, ensaios e anotações que querem ser da Filosofia. Querem, mas não podem, por serem diletantes e amadores. Daí o título e subtítulo desse trabalho.

O amador é quem ama. O amante. Ocasionalmente. Não oficial nem publicamente, mas às escondidas, sorrateiramente. Por isso, aqui os ensaios e as anotações amadoras são reflexões avulsas e ocasionais. Apenas lambiscam a beira já fria do mingau quente, por não conseguir encarar diretamente o tema no fervor da sua coagitação, de modo adequado e competente, sistemático, seriamente. Anotações desse tipo são úteis, quem sabe, somente para quem as rabiscou, e para quem, ao lê-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixão pela Filosofia. Complexo e paixão de busca da coisa ela mesma da Filosofia e do seu fascínio, sofridos pelo principiante e ou amador.

De que complexo e de que paixão se trata? Trata-se do rolo oculto no anelo de fundo da busca amadora. O que há ali no fundo da busca amadora? Há algo como medo de pouco saber, algo como complexo do aprendiz que não é especialista, de ser apenas iniciante e diletante. Mas há também ali, ao mesmo tempo, algo como ímpeto de inocência ingênua de um grande desejo. Desejo e vontade de se adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo a que a alma do amador anela, a saber, naquilo que a Filosofia lhe tem de mais próprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigência de exatidão objetiva e informativa que o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber exigem. E a tudo isso se acrescente o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com o saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria com paixão e sentimento. Trata-se de um humor perplexo, medroso. Humor que toma conta de todo e qualquer estudante de Filosofia que ama a Filosofia; de estudante e estudioso que se lança à cata de informações, cada vez mais numerosas, asseguradas, que lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante, documentado. E ao mesmo tempo se sente inquieto, como que tocado por outro hálito de fascínio. Fascínio e prazer de concentração no pouco essencial, de afundamento para a interioridade de uma intuição da verdade originária. Intuição que por instantes aparece como vislumbre de algo como vivência aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimensão inominável. As exposições que se seguem sofrem da ambigüidade desse humor angustiante do amador, um permanente iniciante, jamais iniciado; do estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua ignorância. Mas há ali, simultaneamente, esperança de que, mesmo também nessa perplexidade, possa estar atuando, talvez, por menor que seja, um hálito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemáticas tratadas nas reflexões, no desengonço e na imprecisão, característicos de trabalhos de amador.

O inte-resse dos termos fenomenológico e fenomenologia, aqui na nossa exposição, refere-se à corrente filosófica que historicamente teve início com Edmund Husserl sob a denominação de fenomenologia e que se manifestou em diversas escolas e inúmeros movimentos de fenomenologia. Na infindável série de nomes de filósofos e pensadores, de tendências filosófico-fenomenológicas, o nosso interesse gostaria de achar-se, por pouco que seja, dentro do que pensaram Edmund Husserl, Martin Heidegger e Heinrich Rombach, que usualmente são classificados como pertencentes à escola fenomenológica de Freiburg i. Br. E isto sob a limitação: ao usarmos termos como “fenomenologia” ou “fenomenológico”, não se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as seguintes reflexões gostariam de estar falando como que a partir do médium em que se acha essa corrente fenomenológica freiburguense, na medida em que, bem ou mal foi copiada, assimilada e compreendida por elas. Com outras palavras, os pensamentos válidos que ocorrem nas nossas reflexões foram tirados desses autores, ou mesmo são resumos de seus textos, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por causa da ignorância ou pouco volume do pensar.

Por isso, as interpretações de poucos e ocasionais citações dos textos desses autores que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotações devem ser controladas na sua exatidão e na sua validade, pois são na sua maioria “chutações” e simplificações de um amador. Se, porém, nessas “chutações” amadoras e amantes da causa da fenomenologia, houver alguns pensamentos válidos, eles apenas acenam para o que jaz depositado nos textos clássicos da fenomenologia e podem, quem sabe, ser úteis para os que sofrem das mesmas dificuldades e, no entanto, querem intuir, i. é, ir para dentro daquilo que é do fascínio e prazer da fenomenologia. Nessa perspectiva, em seus dados informativos, as reflexões limitam ao mínimo a exposição dos conhecimentos e do saber usual acadêmico sobre a fenomenologia.

Do Mito e da Arte

O título da nossa reflexão é Mito e Arte. A reflexão quer falar do Mito e da Arte. O tema é, porém, muito vasto. Por ser vasto, dificulta encaminhar a reflexão num determinado rumo. O tema Mito e Arte, na sua vastidão, pertence ao modo de ser da imensidão, profundidade e simplicidade da criatividade humana. Modo de ser esse, que perfaz a dimensão da experiência de fundo da existência a que pertencem Mito e Arte. É, pois, um tema ao qual se receia abordar. Assim, a nossa primeira reflexão é acerca do receio e da dificuldade de nos acercarmos do Mito e da Arte como tema de uma reflexão.

  1. Da dificuldade de se acercar do Mito e da Arte

A preposição de da reflexão que quer falar do Mito e da Arte pode significar sobre ou a partir de. Sobre significa acerca de. Acerca soa a cerca. Cerca se acerca, entra na cercania da coisa ela mesma, protegendo-a no seu lugar, para que ela possa surgir, crescer e se tornar ela mesma, na determinação da sua identidade. A cerca quando, porém, esquece a tarefa de ser guarda e proteção do que é, se torna prisão. Fecha e enquadra a coisa que cerca. A partir de significa ser a coisa ela mesma na sua autoidentidade. Para falar a partir da coisa ela mesma, é mister ser a coisa ela mesma na soltura da sua liberdade. Para isso, quem deixa ser a coisa ela mesma chamada Mito e Arte deve ser Mito e Arte simplesmente, “em pessoa”. Como Mito e Arte se referem às “coisas” do fundo do ser humano, e isto é uma coisa muito séria, a presente consideração gostaria de fugir da exigência desse tema, tentando de antemão se eximir do engajamento à causa, dizendo como entende a preposição de do título num sentido próprio. Para isso, usemos uma estória chinesa.

Naquele tempo um regente imperial, rico e poderoso, foi consultar aflito um velho mestre taoísta desdentado: “Mestre, o que devo fazer para sair de um impasse? Há tempo, comprei um filhotinho de dragão. Coloquei-o numa garrafa de jade. O dragão cresceu e ficou entalado na garrafa. Para tirá-lo, devo quebrar a garrafa. Mas ela é preciosa e é lembrança da minha falecida mãe. Mas se não a quebro, o dragão morre. O que faço?” O velho abriu a boca numa gargalhada sem dentes e lhe disse: “Meu filho, jamais coloques dragão em garrafa!”

A comparação manca, se não considerarmos a peculiaridade da nossa situação. No nosso caso, a fala é garrafa e Mito e Arte, dragão. Na estória, quem cresce e se entala é o dragão. Na fala sobre o Mito e a Arte, o que engrossa é a garrafa, reduzindo cada vez mais o vazio, o espaço do nada, e juntamente com o vazio mingua também o dragão. Mas filhotinho de dragão, dragão é. Por isso, por menor que ele seja, é sempre dragão, todo inteiro. Mas, se a garrafa se tornar maciça, dragão morre?  Não, morre a garrafa, pois deixa de ser garrafa para ser uma coisa grossa. Um bloco. É que a garrafa é à mercê do vazio do espaço que forma e sustenta suas paredes. Mas e o dragão? Transforma-se em múltiplos átomos infinitesimais e penetra em cada pedaço da ex-garrafa para ver se ali no interior de pedaços, sub-pedaços e micro-pedaços não sobrou ainda um quê de vazio, para então ali morar. Mas, e se também ali, de todo, se carecer do vazio? O dragão que ama o vazio se volatiliza e volta a ser ele mesmo, como era antes de ter-se inserido como doador do ser da garrafa. O vazio-dragão se retrai no próprio do seu ser, a saber, na sua imensidão, profundidade e unicidade criativa, i.é, na soltura absoluta da liberdade do seu ser. E essa soltura se chama sim-ples. De modo que lá onde há simplicidade há o ser da liberdade como realidade das realizações. Como a palavra realidade e realização vêm da res, e res em latim significa coisa, podemos dizer: realidade-realização é coisa. Assim, a coisa ela mesma da fala acerca do Mito e da Arte enquanto livres na soltura absoluta da sua realidade-realização, é a liberdade de ser, a autonomia da autoidentidade. Isso significa que a garrafa a tornar-se um bloco de coisa perde a identidade e de repente se acha envolta, impregnada até ao âmago de si mesma pelo dragão que ‘saltou’ para dentro de si, tornando-se ele mesmo na soltura da liberdade de ser, acolhendo a ex-garrafa como uma possibilidade da imensidão da generosidade-dragão. Assim a nossa reflexão estaria salva no bojo, ou melhor, no médium do dragão Mito e Arte. Mas tornar-se corpo maciço de uma reflexão séria, a ponto de se transformar numa compacta impossibilidade de uma fala que nada diz, é uma tarefa impossível, para essa nossa fala. Esta é no fundo tagarelice. Nem se quer uma garrafa é, pois nem se acerca nem fecha na sua indeterminação. Mas, e se a nossa fala não fosse garrafa, mas apenas uma pele, tão tênue, flexível e diáfana, pele a pele com o dragão, a crescer com ele e como ele?  Para ser tal material precioso, tão fino, tão nada, a fala deveria sair da mão de quem é afeito a Mito e Arte como seu genitor… O que não é o nosso caso. Na impossibilidade de ser maciça a ponto de fazer o dragão ‘saltar’ para a liberdade de si, mas também na impossibilidade de ser tão tênue, pele a pele, colada ao dragão, a presente reflexão na sua perplexidade, fala de Mito e Arte num sentido geral, um tanto vago, que insinua uma espécie de descompromisso de quem num tal assunto apenas sabe enfileirar considerações ab-errantes e a-beirantes. Aberrantes, porque andam errantes, sem bom rumo, abeirantes, porque ficam à beira, à margem do assunto, sem penetrar na tematização da essência da coisa. Nesse sentido, a preposição de significa assim, mais ou menos. Trata-se, pois, da abordagem do tema na ronda, a modo de falatório disperso ao redor de tema complexo, profundo, dificílimo de ser assimilado, por ser simples. Mito e Arte, mas também qualquer outro tema filosófico, é um caso sério demasiadamente quente para quem é diletante na causa chamada ‘coisa da filosofia’. O jeito é rondar, i é, circunvagar ao redor do tema, a modo de um gato acerca do mingau quente, a lamber à beirada do assunto[1]. Se descuidado não queimar a língua e tiver sorte, saboreie talvez por pouco e tênue que seja um gosto já um tanto esfriado do tema. Em que consiste essa circulação abeirante e aberrante, no nosso caso? Consiste em considerar o tema Mito e Arte, interrogando-me a mim mesmo, de que se trata quando escuto os termos Mito e Arte. Mas para que a nossa ronda abeirante não fique inteiramente sem rumo, coloquemos no centro das nossas circunvagações um texto. Trata-se de um texto, obra do Pensamento, que faz toar uma outra obra, de Artes Plásticas, de van Gogh, que pintou um par de sapatos da camponesa. O texto se encontra em A Origem da obra de Arte, de Martin Heidegger[2].

Diz Heidegger:

Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos  e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito  na iminência da morte. À Terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência[3]. Mas tudo isso, talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade.[4] É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da Terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao Mundo simples a proteção segura e assegura à Terra a liberdade da impulsão permanente.

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria, sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai a apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser[5]  a ele próprio.

Para não haver equívoco, nessa presente reflexão não se trata de expor os pensamentos do opúsculo A origem da obra de Arte, de Heidegger, nem de comentar o seu texto acima mencionado. Trata-se apenas de ter o texto como ponto de referência das nossas circunvagações diletantes acerca do tema Mito e Arte[6].

À primeira vista, o que aparece no quadro de van Gogh é simplesmente uma coisa, chamada sapatos. O que, porém, aparece na descrição de Heidegger do par de sapatos, pintado por van Gogh, não é mais apenas uma coisa, um utensílio, mas sim todo um mundo, uma paisagem humana, que mais tarde vamos chamar de existência camponesa. Isto significa que aquela coisa pintada por van Gogh, enquanto obra de arte, nos abre uma realidade toda própria da paisagem humana, o mundo da existência camponesa? Vamos a seguir examinar como de uma coisa como sapato, uma vez tocada pela Arte, pode surgir algo como paisagem da existência humana. Para isso, falemos primeiro da coisa chamada obra de Arte.

  1. A coisa

O título desse trabalho é  Do Mito e da Arte. A seguir, falemos primeiramente da Arte.

O que hoje, de imediato e na maioria dos casos, entendemos, quando ouvimos as palavras mito e arte, está assinalado nos dicionários. Simplificando ao máximo essas informações, podemos dizer: Mito é: narração dos tempos antiqüíssimos no início da nossa civilização, onde os homens conviviam com os deuses e efetuavam atos extraordinários como heróis, em contínuo contacto com a intervenção dos deuses para dominar e cultivar a Terra. E Arte é: expressão estética de idéias, vivências e sensações.

Mito como narração e Arte como expressão estética são produtos da realização humana. O Mito e a Arte como produtos da realização humana nos remetem ao homem, que através do ato de realização de si produz coisas da sua causa como narração e expressão. Temos assim o esquema expresso no modelo: sujeito Þ ato Þ objeto, nomeadamente, artista Þ ação criadora artística Þ obra de arte. Vamos chamar todo esse conjunto simplesmente de Arte. O conjunto esquemático sujeito-ato-objeto vale para toda e qualquer produção cultural. O que distingue em concreto a produção artística de outras produções culturais, portanto, a sua diferença, i. é, a sua identidade enquanto produção artística é o que vige, impera como caráter todo próprio no conjunto Arte. Convenhamos chamar essa vigência toda própria de essência da Arte. O verbo esse é do latim e significa ser (verbo). Assim, essência diz ência, i. é a dinâmica do verbo esse, do ser. A dinâmica de ser não é nenhuma coisa. Não pode ser, pois, captada no modo como captamos coisa, isso e aquilo. Trata-se, pois daquela presença, daquela pregnância, da tonância que determina o ser da Arte ou a Arte na dinâmica de ser: o próprio da Arte, ou o evento (Ereignis) da Arte[7]. Mas se dizemos que a essência da Arte não pode ser captada como captamos coisa, referimos essência de algum modo à coisa. Que realidade é essa, a coisa, para podermos dizer que a essência da Arte não é nenhuma coisa?

Essa pergunta aqui já antecipada pressupõe que, dentro do conjunto Arte, focalizemos o próprio, a essência da Arte em primeiro lugar, coisificada naquela coisa que denominamos obra de Arte. Perguntemos, pois, que coisa, ou melhor, que tipo de coisa é essa, a obra de Arte?

Entrementes para nós hoje, há coisa e coisa. Coisa, usualmente é objeto. Coisa como Objeto, em diferentes níveis, está, de alguma forma, referida ao projeto da ação e do saber do sujeto-homem. Coisa como Coisa se refere mais a um fato da natureza virgem, ainda intacta pela indústria humana. E em vez de objeto e coisa dizemos de um modo inteiramente geral algo. A coisa objeto e a sua coisalidade, e o fato natural, e o algo e suas coisalidades, o que é? Há algo anterior à coisa objeto (produto do homem) e à coisa fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas? Em alemão existem vários termos referidos ao que denominamos coisa, a res, a realidade e suas realizações: por exemplo, etwas (algo), das Seiende (o ente), das Sein (o Ser),[8] der Gegenstand (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding (coisa) e die Sache (coisa).

O ponto nevrálgico, a observar aqui, está nisso: nós usualmente pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisalidade, a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. De que se trata, pois? Tentemos dizer de que se trata, através de uma explicação. Com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação” contém sob a extensão da sua coisalidade todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo Homem”[9]. À coisalidade da classe “Coisa” pertencem primeiramente às “coisas produzidas pela Natureza e também os objetos acima mencionados[10]. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou inteiramente vazios de conteúdo ou prenhes de possibilidades concretas de conteúdo. Isso em português. Como acima mencionamos, em alemão, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Aliás, em português popular do Brasil, temos p. ex. troço, trem. Quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “abalado”, pois nos soam tão concretos e vivos que se tem a sensação de se ter a coisa ela mesma diante da gente, e no entanto quando se pergunta de que se trata, nada dizem, a não ser um vago indeterminado “algo”, embora diferente do algo, pois é vago e indeterminado a modo todo e bem concreto. Sem muita precisão nem certeza, possamos talvez dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisalidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo Homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de uma obra artesanal, feita à “mão”[11]; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse como “a coisa ela mesma”. Sache possui a mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heróica, mito, indicando as “coisas” todo próprias, referidas à tradição antiga, primitiva e originária no início da História.

É necessário não esquecer que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que acima denominamos de coisalidade. São portanto cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não é de precisão a gente chamar esses termos de classificatórios. Pois classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo” plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa, e no entanto não se iguala a ela. Por isso aqui em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua coisalidade. Mas, então, o que é Horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado podemos talvez dizer que Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm ao nosso encontro, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinação de ser. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. É o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto, e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicâncias”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicâncias, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber, como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicâncias de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa autoidentidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa perfilação única e singular do abismo insondável de ser. É provavelmente o caso da obra de Arte. Assim, é radicalmente diferente um bloco de cimento maciço opaco na sua coisalidade do ocorrer e a presença de uma obra de Arte na mundidade da sua densidade de ser. No entanto, pode-se dar em nós uma espécie de miopia, em relação à clareira do horizonte ou do mundo na sua mundidade. Nessa miopia, vemos tudo como coisas-bloco, uma ao lado da outra. Trata-se de uma impostação do nosso “ver”. Esse “ver”, ao ver os entes, inclusive a nós mesmos, vê tudo como essa “coisa” maciça, esse bloco em si, e o faz  sem nenhuma referência às estruturas e às texturas das estruturações do ente na sua mundidade, portanto apenas como isto e aquilo isolado ou ilhado em si. E isso de tal modo que a mútua relação entre os entes se estabelece a partir de fora, como relações acidentais que não dizem respeito à interioridade da coisa. Dito de outro modo, esse ver não vê a coisa na sua essência. E quem é o agente dessa impostação e dessa mútua relação entre os entes, que cria concatenações entre os entes-bloco? O sujeito homem que está “dentro” do horizonte p. ex. acima mencionado de algo (etwas) ou objeto (Objekt), a partir e dentro do qual capta o ente como ente-bloco, inclusive a si, portanto como este sujeito[12] (ou este grupo, este conjunto nós, vós, eles e elas como bloco), no qual reside um centro, um núcleo “espiritual” eu[13]. Assim, nessa impostação o que captamos da “coisa” ela mesma depende na última instância do interesse do sujeito que “vê” esta coisa, aquela coisa, este grupo e aquele grupo de coisas, conforme a perspectiva do interesse do “eu”. O horizonte, o mundo na sua mundidade se transforma no interesse, entendido como instância do eu subjetivo. Este se separa do ente que aparece como realidade em si objetiva diante dele e os atos do sujeito se tornam fio de ligação entre o objeto e o sujeito. Nessa impostação, o que denominamos obra de arte é uma coisa, produto da atuação do Homem, enquanto expressão do seu interesse subjetivo denominado interesse artístico-estético. O que comanda e dá o caráter todo próprio denominado artístico-estético é o interesse subjetivo do sujeito-homem. Por ser expressão do sujeito-homem, para compreender a obra de arte é necessário conhecer no sujeito artista coisas como a hereditariedade físico-anímica, as suas experiências, suas ideias e vivências, as influências recebidas do meio ambiente sociocultural, socioeconômico etc., expressas e exteriorizadas no produto-obra de Arte, tendo como meios dessa exteriorização diversos materiais, conforme as modalidades da expressão artística, como p. ex. na música, literatura, nas artes plásticas, no teatro, cinema etc.

Recordemos. Acima dissemos que a essência da Arte não é nenhuma coisa. Por isso não pode ser captada como usualmente captamos as coisas. Mas observando que há coisa e coisa, diferentes ‘tipos’ de horizontes na sua coisalidade, tentamos ver que os termos como algo, objeto e coisa, em alemão etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache, não indicam direta e propriamente isso ou aquilo, mas sim horizonte, mundo, ou melhor, mundidade dos mundos. Com isso, começamos a ver em concreto que é necessário ‘olhar’ a essência de modo diferente ao do modo usual de ver isso ou aquilo. Começamos assim a perceber que a essência da Arte, a saber, do conjunto artista (sujeito)Þ ação criadora artística (ato) Þ obra de arte (objeto) é, por assim dizer, envolvido no seu todo pela dinâmica da abertura da possibilidade de ser que denominamos horizonte, ou melhor, mundo. E, no entanto, apesar de sabermos de tudo isso, ao falarmos da “essência” da Arte, nos inclinamos a colocar a presença da essência na obra da arte. Mas quando falamos da essência da Arte como presença de uma dinâmica de ser, que envolve tanto o artista, a ação criadora como a obra de arte, portanto, como o inter-esse, i.é, como o médium no qual se acha o todo do conjunto Arte, nos inclinamos a colocar o inter-esse dentro do sujeito-artista, como uma realidade subjetiva existente nele e dizemos: a obra de Arte depende do interesse, daquilo que é o interior do sujeito, i. é, do agente da produção da obra de Arte.

  1. O interesse

O que acima denominamos de interesse, se o olharmos bem, não é nem subjetivo nem objetivo. Pois os adjetivos ‘subjetivo e objertivo’ se referem ao sujeito homem (subjetivo) e a coisa-objeto (objetivo) como ente-bloco, algo, como um quê em si. Pois o interesse, considerado na Arte, i. é, no conjunto artista-ato criativo-obra de arte é o que acima denominamos de essência.

Interesse se lê inter-esse. Inter se pode interpretar ora como entre, mas também como dentro. O dentro, porém, do inter não é dentro de uma coisa-bloco, mas sim dentro do “entre-meio”, no médium. O nosso problema é que sempre ainda representamos o médium como um bloco liquidificado ou rarefeito a modo de um espaço vazio, semi-vazio, ou cheio de uma substância sublimada etérea. E não como a dinâmica de estruturação do vir-a-ser-mundo como acontece p. ex. no médium denominado, musicalidade.

Aqui, a tonância impregna toda a sinfonia a se “estruturar” em e como mil e mil diferentes composições e constelações de composições, cujos elementos constitutivos não são átomos-blocos, mas sim concreções de modalidades e modulações tonais em percussões e repercussões. Esse conjunto, essa syn-phônica ora se abre, ora se fecha, na expansão e no recolhimento sucessivos e simultâneos, cada vez todo, de todo, no movimento vivo e concreto de determinações em infindas possibilidades de repetições moduladas. Esse “estar no”, esse “ser-em” é o inter-esse. Essa maneira de “descrever” parece só se referir à obra, aqui à execução. Mas para que haja execução da sinfonia temos a partitura da música, os compositores e tudo que a eles se refere enquanto compositores e músicos, diversos instrumentos; os membros da orquestra, maestro e os instrumentistas, o coro e seus componentes, a sala de concerto, os ouvintes; todo o processo que em contínuos e repetidos ensaios e exercícios forma tanto o maestro como os componentes da orquestra, os próprios instrumentos que foram artesanalmente confeccionados; o sistema de microfones, o sistema de gravação da música, da sua transmissão no rádio e televisão etc. Tentemos ter tudo isso presente bem concretamente, quando aqui dizemos de modo esquemático e formal: o conjunto artista-ato de produção artística da obra de arte. E isso não como fila ou amontoado de entes ajuntados e enfileirados como ente-blocos, um ao lado do outro, mas na dinâmica do seu tornar-se, consumar-se em diversos e variegados modos de ser em concreção, que no seu todo e em cada momento da dinâmica da expansão e do recolhimento, está impregnado da mesma “causa”, ou melhor, do mesmo “princípio”, da mesmidade no ser, formando todo um mundo no seu ser. A esse movimento denominamos realizações ou estruturações da realidade e realidade das estruturações.

Para perceber como o inter-esse é o que possibilita, faz surgir, sustenta tanto a obra de Arte como o artista e sua ação criadora, vamos dar um outro exemplo, já usado numa outra ocasião, num outro artigo[14]. Esse exemplo, mais do que o exemplo anterior tenta conduzir a consideração do interesse, do “setor” subjetivo dentro do sujeito-eu para o inter-esse “anterior” e mais “fundamental”, a partir e dentro do qual se constituem tanto o sujeito como o objeto[15] de uma determinada ação. Um artista. Digamos um organista. Toca fuga de Bach. O livro com as notas musicais diante de si. Os dedos transmitem a leitura das notas ao órgão. Dali surge a fuga. E o organista ouve a fuga produzida. Posso considerar a produção da música como uma sucessão linear de causa e efeito: o livro de notas musicais, o olho-leitura, o movimento dos dedos, o órgão, o som, o ouvido-ausculta. Vamos suspender essa consideração que enfoca o aspecto produtivo causal da fuga. Examinemos o fenômeno de imediato, diretamente: Um homem debruçado sobre o órgão. Todo o seu ser é concentração. Para onde se concentra o seu ser? Para a produção da fuga? Para pôr em obra as nor­mas técnicas da execução musical? Digamos que o nosso organista domina a técnica de execução. Os dedos obedecem espontaneamente aos mínimos deta­lhes do seu comando. O movimento do dedilhado lhe flui do querer sem resistência, de tal sorte que o or­ganista não precisa mais se concentrar na execução.

Mas, então, para onde se recolhe o vigor da sua concentração? Para a ausculta. Ele é todo ouvido na concentração. Mas para a ausculta de quê? Para a ausculta da fuga de Bach que sai dos tubos sonoros do ins­trumento-órgão? Certamente o organista ouve a fuga de Bach como música por ele produzida através do instrumen­to. Mas esse ouvir, assim explicado, não coincide com a ausculta aberta no recolhimento da concentração. Pois ele, ao ouvir a música produzida, percebe nela, por exemplo, a ausência do vigor, do colorido, do frescor;  sente como a sua música não tem ressonância, não se sustenta, não se liberta para o júbilo da festa, não consegue dizer a profundidade da dor, não vibra, não tona, não saltita. Com outras palavras, o artista percebe que a sua fuga não “está no ponto”. Por conseguinte, o organista, ao ouvir a música produzida, mede-a simultaneamente a partir de… Mas a partir de quê? Onde está, em que consiste esta medida, o “pon­to” da plenitude? A nossa representação objetiva essa medida no interior do artista. Mas onde está? O que é essa inte­rioridade? A pergunta não tem resposta, pois a interioridade não está no espaço-onde extensional “físico”, “anímico” nem “espiritual”. Antes, é ela a fonte, a nasci­vidade do tempo e espaço da ressonância toda própria, da musicalidade das músicas, do mundo da música. Em outras palavras, a pergunta-onde e a sua resposta, por operarem a partir e dentro do espaço objetivado da re-presentação algo ou objeto, estão “fora” da dimensão da interioridade aqui em questão. Mas o que é essa interioridade? Essa interioridade está na obra da Arte? Na ação criadora da execução da obra? No artista? Ela está em toda a parte. É o inter-esse que impregna, penetra todos os poros, todos os momentos do conjunto Arte, artista, ação criadora e obra da Arte e tudo que se refere à Arte em diversas implicações como prolongamento de estruturações do mundo da música. E isto desde a ausculta, a mais pura e sublime de um artista inteiramente doado à limpidez da criatividade da Música-Arte, até mesmo às implicações já bastante desfocadas e desafinadas da venda e do lucro, provenientes do comércio dos produtos de Arte.. Essa interioridade não é nem dentro, nem fora, mas sim é um “ser em” como vigência de uma presença onipresente, em cada momento do conjunto, a fazer surgir, crescer e se consumar a percussão e a repercussão da realização e realizações da realidade: a musicalidade, o ser da musica, o inter-esse do mundo-Música.

Essa vigência se chama essência. Portanto, observemos “onde” se “localiza” o que acima denominamos essência, o inter-médio in-pregnante, onipresente em todos os momentos, em todas as articulações, em todos os movimentos estruturantes do todo, envolvendo, inundando e irrigando tanto o artista, como a ação criadora, como também e principalmente a obra de Arte. E perguntemos o que é, quem é esse inter-esse?

  1. Existência

Quem é, pois, esse inter-esse? É o próprio homem. Apenas, em assim respondendo, sempre de novo representamos o interesse como algo no ou do homem. Algo que vem dele, nele está. Mas que o homem, ele mesmo, seja o inter-esse, isso nos é um tanto estranho. O mais óbvio é, aqui, “instintivamente” localizar o inter-esse p. ex. da musicalidade, no interior do homem, na sua “interioridade”. Quando, porém, dizemos ser ou essência, nós a pensamos no interior do objeto ou da coisa. Esse dentro de “mim” como do ente homem e esse dentro do objeto como do ente extra-humano, portanto esse inter-esse, não está nem dentro nem fora do ente homem, pois não se trata de local físico-material. Sabemos disso muito bem, mas… na perplexidade, tornamos a localizá-lo na sensibilidade humana, na alma, no espírito, se é que não o colocamos simplesmente numa determinada parte do cérebro, na reação dos nossos nervos aos estímulos, provenientes do ambiente que nos circundam.

Entrementes, quando pomos o inter-esse, a essência na sensibilidade humana, na alma, no espírito, no cérebro, na reação dos nervos etc., não o estamos propriamente percebendo, não o estamos vendo a ele mesmo, pura e diretamente, mas sim o estamos reduzindo a um objeto de um outro horizonte que lhe é alheio no sentido do seu ser. Sem depender de todas as nossas colocações e anterior a elas, pode-se p. ex. na situação acima mencionada do organista que executa a fuga de Bach, ou na execução sinfônica da orquestra, perceber nitidamente uma presença, uma vigência, um ser (dinâmica do verbo) que se nos apresenta como ele mesmo, todo próprio e nada mais, impregnando o conjunto todo, e cada um dos seus componentes e sub-componentes, sustentando-o, vivificando-o, fazendo-o perfilação do seu próprio ser. A pregnância dessa presença aparece na vitalidade, na unidade, na vivacidade e simplicidade do todo. É algo como atmosfera, médium que o envolve e o perpassa como tonância, como colorido de fundo, dando ao todo e a seus componentes um caráter todo próprio de ser. E ao mesmo tempo em que assim se estende por sobre e através de toda a dimensão do conjunto, na largura, na altura, na profundidade de suas perspectivas, concentra-se de modo intenso, como que a convergir num centro, na obra que surge como fruto da ação criadora. Assim, a essência, o ser da Arte, aparece na plasticidade e concreta singularidade da obra de Arte. Mas como é que colocamos dentro, na interioridade do homem artista a causa de todo esse conjunto, sintetizado na obra de Arte? O que significa, de que se trata, portanto, quando usamos o termo interioridade, ao querer ver “dentro” do homem artista na sua ação criadora, e dentro da obra da arte, o que denominamos de inter-esse como essência que envolve o conjunto Arte, toda e inteiramente, inter-esse que é o próprio homem?

Talvez esse tipo de localização da essência como interioridade ou interesse no sujeito-artista, e dentro na obra de Arte como núcleo, oculto sob as aparências de cor, volume, forma etc., seja uma espécie de projeção coisificada da experiência viva que fazemos, “em” nós e “na” coisa chamada obra de Arte, quando a essência da Arte nos pega.

O que é e como é essa experiência que nos afeta como essência da Arte? Talvez possamos qualificar o quê e o como dessa experiência como um caráter todo especial presente no conjunto Arte, a saber, uma espécie de densidade, de intensidade na pregnância de ser. Essa densidade de ser aparece no assentamento que uma obra de Arte tem na mundidade do seu próprio ser. É, pois, tão marcante a diferença existente na ‘densidade’ da mundidade p. ex. nos sapatos da camponesa da obra de van Gogh e na mundidade do artefato-sapato, fabricado em série ou mesmo artesanalmente. Aqui numa obra de pintura do quilate de van Gogh, dizer que ela é “algo” ou “objeto” não diz nada. Nesse tipo de horizonte “algo” ou “objeto”, jamais aparece a mundidade própria da singularidade uni-versal da obra de Arte. O termo alemão Ding p. ex. parece indicar melhor e com mais precisão a coisalidade de uma tal densidade da mundidade[16]. Aqui na obra de arte não há nada de indiferente, neutro, de indeterminado vão, não há generalidade nem generalização. Ela é toda ela própria, sem ser um caso individual ou particular de uma série de ‘coisas’ de uma classe, é universal no sentido de concentração e densidade no uno, como único, contendo em si a medida optimal de tudo quanto quer participar de tal singularidade universal. E isso, de tal modo que, ela cria um estilo e pode fundar uma escola de Arte.

O marcante da diferença não está aqui propriamente nem na celebridade, nem na utilidade, nem na excelência de venda etc., mas sim naquele caráter todo próprio da Arte que, conforme as explicações dadas pelas teorias estéticas, chamamos de belo, estético, sublime, nobre, para encobrir a nossa impossibilidade de dizê-lo, embora o possamos ver nitidamente.

A acima mencionada intensidade da pregnância de ser aparece também no artista, quando observamos o seu modo de ser na profissão de artista. E é possível ele, como sujeito-homem, ser de uma moralidade duvidosa, ser egoísta, ser viciado no álcool, mas quando se trata do seu metier artístico, sua vida possui sinceridade, honradez e pureza toda própria, intensidade de engajamento e compromisso todo próprio com a “coisa” da Arte. Aqui, para além, ou melhor, aquém da sua intenção moral ou sinceridade, se dá uma “autenticidade” que não é um dado espontâneo a modo de um produto da Natureza, mas sim dom de um árduo e generoso trabalho[17], que nasce, cresce e se consuma como História. E isso aparece principalmente no seu trabalho “artesanal”[18] de compromisso corpo a corpo com a obra. Toda a sua vida está como que doada à obra, a tal ponto de não se poder saber se é o artista que perfaz a obra ou a obra que perfaz o artista. É nesse sentido que, embora dois entes fisicamente separados como algos, como objetos, enquanto artista (existência artística) e enquanto obra (essência artística), artista e obra são um na presença criadora. E isso a tal ponto de podermos afirmar que, quanto mais obra na sua grandeza e singularidade específico-universal como Arte, tanto mais anônimas[19] são as obras. É por isso que, mesmo quando o autor de uma obra prima é conhecido, o nome do artista recebe o esplendor e a notoriedade da obra e não a obra, do artista[20].

Repetindo, aqui o dentro do homem, a sua interioridade é o que acima enunciamos como sendo toda a vida, a vida inteira doada à obra. Mas de que se trata aqui quando dizemos toda a vida, a vida inteira do ente chamado homem? Seus afazeres, compromissos, atitudes, os fatos da sua passagem no espaço e tempo do globo terrestre, seus ideais e projetos? De alguma forma tudo isso também, mas mais do que tudo isso. Em que sentido mais? Não quantitativamente nem ‘qualitativamente’, …mas existencialmente. Vida aqui na vida artística significa existência. Temos assim as expressões: existência artística, existência religiosa, existência humanitária etc. Trata-se de um modo de ser humano que advém ao homem e determina de modo próprio todo o seu viver, em todas as suas implicações, a tal ponto de aqui desaparecer toda e qualquer neutralidade indiferente e geral de uma consideração panorâmica, padronizante do ser-homem. O ser-homem aqui como existência se aperta na finitude da estreiteza do historiar-se de si mesmo, toda a possibilidade de ser se torna única[21]. Nada aqui é feito, simplesmente dado, mas cada qual com todas as coisas implícitas no seu ser tem que ser, tem que se tornar, a partir de e dentro de si mesmo, como que na ausculta atenta do toque por e para ser que lhe possa advir, não dele, e também não do outro constituído como um ente dentro do âmbito da sua possibilidade, mas de um salto primeiro e único para dentro da espera do inesperado e para dentro do impossível início. Impossível, porque não está ali dado de antemão na existência como um algo já ocorrente, mas deve saltar como dom de um labutar constante, fiel e cordial, como eclosão, crescimento e consumação de todo um novo mundo. E essa abertura para a impossibilidade possível é a ex-sistência, a pre-sença, em alemão Da-sein[22]. Da-sein é a essência da Arte. Arte só é possível ser compreendida, portanto, como e na existência artística, no pensar o seu ser em sendo, em da-seiend no inter-esse, na essência da Arte.

Isto significa que o modo de ser caracterizado como densidade da pragnância de ser para indicar o modo de ser todo próprio do ser-humano, agora denominado existência ou Da-sein, é o que antes no capítulo II e III percebíamos como essência e inter-esse, e que se projetava ‘materialmente’ como que localizado na interioridade do homem ou no fundo da obra de Arte. Toda e qualquer obra de Arte, se é realmente uma obra de Arte, toda e qualquer vida humana inteiramente doada à Arte e toda e qualquer ação feita enquanto doação à Arte no trabalho de criação da obra de Arte, nos conduz para dentro do modo de ser do ser próprio do Homem, para dentro da existência ou do Dasein, para dentro do seu mundo. Não só nos conduz para o país da imensidão, profundidade e densidade do fundo do ser-humano, mas também o revela, traz à luz na perfilação singular e única desse modo de ser, na obra de Arte.

Tudo isso nos leva à constatação de que a Arte na sua essência só pode ser compreendida a partir dela mesma, dentro do médium, do inter-esse dela mesma como o modo de ser da imensidão, profundidade e criatividade da vida humana, portanto como existência ou Dasein e nada mais. É, pois, necessário que ela fale, que deixemos que ela venha a se manifestar, que a deixemos ser, ela, a coisa ela mesma. Mas basta só isso? Na Arte há tantos aspectos, tantas perspectivas, tantos pontos de vista a serem considerados!?… Não a deveríamos enfocar sob aspecto psicológico, sociológico, sob o ponto de vista da crítica da arte, examinar a historiografia da arte, as influências das diferentes épocas, estilos, escolas, biografias dos autores, as suas peculiaridades no uso do pincel, na escolha das cores etc., a sua vida particular e íntima, os seus amigos, seus parentes, vícios e virtudes, suas ideias filosóficas, religiosas, políticas etc., etc.? Tudo isso é necessário levar em consideração, pois o que acima foi dito como existência, como Da-sein artístico, não é propriamente um aspecto ao lado de todos esses aspectos, certamente importante e principal; não é jamais também um aspecto. Existência, Da-sein ou Pré-sença impregna e subsume todos esses aspectos ao destinar-se como se perfazer História na apropriação do seu viver. Esse levar em conta os aspectos acima mencionados, não como critérios de abordagem da Arte, mas sim como elementos subsumidos pela existência artística, é deixar ser Arte ela mesma e não a colocar sob a mira proveniente de um outro “horizonte” que não seja a dela. Deixar a essência da Arte ser ela mesma significa um ingente esforço de continuamente não deixar que ela se des-loque para dentro de uma dimensão, de um inter-esse que não é o dela e que não venha dela mesma. E se constatamos a enxurrada de pontos de vista, a partir e dentro dos quais é mirada a Arte, então ao estar dentro de e no prospecto desses interesses, não considerar esses pontos de vistas como explicações e esclarecimento da essência da Arte, mas antes considerar tudo isso como possíveis vicissitudes da própria Arte como existência artística, portanto como historiar-se do destino da possibilidade radical da existência humana; e tentar interpretar, não através dos pontos de vista e por meio deles a essência da Arte, mas pelo contrário, mirar todos esses esquecimentos, encurtamentos da essência da Arte, a partir do límpido toque da coisa ela mesma chamada Arte; e examinar em todas essas defasagens, em todos esses deslocamentos da essência da arte, se não há de algum modo também ali eco longínquo ou repercussão tênue e quase imperceptível da vigência da Arte. Pois se Arte é como dragão da nossa estória, ela penetra em todos os recantos da garrafa, por mais bruta e grossa que ela tenha ficado, para ver se não restou ali, em qualquer canto, ainda um vazio da caixa de ressonância, que repercuta o toque-dragão. Pois a Arte é tão dragão, que se uma vez solta na sua liberdade de ser, é capaz de fazer “artes” com todo esse esquecimento da essência da Arte; é capaz de fazer de sucatas e “pedaços” descartados de todo e qualquer sentido do ser uma obra de Arte na medida em que traz à “luz”, na inominável e inaudita desolação do sentido do ser e da sua perda, um vislumbre do abismo que se oculta sob a insensível e opaca superfície de tal desolação… Talvez seja isso que está expresso na primeira frase da Confissão criativa de Paul Klee, quando diz: “Arte não reproduz o visível, mas faz visível[23].

  1. Arte e Mito

O nosso tema é Mito e Arte. Mito, como se entende usualmente, é narração acerca dos heróis e mistérios da mais longínqua Antiguidade. Outrora, no antanho da nossa civilização europeu-ocidental, a arte se dizia em latim ars, e em grego téchne. Arte como ars, téchne em concreto indica a habilidade, o poder de quem pode e sabe fazer. Mas essa acepção da Arte não é tanto um agir como fazer[24], mas sim um fazer-se, um perfazer-se no se saber poder[25]. No Nordeste, p. ex. no interior do Ceará, ao se apreciar alguém que faz bem o que é o seu, na fidelidade e alegria, na aptidão do conhecimento perfeito do seu metier, se diz: ele é um artista. Artista nesse sentido não tem a conotação estética[26], mas sim de alguém que pode o que sabe e sabe o que pode e está bem assentado, integrado na finitude, na determinação concreta do seu ser ao executar o seu trabalho. Assim, o que hoje entendemos como habilidade de produção, de um fazer, no modo de manufatura, o que na Arte muitos artistas chamam de técnica, pode esconder uma acepção do que acima chamamos de existência ou Dasein na sua densidade, quando o trabalho artesanal se transforma no exercício de uma existência e cunha a pessoa como perfil da existência humana. Aqui surge uma diferença que muitas vezes não é possível ver sem mais nem menos.

Tentemos a seguir à mão do texto de A Origem da obra de Arte de Heidegger citado bem no início da reflexão, nos acercar do Mito, apenas como que a sugerir uma compreensão do Mito, a partir da compreensão da Arte como existência artística.

No texto de Heidegger, temos ‘duas obras’, a saber: a obra de pintura do par de sapatos da camponesa, de Vicente van Gogh e a obra filosófica, na leitura de Heidegger feita da obra de pintura de van Gogh. Aqui não se trata de um par de sapatos, confeccionado artesanalmente de couro, usado anos a fio pela camponesa, ali jogado num canto e visto sob dois pontos de vista: do ponto de vista do artista plástico van Gogh e do ponto de vista do filósofo Heidegger, de tal modo que tenhamos aqui uma realidade objetiva chamada um par de sapatos e dois aspectos subjetivos, um de um pintor, e outro de um filósofo. Aqui, o que temos é simplesmente uma obra de arte, uma coisa nova criada por artista chamado van Gogh. Esse par de sapatos pintado é uma coisa toda própria, nova, mesmo que de fato van Gogh tenha tido diante de si como modelo um par de sapatos semelhante ao da pintura. Pois nesse quadro não se trata de uma reprodução fotográfica de uma coisa visível ali na frente. Trata-se de sedimentação, de cristalização de uma ação criativa que abre todo um mundo, não objetivo, não subjetivo; mas sim, realidade, toda própria, prenhe da existência camponesa. Assim, a obra de van Gogh, por ser Arte, não reproduz o visível, faz visível. É como se a obra de van Gogh fosse uma fenda, através da qual se nos descortinasse toda uma paisagem sui generis da existência camponesa, na dinâmica e na vitalidade, na prenhez de uma realidade tão real na sua densidade de ser, que aqui perguntar se ela existe de fato ou não, ou se é algo objetivo ou subjetivo, é ir para um “outro mundo”, cujo sentido do ser é o do horizonte “algo” já mencionado bem no começo da reflexão. Chamemos tal paisagem que se descortina em leques de implicações das realidades existenciais, i. é, que trazem à obra a existência, de possibilidade. Mas não possibilidade como um estado de coisa a modo de um espaço geométrico, neutro, escancarado, onde não há nenhuma predeterminação, vazio de decisão, infinito a modo indefinido, mas sim possibilidade no sentido da plenitude da potência. Potência ou poder do “pode quem pode”, não no sentido de um talento recebido de graça, um privilégio de nascença, mas sim do dom de uma conquista, enquanto com-crescido, concreto, bem determinado na decisão de ser, bem assentado no perfazer-se do nascer, crescer e se consumar; poder como realização do historiar-se, como perfazer-se no destino do próprio no ser da existência humana. É essa possibilidade que está dita com maravilhosa maestria na descrição de Heidegger dos sapatos da camponesa de van Gogh. É o que o texto de Heidegger chama de Verlässlichkeit, i. é, a confiabilidade à Terra, o estar entregue ao abismo insondável da “vitalidade” da imensidão, profundidade e criatividade de ser, que Antoine de Saint Éxupéry denominou de Terra dos homens. É, pois, isso a existência, o inter-esse. Ou melhor, pré-sença, ou melhor, ainda o Da-sein, a essência, o ser do Homem: a Vida Humana. Na obra de van Gogh e na captação do vislumbre da paisagem nasciva que ali se torna visível, descrita por Heidegger, tudo isso vem ao nosso encontro com beleza, fascínio, a nos seduzir para dentro desse abismo da Vida Humana, para a interioridade e profundidade dessa aventura e ventura radical do eclodir do mundo a partir do enraizamento na Terra dos Homens. É a facticidade e sua densidade existencial levada à perfilação pela e na obra de Arte.

Mas se tudo isso que foi dito de modo sem jeito e desengonçado é de alguma forma o conjunto Arte, o que é o Mito? A hipótese dessa presente reflexão é a suspeita, expressa na seguinte pergunta: o que, no texto acima mencionado de A Origem da obra de Arte é denominado de confiabilidade à Terra não seria o “mundo” do Mito, que no dizer de Heidegger aparece na sua seguinte observação? Diz, pois, Heidegger: “Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir”. Não é isso a existência cotidiana dos nossos afazeres e corre-corre? Não é isso a aparente indeterminação que jamais é uma vacuidade vaga, vazia de sentido do ser, mas é antes um saber tudo isso sem observar e sem refletir, esse simplesmente em sendo? E tão em sendo simplesmente, i. é, no uno de todas as coisas, a ponto de se ser hén:pánta? Lá onde todas as coisas falam, são gente por e para ser pré-sença, claridade-superfície da obscura profundidade oculta do ser-em simplicidade? Mas, então, o que foi mostrado como paisagem, vista através da acima mencionada fenda, pela qual e na qual vimos o mundo tão bem exposto na “descrição” de Heidegger, é o mundo de vigência da vida extraordinária na sua fascinação e beleza, arrancada pela Arte, do esquecimento, da opacidade do banal cotidiano da rotina à claridade existencial? Ou não seria justamente o contrário, a saber, o que, na mira admirável da ação criadora artística, a vitalidade da vigência existencial da paisagem, implícita e aberta na obra sapatos da camponesa de van Gogh, quer conservar na continência da sua densidade não é precisamente o pudor no seu ocultamento desse ser camponês que sabe, pode, conhece, i.é, conasce com tudo isso sem observar, sem refletir, diríamos, sim, sem saber, apenas em sendo limpidamente tosco seco e sóbrio na alegria do pouco saber[27], portanto, contendo no seu bojo, a plenitude do Mito, do Mistério do ser, i. é, a confiabilidade à Terra? qual a superfície da Terra – lá onde todos os dias, a todo momento, todos os entes a pisam sem mais nem menos, sobre a qual andam de lá para cá e de cá para lá – que oculta a humilde profundidade abissal do ser humano; da Terra dos Homens? Se tudo isso e apenas isso, a saber, a rotina da cordialidade-superfície enraizada na contenção de um abismo profundo no seu silenciar imenso, profundo e sereno é Mito, então a compreensão usual do mito como narrativa heróica dos fatos nobres, e extraordinários e maravilhosos dos homens naturais e espontâneos na vitalidade inicial é antes uma arte menor do que Mito; é, antes, um modo deficiente da Arte Maior que vive do fascínio e da beleza da simplicidade inominável do syn plex, i. é, do uno, sem dobras de multiplicações e detalhes extraordinários e transcendentais, do muito sentir, muito viver, do muito querer na excelência de tudo. No momento em que, nesse fascínio e amor à simplicidade, a quer mais viva, mais maravilhosa e se deixa seduzir por esse eflúvio das vivências do maravilhar-se, a Arte comece ela talvez a se inclinar e proliferar como Estética da Subjetividade. A Arte como amor ao Mito não é maravilhosa, é rara[28].

  1. O mito, abismo insondável do mistério do ser?

Dissemos acima, citando Paul Klee, que a obra de Arte não reproduz o visível, mas faz visível. Ela é como uma fenda. Rasga a rotina da vida usual e nos descortina toda uma paisagem sui generis da existência, na prenhez da mundidade mais profundamente real. Quando a paisagem do ser assim desvelada como mundo está integrada num per-feito assentamento no fundo abissal do ser da existência humana, se dá o Mito. É a entrega confiante do mundo à Terra do abismo insondável do “mistério de ser”[29]. Repetindo com outras palavras o que foi dito: a Arte como o conjunto Arte (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte) é a manifestação da estruturação que se abre como um leque de implicações e explicações, e forma uma totalidade sui generis, o mundo, cujo vigor e pulsações diversificadas da sua vitalidade se fundam no que se denominou inter-esse, ou existência (Dasein) ou essência da Arte. Como é o artista em todo esse processo? Aqui a essa altura da reflexão, entendemos a pergunta não mais referida ao sujeito homem, mas sim ao ser da existência, ao Dasein. Portanto: como é o Dasein, no abrir-se do vislumbre da nova paisagem-mundo, e na entrega do mundo à confiabilidade da Terra? Que força é essa que toca o Dasein e o faz lugar de eclosão, crescimento e consumação do mundo? Usualmente chamamos essa força de inspiração artística. E invariavelmente nos vem a pergunta: quem inspira o artista? Uma força alheia, anterior a ele? Uma divindade, um espírito? Klee fala aqui de criação. Ao explicar porque o artista não reproduz o visível, mas faz visível, Klee mostra que aquilo que aparece diante do artista como este ente ou aquele ente são formas terminais da Criação. O artista, ao ver o visível, o vê como uma determinada forma terminal de um fluxo de uma das possibilidades da força criadora. Assim, a sua mira penetra, através de uma determinada forma terminal, no fluxo criativo que a constitui, para nele rastrear aquela possibilidade das possibilidades da inesgotável vigência do ser, e assim se expor disposto, aberto ao toque da origem do ser, tornando-se passagem da gênese de outra nova possibilidade do fluxo criativo que então constitui outra forma terminal, até então inteiramente desconhecida[30]. A seguir tentemos examinar o que até agora dissemos da essência da Arte sob esse termo usado por Klee, a Criação. Pois esta parece ser uma das características bastante constantes na determinação do que seja propriamente a Arte, a criatividade.

Na nossa reflexão, esse quem, esse quê fundante e originante de todo o processo criativo artístico, que culmina na realização da obra de arte, é o próprio homem ele mesmo. Mas não mais considerado como sujeito e agente do ato criativo, mas como existência, como pré-sença, como Da-sein. Da-sein não é nenhum ente dentro do sujeito homem, nem algum momento do seu ser, mas sim modo de ser próprio do homem que no homem considerado como sujeito e agente do ato não pode aparecer. Pois, nessa consideração, o homem, já de antemão, é posto, colocado como um ente, cujo modo de ser é do objeto ao lado de outros objetos não-humanos. Mas podemos perceber em nós mesmos, em sendo, como é esse modo de ser próprio do homem, pois nós mesmos somos Dasein[31].

Como seria se nos aproximássemos da compreensão do que seja o Da do Da-sein através da dinâmica da criação? É o que vamos tentar a seguir.

Usualmente, quando usamos a palavra criar, pensamos na efetivação, produção, causação ou fabricação. Criar é efetivar, produzir, causar ou fabricar. Nesse sentido, a criação artística seria produção das obras de Arte. Estas, porém, como viemos refletindo, têm um quê todo próprio que as diferencia de outros tipos de produção. Tentamos caracterizar esse quê diferente, dizendo que uma obra de arte é como uma fenda, como uma aberta que nos conduz para dentro de toda uma nova paisagem, até então nunca vista. Ou formulando-se de modo um pouco diferente, uma obra de arte é uma fenda, a partir e através da qual eclode todo um mundo de estruturações da possibilidade humana. O que aqui denominamos possibilidade humana  é o que anteriormente de vários modos tentamos expor como sendo existência, ou inter-esse ou Da-sein. Dasein é a interioridade do Homem, donde vem à luz, vem à fala a obra de Arte, que desvela toda uma nova paisagem da possibilidade de ser. Usualmente interpretamos essa interioridade como um núcleo, dentro do homem, como sujeito e agente da ação de produzir a coisa chamada, obra de arte. E perguntamos: e esse sujeito homem, quando faz a ação de produzir o objeto ‘obra de arte’, donde tira a ‘inspiração’? Há algo ‘anterior’ a esse sujeito-homem que o toca, o move para ação criadora? Com isso voltamos a repetir o que há pouco apresentamos. E se aqui respondermos que há um outro anterior que inspira o sujeito-homem para a produção artística, a pergunta agora passa a ser aplicada a esse algo ou alguém que toca e move o sujeito-homem: quem move aquele que move o sujeito-homem? Desencadeia-se um regresso para o sujeito e agente cada vez “mais anterior”, a perder-se na repetição interminável de pergunta. Todo esse regresso só é possível, porque entendemos o Da-sein sempre ainda como sujeito-quê, i. é, algo, objeto, coisa chamado homem. Esse impasse no fundo é algo parecido com o movimento das rodas de uma locomotiva antiga que ao puxar numa subida os vagões pesados não dá conta do recado e fica a marcar passo, girando vazio, parado num mesmo lugar. É para evitar esse tipo de impasse, no qual sempre de novo ficamos girando vazio no esquema fixo sujeito-ato-objeto, que reconduzimos a estrutura (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte) ao seu fundo dinâmico, ao Da-sein artístico. Esse fundo é sem fundo, no sentido de não haver nada de algo, nada de objeto, nada de coisa, portanto nada de sujeito em si, anterior. O que se dá aqui no Da-sein é apenas o ser do Da[32]. Para de algum modo ‘ver’ como é esse ponto nevrálgico do caráter artístico da estrutura (artistaÞ ação criadoraÞ obra de arte), usemos um conceito tirado da doutrina da Criação do universo na mundividência medieval cristã. O conceito é aseidade e se refere à anterioridade de todas as coisas criadas. Como a aseidade é exclusivamente só atribuída ao Ente Supremo, Deus, corremos o risco de fazer uso inteiramente inadequado desse conceito medieval, se o usarmos para se referir ao ser do Homem, que na mundividência medieval é denominado de ente finito. O nosso interesse aqui, porém, é apenas o de tentar à mão do conceito da aseidade[33] ilustrar de que se trata, quando dizemos que o ser do Homem é Dasein, e colocamos o Da-sein como o ponto de salto do surgimento do mundo. Aseidade vem da expressão latina a se. Significa: Deus na sua essência, no que lhe é próprio, é a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si[34]. A expressão a se foi criada para evitar o uso da expressão causa de si (causa sui). Pois causa sempre nos remete a uma causa superior que se torna causa do efeito que produz. Causa pressupõe o esquema sujeito-ato-objeto. A se porém não supõe nada, nem a si, nem o ato em si, nem o objeto produzido. É então nada? É nada de tudo isso que dizemos assim predicando disso e daquilo, que é, seja o que for[35]. Trata-se, pois, de não determinar a partir de fora o que é. Então se trata de que? É deixar ser a coisa ela mesma no seu ser. O modo de ser do a se não é portanto causa sui? Não. Mas então o que é? Não é um quê, mas sim simplesmente ser, i. é, a se, a partir de si, em si, para e por ser, a soltura de si, liberdade de e em si, a partir de si por e para o deixar-se ser. O deixar-se ser na liberdade, a soltura de si, a se é deixar ser todas as coisas nelas mesmas, também na soltura de si, a se. Mas deixar-ser já não supõe que algo seja, se não em ato, mas sim, ao menos, em potência? É possível deixar ser nada, sem cair totalmente no vazio do nihilismo, nada nadificado, um vácuo, tão vácuo que nem sequer se pode dizer que é vazio? No entanto, esse nihil é o Da do Dasein, a essência, i. é, o ser do Homem na sua interioridade, a mais própria, mais íntima do que ele a si mesmo, a possibilidade de ser ab-soluto na concreção do seu ser. É essa ab-soluta concreção, o sentido próprio do que se chama finitude humana[36]. É assim que alma do Homem, a psyché, que traduziríamos mais adequadamente como Dasein, é todas as coisas[37]. O in, a interioridade do Homem enquanto Da-sein é esse nada que é, na medida em que deixa ser o abismo de imensidão, profundidade e originariedade fontal da potência de ser ser na jovialidade gratuita da doação de si, na liberdade de ser. Essa liberdade de ser aparece sempre nova e de novo ‘contraída’, de-finida como simplicidade da finitude[38] no ser, i. é, no uno, cada vez seu, cada vez novo no surgir, crescer e consumar-se do mundo. É nesse sentido que o Da do Da-sein é passagem, não passagem de uma margem à outra[39], mas o “entre-meio” de cada “coisa”, que a deixa-ser, que a deixa eclodir como mundo. Da-sein é a mercê de, é afim de, é a afinação à gratuidade livre do abrir-se que é no seu fundo a recepção gratuita livre do ocultamento silencioso, humilde e contida da insondável potência de ser. Potência de ser que somente é no instante do abrir-se do mundo na sua finitude. Esse desvelar-se no e como ocultamento do estar-em casa em toda parte, no resguardo do aconchego do que é sempre, a cada instante, como presença modesta, sem nome, anônima do ocultamento, se chama em grego antigo léthe (a-létheia), e na descrição do quadro de van Gogh acima mencionado se chama Terra, e é a pátria, a matriz do mito, que em grego-se diz: mythos[40], cuja raiz significa toar, soar. Assim sendo, mythos não poderia ser a ressonância do assentamento do mundo na confiabilidade da Terra, que aparece, digamos onticamente, nos afazeres e nas vicissitudes dos homens, de imediato, na maioria dos casos como anônima e silenciosa ocorrência de todos os dias? Seria o “realismo” bem “seguro” da serenidade do fundo de todas as coisas? Não seria, pois, a positividade da gratidão e gratuidade de ser, sob cuja tenaz e resistente pele, se oculta a finura e a sensibilidade da tênue vibração de uma dynamis que irriga todas as coisas na sua raiz, protege e conserva o sopro de Vida do Uni-verso?

Isto significa: a opacidade da nossa existência cotidiana, na qual se dá a fenda da criatividade artística, não é asfixia, decadência, ou modus deficiente da beleza, da originariedade ou da vivência do carisma criativa da Arte. É, pois, tênue superfície da imensidão, profundidade e simplicidade da jazida bem assentada no abismo inesgotável da presença do ser, a se desvelar e se ocultar, através da aberta e na clareira do Da-sein, onde toda e qualquer estruturação do ser como mundo é enraizada e entregue à insondável confiabilidade do mistério[41] de ser, i. é, do em-casa da morada abissal da possibilidade inesgotável de ser.

 

Conclusão a modo de uma retratação

Ao terminar essa série de afirmações mal formuladas, sem nada dizer, quais faíscas apenas a piscar de algumas intuições mal elaboradas, para de alguma forma não deixar nas pessoas que tiverem a paciência de ler um blá blá do presente discurso, o mau gosto de uma comida semicru, destemperada e mal ajeitada, gostaria apenas de citar um texto do pensador oriental do caminho do ser: O texto é do pensador chinês Chuang-Tzu, na versão adaptada de Thomas Merton[42] e se intitula: Onde está o Tao?:

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.

“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?” “Está na vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?” “Está no pedaço de taco”. “E onde mais?” “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando ‘toda escala do ser’, como se o que chamássemos ‘mínimo’ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a Realidade é o Uno. “Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures, onde todas as muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao é a simplicidade, a paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranqüilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente, pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em “limites”, ficamos presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se “plenitude”. O ilimitado do limitado chama-se “vazio”. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um, nem outro. O Tao congrega e destroi. Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo.”

 

Fenômeno, fenomenologia e seu lógos

  1. Fenômeno e sua implicação

Usualmente entendemos por fenômeno algo ou alguém, cujo ser ou atuação aparece num aspecto extraordinário. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantástico[43].  Nas palavras fenômeno e fantástico aparece o verbo grego phainésthai, que significa aparecer. Aparecer é mostrar-se, vir à luz.

1.1. Fenômeno

É comum representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido, atrás ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.

O aparecer do fenômeno, no entanto, não diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrás dela. Refere-se antes à autoapresentação ou autopresentação ou à intensificação de uma presença. Nesse sentido é algo como luzir, incandescer. É tomar corpo, crescer no sentido da expressão cresça e apareça. É, pois, surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presença. Para podermos ver melhor de que se trata quando falamos do fenômeno como autopresença ou intensificação de uma presença, examinemos brevemente o que Ser e Tempo nos diz da expressão grega phainómenon:

“A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim, phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha– como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com  ta ónta (o ente)”[44].

O verbo do qual deriva a expressão fenômeno é medial. Como em português não há a forma medial; phainómenon é traduzido ou no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ação do verbo medial não é nem ativo nem passivo. Não seria, porém, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinâmica toda própria, um médium atuante, anterior à divisão em disjunção ativa e passiva. Usualmente, quando falamos de ação e atuação, representamos alguém ou algo causando uma força sobre um alguém ou um algo. Assim quem causa uma ação e a própria força atuante são ativas; quem ou o que recebe, padece ou sofre a ação é passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se dá o reflexivo: o agente é ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo não coincidem. Aqui o ser da iteração entre ativo e passivo e reflexivo é de tal feitio que é sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ação do verbo medial não pode ser captado, reduzindo-o à unidirecionalidade de flecha na iteração ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato é o que está dito na expressão: fenômeno, i. é, o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato são: em vindo ao dia, à luz, em colocando-se às claras, em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se[45]. O abuso do gerúndio, na forma em <…>ndo, aqui, é de propósito. Tenta insistir na consideração de que é necessário captar esse modo de ser da ação medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ação medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato por ser simples. Só que o imediato e o simples não pode ser percebidos no seu ser, a não ser que a percepção, ou melhor, a recepção seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ação pede a captação imediata da realidade, antes da sua divisão e classificação em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo, de tal sorte que a ação ou ato é ‘anterior’ ao sujeito e objeto, é a dinâmica do todo, em sendo[46]. Ademais, aqui, o que nos pode dificultar a perceber de que se trata, é a conotação que todas essas expressões trazem consigo de visualização[47]. Aparecer, mostrar-se à luz, vir à claridade do dia, no entanto, não tem primariamente muito a ver com visualização. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepção do que é em se mostrando a ele mesmo, é anterior a toda e qualquer visualização. Visualização é a maneira projetiva da objetivação interpelativa, pela qual colocamos o fenômeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.

Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivação interpelativa, não percebemos que o que nos vem ao encontro como objeto, coisa ‘em si’, ‘real’, não coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas é algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivação interpelativa é uma das modalidades da objetivação. Aqui, para percebermos de que se trata, quando falamos do fenômeno como o que se mostra, a ele mesmo, anteriormente a toda e qualquer visualização da objetivação interpelativa, hodierna, reflitamos um texto acerca do que seja objetivação.

1.2. Objetivação

O que é objetivação, objetivar? A esse respeito responde Heidegger numa carta de 11.03.1964, endereçada aos participantes de um diálogo teológico sobre O problema de um pensar e falar não objetivantes na teologia, hoje[48]: Objetivar

“é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar. E o que significa objeto? Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro, em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum  significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas[49]. A significação das palavras subiectum e obiectum é em comparação com a nossa usual hoje, justamente a inversa: subiectum é o para si (objetivamente) existente, obiectum, o apenas (subjetivamente) representado”.

“Em conseqüência da transformação do conceito de subiectum por Descartes (cf. Holzwege, p. 98ss), também o conceito de objeto veio a se transformar. Para Kant, objeto significa: o contra-posto[50] existente da experiência das ciências naturais. Cada objeto é o contra-posto, mas nem todo contra-posto (p. ex. a coisa em si) é um possível objeto. O imperativo categórico, o ter que ser ético, o dever não são objetos da experiência das ciências naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles não se tornam por isso objetivados.”

Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.

“Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá, como um objeto das ciências naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus ”.

Objetivar é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar”. Algo é aqui ente, no sentido o mais abrangente possível; indica todos os entes atuais e possíveis.

Fazer é exercer uma ação de efetuação, de efetivação, de tal sorte que ente se torne objeto.  E colocá-lo, posicioná-lo como objeto. Assim, ente se põe de pé e se firma como objeto, e somente como tal se torna de novo presente, é representado, é apresentado. Aqui a palavra do texto original alemão é vorstellen. Vorstellen usualmente significa representar, apresentar. Literalmente, porém, diz: colocar em frente, para frente, diante de. E stellen é colocar, mas pode conotar ação de pôr alguém ou algo sob a coação de uma determinação. No uso corrente, objetivar pode significar também tornar objetivo, i. é, tornar real ou existente objetivamente, materializar ou efetivar, ou também ter por fim, pretender.

Diante dessas determinações acerca da objetivação, muitos de nós, tentaríamos entendê-las mais ou menos assim. Na realidade em si, diante, ao lado, ao redor de nós há coisas, produtos da natureza. Mas, usando essas coisas dadas pela natureza como materiais, o homem fabrica objetos, ou também, as posiciona, transformando-as em objetos para determinados fins do interesse humano. Objetivar aqui significa, então, objetificação, fazer do ente objeto, para um determinado fim, meta ou objetivo, dado pelo homem. Essa nossa compreensão da objetivação, embora esteja incluída na explicação do texto, não diz bem, o que ele quer dizer com objetivação e seu objeto.

Segundo o texto, o termo objeto (obiectum) se dá em dois modos diferentes. A diferença no modo de ser do obiectum também diferencia o que se deve entender por subiectum. O texto fala, pois da compreensão do obiectum e subiectum uma vez na Idade Média, e outra vez na nossa época Moderna.

  1. a) Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas.
  2. b) Na nossa época Moderna a objetivação se caracteriza, num sentido inverso ao da Idade Média, em significar subiectum como o para si (objetivamente) existente, e obiectum como o apenas (subjetivamente) representado. Esse modo de entender tanto subiectum como obiectum é conseqüência da transformação do conceito de subiectum operada por Descartes. Na seqüência dessa transformação “para Kant objeto significa: o contra-posto existente da experiência das ciências naturais.

1.3. Objeto

Segundo o texto de Heidegger há uma grande diferença na significação entre o que na Idade Média se entendia por subiectum e obiectum e o que depois da transformação operada na compreensão do subiectum através de Descartes, se entende por obiectum. Aquele pode se chamar coisa-substância e este objeto-representação. Aqui, examinemos mais o obiectum medieval, a coisa-substância e o seu modo de ser, e deixemos para mais tarde o exame do objeto-representação. O tema coisa-substância e o objeto-representação e seus modos de ser retornarão mais tarde nas nossas anotações.

Na Idade Média uma das categorias fundamentais para a compreensão do ente no todo era substância. A palavra substância é tradução latina do hypokeímenon grego. Aqui, objeto significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. E correspondendo a essa compreensão do objeto, sujeito significava coisa-substância. A dinâmica de efetuação da coisa-substância, o subiectum medieval, com o correspondente obiectum medieval, a coisa, não poderia ser chamada propriamente de objetivação. Pois se reserva a palavra objetivação e objeto de preferência para a dinâmica de efetivação do subiectum do representar como sujeito e obiectum como o representado, na nossa época moderna. A efetivação coisa-substância tem como resultado coisa, ou substância. A coisa é diferente do objeto. E o homem, enquanto “recepção”[51] dessa efetivação coisa-substância e sua coisa, é diferente do homem, “sujeito e agente” da objetivação do objeto-representação. Desta última se diz portanto: objetivar “é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar.

Para nós hoje, sujeito indica o ente humano. Na gíria, juntamente com o cara, sujeito significa um indivíduo humano determinado, mas numa denominação ‘neutra’. Na Idade Média sujeito, subiectum era equivalente à substantia, substância, à coisa, e significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex., as coisas.

O sujeito medieval, i. é, a substância, a saber, a coisa, quando lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, se chamava obiectum, objeto.

1.3.1. Coisa não é objeto

Nós temos dificuldade de entender de que se trata, quando o texto chama o subiectum, i. é, a substância de hypokeímenon. Pois, hoje, entendemos tanto o subiectum como também o obiectum medieval (substância-coisa) não a partir da substantia, da hypokeímenon, da pre-jacência, mas a partir da compreensão da substância como objeto da representação do homem como sujeito, no sentido da nossa época moderna.  Tentemos brevemente nos livrar desse pré-conceito moderno da compreensão da substância, pois compreender bem, com mais precisão de que se trata quando o medieval dizia subiectum, substantia a modo do hypoleímenon, pode nos facilitar a ver um ‘tipo’ de “objetivação” diferente da nossa, e compreender melhor o que na fenomenologia quer dizer essa coisa que é descrita como fenômeno ou o em se mostrando a ele mesmo, o aberto, que os gregos chamavam também de ón, i. é ente.

A nossa compreensão usual da coisa como substância e acidente, mesmo em certos manuais de filosofia medieval, parece ser uma mistura de uma compreensão, bastante defasada, da substância medieval como hypokéimenon e da compreensão defasada do objeto-representação, no nível de “o contra-posto existente de experiência das ciências naturais”. Pois entendemos substância como um quê permanente, imutável, núcleo, cerne, que está sob (sub – stância), debaixo de um conjunto de acidentes, que vêm e vão, que são propriedades não essenciais, passageiras e mutáveis. Esse quê núcleo é algo como um ponto, duro, compacto, o atômico. Essa compreensão é o último resquício da compreensão da substância já deficiente como essa ou aquela coisa maciça, o bloco, algo espesso, denso, substancial.

Se, porém, tentarmos compreender o subiectum e o obiectum, a partir da substância medieval sem a pré-conceituosa mistura do antigo e do moderno, ambos defasados, ouvindo o que a palavra grega hypokeímenon nos quer dizer, percebemos que coisas não são blocos, núcleos, isto, aquilo, ali, lá, acolá, mas sim prejacência.

A palavra prejacência não existe em português. O verbo jazer vem do latim iacere, assim, é possível formar o verbo prejazer, e dali prejacência. E significaria mais ou menos o que o verbo grego hypokeisthai significa, a saber, estar assentado, bem repousado, fundado e ajustado em si mesmo. Esse sentido ainda está vigente no adjetivo substancial em português. Exemplos de substância (hypokeímenon) nesse sentido seriam, por exemplo, montanha, imensidão que se estende como planície, um filhote de porco que nasceu redondinho, perfeito, uma obra bem acabada, perfeita, uma pessoa bem assentada em si, madura, confiável, justa e reta. Portanto indica o assentamento, a integração, o ajustamento bem feito dentro de um todo, como atinência e pertença à totalidade prejacente da realidade ali estendida, imensa, profunda e bem consumada. Substancial é, pois, contrário do avoado.

Mas em que sentido?  Quando uma imensa extensão se espraia e jaz diante e ao redor de nós, como p.ex., numa chapada, não somente temos a sensação da extensão horizontal, mas ao mesmo tempo a extensão possui peso, é como se o todo da imensidão subisse do fundo e se abrisse como vastidão bem assentada no profundo de si mesmo. Esse modo de ser de uma paisagem, onde percebemos a imensidão, profundidade e vigor do sereno estar assentado em si mesmo, para dentro do seu profundo é dito na palavra hypokeímenon, hypokeisthai, prejacência, substância. Esse “assentar-se no seu ser”, a prejacência não é isto ou aquilo, não é localizável aqui ali como um objeto, mas ele impregna o todo e cada momento, todas as articulações e partes do todo, está presente como vigência em todas as coisas que constituem a paisagem, perfazendo a cada qual o seu “erguer-se”, o seu surgir, crescer, consumar-se a partir e para dentro dessa prejacência . São: os prejacentes a partir e dentro da imensidão, profundidade e vigor da prejacência de ser, de si, os presentes, a saber: as coisas”. Coisas de tal teor, se destacam no seu perfil, saltam aos olhos, de quem inabita, mora na estância, bem assentado na imensidão, profundidade e vigor desse modo de ser da prejacência[52]. Pois tanto coisas como o homem são entes prejacentes, presentes, cada qual a seu modo, junto, na cercania da pregnância do vigor da prejacência. Por isso, substância (hypokeímenon) se diz também essência, em grego ousia[53].

Esse modo de ser da prejacência, a substancialidade vige em todas as coisas para que cada coisa seja cada qual a seu modo substância. E o assentar-se no ser, de cada coisa, portanto a substancialidade de cada coisa, a seu modo, perfaz a identidade diferencial de cada coisa, enquanto substância, i. é, prejacência do vigor, a tornar-se, em sendo, concreções, a saber, coisas ou entes, no seu todo, a saber, cada vez um mundo. A grande dificuldade de nos mantermos na precisão da compreensão do que seja tudo isso que estamos falando, consiste em sempre de novo, à la representação no sentido nosso atual da metafísica da subjetividade, a prejacência, objetivarmos a substância como esta ou aquela coisa-bloco, mas também, ao mesmo tempo, de representarmos a prejacência que impregna e integra todas as coisas e cada coisa, como algo espacial, extencional, a modo da extensão quantitativo-geométrica etc. Mas, então como é possível ver, captar, se afetar, ou melhor, ser tocado sem representar, sem objetivar, sem nada de intermédio, assim direta e simplesmente? Não há resposta para essa pergunta a não ser: em sendo simples e imediatamente ver, captar, se afetar, ser tocado. Pois aqui ver, captar, se afetar, ser tocado não é outra coisa do que de imediato e simplesmente ser presente, prejacente a seu modo, como ente denominado homem[54], na pregnância da imensidão, profundidade e vigência da prejacência. Esse ver simples e imediato é como abrir-se de uma paisagem, a “clareira” de fundo livre a partir e dentro da qual cada ente é deixado ser na propriedade do seu ser. Aqui compreender, conhecer não é entrar em contato com o objeto contraposto como com algo posto a partir do projeto do interesse de um eu ou nós sujeito, mas é ser coisa junto de e com outras coisas, assentado com elas para dentro da pregância e integração do todo da prejacência, portanto, conascer, e estar junto no ser  coisa-substância, cada coisa, no entanto, na diferença própria, que lhe cabe, que lhe cai bem conforme a intensidade da sua identidade no ser.

1.3.2. Uma paisagem: coisa-substância-hypokeímenon

Há uma descrição da existência camponesa que nos pode ilustrar, de modo denso e solto ao mesmo tempo, a paisagem dessa prejacência no ser. Ela é de Heidegger, na sua obra A Origem da obra de arte, quando nos mostra o sapato da camponesa de van Gogh.

Diz Heidegger:

“Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À Terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência[55]. Mas tudo isso, talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma, repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade[56]. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da Terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao Mundo simples a proteção segura e assegura à Terra a liberdade da impulsão permanente”.

Nessa paisagem do hypokeimenon, o assentamento no ser em si, a prejacência e o seu peso, a sua substancialidade nada tem de estático, parado, a modo de blocos de coisas, isolados, um ao lado do outro. Ali há a prenhez da contenção da intensidade de ser, a tinir como presença, cada coisa a seu modo na pregnância e integração a partir e para dentro desse modo de ser da prejacência. O homem, como substância, coisa, junto de e com outras coisas, cunhado e inserido como elemento integrante da paisagem que ali se abre, é na sua identidade própria, o aberto, o em face, o aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar, de encontro ao qual é lançado e mantido o objeto-coisa, enquanto concreção do vir à fala da imensidão, profundidade inesgotável da nasciva prejacência insistente do ser. Tal objeto não é pro-jecto do homem, nem é sujeito, i. é, a coisa submetida a ações do homem sobre ela, nem algo levado através da representação ao homem para ser captado e conhecido pelo homem, mas é o que no lance da eclosão da paisagem da prejacência se ergue como o “encontro” (em alemão, Gegen-über), a destacar como configuração perfilada cada elemento da paisagem, no seu mostrar-se a ele mesmo, no incandescer, no evidenciar-se, no luzir e transluzir do seu assentamento a partir e para dentro da prejacência no ser. O que assim se ressalta do e no todo da paisagem se chama região, a cercania, que em alemão recebe o nome de Gegend. A coisa assim destacada a partir e dentro da paisagem da prejacência se chama então em alemão: Gegenstand, i. é objeto-coisa. Esse modo de ser (medial) no destaque da perfilação configurativa se diz em alemão sich vergegenständilchen, é a objetivação ‘gestaltizante’. No texto acima citado da mencionada carta de Heidegger aos teólogos do encontro de  10/03/1964, diz ele:

“A experiência cotidiana das coisas no sentido lato não é nem objetivante (objektivierend), nem é uma contra-postatização (Vergegenständlichung)[57]. Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.

A rosa da experiência cotidiana se acha, segundo a suspeita-chutação acima mencionada da nossa abordagem, mais ou menos na paisagem da prejacência. Ela serve de ilustração para as explicações feitas acerca da compreensão dos termos subiectum e obiectum a partir e dentro da substância como hypokéimenon. Consideremos, porém, que no exemplo acima exposto da rosa, ocorra uma pequena observação. Da rosa diz o texto:

Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento.

Aqui, podemos cair numa compreensão defasada do texto que chama de pensar o que segue o ser rubro da rosa, e achar que Heidegger está a distinguir aqui entre a dimensão do pensar, seja ele do pensar espiritual, filosófico, estético-artístico, seja abstrato, geométrico (o ser rubro) e a dimensão do concreto, físico e sensível, na sua materialidade objetivo real (a rosa, o jardim, o vento, balançar). Esse modo de colocar a rosa como objeto diante do sujeito (homem pensante), e distinguir, de um lado, a rosa e, do outro, o ser rubro captado subjetivamente, pertence à objetivação representação. Para não cair no equívoco dessa colocação, ouçamos com precisão o que Heidegger diz no texto: Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. Aqui, não se trata de eu representar um sujeito que está diante da rosa e silencioso pensa na rosa a florir. Nessa colocação, sujeito é coisa, objeto, contra-posto a mim mesmo que ao representar o sujeito que pensa a rosa, me represento como coisa, objeto, contraposto a mim, a saber: [(eu-sujeito+devotado+ fala silente+pensar+o seguir)Þos objetos:(rosa+jardim+vento+balanço)].

Entrementes, o que se mostra a partir de si, nele mesmo, portanto, o fenômeno dito “Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir” não são nada dessas coisas e objetos assim representados. Não são pois “coisas-objetos” objetiváveis ou representáveis. Dito com outras palavras, todas essas “coisas não objetiváveis” são coisas em si, elas mesmas, repousadas na prejacência da imensidão e profundidade, se mostram a si mesmas nelas mesmas, de tal sorte que podem ser “vistas, ouvidas, percebidas simples e imediatamente” na recepção silente, pensante, i. é suspensa, na limpidez e afinação da recepção, pele a pele, de todo, ao abrir-se, de uma vez da paisagem da prejacência. Mas e a rosa, o jardim, o vento, o movimento de lá para cá? Como no caso do “ser rubro” da rosa, livre da colocação da objetivação subjetiva e subjetivante, também todos eles, por sua vez, podem aparecer livres neles mesmos, a partir de si como presenças e concreções da imensa paisagem, como coisas ou causas da vigência substancial da prejacência.

Essa presença “medial” da prejacência  é substância, hypokeimenon, coincidência viva e plena do mostrar-se a partir de si nele mesmo, i. é, phainómenon e do aberto da clareira da recepção, i. é, do ver simples e imediato e do constituir-se da coisa como mundo. E, no entanto, a coisa-substância na concreção da estruturação da sua dinâmica pode aparecer como Gegenstand, no sentido acima insinuado da configuração perfilada e se destacar da paisagem prejacente. Esse modo de destacar-se do e no todo da prejacência se chama em alemão não propriamente objetivação (Objektivierung), mas Vergegenständlichung. Essa dinâmica do vir à fala da prejacência como sua concreção, da coisa como Gegenstand enquanto movimento de concreção estruturante, embora inserida viva e plenamente na paisagem no seu mostrar-se, na medida em que se perfila, se assenta cada vez mais a partir de e para dentro do vigor da prejacência, de modo que cria no todo da paisagem nitidez cada vez mais decidida da cercania e do fundo, da proximidade e da longitude, fazendo transluzir cada coisa a seu modo a vigência da sua substancialidade. Aqui tornar-se Gegenstand não é nem contrapor-se à prejacência nem à recepção, mas identificar-se com a prejacência cada vez mais na pertença e participação da integração; e atrair e conduzir a recepção à participação co-creativa dessa mesma identificação. No entanto, quando a recepção não se acha suficientemente afinada e devotada na suspensão silente e atenta ao toque do que se mostra a partir de si nele mesmo, o luzir da configuração perfilante da coisa como substância perde a sua vivacidade e concreção, torna-se opaca, por assim dizer isolada da paisagem, a modo de bloco, transformando a paisagem da prejacência num indeterminado fundo opaco, dentro do qual ocorrem os entes como blocos de coisas, como isto e aquilo. E nesse processo de enrijecimento e bloqueamento da dinâmica estruturante da paisagem da prejacência se dá a mistura híbrida do obiectum no sentido da substância-coisa e obiectum no sentido do objeto-representação, ambos no nível de compreensão defasada e com conteúdo esvaziado do seu sentido originário e vivo.

A acima observada formulação de Heidegger ao falar da experiência cotidiana da rosa, ao distinguir aparentemente de um lado materialmente jardim, rosa localizada no jardim, a balouçar ao sabor do vento, e de outro lado ‘espiritualmente’ o esplendor rubro pode ser interpretado dentro do balanço de ambigüidade existente entre o modo de ser do destaque, integrado e inserido na paisagem da substancialidade e o seu modo de ser defasado, bloqueado, da substância como um quê permanente com seus acidentes mutáveis e contingentes.

De tudo isso até agora anotado acerca da objetivação e seu objeto a partir da substância-prejacência, em repetição, diferenciemos:

  1. a) Na estruturação do ente no todo que se abre na paisagem viva e plena da substância como prejacência-hypokeímenon, o ente se perfila e se constitui coisa na nitidez, unidade e no assentar-se em si mesmo a partir de e para dentro do todo da paisagem substancial. Esse firmar-se, tornar-se prenhe da intensidade de ser e assim vir à fala e mostrar-se a partir de si nele mesmo é o movimento de concreção que perfaz a coisa como Gegenstand. Aqui essa “objetivação” coisal, ou melhor, concreção, enquanto pertença e atinência à dinâmica do manifestar-se da substancialdade da pregnância, não é propriamente objetivação no sentido moderno nosso. É antes estruturação natural i.é nasciva do surgir, crescer e consumar-se do mundo substancial, e perfaz o erguer-se e o assentar-se da paisagem substancial em aberturas de regiões, cercanias, perfilações e gestaltizações do ser como coisa: Gegenstand.
  2. b) No momento em que diminui essa dinâmica interna que lança e sustenta as coisas como concreções da prejacência, o todo da paisagem se torna, por assim dizer oco por dentro, e o que ali aparece é apenas a sua superfície opaca endurecida como coisas-objeto. A substancialidade decai na sua compreensão para a substância coisa-bloco, núcleo atomizado e seus acidentes, quais acréscimos externos passageiros e inconstantes ao redor do núcleo imutável. Podemos dizer também da estátua de Apolo, o que se disse até agora da objetivação e seu objeto.
  3. c) Tanto no a) quanto no b), a clareira da recepção permanece sob a contínua exigência do ter que ser sempre de novo e nova na pura afinação da disposição, i. é do devotamento silente e atento, em seguir o surgir, crescer e consumar-se da concreção do ser. É justamente essa afinação que mesmo na desafinação está sob o toque da afinação, de tal sorte que se sabe desafinado, que distingue a diferença de “objetivação e seu objeto” entre a colocação da Idade Média e a da Época Moderna, e em cada uma delas, de novo diferença entre a originária e autêntica e a derivada e defasada. Nesse sentido, talvez devamos dizer que na clareira da recepção não há propriamente desafinação. O que há é afastar-se da experiência nasciva na concreção, no sentido do esquecimento da [58]pertença e integração sob o toque do início iniciante iniciado. Esquecimento esse que traz consigo a ‘possibilidade’ de uma outra epocalidade na determinação da concreção. Assim, se pro-duz um outro tipo de ‘concreção’, que no texto de Heidegger aparece em termos alemães como objektivieren e Objekt, e também como Vergegenständlichunmg e Gegenstand no sentido bem geral de contraposição com o sujeito-homem.
  4. d) Aqui, segundo Heidegger, o que na Idade Média era coisa em destaque como substância-homem na plena e viva pertença e integração à e na substancialidade da paisagem do ser da prejacença se transforma em sujeito-homem, entendido como medida e referência de todas as coisas, como o pressuposto, a partir e dentro do qual os entes são objetos, i. é o lhe vem de encontro como representação do projeto do seu interesse. Assim, quando no exemplo da estátua de Apolo diz: “Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá como um objeto das ciências naturais no seu representar, posso calcular fiscalmente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus”, está agora mencionando objetivação e seu objeto, cujo modo de ser é todo próprio, que de modo mais detalhado examinaremos mais tarde sob a caracterização denominada de “o matemático” numa das anotações. Aqui apenas observemos, em repetição, que no uso, na vida e no saber de nossos afazeres, seja nas vivências cotidianas, seja no saber das ciências, quando começamos a nos interessar pela fenomenologia, o que nos vem ao encontro são objetos no sentido do objeto-representação, mas misturados na sua compreensão com objetos-susbstâncias, ambos defasados da sua acepção originária.

1.4. Objeto e fenômeno

No texto acima de Heidegger, o ser rubro da rosa, o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus, seriam fenômenos, enquanto o mostrar-se a partir de si nele mesmo? O Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus?!… Que coisa é? A tentação é de responder: o que está além ou aquém de toda e qualquer objetivação. Seriam então: ‘Isto’, esse ‘algo’ que não é nem isto nem aquilo, isto que não é, e nem está em nenhum algo, a saber, nem no jardim, nem na rosa que balança de lá para cá e de cá para lá, nem na estátua de mármore, é isto a manifestação, o aparecer, a mira, a maravilha, o transluzir, que está insinuado, quando Heidegger formula o aparecer do Apolo, o fenômeno Apolo, dizendo: como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus? Mas em que sentido insinuado? É que a palavra alemã para indicar a beleza é Schönheit. Schönheit vem do verbo scheinen, que significa parecer. Mas essa acepção já é algo derivado[59]. Originalmente significa luzir, esplender, brilhar. Por isso, phaínesthai é dito como trazer ao dia, vir à luz, colocar-se às claras. Daí a referência do fenômeno à claridade, à luz. Só que essa referência à luz e à claridade deve ser captada de modo todo próprio e não a grosso modo ou ao modo de “de-mostração berrante”, extrovertida da exibição à luz neon, fria, branca, escancarada, sem nuances de sombra. Não se trata também de uma iluminação, feita de fora sobre uma coisa. O modo de mostração do scheinen é algo como transluzir a modo de incandescência. É uma aclaração, o tomar corpo como claridade[60]. É o modo de aparecer do luar. Mas não no sentido de a lua como uma lâmpada a brilhar aparecer, saindo de trás de um monte e iluminar. Antes, como clarear. Para ver o clarear como transluzir, como incandescência, é necessário, por assim dizer, suspender a tendência do nosso saber de tudo enfocar a partir e dentro de uma explicação causal. Nessa última perspectiva da explicação, a lua, o satélite do planeta terra, ao refletir a luz do sol, é causa de iluminação de uma área escura da terra. Em vez desse modo de ver, ‘real e objetivo’, tentemos ver de imediato, digamos ingenuamente, atentos ao crescer da claridade de toda a paisagem enluarada, a que chamaremos de luar. Reina escuridão. A escuridão, antes do luar a clarear, p. ex. numa floresta, não é simplesmente o fato de tudo estar preto; não é apenas ocorrência da falta de luz!… Ela é uma paisagem. Sim um país, um reino, prenhe de perspectivas, planos de presenças de fundo e de superfície, nuances da intensidade e das modalidades de escuridão. A nossa representação da escuridão achata essa paisagem de implicações da multidiversidade da escuridão numa chapa preta homogênea sem nuance e diferenciação ou como superfície de cor preta ou simples ausência da luz. Assim, a nossa representação da escuridão é como a primeira impressão de alguém que entra de dia, numa sala de cinema, e capta o choque da ausência da luz, de sorte que vê tudo preto. Na medida em que o nosso olho vai se adaptando à escuridão, começam a surgir e nos vir ao encontro perspectivas, profundidades, silhuetas, perfis, assombreamentos, constelações de diversas pessoas e coisas, enfim toda uma paisagem. Se permanecermos na fixação da representação, por mais que multipliquemos as representações na sua diversidade, jamais perceberemos o surgir, crescer e firmar-se na dinâmica do todo de tal paisagem da escuridão. No aclarar do luar o modo de ser e a lógica de sua estruturação são os desse surgir, crescer e consumar-se. Nesse sentido, toda a paisagem que se torna cada vez mais clara emerge da escuridão que por sua vez possui a sua emergência a partir e dentro da sua própria paisagem da escuridão como acima foi insinuada. Esse movimento do vir a si e o tomar corpo desse e nesse crescimento ou aumento é o fenômeno, o aparecer, o mostrar-se ele mesmo.  A dinâmica desse aparecer, o tomar corpo do aumento desse crescer se diz em latim através do verbo latino: evideri. Do qual deriva a palavra evidentia, a evidência. O fenômeno é o que se evidencia, a partir de si, a ele mesmo.

Depois dessa descrição do que seja fenômeno, aparecimento, perguntemos: o que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?

Acima, à mão do texto de Heidegger, ao falarmos da objetivação e do objeto, distinguimos suas diferentes significações e percebemos diferentes níveis de colocação da questão.

Na Idade Média, obiectum significa o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar.

Na Idade Moderna, Objekt é o contra-posto como tema do enfoque das ciências naturais. E Gegenstand é algo tematicamente representado (Vollgestellte). Haveria uma diferença decisiva entre “o contra-posto tematicamente representado” e “o lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?

Usualmente não vemos nenhuma diferença essencial entre esses dois tipos de contra-postos. Pois, entendemos a contra-postatização (Vergegenständlichunmg) num sentido geral de oposição entre Sujeito-Objeto, no esquema do juízo S – P da teoria do conhecimento. Segundo Heidegger, no entanto, a grande diferença que advém à compreensão do que seja obiectum na passagem da Idade Média para a Idade Moderna é causada pela transformação operada na época moderna (Descartes) na compreensão do que seja subiectum. Subiectum na Idade Média é substância. Subiectum na Idade Moderna é sujeito.

A diferença entre a compreensão do obiectum enquanto coisa-substância (Idade Média) e obiectum, enquanto objeto-representação, se torna cada vez mais nítida, na medida em que recolocamos a compreensão da coisa-substância na sua compreensão originária da totalidade impregnada da vigência do ser da prejacência-hypokeímenon. A diferença se torna mais nítida ainda, se colocarmos a compreensão do obiectum como objeto-representação de um sujeito. Essa última tarefa deixemos para mais tarde, numa anotação especial.

Aqui vamos apenas aprofundar um pouco mais a compreensão da objetivação e do objeto na acepção do objeto-representação, caracterizado como a nossa compreensão usual moderna do objeto, examinando a ambigüidade da palavra alemã para representar, que é vorstellen.

1.5. Objeto e o representado

Heidegger, no texto acima mencionado, diz do obiectum medieval: o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. E o subiectum medieval  significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex., as coisas. Aqui o subiectum (substantia, hypoleímenon) e obiectum coincidem como prejacência substancial e sua configuração perfilante enquanto destaque-concreção, como foi explicitado acima. Por isso segundo a mencionada explicitação, o “lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar” deve ser entendido correspondentemente como o surgir e firmar-se da vigência de estruturação substancial prejacente na clareira e claridade da recepção obediente ao vir à fala da concreção das coisas. Nessa nossa interpretação aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar não possuem a acepção dessas palavras do uso da psicologia como atos específicos de determinadas faculdades “da alma”, mas modulações da recepção no sentido já explicitado. Por isso as palavras alemãs para lançado e mantido de encontro em face de são: entgegegeworfen e entgegengehalten. Ent-gegen-geworfen (lançado de encontro em face de); ent-gegen-gehalten (mantido de encontro em face de), segunda nossa interpretação (chutação?), evocaria mais ou menos o que experimentamos quando  na caminhada na região montanhosa, ao alcançar o cume de uma montanha, ao dobrar a última curva da estrada, abre-se de uma vez toda a paisagem do vale que se estende magnífico diante de mim. O diante, aqui, não é localização geométrica na minha frente, mas sim o aberto da paisagem, de todo, de uma vez, dentro da qual me acho como uma coisa, junto das outras coisas que partilham plena e vivamente da imensidão prejacente: esse “o aberto” é o que queremos dizer: de encontro em face de: entgegen; lançado, geworfen (werfen, lançar) não indica somente jogar alguma coisa de um lugar para outro, mas conota principalmente o lance, a jogada, no sentido de  “de todo” , “de uma vez”, algo como um salto do qual surge o todo, o eclodir, que não somente surge e faz surgir, mas é mantido na e mantém a dinâmica do surgir e consumar-se. O ent do ent-gegen poderia ser o movimento de vir, abrir-se de lá para cá, ab em latim. Mas, como esse , de onde se vem e se abre, é gegen, o movimento de vir, de se abrir de lá para cá é movimento “contra-posto” ao movimento de abrir-se e soerguer-se de uma paisagem. Assim, o ent-gegen indica o eclodir, o surgir do abrir-se da cercania, da região como paisagem que se estende, envolvendo-me na imensidão da sua proximidade e longitude. Parece que o termo alemão gegen é um variante do gen, que conota o erguer-se de uma paisagem que se abre: o erguer-se e se constituir de uma paisagem é Gegend, palavra para dizer região, e compõe a palavra Gegenstand que, na falta de outra palavra, traduzimos por Objeto, sem poder distinguir do Objekt alemão, que indica o objeto das ciências naturais.

Por isso, o texto determina com maior diferenciação o uso da palavra Gegenstand e Objekt, dizendo: “Para Kant, objeto (Objekt) significa: o contra-posto (Gegenstand) existente da experiência das ciências naturais. Cada objeto (Objekt) é o contra-posto (Gegenstand), mas nem todo contra-posto (Gegenstand) (p. ex. a coisa em si) é um possível objeto (Objekt). O imperativo categórico, o ter que ser ético, o dever não são objetos da experiência das ciências naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles não se tornam por isso objetivados.” “Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto (Objekt), nem sequer um contra-posto (Gegenstand), i. é, um algo tematicamente representado.

Gegenstand aqui indica objeto no sentido bem lato, tudo quanto é contra-posto diante do sujeito-homem como algo. Nesse sentido Gegenstand seria o conceito o mais geral[61] que indicaria abstrata e formalmente apenas o caráter de contra-posição, i. é, de ser algo que aparece como posto a partir e dentro do inter-esse do projeto do sujeito eu. Objekt seria então um caso mais especial de Gegenstand, a saber, contraposto existente na experiência das ciências naturais.

A palavra Gegenstand, ao rejeitar o seu uso para indicar as rosas floridas junto das quais nos regozijamos sentados no jardim, é caracterizado por Heidegger como um algo tematicamente representado (etwas thematisch Vorgestelltem). O advérbio tematicamente é oposto do opertivamente. Operativo quer dizer é o que se é, em operando, em fazendo, em sendo. Tematico significa o que, em operando, em fazendo, em sendo, se traz à consciência. Ou o que se destaca com atenção, com plena consciência.  Em alemão, a palavra representar é vorstellen. Pode significar um ato semelhante ao aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar, mas também pode ter a acepção da palavra lida literalmente como vor + stellen, sugerindo todo um modo de ser. Mas em que sentido? Literalmente, Vorstellen não significa propriamente re-presentar, mas antes uma modalidade toda própria de “contra-pôr”. É que vor significa diante, em frente de, para frente, avançando para frente. E stellen, pôr, colocar, na acepção da expressão: “pôr na parede”, “interpelar”, “colocar a alguém debaixo de uma exigência”, “intimar a alguém a um interrogatório”. É nesse sentido do stellen que se diz: o policial colocou o criminoso diante de si, na parede, em nome da lei, o intimou: “estás preso!” É o contra-posto, o Vor-gestellte. É o produto do que poderíamos denominar de ação da pro-dução interpelativa, entendendo-se a produção como trazer, conduzir para frente, pro-ducere: projetar. E objetivar no sentido da pro-ducção do Objekt tem o modo de ser do vor-stellen todo próprio das ciências naturais físico-matemáticas.

Como já foi dito acima, acerca do objeto e objetivação no sentido do vorstellen, como interpelação produtiva, vamos refletir mais tarde numa das anotações. A seguir fixemos para o nosso uso a acepção dos diversos termos alemães que indicam o objeto, seguindo o que viemos refletindo até agora nesse excurso 2.

a). Usamos a palavra coisa para indicar a substância, o subiectum medieval e também o hypokeímenon. Em alemão seria então die Sache. Aqui poder-se-ia também usar a palavra alemã das Ding.

b). Usamos a palavra objeto para indicar o obiectum do representar (Vorstellen) do homem enquanto sujeito. Aqui usamos em alemão duas palavras Objekt (Objektivieren) e Gegenstand (Vergegenständlichen). Objekt significa o producto contra-posto ao Vorstellen das ciências naturais. Gegenstand, o producto contra-posto ao Vorstellen num sentido mais geral e vasto.

  1. c) Deixamos suspenso, se não se poderia usar a palavra Gegenstand e Vergegenständlichen para indicar num sentido bem originário e vivo o vir à concreção do modo de ser da substância-prejacência como configuração perfilante da dinâmica do abrir-se da paisagem da prejacência, como foi tentado ‘descrever’ ao analisarmos o significado do Gegen, do Deixamos também suspenso, se não poderíamos também usar o termo Gegenstand e Vergegenständlichen agora num sentido deficiente, para indicar a mistura híbrida entre a coisa no sentido medieval e o objeto no sentido da experiência das ciências naturais, ambos os sentidos defasados e esquecidos da sua acepção originária.
  2. d) Seja como for, sejam quais forem as significações que damos a palavras como substância, coisa, objeto-Gegenstand, objeto-Objekt, no fundo de todas elas está o sentido do ente, do ón como fenômeno, a saber: o que se mostra a si, a partir de si, nele mesmo.

1.6. Coisa e Objeto: diferença de impostação na realização da realidade

Depois dessas anotações interrogativas do excurso, à mão do acima citado texto de Heidegger sobre a objetivação, observamos a diferença de impostação na compreensão da realidade entre a Idade Média e Idade Moderna. A diferença provinha da realização da realidade, a partir, dentro e através da pré-compreensão do que seja o ente na sua totalidade, ou melhor, o ente no seu ser, fundamentada na categoria de fundo, chamada substância (originariamente, i. é, em grego, hypokeímenon) na Idade Média e a sua substituição, ou melhor, transmutação dessa categoria de fundo-substância em sujeito da subjetividade, cuja objetividade produz o objeto. Essa nova realização da realidade, essa nova pré-compreensão do ente na sua totalidade, abriu a possibilidade da exigência de colocar a pergunta acerca da coisa e sua coisalidade, portanto, da questão da coisa ela mesma dentro de uma nova perspectiva, na qual a coisa na sua coisalidade é entendida dentro da objetivação e sua objetividade, como coisa, i. é, causa da produção da “realidade”, enquanto objeto, i. é, enquanto o que vem de encontro como resultado do lance do projeto do homem, sujeito e agente e medida de todas as coisas. Nesse sentido, hoje, quando usamos o termo coisa e seus similares como algo, objeto, ente, ser, em alemão Gegenstand, Ding, Sache, de imediato e na maioria dos casos pensamos objeto, segundo o projeto da interpelação produtiva impregnada da dinâmica das ciências naturais sob o poder da tecnologia, portanto pensamos Objekt, e a partir dali nos indagamos: como é, o que é a realização da realidade p. ex. dos medievais, onde a realitas significava substância e seus acidentes, em cuja coisalidade ainda podemos ouvir a tonância do hypokeímenon da antiga Grécia, cuja percussão originária tenha sido talvez bem diferente da que ouvimos hoje na repercussão medieval e repercussão dessa  na nossa modernidade, na perspepctiva da objetividade do “Objekt” da Subjetividade científico-tecnológico. Essa questão então no texto de Heidegger aparece formulada no aceno, através do qual nos surgem as perguntas: em que consiste a realização da realidade, que é anterior a todas essas objetivações epocais? Como se deve entender essa anterioridade e a sua temporalidade, se o tempo da história dessa transmutação da causa da coisa ela mesma é medida e é produzida, pela interpelação produtiva presente de modo quase totalitário na impostação da predominância das ciências e tecnologias historiográficas, produtos da mesma interpelação produtiva acima mencionada, como objetos do projeto da subjetividade moderna?

1.7. Emaranhados na questão chamada coisa da fenomenologia

Repetindo resumidamente o que dissemos da coisa como do objeto, temos: 1. obiectum e subiectum da Idade Média; 2. a transformação do conceito subiectum, enquanto substância, para sujeito; 3. Objekt; e 4. Gegenstand como contra-posto de tipos diferentes tematicamente, do representar, em alemão, do Vorstellen; 5. coisas, cujo ser não é nem a modo de Objekt nem a de Gegenstand, mas do aparecer, do se mostrar, do fenômeno. Se, agora, ligarmos os itens acima resumidos do que foi rapidamente dito acerca da objetivação e suas implicações, de repente, ou aos poucos, surge uma suspeita: quando a esse conjunto de anotações demos o título À coisa ela mesma, fenomenologia? Mencionamos a palavra coisa, cujos termos afins são objeto, ente, algo, em alemão, Objekt, Geegenstand, Ding, Sache, das Seiende, etwas, não estávamos a  adentrar as implicações complexas de uma questão filosófica, cuja busca é o inter-esse e a paixão do modo de ser e pensar denominado fenomenológico? Surge assim a pergunta O que é a fenomenologia. E a sua convocação “à coisa ela mesma” soa tanto mais desafiante, quanto mais se mostra complexa, a nos empurrar para dentro de uma busca fascinante e aventureira.

  1. Fenomenologia, logos e –logia, suas traduções

O título Fenomenologia se compõe de duas palavras fenômeno e logia. Esta vem da palavra grega lógos. Mencionemos brevemente o que e como se deve entender por logia, da palavra fenomenologia, segundo o que Heidegger expõe. Resumamos assim o § 7. B (O conceito de Logos) do Ser e Tempo, p. 32-34:

2.1. O que quer dizer logos?

O conceito de logos é múltiplo, no qual as diversas significações parecem tender para diversas direções sem congruência, enquanto não conseguirmos captar de modo próprio o seu sentido fundamental, uno no seu conteúdo primário, originário grego. É usual dizer que logos significa fala. Essa tradução é somente válida na medida em que, nessa tradução literal, a nossa compreensão atual consiga ouvir e entoar a tonância disso que logos ele mesmo como fala propriamente quer dizer. As múltiplas e arbitrárias traduções provenientes de uma interpretação das filosofias posteriores entulham e encobrem o sentido próprio do que seja a fala, que nos gregos está à luz do dia, simples e claramente. Essas traduções defasadas e impróprias seriam p.ex., razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação. Traduz-se logos também como sentença, enunciação, discurso. Mas se entendermos todos esses termos como juízo, e o juízo como ligação (entre S e P ou S e O) ou tomada de posição (o reconhecer e o rejeitar da ligação), tudo isso dentro da assim chamada “teoria do juízo” na teoria de conhecimento, falseamos o sentido próprio e fundamental da palavra logos.

Assim, segundo Heidegger, lógos como fala diz antes de tudo delõun, fazer patente, isto do qual na fala “vem à fala”. Aristóteles explicitou essa função da fala com maior acuidade como apophaínesthai[62]. Logos deixa ver (phaínesthai) algo, a saber, isto, sobre o qual é a fala e quiçá para o falante (Médium), respectivamente, para os falantes uns com outros mutuamente. A fala “deixa ver apò… a partir disso mesmo, do qual é a fala.  Na fala (apóphansis), na medida em que ela é autêntica, isto que é falado deve ser exaurido, a partir disso sobre o qual é falado, de tal modo que  a transmissão falante no seu falado, faz patente isso, sobre o qual fala e assim o faz acessível ao outro. Esta é a estrutura do logos como apóphansis. Não se apropria a cada “fala” esse modo do fazer patente no sentido do deixar ver manifestante. O pedido (euché) p. ex. faz também patente, mas num outro modo”.

Na sua realização concreta esse deixar ver acontece como sonorização em palavras. Assim, logos é “phonè metà phantasie”, i. é, sonorização vocal, na qual cada vez algo se mostra. É essa função de apóphansis, o logos que faz com que ele tenha a estrutura de sýnthesis. Síntese não tem aqui o significado de ligar e atar representações, lidar com ocorrências psíquicas, fazer com que haja concordância da vivência psíquica interna com o seu corresponde exterior etc. “O syn aqui tem a significação apophântica e quer dizer: deixar ver algo no seu ser-junto-com algo como algo”. Como deixar-ver, logos pode ser verdadeiro ou falso, não porém, na acepção da verdade como adequação, concordância, do juízo como o lugar da verdade. A definição da verdade como adaequatio rei et intellectus não nos conduz à intuição originária da captação do que seja primariamente a verdade, que em grego se diz alétheia.

“O “ser verdadeiro” do logos como aletheúein diz: recolher do seu velamento o ente, do qual é a fala, no légein como apophaínesthai e deixá-lo ver como desvelado (alethés), descobrir”. “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos, é a aísthesis, o singelo colher sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver às cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido ”verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”.

E explicando porque dessa compreensão direta e simples do logos, surgiram traduções de logos como mente (Vernunft), ratio (razão), fundamento, relação, Heidegger conclui a sua exposição, dizendo: “E porque a função do logos está no singelo deixar ver de algo, no deixar colher (Vernehmen) do ente, logos pode significar mente (Vernunft). E porque de novo logos é usado não somente na significação de légein, mas ao mesmo tempo na do legómenon, a saber, o mostrado como tal, e porque este não é outra coisa do que o hypokeímenon, a saber o que jaz no fundo ocorrendo para toda abordagem e toda consideração, logos enquanto legómenon diz também fundo, fundamento, ratio. E finalmente, porque logos enquanto legómenon pode significar: isto que como algo abordado se tornou visível na sua relação para com outro, no seu ser “relacionado” logos recebe a significação de Relação e referência”.

Não vamos agora comentar nem analisar mais a fundo esse texto acima exposto. Tudo isso o faremos no decorrer das seguintes anotações, mais indiretamente do que tematicamente, embora examinemos também tematicamente o texto em questão.

2.2. Logos e aisthesis: a Wahrnehmung

Aqui, por enquanto, apenas destaquemos um ponto que será de importância para mais tarde. O ponto a ser destacado se resume na seguinte frase acima citada: “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos é a aísthesis, o recolher e acolher singelo sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver às cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido” verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”. A importância desse texto destacado para a nossa compreensão da fenomenologia é que nesse texto breve está dito o que e como devemos entender aquilo que constitui a essência da mostração, o ser da presença corpo a corpo da coisa ela mesma, da evidência do ser que recebeu o nome de “Wahr-nehmung”, e que muitas vezes em certas exposições ligeiras da fenomenologia é de alguma forma identificada com a apreensão sensível dentro do esquema de oposição, tradicional: mundo sensível e mundo inteligível. O nosso inter-esse jaz na identificação que é insinuada no texto acima mencionado entre aisthesis, lógos e nõus como o límpido, puro  deixar ver, como o colhimento do alethéuein.

2.3. Fenomenologia

Depois de tudo isso, concluamos essas anotações, citando, como uma compreensão ainda provisória, o significado da fenomenologia no Ser e Tempo: “Tornando concretamente presente o que resultou da interpretação de ‘fenômeno’ e ‘logos’, salta aos olhos uma referência interna entre o que é pensado com essas palavras. A expressão Fenomenologia deixa-se formular gregamente: légein ta phainómena; légein diz, porém apophaínesthai. Assim Fenomenologia diz: apophaínesthai tà phainómena: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo. Este é o sentido formal da pesquisa, que se dá a si mesma o nome de fenomenologia. Com isso, porém, é expressa nada mais que a máxima acima formulado como: Zur Sache selbst, i. é, “À coisa ela mesma”.

Assim, chegamos à conclusão, ainda que provisória: a convocação que está na palavra fenomenologia, enquanto deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, é expressa numa outra formulação: à coisa ela mesma (Zur Sache selbst!). Diante dessa convocação, porém, segundo o título da nossa reflexão, perguntemos, em repetição: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo? Dito com outras palavras: O que é fenomenologia? Ou ainda numa outra formulação: O que é à coisa ela mesma?

E porque, como acima foi mencionado, à coisa ela mesma é o mesmo que fenomenologia, e porque fenomenologia diz deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, a interrogação o que é fenomenologia agora pergunta: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo?

A pergunta tem por objeto “deixar ver”, portanto, um ato do sujeito homem. E formula o seu interrogatório: o que é?… A pergunta cujo feitio tem a forma de o que é? chama-se pergunta essencial ou pela essência, ou pelo ser do ente e pelo ente do ser que está em jogo. Assim, ao submeter um objeto ao seu interrogar, a pergunta o coloca como um “que” e indaga acerca do seu ser. Assim a pergunta tem diante de si um  “quê”, um ente, interrogado pelo seu ser. Ente e Ser, ente no Ser e Ser no ente. E a pergunta ela mesma pode se virar sobre si mesma e também se colocar como um “que”, como um ente e se interrogar no seu ser.

Isto significa, porém, que ao iniciarmos a reflexão intitulando-a À coisa ela mesma, a Fenomenologia?, a própria colocação inicial já estava determinada a posicionar o que quer que fosse, o que quer que ela tocasse na sua interrogação, como ente interrogando-o no seu ser.

2.4. Fenomenologia como questão do sentido do ser[63]

A pergunta que interroga o ente no seu ser se chama questão do sentido do ser. Questão significa busca.

Segundo Ser e Tempo, § 2 (A estrutura formal da pergunta pelo ser), numa busca temos o que buscamos. O que buscamos é o ser, ou melhor, o sentido do ser. Não encontramos o sentido do ser como isso ou aquilo, não como algo, como ente, como objeto, como o contra-posto, seja ele de que feitio for, não como coisa-Ding, coisa-Sache. Tudo isso que nomeamos como termos indicativos afins ao ente, que aparecem como coisas de infinitas variações, nuances e diferenciações, são como que lugares, situações, a partir e dentro das quais a busca procura o seu buscado, o Ser, submetendo o respectivo ente sob o interrogatório acerca do seu ser. Essa situação da busca se perfaz numa estruturação de colocação bipolar, na qual num dos polos se acha o interrogante com o seu interrogatório e no outro o interrogado como ente-objeto, contraposto ao quem interroga. Surge assim uma interação, um intercâmbio de dois tipos de ente, denominados usualmente como sujeito e objeto[64]. Esta estruturação pode se dar em diferentes complexidades de interação, e em interpretações diferenciadas, mas como tal, por assim dizer, estatui o modo de agir e ser do que denominamos conhecimento, cuja estruturação está baseada na definição tradicional da verdade como adequação da coisa e do inteleto,[65] cuja esquematização se fixa como relação S – O, refletido na fala lógica como S-P, i. é, conhecimento como juízo. Essa fixação é algo como redução da questão do sentido do ser à estrutura da teoria do conhecimento, insuficiente para levar à consumação a busca, na sua radicalidade. Assim, substitui-se por doutrina e teoria dogmatizada do conhecimento, a questão do sentido do ser que se perfaz como busca do sentido do ser na situação do ente submetido ao interrogatório acerca do seu ser, a partir e dentro do qual pode emergir o vir à fala do ser no seu sentido, não como ente, como algo, não como algo-sujeito, nem como algo-objeto, nem como algo comum de dois, mas como pregnância de uma presença toda própria como ente-no-ser e ser-no-ente.

A fenomenologia, como deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo é a tentativa de fazer retornar a busca da verdade enquanto questão do sentido do ser, libertando-a desse aprisionamento impróprio da sua essência dentro da camisa de força da teoria do conhecimento, a convocando à volta para a coisa ela mesma, i. é, à causa ela mesma da sua dinâmica, evocada na própria expressão fenomenologia , i.é, deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delõun.

Da Fenomenologia (um resumo chato superficial)

  1. Fenomenologia, logos e logia, suas traduções

O título Fenomenologia se compõe de duas palavras fenômeno e logia. Esta vem da palavra grega lógos. Mencionemos brevemente o que e como se deve entender por logia, da palavra fenomenologia, segundo o que Heidegger expõe. Resumamos assim o § 7. B (O conceito de Logos) do Ser e Tempo, p. 32-34:

2.1. O que quer dizer logos?

O conceito de logos é múltiplo, no qual as diversas significações parecem tender para diversas direções sem congruência, enquanto não conseguirmos captar de modo próprio o seu sentido fundamental, uno no seu conteúdo primário, originário grego. É usual dizer que logos significa fala. Essa tradução é somente válida na medida em que, nessa tradução literal, a nossa compreensão atual consiga ouvir e entoar a tonância disso que logos ele mesmo como fala propriamente quer dizer. As múltiplas e arbitrárias traduções provenientes de uma interpretação das filosofias posteriores entulham e encobrem o sentido próprio do que seja a fala, que nos gregos está à luz do dia, simples e claramente. Essas traduções defasadas e impróprias seriam p.ex., razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação. Traduz-se logos também como sentença, enunciação, discurso. Mas se entendermos todos esses termos como juízo, e o juízo como ligação (entre S e P ou S e O) ou tomada de posição (o reconhecer e o rejeitar da ligação), tudo isso dentro da assim chamada “teoria do juízo” na teoria de conhecimento, falseamos o sentido próprio e fundamental da palavra logos.

Assim, segundo Heidegger, lógos como fala diz antes de tudo delõun, fazer patente, isto do qual na fala “vem à fala”. Aristóteles explicitou essa função da fala com maior acuidade como apophaínesthai[66]. Logos deixa ver (phaínesthai) algo, a saber, isto, sobre o qual é a fala e quiçá para o falante (Médium), respectivamente, para os falantes uns com outros mutuamente. A fala “deixa ver apò… a partir disso mesmo, do qual é a fala.  Na fala (apóphansis), na medida em que ela é autêntica, isto que é falado deve ser exaurido, a partir disso sobre o qual é falado, de tal modo que  a transmissão falante no seu falado, faz patente isso, sobre o qual fala e assim o faz acessível ao outro. Esta é a estrutura do logos como apóphansis. Não se apropria a cada “fala” esse modo do fazer patente no sentido do deixar ver manifestante. O pedido (euché) p. ex. faz também patente, mas num outro modo”.

Na sua realização concreta esse deixar ver acontece como sonorização em palavras. Assim, logos é “phonè metà phantasie”, i. é, sonorização vocal, na qual cada vez algo se mostra. É essa função de apóphansis, o logos que faz com que ele tenha a estrutura de sýnthesis. Síntese não tem aqui o significado de ligar e atar representações, lidar com ocorrências psíquicas, fazer com que haja concordância da vivência psíquica interna com o seu corresponde exterior etc. “O syn aqui tem a significação apophântica e quer dizer: deixar ver algo no seu ser-junto-com algo como algo”. Como deixar-ver, logos pode ser verdadeiro ou falso, não porém, na acepção da verdade como adequação, concordância, do juízo como o lugar da verdade. A definição da verdade como adaequatio rei et intellectus não nos conduz à intuição originária da captação do que seja primariamente a verdade, que em grego se diz alétheia.

O “ser verdadeiro” do logos como aletheúein diz: recolher do seu velamento o ente, do qual é a fala, no légein como apophaínesthai e deixá-lo ver como desvelado (alethés), descobrir”. “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos, é a aísthesis, o singelo colher sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver às cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido ”verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”.

E explicando porque dessa compreensão direta e simples do logos, surgiram traduções de logos como mente (Vernunft), ratio (razão), fundamento, relação, Heidegger conclui a sua exposição, dizendo: “E porque a função do logos está no singelo deixar ver de algo, no deixar colher (Vernehmen) do ente, logos pode significar mente (Vernunft). E porque de novo logos é usado não somente na significação de légein, mas ao mesmo tempo na do legómenon, a saber, o mostrado como tal, e porque este não é outra coisa do que o hypokeímenon, a saber o que jaz no fundo ocorrendo para toda abordagem e toda consideração, logos enquanto legómenon diz também fundo, fundamento, ratio. E finalmente, porque logos enquanto legómenon pode significar: isto que como algo abordado se tornou visível na sua relação para com outro, no seu ser “relacionado” logos recebe a significação de Relação e referência”.

Não vamos agora comentar nem analisar mais a fundo esse texto acima exposto. Tudo isso o faremos no decorrer das seguintes anotações, mais indiretamente do que tematicamente, embora examinemos também tematicamente o texto em questão.

2.2. Logos e aisthesis: a Wahrnehmung

Aqui, por enquanto, apenas destaquemos um ponto que será de importância para mais tarde. O ponto a ser destacado se resume na seguinte frase acima citada: “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos é a aísthesis, o recolher e acolher singelo sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver às cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido” verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”. A importância desse texto destacado para a nossa compreensão da fenomenologia é que nesse texto breve está dito o que e como devemos entender aquilo que constitui a essência da mostração, o ser da presença corpo a corpo da coisa ela mesma, da evidência do ser que recebeu o nome de “Wahr-nehmung”, e que muitas vezes em certas exposições ligeiras da fenomenologia é de alguma forma identificada com a apreensão sensível dentro do esquema de oposição, tradicional: mundo sensível e mundo inteligível. O nosso inter-esse jaz na identificação que é insinuada no texto acima mencionado entre aisthesis, lógos e nõus como o límpido, puro  deixar ver, como o colhimento do alethéuein.

2.3. Fenomenologia

Depois de tudo isso, concluamos essas anotações, citando, como uma compreensão ainda provisória, o significado da fenomenologia no Ser e Tempo: “Tornando concretamente presente o que resultou da interpretação de ‘fenômeno’ e ‘logos’, salta aos olhos uma referência interna entre o que é pensado com essas palavras. A expressão Fenomenologia deixa-se formular gregamente: légein ta phainómena; légein diz, porém apophaínesthai. Assim Fenomenologia diz: apophaínesthai tà phainómena: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo. Este é o sentido formal da pesquisa, que se dá a si mesma o nome de fenomenologia. Com isso, porém, é expressa nada mais que a máxima acima formulado como: Zur Sache selbst, i. é, “À coisa ela mesma”.

Assim, chegamos à conclusão, ainda que provisória: a convocação que está na palavra fenomenologia, enquanto deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, é expressa numa outra formulação: à coisa ela mesma (Zur Sache selbst!). Diante dessa convocação, porém, segundo o título da nossa reflexão, perguntemos, em repetição: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo? Dito com outras palavras: O que é fenomenologia? Ou ainda numa outra formulação: O que é à coisa ela mesma?

E porque, como acima foi mencionado, à coisa ela mesma é o mesmo que fenomenologia, e porque fenomenologia diz deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, a interrogação o que é fenomenologia agora pergunta: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo?

A pergunta tem por objeto “deixar ver”, portanto, um ato do sujeito homem. E formula o seu interrogatório: o que é?… A pergunta cujo feitio tem a forma de o que é? chama-se pergunta essencial ou pela essência, ou pelo ser do ente e pelo ente do ser que está em jogo. Assim, ao submeter um objeto ao seu interrogar, a pergunta o coloca como um “que” e indaga acerca do seu ser. Assim a pergunta tem diante de si um  “quê”, um ente, interrogado pelo seu ser. Ente e Ser, ente no Ser e Ser no ente. E a pergunta ela mesma pode se virar sobre si mesma e também se colocar como um “que”, como um ente e se interrogar no seu ser.

Isto significa, porém, que ao iniciarmos a reflexão intitulando-a À coisa ela mesma, a Fenomenologia?, a própria colocação inicial já estava determinada a posicionar o que quer que fosse, o que quer que ela tocasse na sua interrogação, como ente interrogando-o no seu ser.

2.4. Fenomenologia como questão do sentido do ser[67]

A pergunta que interroga o ente no seu ser se chama questão do sentido do ser. Questão significa busca.

Segundo Ser e Tempo, § 2 (A estrutura formal da pergunta pelo ser), numa busca temos o que buscamos. O que buscamos é o ser, ou melhor, o sentido do ser. Não encontramos o sentido do ser como isso ou aquilo, não como algo, como ente, como objeto, como o contra-posto, seja ele de que feitio for, não como coisa-Ding, coisa-Sache. Tudo isso que nomeamos como termos indicativos afins ao ente, que aparecem como coisas de infinitas variações, nuances e diferenciações, são como que lugares, situações, a partir e dentro das quais a busca procura o seu buscado, o Ser, submetendo o respectivo ente sob o interrogatório acerca do seu ser. Essa situação da busca se perfaz numa estruturação de colocação bipolar, na qual num dos polos se acha o interrogante com o seu interrogatório e no outro o interrogado como ente-objeto, contraposto ao quem interroga. Surge assim uma interação, um intercâmbio de dois tipos de ente, denominados usualmente como sujeito e objeto[68]. Esta estruturação pode se dar em diferentes complexidades de interação, e em interpretações diferenciadas, mas como tal, por assim dizer, estatui o modo de agir e ser do que denominamos conhecimento, cuja estruturação está baseada na definição tradicional da verdade como adequação da coisa e do inteleto,[69] cuja esquematização se fixa como relação S – O, refletido na fala lógica como S-P, i. é, conhecimento como juízo. Essa fixação é algo como redução da questão do sentido do ser à estrutura da teoria do conhecimento, insuficiente para levar à consumação a busca, na sua radicalidade. Assim, substitui-se por doutrina e teoria dogmatizada do conhecimento, a questão do sentido do ser que se perfaz como busca do sentido do ser na situação do ente submetido ao interrogatório acerca do seu ser, a partir e dentro do qual pode emergir o vir à fala do ser no seu sentido, não como ente, como algo, não como algo-sujeito, nem como algo-objeto, nem como algo comum de dois, mas como pregnância de uma presença toda própria como ente-no-ser e ser-no-ente.

A fenomenologia, como deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo é a tentativa de fazer retornar a busca da verdade enquanto questão do sentido do ser, libertando-a desse aprisionamento impróprio da sua essência dentro da camisa de força da teoria do conhecimento, a convocando à volta para a coisa ela mesma, i. é, à causa ela mesma da sua dinâmica, evocada na própria expressão fenomenologia , i.é, deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delõun.

Intencionalidade

A exposição de até agora, sucinta e desengonçada, acerca de que se trata quando falamos de fenomenologia deixa muito a desejar, e por isso necessita de melhorias, correções e complementação. Dito em termos acadêmicos carece de tematização, de “pontuações”, de uma explanação mais ampliada e sistematizada.  Apesar de perceber claramente essa carência e falha, a seguinte coleção de anotações amadoras, não consegue nada melhorar, a não ser talvez enrolar cada vez mais a fala, de que se trata, quando dizemos: Fenomenologia ou Zur Sache selbst! Mas, abusando da proposta de que essas reflexões são anotações,  tomamos  a liberdade a seguir, a liberdade de multiplicar anotações em reflexões inacabadas, tendo, porém, no fundo a intenção de  repetir e dizer de novo o que já foi dito até agora, e tentar dizer de que se trata, quando operativamente, falamos sobre isso e aquilo fenomenologicamente, i. é, intencionalmente, mais ou menos segundo o que foi exposto acima acerca da compreensão fenomenológica da intencionalidade. Assim, a seguir em diferentes anotações tentemos repetir o que já foi dito, sem, porém, com isso poder satisfazer a demanda de maior precisão, amplidão e competência na reflexão e fala acerca da fenomenologia. Em todo caso, tudo que aqui a modo de anotações enroladas e amadoras foi e é aventado sobre “à coisa ela mesma, a fenomenologia”, gostaria de ter no fundo o que no capítulo I foi dito da fenomenologia, a saber: do evideri, do “captar simples e imediato” que é um modo de dizer o que na Anotação fenomenológica I se denominou fenômeno, a saber: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delõun.

  1. Intencionalidade como a aberta?

Aqui a aberta seria a tradução da expressão alemã, em uso na fenomenologia, das Offene. A aberta é abertura, fenda, nesga do céu que as nuvens, abrindo-se, deixam ver em dias chuvosos (Aurélio). Das Offene não é propriamente uma fenda, não é bem abertura, pois é o substantivo neutro do adjetivo offen, o aberto. Trata-se de adjetivo substantivado. Nele, o substantivo não diz própria e primeiramente que aqui ocorre um algo, que possui a qualidade de ser aberto, mas que a dinâmica do abrir-se se tornou consumada, a ponto de aparecer como in e per-sistente em si mesmo. O aberto indica, pois, uma qualidade, digamos, um quilate do ser (verbo), subsistente, assentado na sua identidade como em si, por si, a partir de si: o delõun, o evidente, o pré-sente como presença. Torna-se claro que não é adequado traduzir das Offene por a aberta. Pois, a aberta como fenda nas nuvens que encobrem o aparecer do céu conota que há algo ali, atrás do qual se oculta uma outra realidade, que por um instante aparece, através da fenda como nesga do céu. No entanto, se observarmos mais atentamente o que seja a fenda, na e através da qual se mostra o céu aberto, percebemos que o céu aberto, jamais é uma nesga, ou melhor, o mostrar-se do céu jamais é parcial na sua e-vidência, mas, por menor que seja a possibilidade de aparecer, por infinitesimal que seja a fenda, o transluzir do céu aberto é sempre e em cada fenda cabal e ab-soluto. A aberta, a fenda é fenda somente porque deixa ser esse modo da mostração. Com outras palavras, na abertura de uma fenda o espaço aberto, o horizonte, o abrir-se e o que se abre coincidem como das Offene[70].

Usualmente quando falamos na fenomenologia de intencionalidade, não orientamos a nossa fala na direção da aberta, nem do aberto, mas sim na direção do objeto, na compreensão usual e banalizada do texto de Brentano acima mencionado, lendo-o: “cada ato psíquico tende em direção ao seu objeto”. Por isso, podemos estranhar que aqui se chame de intencionalidade o modo de ser da aberta, enquanto delõun. Examinemos com mais detalhes essa questão.

Geralmente, quando falamos da intencionalidade na fenomenologia, partimos da teoria do conhecimento, dentro da padronização esquematizada do problema da possibilidade de conhecimento verdadeiro, mais ou menos no seguinte teor:

  1. A intencionalidade, o conhecimento verdadeiro, o esquema S-O

Estou aqui e agora, num determinado instante do tempo e do espaço, cercado de coisas em diferentes classificações, e isto, tanto dentro de mim como fora de mim. Essas classificações são p. ex. coisas da realidade sensível, coisas da realidade suprasensível; dentro da realidade sensível: coisa físico-material, coisa-vida-vegetal, coisa-vida-animal, coisa vida-humana e seus produtos; na realidade suprasensível: coisas divinas, a saber, Deus, anjos, espíritos, espírito e alma humanos, suas faculdades e seus produtos; coisas da realidade fora de mim, coisas da realidade dentro de mim; coisas da realidade, em si, independente da minha mente, existente por e para si; coisas da realidade, produtos da minha mente, fantasias, imaginações, crenças e interpretações etc. As coisas da realidade que está dentro de mim, imanente a mim, constituem o meu mundo subjetivo; as coisas da realidade que está fora de mim, a mim transcendentes, formam o mundo objetivo. Naquela definição ‘tradicional’ da verdade adaequatio rei et intellectus, eu e o meu mundo subjetivo, portanto eu como sujeito e agente de meus atos é o intellectus, e tudo quanto fica fora de mim, as coisas da realidade em si, a mim transcendentes são res.

Assim, colocado no mundo, no meio de inúmeras e variegadas coisas, eu me pergunto: como é possível que se dê a relação chamada conhecimento, entre eu sujeito, sua imanência (S) e as coisas ou os objetos (O) que me são transcendentes? Como é possível que algo de fora, que está numa dimensão diferente à do eu-sujeito, pode entrar, dentro de mim e me dar notícia de uma coisa que está fora de mim? Embora tal esquematização da relação S – O seja uma simplificação quase caricatural do que realmente sucede no ato de conhecimento, é interessante observar que fora-e-dentro aqui é determinado pelo nosso corpo. E se observamos com maiores detalhes o que queremos dizer aqui com fora e dentro, ficamos perplexos. Pois o dentro, i. é, o sujeito, onde está? Dentro do corpo? Mas dentro do corpo, onde? Dentro do fígado? Nas entranhas? No coração? Ou na ponta dos dedos da mão esquerda? Mas todos esses ‘dentros’ mencionados não estão dentro, mas sim fora do sujeito e agente do ato de conhecer, pois eles são objetos desse ato do conhecer. E o próprio eu-sujeito e seus atos, todas as representações, fantasias, estados do humor do eu-sujeito, tudo que me é imanente, portanto, todas essas ‘coisas’ fora e dentro do sujeito e o próprio sujeito, não são na ‘realidade’ fora do sujeito-eu enquanto objetos do meu conhecer? Isto quer dizer que tudo quanto assim vem de encontro a mim, inclusive eu mesmo, é no fundo produto da objetivação. E o sujeito-eu ele mesmo, enquanto sujeito, não é nenhuma coisa, objetada, contra-posta como coisa ou objeto, mas o que é? Isto significa por sua vez que o sujeito e o objeto assim contrapostos no esquema S – O são objetos de objetivação realizada por quem? Esse quem é o ato, que não deve ser representado como uma ação ou atuação de uma coisa chamada eu-sujeito, mas como dinâmica do processo a qual Brentano chama de fenômeno psíquico, e Husserl, de vivência (Erlebnis), a qual, segundo Husserl, formulada em termos de um Descartes se chama cogitatio, ou cogitans sum ou mais explicitamente ego cogito cogitatum.

Captar essa dinâmica do processo, essa estruturação atuante, a vivência, o fenômeno psíquico nele mesmo, e não o enquadrar na bitola da compreensão usual do esquema estático S – O, causa sempre grande dificuldade. A tentativa de Husserl, ao des-cobrir no fenômeno psíquico de Brentano a intencionalidade no sentido fenomenológico, é exatamente uma tentativa contrária à nossa, a saber, de reconduzir o esquema fossilizado S-O à dinâmica do Erlebnis, do cogitans-sum.

No quadro da compreensão usual estática do S-O, embora diferentes no seu ser, tanto sujeito como objeto, são coisas, objetos, ocorrentes em si, independentes no seu existir um do outro, ligados por ato de conhecer, cujo sujeito e agente é a coisa-sujeito, e cujo ser não tem o modo de ser da coisa em si (substância), mas da ‘coisa’ no outro (acidente). Assim colocados o Sujeito e o Objeto, na sua ligação no ato de conhecimento verdadeiro, portanto esse ato duplicado em polo-objeto e em polo-sujeito não é outra coisa do que a reprodução do que está formulado na definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus.

Essa fórmula latina da verdade é medieval e está formulada de tal modo que oculta duas definições: adequatio rei ad Intellectum divinum (adequação da coisa ao intelecto divino) e adaequatio intellectus (humani) ad rem (adequação do intelecto humano à coisa). No fundo dessa dupla formulação acoplada está a doutrina da criação: as coisas do universo, as criaturas, no seu ser, são feitas na adequação com o intelecto divino, que as concebeu e as trouxe à existência; por isso, o intelecto humano, ao abrir-se às obras do intelecto divino, às criaturas, na medida em que capta a sua essência, é iluminado, e pode se adentrar na viagem do retorno à fonte de todas as coisas, num intinerarium mentis in Deum (viagem da mente para dentro de Deus).

Para nós, hoje, o fundo dessa definição duplicada se retrai, por ser ele de origem teológica, e nos resta apenas a compreensão da definição enquanto adaequatio rei et intellectus humani, na qual intellectus significa sujeito e res objeto, mas agora de novo duplamente, num sentido bem diferente ao da definição medieval, a saber: adaequatio intellectus ad rem (conformidade do sujeito ao objeto) e adequatio rei ad intellectum (conformidade do objeto ao sujeito). Daqui, na manualística de certos sistemas de ensino da filosofia, surge o esquema S – O do assim chamado realismo (objetivismo) e idealismo (subjetivismo). Caricaturando numa simplificação máxima: no realismo o que se dá de antemão são coisas em si diante e ao redor de mim; eu-sujeito com os seus atos, p. ex. no ato do conhecer, é qual chapa fotográfica que reproduz em imagens, representações e ideias a realidade de lá fora, dos entes do mundo circundante, pré-jacente. Critério da verdade e da sua certeza é objetividade. No ‘idealismo’ ou subjetivismo, se dá o contrário: acerca do que e como seja a realidade fora de mim, ou se realmente há uma realidade em si, a mim transcendente, não posso ter nenhuma certeza; pois o que se dá de imediato e primariamente é o eu-sujeito e seus pro-dutos imanentes. E se, mesmo que, como diz o realismo, haja a realidade em si, dele posso ter notícia através do eu-sujeito e das suas faculdades de captação, a saber, dos sentidos e do entendimento e da razão, imanentes em mim. Essa descrição do realismo e do idealismo, na teoria do conhecimento em certos manuais de filosofia, é sem dúvida, uma caricatura. Nenhuma teoria de conhecimento que leva a sério a sua busca ensina tal doutrina. No entanto, esse modo da compreensão ‘ingênua’ da adaequatio rei et intellectus, pode infestar a nossa mente, na vida e no uso e mesmo nas ciências, quando queremos sem pensar muito explicar a realidade, em nós e ‘fora’ de nós. A esse modo de entender, tanto do realismo como do idealismo, tanto do objetivismo como do subjetivismo, Husserl caracteriza como impostação natural, virado às coisas, alienada do problema da possibilidade do conhecimento[71]. Aqui, tanto o realismo como o ‘idealismo’ operam na ingenuidade de um ‘realismo’ deficiente, que não despertou para a questão da possibilidade do conhecimento. Com outras palavras, na impostação do conhecer está fixa, presa na obviedade dogmatizada e opaca da condição da possibilidade do conhecimento. Entende a possibilidade do conhecimento dentro da estrutura estática S-O, sem jamais sequer desconfiar que aqui há um problema de fundo, a partir e dentro do qual se dá tanto o sujeito como o objeto e sua inter-relação como adequação, problema de fundo que coloca em questão, em busca o sentido do ser do sujeito e o sentido do ser do objeto, na sua diferença ontológica. Portanto, alienado da compreensão do que seja o ser do conhecimento.

A questão do sentido do ser do conhecimento, num certo nível bem iniciante da compreensão do que seja intencionalidade, aparece como contensão do e tensão ao objeto. Assim, diz Brentano, como já foi mencionado antes: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Essa contensão do e tensão ao objeto é usualmente entendida de modo banal: eu daqui, em meus variegados atos psíquicos, dirijo-me ao objeto ali presente diante ou ao redor de mim, como ao fim, e assim os meus atos contêm em si algo do objeto.  Nessa tendência, o objeto está diante de mim e me vem ao encontro em dupla distinção: ora como objeto em si, existente nele mesmo, ora como referido a mim, enquanto algo contido nos meus atos. Surgem assim os conteúdos objetivos e o objeto em si. O objeto em si não pode ser captado direta e imediatamente. Ele o é de alguma forma apreensível através dos conteúdos objetivos contidos nos meus atos, a modo de aproximação paulatina num movimento assintótico. Nesse sentido, o objeto em si está também contido nos meus atos, enquanto função unitiva dos diversos conteúdos objetivos dos meus atos em referência à realidade do objeto em si. E por assim dizer na ponta da tensão indicativa do em si enquanto função unitiva dos conteúdos objetivos imanentes nos meus atos, o objeto em si aparece com um ponto x em fuga para cada vez mais além do que se me apresenta como mostração dele. E ao mesmo tempo em que se dá esse movimento da ‘adentração’ em direção ao x em si em fuga, os objetos enquanto conteúdos na contenção e tensão dos atos se estruturam em   variegadas constelações de objetos multímodos, constituindo multifários uni-versos, mundos, regiões, sub-regiões, setores, áreas, campos, classificações dos entes, denominados por Husserl de noema. E o (s) sujeito-eu (s) e seus atos, enquanto também objeto da intencionalidade, i. é, da contenção e tensão do ato de conhecer, amar, julgar etc., se estrutura como uni-verso, mundo, região etc., todo próprio, o qual poderíamos chamar de mundo da subjetividade, ao lado do mundo da objetividade, perfazendo a grande divisão dos entes em mundo do ente humano e mundo do ente-não humano, a partir da qual divisão, podem surgir binômios como Homem e Mundo, Cultura e Natureza, História e Natureza etc., divisão que aparece p. ex. na classificação das ciências enquanto ciências humanas e ciências naturais[72].

Aqui, surge um problema. Como captar o sujeito e seus atos enquanto sujeito e não enquanto objeto? O conjunto dos conteúdos referidos ao sujeito-homem e seus atos enquanto ‘objeto’ da contensão e tensão do ato de conhecer o homem e o seu mundo são também noema? Ali também surge um ponto x assintótico, que une a série de dados acerca do sujeito e seus atos numa unidade? Há aqui uma diferença na objetividade, na objetivação, diferença que surge na medida em que de um lado temos o sujeito-homem e seus atos por objeto, portanto como objetos imanentes, e o objeto-não-humano e suas características por objeto, portanto objetos transcendentes? A essa altura da reflexão é útil observar que aqui, os termos “sujeito” e “seus atos”, recebem uma dupla significação. Uma vez significa sujeito e seus atos enquanto objeto e sujeito e seus atos enquanto sujeito do ato que tem o sujeito e seus atos como objeto. Este, recebe em Husserl o nome de subjetividade transcendental. Aquele, sujeito empírico. Conforme o que foi dito na Anotação fenomenológica II, quando se falou da descoberta da intensionalidade, através do texto de Brentano no livro Psicologia sob o ponto de vista empírico em todo o fenômeno psíquico (leia-se intencionalidade ou ato) se dá como momentos do próprio ato, dois momentos quais bipolaridade do mesmo ato, o polo objeto e polo sujeito. Essa bipolaridade, na impostação natural cotidiana, aparece como duas coisas ou dois objetos separados ligados pelo ato no esquema estática S – O na colocação do que acima denominamos de realismo deficiente. Nesse esquema, o sujeito aparece como sujeito empírico e a ele corresponde o objeto empírico. Mas o que perfaz a condição da possibilidade para que se dê a realidade como esquema estático S – O, portanto a condição da possibilidade do sujeito e objeto empíricos, é o que acima denominamos de Subjetividade transcendental. Haveria aqui digamos no nível transcendental um correlato à subjetividade, uma objetividade transcendental? O que ‘realmente’ quer dizer noesis em Husserl, quando a coloca como correlativa a noema? Tudo isso se dá somente no nível do empírico, ou se dá também no nível transcendental? Haveria noema transcendental e noesis transcendental? Que coisa é essa a Subjetividade Transcendental? A Subjetividade Transcendental de Husserl tem algo a ver com o que acima denominamos com o termo a aberta, das Offene?

  1. Intencionalidade: subjetivismo empírico e Subjetividade transcendental

No texto de Brentano acima mencionado, onde Husserl descobriu a intencionalidade fenomenológica, tudo parece empírico. E parece nem sequer se tratar de subjetivismo, mas sim de realismo ou objetivismo empírico. Como tal, ali está um objeto, como uma coisa em si, real, e é abordado, a partir de vários pontos de vista, do ponto de vista do ato representação, do juízo, do amor, do ódio, da cobiça etc. Temos assim um objeto visto por vários aspectos subjetivos. Somando-se os aspectos subjetivos, que são visões parciais do todo do objeto, me aproximo cada vez mais da compreensão total do objeto. A interpretação que Husserl faz do texto de Brentano, no entanto, vê a situação desse texto bem diferente. Em primeiro lugar, não se trata de um objeto ali presente, visto sob o ponto de vista de vários atos. Nesse sentido não é intencionalidade a modo do realismo. Trata-se de perceber que os atos não são pontos de vista, mas uma totalidade em si, digamos, completa, onde tem o seu próprio objeto e o próprio sujeito adequados ao ato correspondente. Assim, o mundo da representação é uma totalidade, toda própria, com o seu sujeito, seu ato e seu objeto. O mesmo se diga do mundo do juízo, do amor, do ódio, da cobiça etc. Cada qual totalmente diferente, próprio, com sua lógica própria. É, mais ou menos, como jogos e lutas de competições esportivas. Jogo de futebol, de xadrez, de vôlei, de judô, de capoeira, de briga na rua, de peteca, cada qual possui sua lógica, sua lei, normas e dicas, cada qual é todo ele completo como jogo, luta, competição, um bem diferente do outro. É de importância para a compreensão fenomenológica da intencionalidade, captar com precisão essa situação, e não declinar para uma compreensão que permanece fixa ainda no realismo empírico deficiente, acima mencionado. Pois pode-se ter a impressão de que tal concepção do conhecimento, reduz tudo ao relativismo e ao subjetivismo do ponto de vista. Não haveria mais um objeto em si, real, mas apenas produto do ato do sujeito? Tudo não se dissolveria no fluxo contínuo e cada vez variante dos atos, em impressões e vivências fugidias, sem nada de firme, constante, de certo e verdadeiro?  Um fluir caótico de impressões, apercepções, representações, sem nenhuma orientação de constituição, carente de toda e qualquer centralização unificativa, nem no polo do sujeito, nem no polo do objeto? Ou projeções do sujeito-eu em mil e mil variantes de mundos de objetos, como que a criar continuamente e arbitrariamente realidades virtuais? A intencionalidade, assim descoberta nos textos de Brentano, no entanto, apresenta uma constituição interna bem ordenada, abrindo-se de um lado, enquanto totalidade própria e bem estruturada de entes como mundo (noema), e de outro lado, de modo correlato, pulsando no eclodir, crescer e consumar-se da estruturação do mundo, como o fluir da dinâmica na condução do seu modo de ser (noesis). Denominemos o todo dessa estruturação do mundo no fluir da dinâmica na condução do seu modo de ser de ser-no-mundo. Só que esse ser-no-mundo não deve ser representado como se o sujeito-homem estivesse no meio do mundo como um ente cercado de outros entes, como algo dentro do espaço aberto, onde também estão colocados outros entes. Aqui, ser-no-mundo nos deve acenar para a dinâmica de estruturação cujo movimento é espiral. Imaginemos uma imensa superfície lisa de uma lagoa, vista de cima, de um helicóptero, numa visão panorâmica. Ao olharmos com muita atenção esse superfície, percebemos um pequeno ponto preto no meio dela, parado, imóvel. Na medida em que baixamos a altura e nos aproximamos da superfície, percebemos que aquele pequeno ponto é um círculo, formado pela água em movimento concêntrico. Como a nossa visão é por assim dizer de fora, panorâmica da superfície, de início vemos o grande círculo, e dentro dele outros círculos concêntricos, e bem nomeio um pontinho. Mas ao chegarmos bem perto da superfície, de repente percebemos que se trata de um redemoinho que estava surgindo. O que parecia um círculo com seus círculos concêntricos dentro dele, se nos apresenta como vigorosa dinâmica do afundar espiral, criando cada vez círculos em diferentes níveis de profundidade, na tensão e contensão do movimento centrípeto e centrífugo simultaneamente ocorrente. O que de longe parecia o ponto do meio, na realidade era o ‘ponto de fuga’ do movimento centrípeto, o ponto “olho-do-furacão” e o que parecia o grande círculo que cotinha outros círculos concêntricos e o ponto do meio não eram outra coisa do que a borda, a mais estendida do movimento centrífugo desse movimento espiral, em expansão. Na expressão ser-no-mundo a palavra no (ser-em) deve ser entendida como a dinâmica do adentrar-se a modo de “olho de furacão” do movimento centrípeto, e mundo como cada vez círculos concêntricos constituídos como extensões abertas em diferentes níveis de profundidade pelo movimento centrífugo, na sua expansão. Aqui é importante ver que o movimento centrípeto e centrífugo são simultâneos, são momentos do mesmo movimento, numa troca de mútua estruturação. A direção centrípeta é o polo-sujeito e a direção centrífugo é o polo-objeto. Quando esquecemos ou não percebemos que se trata de um movimento espiral, a dinâmica do surgir, crescer e consumar-se do mundo da intencionalidade é fixa e expressa numa flecha reta em cuja ponta está o objeto e no extremo oposto está o sujeito. Quando nos achegamos mais ao próprio da dinâmica intencional, viramos a linha reta num círculo e quando nós mesmos cairmos dentro do movimento do redemoinho da intencionalidade, da linha reta parcial (flecha) e do círculo, cuja linha circular é uma reta infinita, sofremos uma torsão[73], em cuja viragem começamos a perceber que a vigência de fundo da intencionalidade é a aberta. Quando, assim, somos nós mesmos a aberta, o nosso ser enquanto humano coincide com ser mundo e recebe então o qualificativo do ser-no-mundo. Como aqui Homem e Mundo coincidem, não podemos mais usar os termos subjetivismo, nem objetivismo, para caracterizar esse “comércio” de intercâmbio “entre” Homem e Mundo[74]. Para indicar que aqui na fenomenologia, quando se fala da intencionalidade, se transcende tanto o subjetivismo como o objetivismo do realismo deficiente acima mencionado, usamos a expressão subjetividade transcendental ou Subjetidade e Objetividade transcendental ou Objetidade. Aqui, porém, nesse ponto pode ocorrer um risco de cairmos na armadilha de uma imprecisão.

Em que sentido imprecisão? De não empreender a acima mencionada torsão da compreensão usual da intencionalidade como linha-flecha e como círculos concêntricos para a dinâmica do movimento espiral[75].

A imprecisão na compreensão do que seja propriamente a subjetividade transcendental se dá da seguinte maneira.

Acima foi dito, ao interpretarmos o texto de Brentano, que o fenômeno psíquico – ou para Husserl, o ato ou intencionalidade –  é uma totalidade em si, digamos, completa, onde tem o seu próprio objeto e o próprio sujeito adequados ao ato correspondente. Portanto, que se trata de mundo. Surge a pergunta: como se relaciona um mundo com o outro? São totalidades estanques entre si ou há uma comunicação entre as totalidades? Algo, pois que abrange todas as totalidades, unindo-as sob algo comum a todas? Algo que transcende a todos os mundos, portanto, num mundo ‘transcendental’?[76] Nessa pergunta surge o termo “algo” como um termo de perplexidade a nomear p. ex. o mundo. Nessa perplexidade percebemos como é difícil captar o próprio do que na fenomenologia se denominou ato, fenômeno, vivência, intencionalidade, mundo, ser-no-mundo, a aberta, nele mesmo, prescindindo totalmente dos termos cujo sentido do ser era dominante no esquema S-O na acepção do realismo deficiente. Mas aqui podemos perceber, como um assunto que parecia tratar-se de problema da possibilidade do conhecimento verdadeiro, implicava no seu bojo, como uma questão anterior, a questão pelo sentido do ser.

  1. Intencionalidade como questão do sentido do ser

Em que sentido, com a transcendentalidade da subjetividade e da objetividade, surge a questão do sentido do ser? Ao compreendermos a intencionalidade como subjetivismo e objetivismo empíricos, ao enfocarmos a nossa atenção sobre o sujeito ou sobre objeto e sobre o ato, podemos perguntar “o que é o sujeito?” O que é o objeto? E o que é o ato?” As perguntas pressupõem a resposta em formulação: “sujeito é...”; “objeto é…”; “o ato é…”. Ocorrem pois, 3 vezes o verbo é. Os três és, cada qual, possuem predicados diferentes. Esses predicados indicam a diferença existente entre sujeito, objeto e ato. Mas todas essas diferenças jazem, como que, no seu ser, ou melhor, no seu modo de ser em repouso dentro do mesmo sentido do que seja o ser. Por isso, as perguntas buscam a diferença do sujeito, objeto e ato, a partir e dentro da pressuposição de que no seu ser, os três são iguais. Essa plataforma comum ou igual, ou melhor geral, aparece nas palavras que indicam em diferentes modalidades a coisa, p. ex. na palavra algo, ente, coisa, objeto, Gegenstand, Objekt, Ding etc. No uso comum, esse sentido geral do ser no algo, no ente, conota algo ‘compacto” abstrato a modo de um ponto-núcleo, um “quê”. Esse “quê” formal poderia ser o que restou da compreensão da substância, da qual se despojou de todo o conteúdo diferencial, portanto, apenas como um ponto de referência. Por menor que seja o conteúdo dessa “substância” ‘desnatada’, o caráter do “quê em si” permanece. É o que se percebe no subjetivismo e objetivismo empíricos do realismo deficiente. Na subjetividade transcendental o modo de ser da subjetividade liquidifica todo e qualquer resquício da ‘substancialidade’ objetivada em si, e se perfaz como a dinâmica da condição da possibilidade da correlação sujeito-objeto a modo empírico, de tal modo que ela somente pode ser de alguma forma tematizada no movimento de um salto para trás de retraimento, qual movimento da fonte, que ao emitir o jorro da água que brota para fora, nesse próprio jorrar faz presente a profundidade a partir e dentro da qual vem à potência da possibilidade da eclosão. Assim, a transcendentalidade da subjetividade transcendental não é outra coisa do que o movimento da retração na dinâmica da constituição e estruturação do mundo, enquanto condição da possibilidade desse próprio movimento.

Na compreensão da intencionalidade, no nível usual do realismo empírico deficiente, a estruturação interna da intencionalidade não aparece, é ignorada. Assim, usualmente a direção da intencionalidade vai sobre o objeto, em forma de uma flecha. Na compreensão da intencionalidade, no nível da subjetividade transcendental, o que antes era flecha se torna círculos concêntricos e depois espiral, e o que antes ali estava diante da intencionalidade como sua ponta ou para além da ponta como a coisa em si vira o universo da totalidade do ente constituído, como leque aberto de toda uma paisagem de entidades. E então, dentro dessa paisagem da totalidade do ente, surge a grande divisão diferencial entre a região do ente humano e região do ente-não humano. Essa divisão é entendida, no realismo empírico deficiente, como duas regiões uma ao lado da outra, embora diferentes, mas inquestionáveis no sentido do seu ser, de tal sorte que ser significa obviamente o conceito, o mais geral, destituído de toda e qualquer qualificação diferencial, comum tanto à região do ente humano como à do não-humano.

Na compreensão da intencionalidade, no nível da subjetividade transcendental, o sujeito na sua transcendentalidade como subjetividade é o movimento de retração constitutiva do mundo, como sua condição da possibilidade de ser, a paisagem da totalidade do ente permanece inalterável, mas surge a questão do sentido do ser do ente humano e do ente-não humano, na qual a mira da busca não permanece na obviedade da diferença de qualificação entre a região do ente humano e da região do ente não-humano, mas se dirige ao ser do ente humano e ao ser do ente não-humano, enquanto o ente humano uma vez aparece como objeto constituído ao lado do objeto constituído não-humano e, nesse aparecer, como objeto ou ente do mundo, se perfaz como o puro movimento de retração constituinte do mundo, portanto como o puro movimento denominado subjetividade transcendental. Dito com outras palavras, a diferença existente entre o ente humano e o ente não-humano agora não é mais uma diferença entre ente e ente, mas sim uma diferença entre o ente e o seu ser. A diferença entre ente e ente se chama diferença ôntica. A diferença entre o ser e o ente se chama diferença ontológica.

  1. A intencionalidade e a diferença ontológica

Nessa questão da diferença ôntica e ontológica, corre-se continuamente o risco de não permanecermos na precisão devida, quando formulamos a questão como o fizemos acima no título do 1.4: “diferença ontológica entre o ser do sujeito e o ser do objeto”. Pois, sem o perceber, lemos ser e o entendemos ente (respectivamente entidade). Nesse caso, teríamos a diferença entre ente sujeito e ente objeto, a partir e dentro do mesmo sentido do ser, geral, comum entre os dois, que são diferentes no modo de ser, mas no ser mesmo são iguais. É mais ou menos, dentro dessa perspectiva, que nas nossas abordagens usuais dos problemas filosóficos distinguimos entre ser do homem e mundo, ser da história e ser, ser da cultura e natureza, ser da existência e essência, ser e ente, sem indagar a diferença que há no sentido do ser de cada membro desses binômios. A mesma dificuldade acontece quando definimos a diferença ôntica como diferença entre ente e ente, e a ontológica, como diferença entre Ser e ente, entendendo a esta última como diferença existente entre um ente concreto e o seu sentido geral, entre um ente efeito e a sua causa, entre o ente criatura e o seu criador etc. Como, pois, entender a diferença ontológica sem nos declinarmos da sua precisão?

No uso e na vida, no entanto, mesmo então numa primeira olhada, sem o tematizar, nos apercebemos operativamente da diferença que aqui é chamada de ontológica. P. ex. quando diante de uma paisagem, cuja imensidão e beleza nos tiram o fôlego, ou em contato com uma existência humana, cuja história nos acena para a profundidade de doação, amor e dedicação, e sua generosidade, exclamamos: “Grande!” Ninguém, aqui, pergunta quantos metros quadrados tem essa grandeza, quanto ela pesa, quantas moléculas ou átomos a compõem etc. É que o sentido do ser da grandeza humana é bem diferente ao da grandeza quantitativa físico-matemática. Mas aqui, ao tentar tematizar essa diferença, percebida primária e imediatamente, podemos declinar na imprecisão e dizer: a diferença está apenas nisso que no caso da grandeza quantitativa físico-matemática, ela é objetiva, ao passo que a captação da grandeza moral e espiritual da existência humana é subjetiva. E, se perguntarmos em que consiste a diferença entre a medida subjetiva e a medida objetiva, recebemos a resposta de que no fundo não diz nada, a saber, que a medida objetiva diz respeito à realidade em si, constante, independente das vicissitudes da subjetividade do homem, portanto é medida de validez geral, comum a todos os que pensam físico-matematicamente, portanto real, ao passo que a medida subjetiva diz respeito aos fenômenos pessoais, de validez privativa, particular, variável segundo o capricho do sujeito-homem. Observemos que aqui, a diferença da medida humana, subjetiva, pessoal, já está medida a partir e dentro da medida que caracteriza a realização objetivada da realidade, de sorte que ela aparece como diferença ôntica em contraposição à medida físico-matemática, como que avaliada e medida a partir e dentro da sua valência, e não aparece jamais nela mesma, no sentido próprio do seu ser. O ser do sujeito, i. é, a subjetividade do sujeito é entendido a partir e dentro do horizonte do ser do objeto, i. é, da objetividade.

  1. Intencionalidade e a clareação transcendental[77]

Do que acima foi exposto, podemos perceber que o aspecto transcendental jamais pode ser pego diretamente, pelo modo da percepção usual objetivada e objetivante, mas sim, indiretamente, por tabela com um objeto. Mas há vários modos de captação por tabela, p.ex., percepção da causa, pelo efeito; captação pelos sinais, pelo ‘símbolo’ no simbolismo, pela aparência etc. Aqui, por mais variegados que sejam os modos de uma percepção por tabela, ela é sempre captação de um objeto, do qual se vai à percepção do outro, que por sua vez de alguma forma é captado como ou a modo de um objeto. E assim, da impossibilidade de captar o transcendental a não ser por tabela com o objeto, tira-se precipitadamente a conclusão de que o aspecto jamais é perceptível direta e imediatamente. Assim, o que aparece à captação do aspecto transcendental, por tabela, indiretamente é chamado de aparência transcendental, der trasnzendentale Schein, em cujo aparecimento, o ser do aparecer recebe a conotação de aparência, que no fundo esconde um algo mais atrás de si. Aqui recordemos tudo quanto falamos do aparecer, na exposição do que constitui o evidenciar-se do fenômeno como aclaração na Anotação fenomenológica I. Assim a aparência transcendental não significa aparência que é mediação de outra coisa que está para além da aparência, mas o imediato e direto vir às claras, portanto a evidência, a clareação que no seu evidenciar-se é o mostrar-se imediato e concreto, o aberto, das Offene, a translucidez do luzir, a autopresença ela mesma que transcende toda e qualquer objetivação, não a modo de uma escalação para além da coisa chamada objetivação ou objeto, mas como “mediação”, i. é, como ação ou dinâmica do médium, a partir e no qual toda e qualquer modalidade de objetivação e objetos vem a si na aclaração da sua pressuposição, i. é, o positum da sua automostração. É o que na Anotação fenomenológica II denominamos captar ou ver simples e imediato. Como, porém, o termo trascendental de alguma forma conota uma transcendência a modo do movimento de trânsito para além, a modo meta-físico, subjetividade transcendental enquanto clareação transcendental de preferência recebe o nome de ontologia fundamental.

Como já vimos acima na Anotação fenomenológica I, Heidegger no Ser e Tempo nos diz da expressão grega phainómenon:

A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha- como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com  ta ónta (o ente)”.

Isto significa que no início da nossa Tradição Ocidental, ente era compreendido a partir e como phainómenon, portanto, a partir do phaínesthai. Assim, não é de estranhar que na fenomenologia o título fenomenologia seja usado como idêntico com o título ontologia. Só que hoje, no uso geral desse termo na concepção manualista do ensino da filosofia, se opera no fundo na concepção tradicional da ontologia, e isso no modus deficiens, onde o sentido do ser, correspondentemente do ente, já está predeterminado como conceito o mais vasto, o mais óbvio, no qual todas as diferenças ônticas são abstraídas, para se estabelecer num sentido lógico formal do ser, expresso nos princípios de identidade e de não contradição etc. e ao mesmo tempo o ón é entendido como referido ao objeto. A fenomenologia, justamente, tenta colocar em questão esse fundo operativo de todo o nosso saber, quer filosófico, quer científico, sondando na tematização desse fundo operativo, possibilidade de outro(s) sentido(s) do ser, como possibilidade(s) de início de fundo fundante, em cujo apro-fundamento possamos vislumbrar o abismo inesgotável e insondável do sentido do ser, a partir e dentro do qual se tornem viáveis ontologias como desvelamentos multifários da acolhida do ser, como gênese de mundos, cada vez próprios, mas na dinâmica una anunciada na aurora do Ocidente como hen:panta, cujo eco ainda ressoa em tò ón légetai pollakos, em Aristóteles.  Por ser a sondagem do fundo de possíveis ontologia(s), a fenomenologia se chama ontologia fundamental[78].

Fenomenologia como ontologia fundamental[79]

A questão da intencionalidade na fenomenologia, que inicia no âmbito da problemática da teoria do conhecimento como exame da possibilidade do conhecimento certo e exame da abordagem metódica mais rigorosa das ciências, tanto naturais como humanas, na sua cientificidade própria, se desvela na sua intenção mais profunda como uma busca do sentido do ser do ente no todo, recebendo a denominação de ontologia fundamental. Na fenomenologia, entendida agora como ontologia fundamental, não se trata da ontologia no sentido tradicional, de tal sorte que aqui o termo fundamental não se refere a uma disciplina chamada ontologia que servisse de fundamento, de base comum às ontologias possíveis. Trata-se, antes, como foi dito há pouco, de uma nova sondagem do fundo a partir e dentro do qual todo o nosso saber, na vida, quer nos afazeres ordinários quer extraordinários, e nas ciências, quer filosóficas, quer científicas, quer, haurem as suas pressuposições básicas de suas construções, sondando na tematização desse fundo, o sentido do ser ali operante, e ao mesmo tempo a  possibilidade do desvelamento de outro(s) sentido(s) do ser, como possibilidade(s) de início de fundo fundante, em cujo apro-fundamento possamos vislumbrar o abismo inesgotável e insondável do sentido do ser, a partir e dentro do qual se tornem viáveis ontologias como desvelamentos multifários da acolhida do ser, como gênese de mundos, cada vez próprios.

Trata-se portanto da investigação e acolhida do sentido do ser, no seu manifestar-se, na sua mostração, através do(s) mundo(s) constituído(s) como surgimento, crescimento e consumação de um determinado sentido do ser. Assim, a fenomenologia como ontologia fundamental, perfaz o movimento de repetição e retomada da questão, i. é, da busca, que no Ser e Tempo recebe o nome de destruição (destruktion) da ontologia tradicional. Destruição aqui não deve ser entendida como derrubada, arrasamento, aniquilação, mas mais no sentido de desmonte ou melhor remonte, reestruturação ou talvez melhor refundação, como apro-fundamento do que ali está estabelecido, na busca do sentido do ser que constituiu o toque inicial do seu estabelecimento.

A grosso modo, podemos distinguir na ontologia tradicional dois modos de ser dos quais já falamos quando bem no início comentamos o texto de Heidegger que fala do problema da objetivação em confronto com o pensar e falar não objetivante. Os dois modos de ser são assinalados pela palavra substância e sujeito. A seguir retomemos o que já foi exposto nas Anotações anteriores, aprofundando o tema substância, num excurso intitulado: O ser da substância, o ontolgicum da substancalidade e o tema sujeito, num outro excurso intitulado: o ser Sujeito,  o ontologicum da subjetividade.

  1. O ser da substância: o ontologicum Substancialidade

Com o termo “ontologicum”, queremos indicar um determinado sentido do ser que age no fundo do ente na totalidade, constituindo os gonzos principais das ramificações na  estruturação do mundo. Esses gonzos principais se expressam em os assim chamados conceitos ou categorias de fundo de um mundo constituído. Segundo o texto mencionado bem no início das nossas anotações sobre a objetivação, uma das categorias fundamentais do mundo medieval é substância. Tentemos anotar algumas implicações do mundo cujo ontologicum é substância. De início, coloquemo-nos dentro de uma “paisagem” bem banal do cotidiano de um pescador do fim de semana, tirado das narrações escritas por Tokaishige Sadao, um chargista japonês, hoje bastante conhecido na mídia do seu país. A paisagem só nos serve para nos ambientarmos numa situação poderia ser nossa. No pequeno livro “Visão nipônica do Sr. Jooji”, na primeira estória, Modinha pesqueira do Pacífico”, implica ele: Antigamente, era só sair um “tantinho” fora do subúrbio, havia riacho, lagoa e lago. E uma porção de pequenas lojas de secos e molhados, onde se podiam comprar, bem barato, anzóis e varas de pescar e chapéu de palha. A gente se munia desses apetrechos, e um dois três!, se abancava à beira do riacho, e pronto, tinha-se a panca de um pescador. A pesca, hoje em dia, não vai assim tão facilmente. Não dá para ir pescar, assim, sem mais nem menos. É domingo. Você dormiu bem, acorda tarde. O sol está já há tempo a aquecer a varanda. Depois de ter lido o jornal do dia, de repente, dá-lhe vontade de ir pescar. Ajeita a camisa, desabotoada, enfia os pés num par de velhas sandálias, e lá vai você à loja de materiais de caça e pesca, comprar anzóis, vara e chapéu de palha e pedir conselho do vendedor. E então, é ali que você sente na carne a vergonha de ter sido tão descuidado, frívolo e superficial nas coisas da vida humana. E vem o interrogatório: “O que o Sr. quer pescar?” “Ora, quero pescar peixes! A pesca não é para pescar peixes?” Com dignidade grave e solene, o vendedor especializado e perito inquire: “Peixe do mar? Peixe do rio? De lagos? E se peixe do mar, numa embarcação grande, ou na canoa, ou simplesmente à margem do lago e do rio? E que espécie de peixes, o Sr. quer pescar salmão, atum, pescado, enguia?, lambari?Você, um tanto deprimido sob a pressão de tantas perguntas, envergonhado pela ingenuidade e despreparo na abordagem da pesca, um tanto ferido no seu brio, tenta se salvar, timidamente: “Pois, eu quero só pegar peixes…, pode ser bem pequeninos, pensei só pescar assim, assim, …e comprar anzol e vara de pescar…!” O vendedor competente, com rigor e precisão, não me vende nem anzol nem vara, assim sem mais nem menos: “Há anzol e anzol, vara e vara, linha e linha e isca e isca, conforme que peixe o Sr. quer pegar, onde e como quer pescar. Por isso, o Sr. que é o sujeito e agente da pesca, se não determinar com maior precisão e responsabilidade a mira e meta de seus atos e projetos, e não me disser o que, como e onde quer pescar, não lhe posso ajudar em nada, nem se quer vender-lhe os materiais de pesca e seus acessórios. Hoje, não é mais possível nem é permitido pescar, sim viver a vida, considerando a vida e o mundo assim tão facilitados, numa postura vaga de “quero pescar apenas peixes!”

Vou pescar. Levo comigo coisas: a vara de pescar, linha de náilon, anzol de aço, minhoca como isca, e chapéu de palha. Mas não vou pescar assim secamente, tendo essas coisas, dadas ai simplesmente. Vou já dentro de um humor do meu “ir pescar”, proveniente da situação em que, ao ir arranjar as coisas da pesca, de ter levado uma ducha fria de excelência tecnológica, despejada sobre o meu descuido e despreparo amador. Vai comigo meu irmão caçula que carrega consigo um filhote de cachorro. Segundo a compreensão do subiectum como substância e substância como hypokeímenon, quantas coisas ou entes ou substâncias estão ali nessa pescaria? A resposta usual nossa é 8, incluindo na contagem a mim mesmo e contando p. ex. minhocas como iscas ou diferentes anzóis e linhas e varas em conjunto, como cada vez 1. E cada um desses sub-stâncias possuem seus modos de ser, i. é, acidentes como tamanho, cor, peso, qualidade etc. Digamos que nessas coisas de contagem sou um cri-cri e pergunto: dentro de você e de seu irmão caçula, do cachorrinho, e de infinidades de minhocas que você trouxe como isca, na superfície de anzóis, de linhas de náilon, devem existir milhares de micróbios. Aliás, todas essas substancias devem estar compostas de milhões e milhões de moléculas, átomos e partículas subatômicas. É meu irmão? O cachorrinho? As pulgas nele? E o resto de raiva e do sentimento de humilhação sofridos ontem na loja de pesca? E o rio? Aliás, os peixes que espero pescar? Os peixes sentimentos? De dor? Mas como sei que eles têm dor? Essa minha pergunta? O meu relacionamento com os peixes? O meu especular o que seja esse relacionamento filosoficamente? Psicologicamente? Também sociologicamente, biologicamente, quimicamente? E o céu aberto, azul, o sol, a paisagem verde, os ventos. Esses juncos a baloiçar ao sabor do vento? E o horizonte longínquo, e essa proximidade da nitidez da cor vermelha do bico de um pequenino pato selvagem a buscar alimento bem diante de mim na lagoa? E esse alguém, a que tenho vontade de agradecer que hoje é feriado, esse alguém que de vez em quando fico duvidando se não é minha pura fantasia, ou complexo criado por minha educação rígida tradicionalista teísta? A mania que não me deixa, mesmo que esteja pescando, mesmo que meu chapéu tenha caído no lago e eu tento tirá-lo d’água, a saber, a mania de querer ver tudo isso e outras mais coisas fenomenologicamente…  Todas essas coisas são substâncias? Hipokeímena!??? Ou são modos de ser? Acidentes? Modos de ser objetivo, e modos de ser subjetivo, coisas, objetos de um lado, sentimentos, vivências, ideias, representações de outro lado?

Ou não será que na concepção medieval da realidade, do ser, todas essas coisas “substancias” e não-substâncias, todas as coisas, cada qual de modo diferente, assim manifestas ou colocadas, são obiectum (não objeto, no nosso sentido atual) mas o lançado, i. é aberto e mantido aberto de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar como imensidão, profundidade e soltura de uma possível paisagem do ser? Mas então o que é subiectum, substância, hypokeímenon? O fundo da totalidade dessa paisagem, o fundo imenso, profundo, cada vez e sempre de novo vigente na sua possibilidade insondável, perfazendo presença una e bem assentada, estruturante de obiectum, i. é, da coisa ou das coisas no seu todo, lançado, estendido e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, de quem? Do subiectum, na sua significação transformada, por Descartes, a saber, do Homem-sujeito? A quem tudo deve estar em referência, de alguma forma estar centrado? Talvez o medieval diria: Não, não do sujeito, nem do objeto, mas sim da substância homem, imagem e semelhança de Deus, de cujo ser que é a plenitude do ser, participa; da substância homem, a quem Ele se comunica, se doa de modo todo singular e único, unindo-o a Ele no assim chamado mistério da Encarnação, na qual Ele, a substância a se, se identifica com a substância ab alio, de tal modo que nessa coisa, nessa e através dessa substância toda própria e especial, Ele se torna presença, pregnância, coisa ou causa de todas as coisas, de todas as causas, ou tout court se torna todos os seres, desde o pó da terra até os anjos, os mais sublimes, em diferentes níveis de participação, tornando-os também imagem e semelhança do homem assim agraciado. Sendo assim, todos os entes que constituem as diferentes ordenações das esferas dos entes do universo medieval, desde a esfera das coisas sem vida, das coisas viventes (vegetais), das coisas sensíveis (animais), das coisas humanas (homem, animal-racional), dos espíritos em diferentes níveis de intensidade do ser (os coros dos anjos) até o próprio Deus, enquanto Criador de todas as coisas, é fonte de todo o ser, são chamados substâncias (substâncias compostas e simples). Assim, todos os entes, enquanto obiecta, i. é, lançados e mantidos de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, se assentam numa vigência de fundo, cuja imensidão, profundidade e criatividade prenunciam o ser, uma presença inominável, ‘denominada’ Deus, cuja caracterização é assinalada como substância simples, a se, i. é, ab-soluto assentamento da e na plenitude do ser, por e para si. Aqui é interessante observar que o homem, de encontro em face do qual (aperceber, imaginar, julgar, desejar, mirar) são lançados e mantidos os obiecta, a partir e na vigência do fundo da totalidade do universo medieval, a partir e no vigor da prejacência ab-soluta da deidade, é também, ou melhor, por excelência, prejacência substancial enquanto imagem e semelhança de Deus. Aqui o que denominamos obiectum e subiectum, ambos como vir à fala da vigência da plenitude do ser, do apriori prejacente do universo medieval consiste na escalação da densidade de ser no ente na sua totalidade, e não relação entre dois entes, um ao lado do outro, chamados homem-sujeito e objeto, duas coisas pontuais, dois blocos diferentes, cuja característica consiste em ocorrer como simplesmente dado como isto e aquilo.

Entender ente e ser e o sentido do ser na intensidade, imensidão, profundidade e criatividade da vigência da presença como na paisagem do universo medieval sob o nome substância, prejacência, hypokeímenon , portanto entender ente e ser e o sentido do ser nesse médium medieval  e entender ente e ser e o sentido do ser na vacuidade de um espaço dentro do qual se acham entes-bloco-subsistentes como pontos atômicos, como algo e algo, um ao lado do outro, são duas paisagens bem diferentes do ser, duas realizações da realidade distintas. Aqui podemos de alguma forma perceber o que quer dizer ente no ser e ser no ente, e o sentido do ser ali operante. Em certas manualísticas da filosofia chamamos caricaturalmente de realismo, onde sob uma determinada concepção do ser comum, geral, se diferenciam duas grandes regiões dos entes, a região do ente-humano e a região do ente-não humano. E ali denominamos a ciência que investiga o ser do ente-humano de antropologia, e o ser do ente-não humano de cosmologia, e de ontologia, a ciência especializada na investigação do ser do ente enquanto ente, da entidade como o comum de duas regiões, expresso no conceito do ser geral, comum, sem conteúdo, na formalidade abstrata lógica, e no conceito do ente desse sentido do ser como ‘substância’, como algo bloco, pontual, atômico. Talvez todo esse “realismo” e a sua realidade não seja outra coisa do que  modus deficiens  do fundo do universo substancialista medieval, esquecido do seu sentido do ser e sua vigência, e ao mesmo tempo sofrendo de extrapolação para dentro da compreensão transformada do subiectum e obiectum, operada desde Descartes, mas sem maior clareação do sentido do ser ali operante, como fundo do universo moderno. Seria interessante observar o entrecruzamento de modos deficientes da compreensão, tanto da substância (Medieval) como do sujeito (Moderno) na enumeração de coisas acima jogada ao léu, de coisas que povoam a paisagem da pesca acima mencionada. Mas como seria a diferença da compreensão do subiectum, na sua transformação sob a influência de Descartes como sujeito, e do obiectum medieval acima descrito, para com a compreensão do Objekt (das ciências naturais) e também para o Gegenstand, caracterizado como um algo tematicamente representado? Aqui a paisagem é bem outra, a do mundo medieval. Subiectum é o Sujeito. Obiectum é Objekt a partir e dentro da impostação da possibilidade humana chamada Ciências naturais e Gegenstand, como um algo tematicamente representado, na vigência da presentação do projeto do homem, não mais como imagem e semelhança de Deus, mas como sujeito-eu (ou nós).

O que acima, na compreensão medieval do subiectum, denominamos substânciahypokeímenon (e ali incluído obiectum), não se refere à coisa individual, isso e aquilo, nem ao conceito geral, comum, a essas coisas individuais, a modo de nossa classificação das coisas em geral e particular etc. Substância, hypokeímenon significa portanto, o prejacente, o apriori, a arché, a hyparché. É o fundo a partir e dentro do qual todo um mundo de entes recebem identidade, localização no todo, unidade de participação no sentido do ser que os faz surgir, crescer e se consumar, como elementos componentes, ou melhor, estruturantes da eclosão de uma paisagem da possibilidade de ser. Trata-se, portanto, digamos, do ponto de salto e o próprio eclodir que se perfaz como surgir, crescer e consumar-se de um possível mundo.

Assim, também, quando agora falamos na compreensão transformada do subiectum, através de Descartes, como sujeito e sua subjetividade e, ali, correlativamente do objeto e sua objetividade, sujeito não significa coisa individual, mas sim o prejacente, o apriori, o princípio da estruturação do ente na sua totalidade, o fundo da nossa epocalidade moderna. Esse apriori, esse princípio da estruturação do mundo, do ente na sua totalidade se chama ontologicum, o ser do ente. Como se caracteriza, pois esse ontologicum do mundo moderno, o sujeito?

Para caracterizar o ontologicum sujeito, vamos a nosso modo fazer um resumo de uma tradução livre parafraseada dos pensamentos de Heidegger de quando ele caracteriza o ontologicum sujeito e mostrando de que se trata quando falamos da transformação do conceito medieval de subiectum por Descartes, para o sujeito da subjetividade moderna, no livro “A Pergunta pela coisa” (Heidegger, 1962).

  1. O ser sujeito, o ontologicum da subjetividade

Costumamos diferenciar a Idade Moderna, da Idade Média, assinalando a Idade Média como teocêntrica, e a Idade Moderna como antropocêntrica. Na Idade Moderna, a grande “revolução copernicana” operada por Descartes é de colocar o Homem como medida de todas as coisas. A esse tipo de explicação, já a encontramos, anteriormente nas nossas anotações, quando examinamos a definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus no seu duplo aspecto de: Veritas est adaequatio rerum ad intellectum divinum e adaequatio intellectus humanus ad res. Dissemos que desse duplo aspecto, hoje na manualística nos abstraímos do primeiro aspecto, por ser ele teológico, e ficamos somente com o segundo, mas então numa dupla acentuação, a saber: veritas est adaequatio intellectus humanus ad res (realismo) e adaequatio rerum ad intellectum humanum (idealismo). A acima mencionada definição tradicional da verdade na duplicidade de seu aspecto, que é derivada da compreensão medieval da Criação, tem como fundo, a paisagem do universo medieval, cujo princípio fundante é o ontolgicum substância. O que restou dessa definição, depois de ser colocado de lado o aspecto teológico, é considerado muitas vezes como sendo a definição tradicional da verdade em sua dupla interpretação, a saber, a interpretação do realismo, i. é, adaequatio intellectus humanus ad res; e a interpretação do idealismo ou do subjetivismo, i. é, adaequatio rerum ad intellectum humanum. Aquela é então tida como a posição usual da Idade Média, cuja concepção de fundo é realista, pois, antes de tudo há Deus, substantia in se et a se, que é Criador de todas as coisas, e por isso as coisas são em si, antes das ações humanas. Aqui o teocentrismo tem como consequência o realismo epistemológico. Com a passagem da Idade Média para a época moderna, ao se colocar o homem no centro do universo, como medida de todas as coisas, se dá em Descartes o antropocentrismo, e com isso também como conseqüência o idealismo ou subjetivismo ou relativismo epistemológico. Essa diferenciação manualista entre a concepção do universo medieval e a moderna, na realidade, é uma explicação feita pelo realismo proveniente de mundividência, digamos, defasada, do cristianismo medieval, que não consegue mais fazer jus nem à compreensão mais autêntica do ontologicum substância da Idade Media, na sua vigência mais nasciva, muito menos à novidade eversiva da transformação do conceito de subiectum medieval para o ontolgicum sujeito da modernidade, portanto à revolução copernicana operada no pensamento de Descartes.

Para libertar a questão do ontologicum sujeito, característico da Filosofia Moderna, dessa colocação inadequada e anacrônica do realismo ‘neo-medieval’, é necessário  captar em que consiste o modo de ser do ontologicum sujeito, colocando sob a interrogação aquilo que constitui o próprio e o novo da epocalidade moderna que é caracterizado como era científica, e sob essa interrogação, rastrear o fio condutor presente no modo de ser que impregna todas as entificações estruturantes da época hodierna, expresso na dominação totalitária do que chamamos de o matemático nas ciências modernas[80].

2.1. Disciplina matemática e o matemático

Mas o que é o matemático?

Usualmente respondemos: o matemático é o que aparece na disciplina científica chamada matemática. Assim, respondendo, entendemos usualmente o matemático a molde, a partir e dentro da disciplina de ensino e da pesquisa científicas, dizendo: o matemático é o que se refere à disciplina científica chamada Matemática como tal, à ciência estudada e cultivada nas faculdades de Ciências Naturais.

Essa resposta, porém, não corresponde ao que é propriamente o Matemático, pois o classifica dentro de um modo de ser determinado, diríamos, congelado, na forma da disciplina matemática.

A palavra “matemática” se refere às palavras gregas: mathésis, manthanein, ta mathémata. Ta mathémata são coisas “aprendíveis” e ao mesmo tempo ensináveis. O verbo é manthanein, e significa aprender. O substantivo mathésis significa então ensinamento, ensino, mas também a ação de ir ao ensino, isto é, aprender o que se ensina. Aprender e ensinar estão intimamente ligados no verbo manthanein. Mas para que possamos entender o que é ta mathémata, mathésis e manthanein é necessário examinar como os gregos distinguiam as coisas, os entes.

Os gregos distinguiam ta fysika, as coisas ou os entes enquanto surgem e eclodem a partir de si: coisas da natureza; ta poioumena, as coisas enquanto são feitas através das mãos humanas, coisas produzidas manufactualmente e como tais ali estão diante de nós; ta chremata, as coisas enquanto estão continuamente no uso e à disposição do uso: pode ser fysika ou também ta poioumena, conquanto estejam em uso; ta pragmata, as coisas enquanto são tais com as quais nós temos a ver, sejam que as elaboremos que estejam referidas à praxis. Esta é a ação de prattein ou prassein, que significa perfazer, agir, realizar. É um fazer que é diferente de poiein (cf. ta poioumena), pois aqui trata-se não de fazer, fabricar, produzir, mas, sim, em fazendo isto ou aquilo, tornar-se; iniciar, crescer e consumar-se; fazer-se, fazer e tornar-se obra. É uma ação toda própria do ser humano, na qual, na medida em que age e cria obras, vai crescendo, aumentando cada vez mais no seu próprio ser, conhecendo e conhecendo-se, isto é aprendendo. Mathesis, manthenein, ta mathémata têm a ver com a ação e o efeito de um tal aprender. Esse tipo da aprender-práxis é uma espécie de recepção, captação, tomada de posse, apropriação, dispor de coisas. Mas, na realidade, nós não nos apossamos da coisa, mas apenas do uso. Aprender é pois dispor o uso das coisas. É tomar e se apropriar não de coisas, mas sim do uso da coisa. A tomada de posse acontece pelo próprio uso. Esse modo se apropriar-se do uso se chama exercitar-se ou exercício. Exercitar-se é uma modalidade de aprender. Mas nem todo aprender é exercitar-se. Isto significa que existe um aprender que é mais do que exercitar-se? Sim. Como? É o aprender todo próprio chamado mathesis, o aprender “matemático”. Como é esse aprender “matemático”? Tentemos entender o que é esse modo de aprender por meio de um exemplo. Eu me exercito no uso de arma. No exercício tomamos, nos apossamos do uso da arma, isto é, do modo, da maneira, da lida com ela. O nosso modo de lida e convívio com a arma se coloca, se dispõe naquilo que a arma exige para ser usada. Isto significa que, na lida, não somente lidamos com, dominamos a função, mas em usando, ao mesmo tempo aprendemos a conhecer a coisa. Aprender assim é sempre aprender a conhecer. O aprender como exercitar-se, aprender o uso, apossar-se do uso, pode assim ser elevado para um nível de práxis mais perfeito como aprender a conhecer a coisa. Portanto, aprender no sentido de mathesis pode ter duas direções: a) aprender o uso e a aplicação; b) aprender a conhecer a coisa.

No aprender o uso e a aplicação (a), o conhecimento da coisa ela mesma permanece num nível bem limitado. Posso saber, por exemplo, o uso da arma, mas não sei como é construída a arma. O segundo (b) é um aprender que se abre ao conhecer a coisa ela mesma. Aqui se abrem diferentes níveis e extensões cada vez mais crescentes do conhecer. Para quem, por exemplo, não somente quer aprender a usar a arma, mas também fabricar a arma, não basta aprender o uso, mas é necessário aprender a conhecer de que se trata, em diferentes níveis de profundidade do conhecimento, até chegar ao conhecimento disso que a coisa ela mesma é, como ela mesma é. Na medida em que aprendemos a conhecer a coisa no que ela é e como ela é, portanto, aprendemos a conhecer o ser da coisa como tal, aprendemos também a ensinar o que e como ela é. O exercitar-se e usar é portanto somente um momento ou nível limitado daquilo que é possível aprender na coisa. Daí, o aprender originário é aquele tomar conta de, aquele apossar e aquele captar que é aprender a conhecer o que uma coisa é, no seu ser.

Mas o que uma arma p. ex. é, o que um ente ou objeto de uso é, o ser, portanto, nós já sabemos propriamente. Quando pegamos numa arma, quando queremos conhecer uma arma de um determinado modelo, não estamos propriamente aprendendo, aprendendo a conhecer o que é uma arma. Pois o é, o ser de qualquer coisa que seja, nós já sabemos antes de captá-la, do contrário não poderíamos nos relacionar com ela e conhecê-la como tal. Somente enquanto nós de antemão, a priori, estamos no toque do ser de uma coisa, somente assim, o que nos é proposto, anteposto, se torna visível, captável naquilo que é. Só que, nós sabemos o que é uma coisa e certamente de antemão, a priori, em sendo, mas este saber em sendo, à primeira vista e de imediato no nosso uso aparece de um modo opaco, assim geral, vago e indeterminado. Essa opacidade, generalidade, vagueza e indeterminação, na realidade, são como a superfície lisa e parada da contenção do abismo de imensidão, profundidade e vitalidade que na perplexidade de não conseguir definir adequadamente chamamos de ser, vida, realidade. Esse saber operativo é a presença da dinâmica do abismo da possibilidade de ser, a Vida, em mil e mil eclosões de modalidades multifárias do mundo e da sua mundidade. A essência do que sob o termo o matemático foi refletido até agora, enquanto a dinâmica da autoconstituição do “Eu penso, logo sou”, é o que chamamos subjetividade e se estrutura como vigência da autonomia. Essa vigência da autonomia, do pôr-se de si mesmo a partir de si, no perfazer-se da autoconstituição, é a essência do aprender que em grego se chama mathésis, isto é, o “matemático” num sentido originário e profundo. O matemático como a autonomia, como a subjetividade da autoconstituição em sendo vida, não é isso ou aquilo, mas uma concreção do tornar-se, do perfazer-se cada vez no toque da possibilidade de ser, eclosão, gênesis, crescimento e consumação da totalidade do ente, como mundo. Essa concreção do perfazer-se percebemos como densidade de ser, que traduzida em termos do conhecer, está dita na expressão: tomar conhecimento.

Aqui, o tomar conhecimento não é adquirir conhecimento, não é se conscientizar, não é ter dados informativos ou adquirir saber, mas sim potencializar-se, adensar-se na e-vidência de si, a partir e dentro de si. Dito tudo isso nos termos usuais do conhecimento, é conduzir o saber operativo a um conhecimento mais próprio, mais temático, i. é, tomar conhecimento do que já antes tínhamos como conhecimento. Esse “tomar conhecimento” do que já antes sabíamos em sendo é propriamente o matemático.

Assim, ta mathémata, as coisas matemáticas são “coisas” enquanto nós as tomamos em conhecimento como aquilo que nós já de antemão, isto é, a priori e propriamente conhecemos. Trata-se no manthanein e na mathésis, portanto, de um captar, tomar e receber todo próprio, altamente estranho, no qual, quem capta, toma e recebe, somente toma e recebe o que ele no fundo já tem e é.

A esse aprender-se a si, que é o aprender-se, em se aprendendo, e ao aprender corresponde também um ensinar todo próprio. Ensinar aqui é certamente dar e oferecer, mas o que é dado, oferecido no ensinar não é o que pode ser aprendido ou ensinado. O que é dado ao aluno não é outra coisa que apenas aceno, incentivo para que ele mesmo tome, capte de si a si mesmo o que já é, o que ele já tem e o tem. Se o aluno toma o que lhe é oferecido, ele não aprende. Só vem ao aprender, se experienciar o que ele toma como o que ele propriamente já tem e é. Há somente um verdadeiro aprender lá onde a tomada e a recepção do que a gente já tem e é é um dá-lo a si mesmo, é um vir a si de si mesmo como autoevidenciação.

2.2. Desviando um pouco do assunto

Daí, ensinar não é outra coisa do que deixar o outro aprender, isto é, mutuamente se deixar aprender. O verdadeiro professor se diferencia do aluno apenas nisso, que ele pode aprender melhor e propriamente mais quer aprender. No todo do seu ensinar, aprende mais quem ensina, assim[81].

Nesse sentido diz Martin Heidegger no seu livro O que evoca o pensar?:

Ensinar é mais difícil do que aprender. Isto a gente sabe muito bem; mas ponderá-lo se faz raras vezes. Por que ensinar é mais difícil do que aprender? Não por isso, porque quem ensina deve possuir a maior soma de conhecimentos e tê-la a cada momento à sua disposição. O ensinar é mais difícil do que aprender por isso, porque ensinar significa: deixar aprender. O professor propriamente dito não deixa a não ser apenas aprender, nada mais do que aprender. Por isso o seu agir desperta muitas vezes também a impressão de que com ele não se aprende propriamente nada, enquanto aqui a gente imperceptivelmente entende por “aprender” somente a angariação de conhecimentos úteis. O professor está apenas nisso à frente dos alunos aprendizes, que ele, ainda muito mais do que eles, tem que aprender, a saber: o deixar aprender. O professor deve poder ser mais ensinável do que os alunos. Ele é muito menos seguro da sua coisa do que os alunos o são da sua coisa. Por isso, no relacionamento de professor e alunos, quando verdadeiro, jamais entra em jogo a autoridade de quem-sabe-muito e a influência autoritativa do autoritário de quem foi incumbido da missão. Por isso, permanece uma causa sublime a de quem ensina, o que é totalmente diferente de ser famoso como docente (Heidegger, 1961, p. 50).

2.3. O matemático como o a priori

Esse tomar em conhecimento o que já antes sabíamos é propriamente a essência do aprender, do manthanein, da mathésis.

O que é pois o Matemático? É aquilo que nós já conhecemos nas coisas, o qual não tiramos primeiro das coisas, mas num certo modo já nós mesmos trazemos junto conosco. Este aprender, este tomar em conhecimento o que nós já sempre sabemos e somos até ao fundo abissal que se abre em nós mesmos é a célebre frase do oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!” É por isso que no portal da academia de Platão estava escrito: “Ninguém que não tenha captado o matemático jamais tenha entrada aqui”, isto é: Ninguém ageométrico jamais entre[82]!

Mas como é que aparece como matemático dos cálculos e medições matemáticas da nossa era moderna, nas ciências esse conhecer apriorístico, no qual nada vem de fora, mas tudo, por assim dizer, se desdobra e se ex-plica de dentro, a partir de dentro? É que, em cálculos e medições matemáticas da própria disciplina chamada matemática, o que conhecemos assim pela medição e cálculo não é aquilo que nós conhecemos nas coisas, tirando-o primeiro das coisas, mas sim num certo modo o que já trazemos nós mesmos junto conosco e depositamos, lançamos de antemão sobre as coisas. Assim o modo de saber e conhecer matemático é bem outro do contemplar medieval.

2.4. O matemático como a “concepção da mente”

Esse modo de ser a priori aparece nitidamente numa famosa frase de Galileu[83]:

Eu conheço mentalmente um corpo móvel, excluindo todo impedimento: assim consta disso que num outro lugar foi dito extensamente que o movimento desse corpo sobre o plano será igual e constante, se o plano se estende infinitamente[84].

Diz Galileu “Eu concebo”, isto é, me lanço sobre, ajuntando tudo sob o que se torna determinante de antemão, saltando sobre as coisas, tendo já o que é decisivo para todas as coisas atingidas por esse lance. Assim, nesse lance sobre todos os corpos vale de antemão que • – todos os corpos são iguais; que • – nenhum movimento é especial, destacado; que • – cada lugar é igual ao outro; que  • – cada momento do tempo é igual ao outro; que • – cada força se determina, segundo o que causa a mudança do movimento, entendido como movimento de mudança de localização.

Assim, todas as determinações sobre o corpo são esboçadas num traçado básico de um plano, segundo o qual o processo e o fato da Natureza nada mais são que determinação ou definição espaço-temporal do movimento uniforme dos pontos de massa, numa totalidade, cuja, medida é homogeneamente igual em toda parte.

A partir do que foi dito, resumamos a essência do Matemático em três itens:

  • – O matemático é um “mente concipere”, isto é, um projeto lançado sobre as coisas.
  • – O projeto abre então um espaço de jogo, onde as coisas, isto é, os fatos se mostram.
  • – Dentro desse projeto é posta a medida, pela qual as coisas são tidas como aquilo que é apreciado no seu modo próprio, de antemão.

Apreciar ou ter por, em grego, é axioó. As determinações e as sentenças que predeterminam de antemão no projeto são axiomata (axiomas). Axiomas são princípios fundamentais que colocam o fundo de antemão para as coisas.

O projeto matemático, enquanto axiomático, é o lance conceitual prévio, a ordenação prévia para dentro da vigência das coisas, dos corpos. Com o projeto matemático é preparado o esboço fundamental de como cada coisa e cada referência de coisa a cada coisa é construída.

Este esboço fundamental dá a medida para delimitar a região, o âmbito, ou a área que daqui por diante abrange todas as coisas que tem a mesma “essência”[85].

Natureza não é mais aquilo que como substância é a capacidade e possibilidade interior dos corpos, o que lhes determina cada vez a sua qualidade, a sua forma de movimento e o seu lugar, o seu habitat próprio. Natureza agora é a região dentro do projeto axiomático. É a natureza das ciências naturais. Essa região tem a caracterização de ser um conjunto de movimentos referidos um ao outro dentro da homogeneidade do tempo e do espaço, igual em toda parte e a cada tempo, dentro do qual (conjunto) os corpos são inseridos e estendidos e somente assim podem ser corpos.

Uma tal região da natureza dita e determina o modo de acesso, o modo de abordagem próprio para corpos e corpúsculos que assim se acham no âmbito de sua abrangência.

O modo de interrogar e determinar o conhecimento da natureza não mais é orientado e dirigido por opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não possuem mais propriedades, forças, capacidades ocultas, mais profundas e interiores. Os corpos da natureza são apenas isto como eles se mostram dentro do âmbito do seu projeto.

As coisas agora se mostram apenas em referência à localização pontual no espaço e no tempo homogêneos, em referência à medida homogênea de massa e das forças atuantes.

Como as coisas se mostram é pré-traçado através do projeto. O projeto determina por isso também o modo da captação e da sondagem do que se mostra, isto é, determina o modo da experiência. Porque agora a sondagem é determinada de antemão pelo esboço fundamental do projeto, o interrogar pode ser ajeitado de tal maneira que se põem de antemão condições, às quais a natureza deve responder assim ou/e assim. O interrogar é uma interpelação produtiva à natureza. Tendo no fundo esse projeto matemático, experiência se torna experimento ou experimentação no sentido moderno.

A ciência é experimental por causa do projeto matemático. O impulso experimental para com os fatos é uma consequência necessária do apriori matemático, a saber, do saltar por sobre todos os fatos predeterminando o seu modo de ser e o âmbito do seu aparecer[86].

Segundo o que foi dito, o projeto coloca a homogeneidade e uniformidade de todos os corpos segundo espaço, tempo e relacionamento de movimentos. Por isso, possibilita, fomenta e exige ao mesmo tempo como o modo de determinação das coisas a medida igual do início até ao fim, isto é, medição numérica quantitativa[87].

O modo do projeto matemático dos corpos, segundo Newton, nos levou à formação, à constituição de uma determinada “matemática”, no sentido estrito, como a temos na disciplina chamada matemática.

Dizer que o matemático é o próprio da ciência não quer dizer que o matemático, no sentido essencial, deva ter a forma da matemática no sentido estrito da disciplina matemática. Na realidade, a possibilidade de a matemática do cunho especial, enquanto medição e cálculo numéricos, ter podido entrar no jogo da epocalidade e dominar não é a causa mas sim uma conseqüência do projeto matemático no sentido essencial[88].

O que dissemos à mão da famosa frase de Galileu e de sua variante em Newton é o que está no fundo dessa caracterização da ciência, isto é, das ciências modernas como o matemático, o característico essencial da nossa era moderna.

Há, porém, matemática e matemática. Pois, de imediato, esse matemático essencial que aparece escondido na forma da matemática como cálculo e medição numérica quantitativa, possui um fundo mais pro-fundo. É necessário captar esse fundo para entendermos bem como é o ser do moderno, sua essência e o seu modo próprio de ser.

Dissemos acima que o matemático é a estrutura fundamental das ciências modernas. Estas constituem um dos traços básicos do modo de pensar e ser epocal moderno. Todo o modo de ser e pensar assim epocal pertence à facticidade da existência historial: à decisão acerca da colocação fundamental ontológica, isto é, em referência ao Ser e ao modo como o ente se revela como tal no seu todo, a saber como verdade epocal. Somente assim, mostrando o matemático dentro dessa perspectiva é que podemos compreender quão diferente é o modo de ser e pensar antigo e medieval e o nosso moderno, e ao mesmo tempo captar um toque de contato num nível de ser mais profundo e radical. Para podermos ver melhor a essência do matemático nesse sentido essencial como o próprio do nosso modo de ser e pensar moderno, é necessário examinar qual é a nova colocação fundamental acerca da existência humana que se mostra nessa dominação do matemático e em que sentido o matemático, conforme o élan correspondente da estrutura interna da sua essência, se torna hoje uma determinação filosófica nova da existência humana.

  1. O matemático e o “eu penso” de Descartes[89]

Essa nova colocação fundamental acerca da existência humana e com isso, através dela, também acerca do ente na sua totalidade aparece no modo como o existir humano moderno se comporta para com a Tradição. Aqui à primeira vista parece haver uma ruptura radical diante do passado. Costumamos citar Descartes como aquele que realizou a ruptura revolucionária contra o passado, no pensamento moderno.

É que um tal posicionamento da realidade como o que acima foi refletido acerca da concepção da Natureza nas Ciências Naturais, reduzindo tudo à Matemática de cálculos e medições numéricas quantitativas, fez com que se colocasse em questão a concepção que se tinha até então da realidade física. É por isso que a Modernidade se inicia através da assim chamada “dúvida metódica” de Descartes. Costumamos dizer que Descartes, em duvidando metodicamente de tudo, a modo de alguém que diz “suponhamos, façamos de conta que tudo é duvidoso”, nos conduz gradualmente de um conhecimento mais duvidoso para um menos duvidoso, até numa aproximação cada vez maior se achegar à verdade certa e indubitável no fato da existência de um eu que tudo pensa, tudo sente, tudo percebe, portanto do eu-sujeito, do núcleo do solipsismo do subjetivismo moderno. Daí, a nossa mania de colocar o pensamento moderno como filosofia da imanência do subjetivismo, do individualismo, unilateral, centrado em si, antropocêntrico, em contraposição à tradição que era realista, aberta ao Ser, teocêntrica, universal etc. Mas, talvez em Descartes, a afirmação absoluta do “Eu penso, logo sou” não tenha muito a ver com o subjetivismo, nem com a imanência antropocêntrica, entendida assim “substancialmente”, mas sim com o matemático das ciências modernas.

Pois na Modernidade, através das Ciências Naturais iniciantes, aos poucos, com a redução da explicação da Natureza à extensão quantitativa, a movimento, massa e suas localizações no tempo e no espaço homogêneo, começa a dominar a compreensão matemática do universo. A essência do Matemático que aparece aqui nessa interpretação físico-matemática do universo, do mundo, ultrapassa o nível das Ciências Naturais, portanto ultrapassa o âmbito da região da Natureza, e se mostra como a dinâmica do projeto a priori, lançado não tão-somente sobre os corpos físicos da Natureza, mas sim sobre o ente no seu todo ou os entes na sua totalidade, pondo-lhes de antemão a medida, através da qual, os entes podem e devem aparecer como entes. Esse projeto tem por pretensão e exigência,  fundamentar-se, fundar a si mesmo a partir e dentro de si, a ponto de que nesse caso tudo que vem à fala já tenha estado ali como sempre sabido. Essa paixão de autoidentidade implica que se coloque em questão todo o saber de até então, independentemente do fato de saber se esse saber era sustentável ou não. Nesse sentido, Descartes duvida, não porque é céptico. Ele duvida de tudo porque coloca o Matemático como o absoluto fundamento para todo o saber. Ele busca encontrar não somente uma lei fundamental para o reino da Natureza, mas para o saber do ente no seu todo. Essa posição fundamental matemática não pode ter nada que seja anterior a ela, não admite, não suporta nada que lhe seja dado previamente. Nada aqui pode ser pressuposto[90]. Se aqui algo é dado, então deve ser tão-somente a própria posição (como ato, como ação), no sentido do pensar que põe o projeto como autoposicionamento autônomo do matemático, isto é, da evidência a partir de si, nela mesma. É o pensar que se pensa a si mesmo. Isto é: tomar em conhecimento, tomar conhecimento do que nós já somos: o manthanein.

Como tal, essa posição do próprio posicionar a si mesmo é o “eu”: “eu penso”. O pensar aqui é sempre caracterizado como EU penso, ego cogito. É nesse “eu penso”, nessa ação do autoposicionamento[91] que aparece a experiência do “eu”. E essa experiência da densidade de ser “eu” se expressa na fórmula: sou. Cogito, ergo sum, isto é, cogito: sum = cogitans sum, em pensando sou. É pois a imediata segurança da posição como autoresponsabilização, a densidade de autoidentidade da autopresença de si a si mesmo: = subiectum, isto é, o sujeito, não no sentido de uma substância que ali ocorre como núcleo de referência de acidentes que sobrevêm a ela, mas sim no sentido de subjacência, isto é, assentamento, dominância plena e cheia p. ex. de um tom fundamental que pervade e impregna tudo, portanto subjacência dominante e bem assentada da autonomia da autoevidência e autoidentidade do autoposicionamento. Este sujeito-eu a modo de ser do Matemático não é nada de “subjetivo” como uma propriedade do Homem. Somente quando a essência, isto é, a vigência, a dominância prejacente do tom fundamental do Matemático que é e está no “Eu” não é mais visto, é que caímos na interpretação subjetivista do eu como se fosse uma substância centrada no eu-núcleo solipsista.

O “Eu penso: sou” assim compreendido não é o polo subjetivo de um outro polo objetivo chamado coisa, diante de mim. Nesse modo de ser do “Penso” o esquema Sujeito – Objeto, no sentido usual, desaparece inteiramente. Antes, o que chamamos de objeto não é outra coisa do que o vir à fala do Sujeito-Eu na sua autoidentificação. Pois no Cogito, isto é, em pensando, em coagitando a modo do lance de projecto, portanto em projectando a possibilidade a priori de todos os entes no seu todo, se inaugura, funda-se o modo de ser, em cuja dinâmica os entes vêm de encontro a lance do projeto, isto é, de encontro a “Mim” como ob-jeto, isto é, o explícito do projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto[92].

3.1. Eu-sujeito como substância e o sujeito-eu como o matemático[93]: subjetividade

O eu como “eu penso” não deve ser entendido como uma substância-coisa-sujeito que emite um ato de pensar (modelo do pensar substancialista). O “eu penso” deve ser entendido como a experiência originária que o homem tem de si mesmo, de modo imediato, concreto, vivenciado como autoevidência, autopresença do autoposicionamento de si a partir de si, como estar-ali na disposição de ser, enquanto lance e projeto a partir de si e em si mesmo.

Este “eu penso” como autoevidência, autopresença imediata do ser do homem a si mesmo é o que denominamos de matemático ou mathesis. Um saber que se determina de antemão como aquilo que contém tudo em si e está na feliz posse de si mesmo. A consciência feliz, plenamente realizada, dessa autoposse de si é o que Descartes chama de bona mens ou espírito: isto é, “eu penso”. Para Descartes a ciência, o saber, o conhecimento, isto é, a mathesis não é outra coisa que a plena realização do “eu penso” ou do espírito: é o próprio espírito plenamente ele mesmo.

Aqui portanto o “eu penso” é o modo de ser que caracteriza o próprio do homem, de ser sempre já a partir de si, de estar sempre consigo mesmo. Se o próprio do homem é esse modo de ser, então o homem encontra o seu progresso não na aquisição dos conhecimentos mas sim no esvaziamento deles. Mas em que sentido?

Até Descartes, a tradição ocidental definiu a verdade, isto é, o conhecimento verdadeiro como adaequatio rei et intellectus: como o espírito, indo à realidade, o saber adequando-se, dirigindo-se à coisa. Daí, a verdade ser adequação, correspondência, concordância do intelecto com a coisa e da coisa com o intelecto. Agora com Descartes, com a descoberta do “eu penso”, isto é, do matemático como o princípio básico de todo e qualquer conhecimento verdadeiro, a verdade não é mais o movimento de relacionamento do sujeito-eu-coisa com o objeto-coisa, do ir de encontro à coisa, abrindo-se a ela na adequação ou concordância. É antes simples, imediata e concretamente o eclodir, o abrir-se do próprio dar-se do espírito.

Na compreensão usual da teoria de conhecimento, conhecer é um ato do sujeito-substância simplesmente dado, entre outros atos do mesmo sujeito de p. ex. volição, sentimento etc. Nesse ato de conhecimento o eu-sujeito se dirige às coisas, sejam elas coisas fora de nós ou dentro de nós em diferentes níveis de entificação, para assim adquirir um acervo de conhecimentos. Quando esses conhecimentos correspondem às coisas e reproduzem o conteúdo das coisas, dizemos que ali há verdade, isto é, conhecimento verdadeiro. Se não houver a correspondência, temos então falsidade, isto é, conhecimento falso. Nessa usual e tradicional teoria de conhecimento, a mente (espírito, intelecto) é algo espiritual (portanto não material) que está no corpo humano, algo espiritual, cuja característica é de ser vazia, sem determinação, mas que, na medida em que vai adquirindo conhecimentos, torna-se como papel branco vazio que vai aos poucos sendo enchida de escritas. Quanto mais adquire conhecimentos, quanto mais se apossa do saber, quanto mais bem informada é a mente sobre a realidade, tanto mais verdades ela possui.

Descartes inicia o processo da busca de uma certeza absoluta, duvidando passo a passo da validade do conhecimento de tudo, a partir dos conhecimentos os mais físico-materiais dos nossos cinco sentidos até a validade dos conhecimentos os mais abstratos e mais espirituais, até chegar a uma única intuição derradeira, onde não dá mais para pôr em dúvida a validade da adequação. Esse último ponto é o “eu penso, e enquanto penso, que penso não posso duvidar!”

Por que Descartes duvida de tudo, assim passo a passo? E, quando por fim Descartes constata: eu, enquanto penso, que eu penso, não posso duvidar; enquanto duvido de tudo, da própria dúvida que duvida de tudo, não posso deixar de ver claramente que enquanto duvido não posso duvidar que duvido, o que restou de tudo isso? De que se trata? Pois, se duvidar, o fato de duvidar já está mostrando que eu, enquanto duvido, que duvido não posso duvidar.

Tudo isso parece uma brincadeira, enquanto não intuirmos que aqui não se trata de averiguar, de descobrir um ponto firme, um fato, uma realidade em si, a qual eu não posso duvidar, realidade essa que receberia o nome de sujeito-eu ou o subjetivo, isto é, o eu que é o ponto de referência centro-núcleo e portador de todos os meus atos de conhecer.

Mas, então, de que se trata? Todo esse processo de duvidar de tudo é para eliminar da minha mente tudo quanto não é ela mesma, isto é, para esvaziar a nossa mente de conhecimentos adquiridos e inatos. Mas para quê? Para chegar a um resto firme, a um fundamento, um ponto seguro que não se deixa eliminar, mas que ali está como algo, antes de todos esses movimentos?

Não! Mas antes para estar bem junto da mente, do espírito, como ele é nele mesmo, isto é, sem as sobrecargas, os acréscimos, as aquisições de conhecimentos. Dito com outras palavras, aqui Descartes quer encontrar-se com o ser do espírito, com o ser da mente, com o ser do intelecto, não o conhecendo a modo de conhecimentos de coisas, adquiridos ou inatos, mas sim esvaziando-se deles e deixando o espírito ser espírito.

Duvidar aqui portanto não tem a função de testar a validade da adequação do espírito ou do intelecto com a coisa, mas sim de esvaziar o espírito, a mente de todos os conhecimentos adquiridos e inatos, para que o espírito se torne presente, nu, puro, com ele é, a partir de si, nele mesmo.

Como é então o espírito esvaziado, limpo de tudo quanto não é ele, de todos os conhecimentos adquiridos e inatos?

Responde Descartes: é como “eu penso”. Mas, atenção, Descartes não diz: como eu sujeito aqui, tendo um ato chamado penso. Mas, sim: “eu penso” significa sou um conhecimento, uma experiência, um saber, uma ciência que não conhece distância para si mesma, não conhece caminho para si mesma, não conhece elaboração de si, porque vive na plena posse de si. Mas não é muito exato dizer “vive na posse de si”, pois ter posse é sempre um ter, que tem ainda distância entre o que se tem e quem o tem. Ao passo que no “eu penso” cartesiano, na experiência descartiana do espírito de si mesmo, a coisa não está diante do espírito, mas ela é nele, ou melhor, ela é a presença do espírito ela mesma, é por si, para si, é o espírito ele mesmo. Tal “realidade” (eu penso, logo sou) não tem mais o modo de ser da substância, do sujeito, da coisa ou do ente simplesmente dado, mas sim possui o caráter da luz, claridade incandescência, distinção, nitidez. Não vem de fora ao espírito, mas sim nasce nele, como ele mesmo, é ele mesmo em nascendo, portanto, conascimento: conhecimento, conaître. Essa presença, essa presencialidade não é um espaço aberto dentro do qual uma coisa se mostre (isto é, coisas prováveis e duvidosas), mas sim: o espírito ele próprio no seu tornar-se presente. Uma tal incandescência, a qual aparece a partir de si na sua própria presença se chama e-videri (evidenciar-se), evidência.

Espírito (intelecto, mente) é vigência desse modo de ser de estar junto de si, na autocaptação de si mesmo, na vivência da plenitude da imediatez. É esse modo de ser que está dito na famosa sentença de Descartes: “eu penso, logo sou”. E a partir dessa “realidade”, tudo quanto tem esse modo de ser da evidência é verdadeiro: idéias claras e distintas.

Assim, Descartes dá à verdade uma nova essência, a essência da evidência. É sob o signo da evidência que se reconhece o “espírito”. Até agora, o espírito estava impedido de ver na evidência o seu ser, devido a uma compreensão falsa do saber, do conhecimento. Isto é, saber ou conhecimento = adequação do espírito às coisas; adquirir, ganhar o saber, o conhecimento, isto é, ir às coisas, dirigir-se às coisas, ser correto. Assim o espírito, em vez de permanecer nele mesmo, começou a se afastar de si, alienar-se de si, começando a se interpretar a partir dos conhecimentos que estavam longe dele mesmo.

Recordemos porém que esse modo de ser do “eu penso” como o de estar junto de si naquilo que já sempre era, e buscar a si mesmo a partir do lance e projeto de si, sem jamais sair de si, mas sempre de novo só considerar válido o que se dá a partir de si, é o modo de ser que está expresso no verbo grego manthanein (ta mathémata, mathésis = o matemático).

Esse modo de ser da autopresença da e-vidência é o espírito que na Tradição do Ocidente se chama logos e que os latinos traduziram por ratio e em alemão se diz Vernunft (de vernehmen). Quando esse modo de ser da Vernunft está na sua absoluta limpidez, na plenitude de si, aparece na sua pureza. Esse caráter da pureza, essa qualificação da pureza, da limpidez, da translucidez (portanto, o adjetivo puro(a)) é o que está designado pelo termo “o matemático” no sentido da transparência límpida da evidência[94]. O matemático como razão pura, assim compreendida, é a essência do que no sentido autêntico denominamos de subjetividade na filosofia de hoje.

3.2. Cogito e vontade para o poder

A interpretação acima esboçada da “subjetividade moderna” como a autopresença da pura imanência de ser, a partir de si, na absoluta autonomia da autoconstituição, hoje parece tomar a forma do totalitarismo do cálculo e autoasseguramento da dominação da interpelação produtiva atuante nas ciências sob o poder da tecnologia. Como equacionar a autopresença da pura imanência de ser do Cogito, com esse totalitarismo científico-tecnológico na dominação da interpelação produtiva? Como se chegou do Cogito a essa dominação da interpelação produtiva da objetivação absoluta global interplanetária?

  1. Vontade para poder: o ser do sujeito

Para compreender o próprio do ser do sujeito e da sua subjetividade, como o ontologicum da era post-cartesiana, em vez de caracterizá-lo a partir e dentro da compreensão do subjetivismo do binômio da manualística idealismo e realismo,  subjetivismo e objetivismo, rastreamos o ser da subjetividade moderna à mão do que seja o matemático, reproduzindo, a modo de resumo e paráfrase, o texto de Heidegger que fala do matemático como a essência da nossa era científico-tecnológica. Assim, o ser da subjetividade moderna deve ser compreendido como matemático, expresso de modo já congelado, dogmatizado na ciência matemática que atua em toda parte através das ciências naturais tecnologizadas como dominação do poder da interpelação produtiva. Heidegger nos mostra como o Cogito, ergo sum de Descartes, está assentado na compreensão do que seja propriamente o matemático, que não deve ser identificado tout court com a disciplina matemática, mas sim, referido ao que os gregos originariamente entenderam por matemático. E ao reconduzir o Cogito cartesiano à mathésis, ao manthanein, e a ta mathémata gregos, nos faz suspeitar de que, na nossa atual compreensão do matemático à la matemática e do Cogito cartesiano como início do antropocentrismo, subjetivismo, solipcismo, aparece um sentido do ser do matemático já fixado, endurecido, em forma de autopresentificação, de autoposicionamento do saber de si a partir de si como evidênciação do saber-se, cujo inter-esse é o do ser da e na certeza de controle, cálculo do autoasseguramento. Esse autoasseguramento é então colocado como o ontologicum e também operativamente colocado sob a interrogação a cerca do seu ser, sob a denominação da expressão “Vontade para o poder” em Nietzsche.

O ontologicum Sujeito e subjetividade como Cogito em Descartes se diz em Nietzsche “Vontade para Poder”. Tanto Descartes como Nietzsche estão sob a necessidade e exigência da busca do novo sentido do ser, que faça jus à absoluta afirmação do ser da totalidade do ente, denominado por Nietzsche Vida. A essa nova afirmação do ser do ente na totalidade Nietzsche chama de “Princípio de uma nova valorização” (der Wille zur Marcht).

4.1. Em vez cogitatio, valor

O que significa valor, valorização para Nietzsche?

Acerca do valor, diz Nietzsche em Vontade para Poder, aforismo 715 (1887/1888):

O ponto de vista do “valor” é o ponto de vista de condições de conservação-escalação, em vista de complexas formações de duração relativa da vida dentro do devir”.

No Ocidente chamamos a tal der ontologia do sentido do ser dos entes no seu todo. E a busca do sentido do ser é a busca do princípio, isto é, da fonte da vida, que está na raiz, na origem de tudo que pode ser invocado como sendo. Para Nietzsche, o sentido do ser dos entes, isto é, aquilo que faz com que cada ente seja ente enquanto ente, se chama valor. E a dinâmica do surgir do valor como estruturação do todo como mundo se chama valorização. Assim, em vez de se dizer ser, aqui se diz valorizar, valorização. Em vez de ente (coisa, algo, objeto), se diz valor. Portanto, tudo, cada ente e o todo dos entes, é considerado sob a perspectiva do valor e da valorização.

Mas o que é valor, valorização? Responde Nietzsche: é ponto de vista de condições de conservação-escalação… da vida do devir.

O ponto de vista é a medida estabelecida previamente, de antemão, a qual projetamos diante de nós como perspectiva e prospectiva de referência. De lá, a partir de e em vista desse ponto, estruturamos tudo que somos e não somos, tudo que fazemos e não fazemos, segundo o escalonamento possibilitado e exigido pela medida previamente estabelecida. Essa medida prévia não é uma coisa fora de nós, uma norma, uma exigência ou necessidade impostas de fora, mas é a afirmação de nós mesmos, a im-posição que somos nós mesmos. É o quantum da possibilidade de nós mesmos, é a medida que damos a nós mesmos e a tudo que se refere a nós, enquanto capazes de ser, enquanto possíveis, isto é, potentes de viver. O ponto de vista é portanto condição ou condições da vida. Condição em alemão diz: Bedingung (Be = movimento incoativo; Ding = coisa; ung = sufixo de ação). Na palavra Bedingung está a palavra Ding (thing em inglês), que usualmente traduzimos por coisa, objeto, mas que evoca um todo ajustamento. Uma concentração ao redor do mesmo interesse e da mesma causa, como p. ex. a assembleia popular, portanto a corporificação da intensidade da energia vital de um povo livre. Condição ou condições de vida nessa evocação significaria o quantum ou os quanta da Vida.

Mas que Vida? Biológica? Zoológica? Psico-somática? Anímica, espiritual? Nietzsche diz: de conservação-escalação. Diz conservação-escalação e não conservação e escalação, para significar que conservação e escalação dizem dois momentos do mesmo.

Conservação: aqui a ação de se conservar. Conservar-se é manter-se, é ater-se de corpo e alma ao próprio de si, é guardar intata, originalmente, a vitalidade e o frescor da dinâmica de si mesmo. É a Erhaltung.

Escalação: escalar é subir passo a passo de degrau em degrau. É ação, a dinâmica que cria o escalonamento, mas aqui não um escalonamento de degraus fixos, um após o outro num movimento unidimensional linear, mas sim na ordenação da dinâmica da potencialização, do crescimento, do aumento do poder, como a escalação de força, como a dinâmica da autoindução no crescimento. É a Übersteigung, a transcendência.

Conservação-escalação da Vida é o modo de ser da autosuperação (Überwindung), a transcendência, o ir para além (metá), mas não saindo de si, não abandonando a si, ou negando a si em favor de uma coisa, de um reino, de uma região acima, para além, para fora de nós, mas sem ir para além de nós mesmos como potencialização, como escalada, não de violência, mas sim da afirmação da Vida. Esse modo de autosuperação, isto é, da simultânea dinâmica de se manter e se aumentar, portanto da conservação-escalação, esse poder, essa força, essa vitalidade de transcender, esse modo de ser é a estrutura da vontade que deve sempre de novo querer o querer do seu querer, numa contínua manutenção-escalação de si como liberdade. Essa liberdade não é liberdade de, mas sim liberdade para.

4.2. Poder como valor da vida

Essa dinâmica do querer como aumento da cordialidade de ser a partir de si na doação livre de si a si mesmo é o contínuo e crescente vir a si como crescimento. É tornar-se cada vez mais presente a si mesmo. Esse aumento de si mesmo como a vitalidade da autocordialização é o que caracteriza o poder. Assim, o novo sentido do ser que satisfaz a exigência e a necessidade da absoluta afirmação da vida, isto é, o princípio de uma nova valorização se chama Vontade para Poder.

Vontade para Poder em Nietzsche, portanto, não é desejo, ambição da conquista do poder dominador. É o princípio de nova valorização, é o ser dos entes na sua totalidade, cujo modo de ser é caracterizado como Vontade para Poder, por causa do modo de ser da vontade e do poder, descrito por Nietzsche como valor, como valência da coragem do ser, como valentia de ser que perfaz a condição da conservação-escalação da Vida.

Valor e valores são por conseguinte quantum e quanta da concreção de Vontade para Poder em diferentes densificações, formando assim as complexas configurações, isto é, os diversos entes, cada qual por si e na mútua implicância de interação como todo. Essas complexas formações, isto é, os entes na implicância mútua como textura energética da totalidade, assim criada, são durações do devir. São durações porque são contenções, momentos contidos, cristalizações passageiras do fluxo dinâmico e generoso da Vida, do devir. São relativas porque são relacionadas entre si uma na outra, uma com a outra. O ser do ente no seu todo para Nietzsche é, pois, Vontade para Poder, a Cordialidade-Vida no seu conservar-se e crescer, formando-se em mil e mil diferentes quanta, isto é, porções homogêneas da dinâmica do “querer ser” e “poder ser”. Essas porções, a que Nietzsche chama de valor, são valências de Vontade para Poder. Esse movimento e fluxo contínuo, cada vez mais intenso do vir a si de Vontade para Poder é um movimento espiral de autoescalação e autoconservação, que no renovado transcender-se para a essência de si mesmo é a expansão de si como aumento de autoescalação de Vontade para Poder, o seu crescimento. É, portanto, contínua repetição circular do mesmo, não na indiferença e chatice da monotonia linear de um rodar sem crescimento a modo de realejo, mas, sim, circulações da escalada do aumento, a modo dos anéis-espirais do voo da águia, que em diferentes e repetidos círculos concêntricos sobe cada vez mais, não flutuando, indiferente e carregado pelo vento como um balão de ar, mas superando sempre de novo o peso da sua sustentação da conservação e aumento de Vontade para Poder. Por isso, Vontade para Poder na sua dinâmica “interna” do crescimento é o eterno retorno do igual ou do mesmo, como a permanência no mesmo da retomada cada vez nova do todo de Vontade para Poder.

Assim, na ontologia de Nietzsche tudo é visto, avaliado, em vista e a partir do ontologicum Vontade para Poder, tudo como função ou funções de valia, como valor, valência, como a contínua conservação, escalação e retomada da coragem de ser. É nessa perspectiva que a vigência do Matemático que em Descartes operava como autoevidência da autoapresentação como evidência do saber de asseguramento vem à fala como valor da Vida, em valores de Vontade para Poder.

E em Vontade para Poder (1887), o n. 507 diz: “A avaliação do valor”, isto é, “eu creio que isto e isto é assim” como essência da “verdade”.

Nas avaliações de valor expressam-se as condições de conservação e crescimento. Todos os nossos órgãos de conhecimento e sentidos são desenvolvidos somente em vista de condições de conservação e crescimento. A confiança na razão e nas suas categorias, na dialética, portanto a avaliação de valor da lógica, somente prova a já por experiência comprovada utilidade da verdade para a Vida: não a sua “verdade”. Que deve haver ali uma grande porção de crença, para que se possa julgar; para que falte a dúvida em vista de todos os valores essenciais; – isto é pressuposição de todo o vivente e da sua vida. Portanto, que algo deve ser tido por verdadeiro, é necessário, – não, que algo é verdadeiro.

“O mundo verdadeiro e o mundo aparente” – esta oposição é reconduzida por mim a relacionamentos de valor. Nós projetamos as nossas condições de conservação como predicados do ser como tais. O fato de que nós devemos ser estáveis na nossa crença, para crescer, disso fizemos com que o mundo “verdadeiro” não seja nenhum mundo de mudanças e do devir, mas sim que seja um mundo que é”.

A verdade é ilusão, é apenas função para a sobrevivência de uma espécie do ser vivente, a saber, do homem; a verdade é uma crença, rejeição de dúvidas e incertezas em vista da avaliação, isto é, do cálculo da valia, da valência dos nossos posicionamentos, para criar condições de estabilidade em favor da conservação e crescimento da Vida; o mundo verdadeiro, absoluto e eterno do suprasensível, o mundo metafísico é apenas um projeto do cálculo de valor do asseguramento do nosso crescer. A verdade não é outra coisa do que projeto do homem-sujeito e do seu agenciamento da própria sobrevivência e conservação.

Mas tudo isso, essa colocação de Nietzsche não é no fundo, mutatis mutandis, exatamente o que Kant na Crítica da razão pura propõe, na sua viragem copernicana, segundo a qual, o conhecimento não mais se deve orientar segundo o objeto, mas sim, pelo contrário, o objeto deve-se orientar segundo o intelecto? Certamente tanto Kant como Nietzsche, na sua crítica da razão ocidental, permanecem, no fundo, na pista da colocação metafísica do Ocidente. Assim, seja como for, a estrutura da verdade para ambos é sempre adequação, concordância, direcionamento como a transcendência da superação. Ambos colocam, como o centro e o substrato do ponto de referência do constituir-se do mundo, a Subjetividade, o homem como Sujeito e agente da estruturação do ser do ente no seu todo. O que, porém, em Nietzsche é próprio e para nós de grande importância é que essa correspondência, esse direcionar-se, se dá como avaliação de valor (Wertschaetzung). Diz Nietzsche: “A avaliação do valor… é a essência da verdade”. Nessa afirmação está o pivô, o ponto nevrálgico da Filosofia de Nietzsche, a sua crítica da razão ocidental. A palavra alemã para a avaliação de valor é Wertschaetzung (Wert = valor; Schaetzung = avaliação; Schatz = tesouro; ung = sufixo de ação). Portanto, no termo Werschaetz-ung está a palavra Schatz que significa tesouro. Avaliação de valor sugere pois que o valor diz respeito ao tesouro. O valor é a valência do tesouro. É a unidade de verificação de todas as coisas, portanto, dos entes na sua totalidade, enquanto contêm ou não contêm, enquanto contêm mais ou menos do ouro de fundo, isto é, do tesouro. Quanto mais fundo de ouro, quanto mais tesouro ali houver, tanto mais forte, tanto mais de valia é a unidade, tanto mais quantum de ser possui o ente. Mas lá onde está o teu tesouro, lá está também o teu coração. E o coração do tesouro da metafísica de Nietzsche é, como já foi dito acima, Vontade para Poder.

Isto significa que a essência da verdade, o que ela é de fato, realmente, só pode ser compreendido, se tivermos Vontade para Poder como o tesouro do coração de todas as coisas, como o fundo de ouro da “bolsa de valores” que é o mundo, o universo, o ente no seu todo.

4.3. Eversão de todos os valores é a nova valorização: Vontade para poder

Com o estabelecimento de Vontade para Poder como o ser do Sujeito e da sua subjetividade, o que se denominou “revolução copernicana” na virada da Idade Média para a Idade Moderna chega a sua consumação sob o título de “Eversão de todos os valores”. Ali Nietzsche coloca como o fundo da razão ocidental, o princípio da nova valorização: Vontade para Poder. Os valores, todos os valores, desde os mais insignificantes até os mais altos e absolutos, que desde Platão até hoje sustentam a humanidade na busca do sentido do ser dos entes no seu todo, não são outra coisa do que as condições de conservação e crescimento da própria Vontade para Poder, colocados como tais por ela mesma. Os valores supremos do mundo suprasensível, as verdades do reino do “Deus cristão” e de seus substitutos, isto é, a verdade absoluta da razão ocidental se desmascaram como valência, como funções de valia de Vontade  para Poder, que se torna agora, em Nietzsche, a verdade de todas as verdade, o valor de todos os valores, portanto o ser dos entes na sua totalidade.

Mas o que é isto a verdade de Vontade para Poder? Vontade para Poder não é ela agora a verdade suprema? A desvalorização do sustentáculo fundamental da razão ocidental e a descoberta do Princípio da nova valorização é a descoberta de que a essência da razão ocidental está nela mesma enquanto Vontade para Poder. E Vontade para Poder é o ser dos entes no seu todo. Mas o que de crítico, o que de diferente há nessa tão badalada Vontade para Poder? Não é ela senão a exacerbação cada vez mais desenfreada do envolvimento da razão ocidental consigo mesma enquanto metafísica? Esse transcender de Vontade para Poder não mais para fora, mas para dentro de si, esse assumir sempre de novo a responsabilidade de ter que ser cada vez si mesma, é realmente uma passagem para o radicalmente novo? Ou não é antes apenas um autoengano da razão ocidental que se tem por Vontade para Poder, mas por não possuir mais uma referência fora de si, volta-se sobre si, com o mesmo jeito da transcendência para o infinito do além, apenas agora aprisionada dentro do próprio movimento, apenas como um movimento circular de realejo? Um girar vazio, portanto, mas com a pretensão de ser o movimento centrípeto do olho do furacão da tempestade, sem contudo conseguir afundar e sucumbir para dentro de si, por não ter mais, nesse tempo de indigência do nihilismo europeu, o suficiente caos para poder gerar estrelas a partir de si? O que há de diferente pois no movimento do eterno retorno de Vontade  para Poder, diferente do movimento circular da ação projetiva do sujeito-homem? Vontade para Poder não é a exacerbação desse processamento da objetivação do homem como sujeito?

Nesse processamento da objetivação do homem-sujeito como um movimento de contínua superação de si para dentro de si, nada se encontra ali que lhe pudesse servir de fonte e fim da conservação e escalação do próprio vigor do retorno. Tudo começa a se desgastar num esvaziamento total do sentido do ser, restando cada vez mais apenas a exigência e necessidade de girar, girar sem cessar no vazio. No vazio nadificante, onde todos os entes são apenas funções, isto é, objetos liquefeitos, rarefeitos como momentos fugidios de cálculo, na indiferença da pura ocorrência, sem vida, sem alma. Vontade para Poder, o olho do suposto furacão da Eversão de todos os valores e do surgimento do princípio de nova valorização, parece ser exatamente o vir à fala da nihilidade nadificante que aniquila o próprio nada, reduzindo tudo a fluxos indiferentes de funções, numa entropia do ser, onde jamais poderá nascer, brotar e crescer, sequer uma ilusão do erro, sequer uma dor, um desespero ou sofrimento.

4.4. Vida: Mundo

No entanto, por outro lado, nas próprias palavras insistentes de Nietzsche, Vontade para Poder, o novo ser dos entes no seu todo, é um anúncio inaudito da nova jovialidade de ser. É a Boa-Nova da Vida plena, da renovação contínua da coragem de ser, livre de toda e qualquer vindicância alheia a si, a não ser a exigência única, radical de ter que ser o vigor nascivo dela mesma. E nas palavras de Nietzsche no Assim falou Zarathustra (Also sprach Zarathustra) é a terceira e a última transformação do ser-homem, descrita como “inocência, criança, um esquecer, um novo início, um jogo, uma roda que gira a partir de si, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim!” Entrementes, na terra, livre da amarra do céu da metafísica, aumentam os sofrimentos e as dores dos filhos dos homens: as intermináveis guerras fratricidas, os absurdos da crueldade humana, os massacres dos inocentes, as brutalidades das limpezas étnicas, a desertificação do nihilismo europeu, as derrocadas e o esvaziamento do sentido de todos os ideais da Terra, a planificação do universo numa mobilização planetária destruidora de toda diferença que não seja correspondente à interpelação produtiva do autoasseguramento da subjetividade do sujeito-homem! Vontade para Poder!? A alegria de viver, a partir de si, para e por si, na valência da valentia de ser em assumindo a mortalidade e finitude da terra dos homens?! Não soa tudo isso, estranhamente alienado e alienante? Heróico? Trágico ou cínico-eufórico, estático-tresloucado?

Na obra Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Boese), no aforismo 150 (1886), escrita no tempo em que se ocupava com o pensamento, enquanto planejava sua obra principal, Vontade para Poder, escreve Nietzsche: “Ao redor dos heróis, tudo se torna tragédia; ao redor do semi-deus tudo se torna jogo de Sátiro; e ao redor de Deus tudo se torna – como? Talvez “mundo”?

Ao redor de Deus, tudo se torna… mundo?! O mundo, o Tudo, ao redor de Deus da “morte de Deus”, do Deus Vindouro do nihilismo europeu?! O que é pois e como é este Novo Mundo?

No fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (38[12]) responde Nietzsche:

E também vós, sabeis vós o que é “o mundo” para mim? Devo mostrá-lo a vós no meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, sem fim, uma imensidão, imensidão de forças, firme e brônzea, grandeza que não se torna maior nem menor; grandeza que não se desgasta, apenas se transforma. Como todo, imutável: uma economia sem gasto nem perda, mas também igualmente, sem acréscimo nem entrada; imensidão cercada pelo “nada”, como por sua totalidade; no entanto nada de vazio, nada de esbanjado, nada de infinito-estendido; mas sim, como força determinada, inserida num determinado espaço, e não num espaço que fosse de algum modo “vazio”; antes cheio como força em toda parte, como jogo de forças e como forças-ondas, simultaneamente um e “muito”; aqui crescendo, e ao mesmo tempo lá diminuindo; um mar de forças, se lançando e fluindo para dentro de si; eternamente se transformando, eternamente se refluindo, com anos incríveis de retorno, a maré alta e baixa dos perfis dos entes na dinâmica da expansão, a partir do mais simples para os mais complexo, a partir do mais quieto; do mais teso, do mais gélido para o mais abrasado, o mais selvagem, para o mais autocontraditório, e então de novo, da plenitude, retornando para o simples, retornando do jogo das contradições, de volta para o prazer da sintonia, afirmando-se a si mesmo, mesmo ainda nessa igualdade de suas pistas e seus anos, abençoando-se a si mesmo como o que deve retornar eternamente, como um devir, que não conhece nenhuma saturação, nenhuma superfluidade, nenhum cansaço –: este meu mundo dionisíaco do criar-se a si mesmo eternamente, do destruir-se a si mesmo eternamente, este mistério-mundo de dupla volúpia, este meu além do bem e do mal, sem meta, se não jaz uma meta na fortuna do círculo; sem vontade, se um anel não tem para si mesmo boa vontade, – quereis vós um nome, um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, vós, os mais ocultos, vós os mais fortes, os mais intrépidos, os mais noturnos da meia-noite? Este mundo é Vontade para Poder – e nada mais! E também vós sois esta Vontade para Poder – e nada mais!

Mas o que é este mundo dionisíaco de Vontade para Poder, essa absoluta e incondicional afirmação da Vida na sua imensidão, profundidade e criatividade? O que significa “e também vós mesmos sois esta Vontade para Poder – e nada mais”?

Nós mesmos, a razão ocidental na morte de Deus, nós mesmos como a crítica da própria razão ocidental, esse “nós mesmos” somos Vontade para Poder e nada mais.

Esse “nós mesmos” como a concreção, como o vir à fala de Vontade para Poder, recebe em Nietzsche um estranho titulo, a saber, Humano, demasiadamente Humano. Assim, num fragmento escrito entre junho e julho de 1885 (36[37]) nos ensina Nietzsche:

Humano demasiadamente Humano: com esse título está insinuada a vontade para uma grande libertação, a tentativa de um singular livrar-se de todo e qualquer preconceito que fala em favor do homem; e ir todos os caminhos, os quais conduzem suficientemente para o alto, para, por um instante que seja ao menos, olhar sobre o homem de cima para baixo. Não para desprezar o desprezível, mas sim para questionar até o fim para dentro dos últimos fundos, se ali não ficou ainda algo para desprezar, mesmo ainda no mais alto e no melhor e no todo, acerca do qual o homem de até agora estava orgulhoso; se ainda ficou algo para desprezar, mesmo neste orgulho e na inocente e superficial confiança na sua avaliação de valor: esta tarefa não menos questionável era um meio entre todos os meios, para os quais me obrigou uma tarefa maior, uma tarefa de maior envergadura. Quer alguém ir comigo estes caminhos? Eu a ninguém aconselho a isso. Mas vós o quereis? Então eia, vamos pois!

Essa tarefa maior, essa tarefa de maior envergadura, a tarefa de sucumbir, de ir ao fundo, até aos abismos os mais profundos dos entes na sua totalidade, no zelo, na diligência da fidelidade, de não deixar de pé nada que não seja o límpido, o puro, o expedito salto da boa vontade de Vontade  para Poder é o grande enigma de Nietzsche, de “Nietzsche e da crítica da razão ocidental”. A essência da Metafísica de Nietzsche, essência como do “Nietzsche e a crítica da razão ocidental”, portanto a essência de Vontade para Poder sucumbe no profundo silêncio da escuridão da Não-razão. Crepúsculo dos ídolos (Goetzen-Daemmerung, Sprueche und Pfeile 11), obra escrita por Nietzsche em 1888, terminada segundo o prefácio do livro “no dia em que o primeiro livro da eversão de todos os valores chegou ao fim”, diz: “Pode um jumento ser trágico? Que sucumba sob uma carga a qual não pode nem carregar nem jogar fora?… O caso do filósofo”.

O que vale a verdade de Vontade  para Poder como a verdade suprema no tempo de indigência da morte de Deus jamais poderemos saber de Nietzsche. No entanto, a própria Metafísica de Nietzsche, em percorrendo todos os momentos principais da sua constituição como o nihilismo europeu, a eversão de todos os valores, Vontade para Poder e o eterno retorno do igual, na tentativa de divisar o fundo abissal do Destinar-se do Ocidente, portanto mesmo a própria metafísica de Nietzsche, como crítica da razão ocidental, não é ela a própria busca apaixonada do Ocidente, do animal racional? Uma busca, através de todos os níveis dos abismos dos sofrimentos e das dores da terra dos Homens, através da aridez e secura da crescente desertificação da terra. Da terra, onde aos poucos nada mais resta a não ser a pura estruturação formal lógica, neutra e indiferente da objetivação calculada do autoasseguramento cibernético de não-se-sabe-o-quê. A busca apaixonada do radical-outro de nós mesmos que talvez não resida no além mundo da metafísica, mas sim, silencioso no fundo, bem no fundo, no pro-fundo da nossa razão vespertina do Ocidente, como escuridão e demência, como sofrimento e dor… como pura loucura? Ou… como a pura espera do inesperado… a espera de um “Deus-vindouro”, o puro início, o Ueber-Mensch: um não-homem, um aquém-homem, um homem-Deus, cuja “divindade” é aqui tão diferente, cuja alteridade tão outra que recebe o nome de “non-aliud” (Cusano), o mais próximo de nós mesmos, o mais íntimo de nós mesmos do que nós a nós mesmos?

Sentir e Pensar

Introdução

“Sentir e pensar”, tema do seguinte pequeno trabalho, necessita de explicação.

Na história do Ocidente-europeu, no início grego, temos o ‘conhecido’ fragmento do pré-socrático Parmênides que diz: …“pois o mesmo é pensar e ser. O título do seguinte trabalho “sentir e pensar” tem implicância com esse fragmento de Parmênides. Explicar essa implicância no fundo é dizer de que se trata, quando nesse trabalho se fala de sentir e pensar e nesse encontro, ao refletirmos acerca da psicologia, pedagogia e espiritualidade na nossa formação, se refere de alguma forma ao sentir e pensar.

  1. Tentando colocar a questão dos nossos encontros

Hoje, não se diz ser e pensar é o mesmo; e, se se disser, diz-se ser e pensar é igual. E tal asserção seria não somente não compreensível, mas também errônea. É que hoje, o mesmo é sinônimo de igual, e por sê-lo, ser não é igual ao pensar, é algo bem diferente do pensar.  O que pertence ao reino do que ocorre como existente realmente não pode ser igual ao que pertence ao reino do que é apenas mental. Este se refere ao homem, à sua esfera subjetiva; aquele à coisa distinta do homem, à esfera objetiva, fora da sua mente, ocorrendo realmente por e para si, sub- e con-sistente em si. Subsistir e consistir por e para si, em si como sujeito-homem e subsistir e consistir por e para si, em si como objeto-coisa são duas coisas bem diferentes. Mas ambos, tanto o homem como a coisa são sub- e con- e in-sistência. Esse comum de ‘dois-e-mais’ esse fundo geral, básico, fundamento que serve de plataforma geral no esclarecimento do que seja a coisa humana e a coisa não-humana, se chama entidade do ente no seu ser. O que seja humano e o que seja não-humano já é de antemão determinado nos e como modos de ser no seu ser por essa entidade do ente no seu ser. Esse esquema, na pesquisa e no ensino do pensamento ocidental recebe o nome de explicação manualística[95] da filosofia substancialista. Quando nós[96] nos reunimos para trocar idéias acerca de um determinado tema, estamos no modo de ser e de compreender, somos, pensamos e sentimos, na manualística da filosofia substancialista. E tudo isso, mesmo que não tenhamos estudado academicamente a especialização chamada filosofia. Essa pré-compreensão de fundo, filosófica, na qual estamos todos nós, é o que denominamos de nossa compreensão cotidiana, seja ela na vida dos afazeres diários, seja na vida das ciências. Esse é um ponto que devemos sempre de novo recordar nos nossos encontros e tentar vê-lo com nitidez cada vez maior.

No entanto, por outro lado, essa última afirmação parece não ser muito exata. Pois o que denominamos de nosso cotidiano é mil vezes mais vasto e profundo e vivo do que a mencionada pré-compreensão de fundo, filosófica.  E objetamos: o nosso cotidiano pode ser muito banal, superficial, passageiro, sem muito empenho e desempenho de busca, mas ele está em contato, envolto, impregnado por aquilo que nomeamos como vida, ser, sentido do ser, mistério, alma, Espírito, Deus, realidade etc. Além disso, o que se designa como compreensão diz respeito à inteligência, razão; mas nós temos também outras faculdades de captação como vontade e sentimento. Não é assim que o ser, a realidade se nos apresenta muito mais através de nossas atitudes éticas, morais, muito mais através do coração, do sentimento e suas vivências do que da compreensão racional, abstrato e conceitual, filosófica? E além da nossa compreensão racional, mental, do pensar, possuímos vivências e experiências, p. ex., da fé, da religião.

Mas, em assim objetando, se nos examinarmos a nós mesmos na práxis da nossa busca mais sincera e pessoal, ficamos de novo perplexos. Pois, estamos perplexos, porque no fundo estamos nessa perplexidade perguntando: mas todo esse saber, acerca da inteligência, vontade e sentimento, acerca da experiência e vivência da Fé, da Religião, de onde tiramos tudo isso? Tudo isso que dizemos é evidente? Não é assim que consideramos hoje toda essa área pré-científica, o nosso cotidiano como uma compreensão ingênua, de imediatismo caseiro irracional, sem mediação de uma impostação mais sistemática e científica? Nós que somos formados em um saber científico, se não seus criadores ao menos consumidores; estudiosos, sim especialistas, ‘ensinadores’, pesquisadores de uma ciência positiva, psicologia, pedagogia, espiritualidade, filosofia, teologia etc., como e em que sentido nos responsabilizamos pelo nosso saber, como ligamos o nosso saber com a vida, com tudo que nos rodeia, que se nos retrai, que nos inquieta e até mesmo nos angustia? E isso não somente enquanto em particular, sofremos a crise existencial da nossa vida cotidiana, mas enquanto ‘profissionais’ de um saber, do qual somos agenciadores, fomentadores, utilitários?[97]

Os nossos encontros anuais nos querem movimentar ao redor de nós mesmos, enquanto começamos a perceber no saber da nossa formação profissional essa questão de fundo da fundamentação das nossas ciências, nas quais fomos formados e nos levar a nos inquietar com maior acribia e necessidade e precisão acerca da verdade do ser do nosso saber e não saber. Na realidade, os nossos encontros ainda não sabem bem o que estamos procurando, mas aos poucos estamos começando a vislumbrar o inter-esse de fundo das nossas inquietações enquanto intelectuais, agenciadores e consumidores do saber no qual pensamos, sentimos, vivemos e somos. E através do que viemos discutindo e refletindo em nossos encontros, estamos, por assim dizer, descobrindo que no fundo de todos esses nossos saberes, tanto na vida cotidiana como nas ciências e profissões que exercemos, existe um fundamento fixo, algo como pré-jazida de fundo, a qual acima caracterizamos como concepção ou explicação manualística da filosofia substancialista.

O sentido do ser da entidade do ente no seu todo da manualística da filosofia substancialista subsume o próprio de todo o ente, a identidade, ou melhor, a diferença do seu ser sob a opacidade e neutralidade da igualdade do sentido do ser denominado entidade do simplesmente dado ou entidade da ocorrência. O ente é então compreendido de antemão como algo, coisa, um quê. A uniformidade, a homogeneidade que aqui reina nos embasa num horizonte único, neutro e óbvio, aparentemente nos dando um fundamento seguro, fixo e imutável. Mas esse fundamento nos bloqueia o desvelar-se livre dos sentidos do ser, cujo hálito, na sua identidade e diferença, é de outro quilate, é de outra gênese, outro crescimento e consumação, totalmente outra na nascividade e na perfeição da sua liberdade e criatividade.

Para que as ciências, e outros saberes da nossa vida cotidiana também possam nos dar realmente o sabor da sua verdade finita, concreta e viva, não haveria a necessidade de furar o bloqueio de fundo do embasamento da positividade de todas as nossas ciências, quer naturais quer humanas, sobre a laje fundamental da concepção manualística da filosofia substancialista, portanto, sobre a entidade do ente no seu todo, sobre a entidade do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado? E soltar a nossa liberdade de sentir e pensar o ser na sua nascividade fontal?

O nosso tema sentir e pensar quer falar da possibilidade de estar junto dessa nascividade fontal.

Estar junto da nascividade fontal! Alguém como Mestre Eckhart denominava essa possibilidade de conhecimento, i.é, conascimento. Conascer significa nascer com, surgir, crescer e se consumar com o ente no seu ser, em sendo. A hipótese de trabalho é de considerar que o ser do homem como um em sendo é ser apenas o hiato da passagem, ou melhor, a viragem da possibilidade de ser para o em sendo do ente no seu ser. Com outras palavras, o próprio do homem, a essência do homem é apenas o nada possível do ente no seu ser. Tal vigor do nada (= possibilidade) é expresso nos termos sentir e pensar. Nesse sentido, parafraseando o fragmento de Parmênides, citado no início, podemos talvez dizer: … “pois o mesmo é sentir-e-pensar e ser[98].

  1. Sentir e pensar: o ser-no-mundo

Em certos círculos da filosofia de hoje, costuma-se chamar o ser do homem com a expressão: o homem é o ser-no-mundo. Sentir e pensar se refere a e incide dentro dessa expressão ser-no-mundo na preposição no. Sentir e pensar, enquanto ser do homem, é ser-no ponto de salto da constituição, ou melhor, gênese do mundo. Como já foi dito várias vezes nos nossos encontros anteriores o ser-no-mundo não pode ser entendido como ocorrência de um algo dentro do conjunto dos algos, formando um todo somativo. Não se trata também de um ente dentro do seu médium como p. ex. um sapo dentro de uma lagoa. Trata-se, antes, do ponto nevrálgico da estruturação do ser do homem como batente da passagem da possibilidade de ser; como a toada da percussão do toque do ser como repercussão ‘syntônica’ constitutiva do mundo. Trata-se, pois, da preposição no na expressão: o “ser no ente” e o “ente no ser”[99].

Para que o ser do homem enquanto ser-no-mundo possa ser captado no seu ser no, de modo talvez mais viável, tentemos dar dois exemplos que é uma espécie de parábola, e então discuti-lo oralmente, se tivermos tempo.

  1. Parábola da carta codificada:

A parábola é de René Descartes. A parábola fala de como na ‘inspiração’ do que na sua época estava a surgir como ‘revolução copernicana’ (Kepler, Copérnico, Galileu Galilei; Descartes, Pascal) se insinuava o modo de ser da nova ciência universal (mathesis universalis) na sua liberdade e jovialidade de ser[100]: esse modo de ser incipiente se chamou cogito ou cogitatio, que na acepção usual de hoje poderíamos traduzir como pensar, conhecer, interpretar.

“René Descartes tenta ilustrar o modo de ser do conhecimento denominado interpretação mais ou menos assim: Uma pessoa recebe de um desconhecido uma carta cifrada, cujo código de decifração ela desconhece. Depois de várias tentativas, consegue descobrir uma regra, cuja aplicação lhe permite montar um código que lhe possibilita ler a carta, de tal modo que ela traz à luz uma mensagem com sentido plenamente compreensível e até incontestável na sua coerência. Descartes, porém, especula: Poderia acontecer que  por ser um homem de grande habilidade, o autor da carta a tenha redigido de tal modo que, sob outro código de decifração, a mesma carta contivesse outra mensagem, inteiramente diferente da anterior. Com isso, em nada é alterada a primeira leitura da carta. Que alguém seja capaz de descobrir outro código de decifração é admirável. Mas a pessoa que fez a primeira leitura pode, tranquilamente, deixar aberta essa questão da existência de outro código de decifração. A ela basta que, no se modo de ler, a carta lhe dê sentido coerente de início até o fim. Mas a segunda leitura não lhe poderia dar um sentido melhor, mais próximo ao da intenção do autor? Sim, se o autor tivesse fixado como válido e melhor um dos códigos de decifração. Mas, suponhamos que esse autor da carta é o próprio Criador, de quem se origina o universo e tudo o que ele contem, seja atual ou possível. Suponhamos que esse Criador cifrou a carta segundo um número interminável, infinito, de diferentes códigos. Segundo Descartes, essa parábola mostra o relacionamento e a postura própria do pesquisador nas ciências naturais exatas para com o universo.

Numa tal situação, caso consigamos decifrar a carta, descobrindo um ou mais códigos de decifração, qual dessas interpretações é válida, melhor, certa ou errada? Essa pergunta não pode ser respondida no caso da carta da parábola, porque aqui existe um número infinito de diferentes códigos de decifração. Mas então cada interpretação tem igual valor? Todas elas são válidas? Mas, se é assim, não estamos permitindo na busca da verdade um relativismo total, no qual tudo é relativo, portanto, nada é absoluto? O decisivo aqui é entender com precisão o significado de relativo para o caso da interpretação. Relativo aqui deve ser entendido simplesmente como relacionado, sem nenhuma conotação repreensiva. Portanto, como ente, cuja estruturação é referência, relação. Relação não tem o mesmo modo de ser da substância-coisa, em si, mas sim o da função de ser referido a outro. Como tal, jamais é em si, isolado de outros, mas sempre junto com, constituindo-se cada vez como momento de um conjunto, que por sua vez é momento de outro conjunto, em diferentes níveis e dimensões. Assim, cada vez, deve-se definir uma interpretação com base em sua posição, e essa definição é, ao mesmo tempo, sua maneira própria de se relacionar com outras interpretações. Definir aqui significa mostrar o código de sua decifração, dar as coordenadas das suas pressuposições e pré-compreensões. Em assim se definindo, isto é, marcando seus limites, cada interpretação diz de si mesma. Estas pressuposições e pré-compreensões são as coordenadas demarcadas pela locação, a partir e dentro da qual estabeleço a possibilidade de rastrear o sentido de um texto. É a partir de tal posição que dou esta ou aquela explicação do texto. A interpretação é válida na medida em que ela percebe e clareia as implicações dessas pressuposições e pré-compreensões, de modo cada vez melhor concatenado e coerente, num todo coeso e fundamentado. Essa definição que a interpretação opera nela mesma em sendo interpretação, já é o início do processo de intercâmbio e referência a outras possíveis interpretações com suas respectivas auto- definições, numa interação, quase sempre não-temática, mas operativa, de muita crítica, provocação, confirmação, de acolhida ou rejeição, mútuo aprofundamento e alargamento, em cuja co-agitação cada interpretação é levada a tomar conhecimento cada vez mais responsável e acurado dos seus limites, de seu nível e de sua dimensão”.

Aqui, poder-se-ia apenas constatar que Descartes está dizendo: “tudo é interpretação”. Na realidade, ele aponta para a questão, surgida nessa nova mathesis universalis. Essa questão exige de nós que nos tornamos mais claros acerca do ponto de salto de cada uma dessas interpretações. E sentir e pensar como é a estruturação, a dinâmica da passagem ‘entre’ o abismo infinito de possibilidade de ser que ali se oferece cada vez e o surgir, crescer e consumar-se finito do mundo criado em e por correspondente interpretação. Se chamarmos cada interpretação de mundo e o código decifrado de o positum de uma ciência positiva, o modo de ser da verdade do saber, aqui, das ciências positivas, não é mais adaequatio rei et intellectus mas sim a estruturação do que os gregos denominavam de a-létheia, que costumamos traduzir como des-ocultamento ou des-velamento. Como já foi insinuado acima, a essência do homem está nesse “–” (hífen ou hiato) que medeia o a e léthe ou létheia. Como, pois, nos responsabilizamos pelo nosso saber, se a essência do homem é ser-no-mundo, e se, o no aqui significa exatamente esse hiato?

  1. A parábola da árvore

O poeta alemão Johannes Peter Hebel (1760-1826) diz: “Nós somos plantas, as quais, – gostemos ou não de o admitir – devemos com as raízes subir da terra, para podermos florir no éter e carregar frutos” (Obras, ed. por Wilhelm Altweg, III, p. 314). “Subir da Terra para o Céu (éter) e florir e carregar frutos” diz o movimento e a dinâmica do crescer, aumentar, vicejar e frutificar do ser e do fazer humano que é a aberta da constituição do mundo, em cuja entidade o próprio homem e o seu próprio se constituem como ente todo destacado entre outros entes, por trazer à luz, à fala, cada vez o ente no seu todo, enquanto realização de uma das possibilidades de ser do abismo inominável e insondável da força do ser. Essa dynamis, essa potência de ser é representada pela árvore, enquanto tronco, galhos principais e a copa. Mas toda a energia desse operar, i. é, (enérgeia; en-érgon; e entelécheia; em-telo-echein) crescer e consumar-se, desse “subir da Terra e florir no éter e frutificar” vem da raiz (ou melhor raízes = todo um mundo de articulações sui generis), onde se dá o movimento do que acima chamamos de viragem, passagem, dinâmica do abrir-se e ao mesmo tempo fechar-se, do desvelar e velar, do desocultar e ocultar, do ser e se nadificar como o abismo do ser, i.é, do Nada. O sentir e pensar é o movimento que é o próprio ser do homem, realizado nessa dimensão da raiz da constituição do mundo.

Acima dissemos que, quando aqui falamos do sentir e pensar, isso se refere ao ser do homem no nível de essencialização do próprio do seu ser. Dissemos, pois: Trata-se, antes, do ponto nevrálgico da estruturação do ser do homem como batente da passagem da possibilidade de ser; como a toada da percussão do toque do ser como repercussão ‘syntônica’ constitutiva do mundo. Trata-se, pois, da preposição no na expressão: o “ser no ente” e o “ente no ser”.

É nesse ponto nevrálgico da estruturação do ser do homem como batente da passagem da possibilidade de ser que o homem é quem, é quê fundante e originante, gênese de todo o processo criativo do ente no seu todo, portanto, do mundo que culmina na realização do próprio homem ele mesmo como a instância da(s) possibilidade(s) in-finda(s), sempre novas de ser e não ser. Mas do homem, não mais considerado como sujeito e agente do ato criativo, mas como a in-stância do ponto de salto do surgir, crescer e consumar-se do ente no seu todo, do mundo. É o homem, considerado como ser-no-mundo acima explicitado. Na filosofia atual, em vez de ser-no-mundo se diz também existência, como pré-sença, como Da-sein. Da-sein não é nenhum ente dentro do sujeito homem, nem algum momento do seu ser, mas sim modo de ser próprio do homem, que no homem considerado como sujeito e agente do ato (portanto como coisa-substância) não pode aparecer. Pois, nessa consideração, o homem de antemão já é posto, colocado como um ente, cujo modo de ser é do objeto, ao lado de outros objetos não-humanos. Mas podemos perceber em nós mesmos, em sendo, como é esse modo de ser próprio do homem, pois nós mesmos somos Dasein.

Como seria, se nos aproximássemos da compreensão do que seja o Da do Da-sein através da dinâmica da criação? Para isso vamos aqui reproduzir, mutatis mutandis, o que já foi publicado numa outra reflexão acerca da obra de arte sob o título Mito e Arte. Embora aqui na nossa reflexão criar, criação tenham uma abrangência maior do que a criação artístico-estética, vamos tematizar na criação artística o aspecto de ser a aberta de todo uma paisagem do ente no todo, portanto a aberta do eclodir, crescer e consumar-se do mundo.

III. Sentir e pensar: ser como clareira[101] no ponto-núcleo da criação

“Usualmente, quando usamos a palavra criar, pensamos na efetivação, produção, causação ou fabricação. Criar é efetivar, produzir, causar ou fabricar. Nesse sentido a criação (…) seria produção das obras (…). Estas, porém, como viemos refletindo, têm um quê todo próprio que as diferencia de outros tipos de produção fabril. Tentamos caracterizar esse quê diferente, dizendo que uma obra (…) é como uma fenda, como uma aberta que nos conduz para dentro de toda uma nova paisagem, até então nunca vista. Ou formulando-se de modo um pouco diferente, uma obra (…) é uma fenda, a partir e através da qual eclode todo um mundo de estruturações da possibilidade humana. O que aqui denominamos possibilidade humana é o que anteriormente expressamos como ser-no-mundo ou existência, ou Da-sein. Dasein é a interioridade do homem, donde vem à luz, vem à fala a obra que desvela toda uma nova paisagem da possibilidade de ser. Usualmente interpretamos essa interioridade como um núcleo, dentro do homem, como sujeito e agente da ação de produzir a coisa chamada obra. E perguntamos: e esse sujeito homem, quando faz a ação de produzir o objeto ‘obra’, donde tira a ‘inspiração’?  Há algo ‘anterior’ a esse sujeito-homem que o toca, o move para a ação criadora? Se aqui respondermos que há um outro anterior que inspira o sujeito-homem para a produção, a pergunta agora passa a ser aplicada a esse algo ou alguém que toca e move o sujeito-homem: quem move aquele que move o sujeito-homem? Desencadeia-se um regresso para o sujeito e agente cada vez “mais anterior”, a perder-se na repetição interminável de pergunta. Todo esse regresso só é possível, porque entendemos o Da-sein ou o Ser-no-mundo sempre ainda como sujeito-quê, i. é, algo, objeto, coisa chamado homem. Esse impasse no fundo é algo parecido com o movimento das rodas de uma locomotiva antiga que ao puxar numa subida os vagões pesados não dá conta do recado e fica a marcar passo, girando vazio, parado num mesmo lugar. É para evitar esse tipo de impasse, no qual sempre de novo ficamos girando vazio no esquema fixo sujeito-ato-objeto, que em nossos encontros tentamos repetir à saciedade a recondução ou a redução do modo de ser e pensar “empírico”, “ôntico” ou “positivista” ao “transcendental”, ao “ontológico”, ao “filosófico”, portanto, o homem ao seu fundo dinâmico, ao Da-sein. Esse fundo é sem fundo no sentido de não haver nada de algo, nada de objeto, nada de coisa, portanto nada de sujeito em si, anterior. O que se dá aqui no Da-sein é apenas o ser do Da. Para, de algum modo, ‘ver’ como é esse ponto nevrálgico do caráter “criativo” da estrutura Da, usemos um conceito tirado da doutrina da Criação do universo na mundividência medieval cristã. E assim, a nossa reflexão começa a ter afinidade com a reflexão sobre Eckhart que busca o ser da alma. O conceito é aseidade e se refere à anterioridade de todas as coisas criadas. Como a aseidade é exclusivamente só atribuída ao Ente Supremo, Deus, corremos o risco de fazer uso inteiramente inadequado desse conceito medieval, se o usarmos para se referir ao ser do homem, que na mundividência medieval é denominado de ente finito. O nosso interesse aqui, porém, é apenas o de tentar à mão do conceito da aseidade ilustrar de que se trata, quando dizemos que o ser do homem é Dasein, e colocamos o Da-sein como o ponto de salto do surgimento do mundo.

Aseidade vem da expressão latina a se. Significa: Deus na sua essência, no que lhe é próprio, é a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si. A expressão a se foi criada para evitar o uso da expressão causa de si (causa sui). Pois causa sempre nos remete a uma causa superior, que se torna causa do efeito que produz. Causa pressupõe o esquema sujeito-ato-objeto. A se porém não supõe nada, nem a si, nem o ato em si, nem o objeto produzido. É então nada? É nada de tudo isso que dizemos assim predicando disso e daquilo, que é, seja o que for[102]. Trata-se, pois de não determinar a partir de fora o que é. Então se trata de que? É deixar ser a coisa ela mesma no seu ser. O modo de ser do a se não é portanto causa sui? Não. Mas então o que é? Não é um quê, mas sim simplesmente ser, i. é, a se, a partir de si, em si, para e por ser, a soltura de si, liberdade de e em si, a partir de si, por e para o deixar-se ser. O deixar-se ser na liberdade, a soltura de si, a se é deixar ser todas as coisas nelas mesmas, também na soltura de si, a se. Mas deixar-ser já não supõe que algo seja, se não em ato, mas sim, ao menos, em potência? É possível deixar ser nada, sem cair totalmente no vazio do nihilismo, nada nadificado, um vácuo, tão vácuo que nem sequer se pode dizer que é vazio? No entanto, esse nihil é o Da do Dasein, a essência, i. é, o ser do homem na sua interioridade, a mais própria, mais íntima do que ele a si mesmo, a possibilidade de ser ab-soluto na concreção do seu ser. É essa ab-soluta concreção, o sentido próprio do que se chama finitude humana[103]. É assim que alma do homem, a psyché, que traduziríamos mais adequadamente como Dasein, é todas as coisas[104]. O in, a interioridade do homem enquanto Da-sein é esse nada que é, na medida em que deixa ser o abismo de imensidão, profundidade e originariedade fontal da potência de ser ser na jovialidade gratuita da doação de si, na liberdade de ser. Essa liberdade de ser aparece sempre nova e de novo ‘contraída’, de-finida como simplicidade da finitude[105] no ser, i. é, no uno, cada vez seu, cada vez novo no surgir, crescer e consumar-se do mundo. É nesse sentido que o Da do Da-sein é passagem, não passagem de uma margem à outra[106], mas o “entre-meio” de cada “coisa”, que a deixa ser, que a deixa eclodir como mundo. Da-sein é a mercê de, é afim de, é a afinação à gratuidade livre do abrir-se que é no seu fundo a recepção gratuita livre do ocultamento silencioso, humilde e contida da insondável potência de ser. Potência de ser que somente é no instante do abrir-se do mundo na sua finitude. Esse desvelar-se no e como ocultamento do estar-em-casa em toda parte, no resguardo do aconchego do que é sempre, a cada instante, como presença modesta, sem nome, anônima do ocultamento, se chama em grego antigo léthe (a-létheia). O que é a-létheia aparece de um modo muito bem ponderado na descrição feita por Martin Heidegger da obra de van Gogh, na qual o artista holandês pinta os sapatos da camponesa. Nessa obra o que na palavra a-létheia se refere à létheia ou léthe, i.é, o ocultamento, o retraimento, é denominado de Terra[107]. O que na descrição do quadro de van Gogh se chama Terra é a pátria, a matriz do mito, que em grego se diz com o termo mythos[108], cuja raiz significa toar, soar. Assim sendo, mythos não poderia ser a ressonância do assentamento do mundo na confiabilidade da Terra que aparece, digamos onticamente, nos afazeres e nas vicissitudes dos homens, de imediato, na maioria dos casos como anônima e silenciosa ocorrência de todos os dias? Seria o “realismo” bem “seguro” da serenidade do fundo de todas as coisas? Não seria, pois, a positividade da gratidão e gratuidade de ser, sob cuja tenaz e resistente pele, se oculta a finura e a sensibilidade da tênue vibração de uma dynamis que irriga todas as coisas na sua raiz, protege e conserva o sopro de Vida do uni-verso?

Isto significa: a opacidade da nossa existência cotidiana, na qual se dá a fenda da criatividade, não é asfixia, decadência ou modus deficiente da beleza, da originariedade ou da vivência do carisma criativo. É, pois, tênue superfície da imensidão, profundidade e simplicidade da jazida bem assentada no abismo inesgotável da presença do ser, a se desvelar e se ocultar, através da aberta e na clareira do Da-sein, onde toda e qualquer estruturação do ser como mundo é enraizada e entregue à insondável confiabilidade do mistério[109] de ser, i. é, do em-casa da morada abissal da possibilidade inesgotável de ser.

  1. Sentir e pensar como concordância ao sentido do ser

A possibilidade inesgotável de ser se de-fine em sendo cada vez o ente no seu todo como mundo, se doando cordial, gratuita e livremente em mil e mil leques de paisagens diversificadas dos entes. O que conduz o abrir-se, de-finir-se, crescer e plenificar-se do ente no todo como mundo se denominou na filosofia atual de sentido do ser. Sentir e pensar não é outra coisa do que o sensorial do sentido do ser, o que acorda e concorda com a sensibilidade do sentido do ser de todos os entes no seu ser. Ao terminar a nossa reflexão, falemos do sentir e pensar como concordância do sentido do ser.

  1. Questão do sentido do ser[110]

“Usualmente fazemos coincidir pergunta e questão como se fossem palavras sinônimas. Isto ocorre porque na pergunta buscamos algo, e buscar provém do verbo latino quaerere[111], que deu origem à palavra questão.

De que se trata, quando dizemos questão? Questão vem do verbo latino quaerere. Significa buscar, procurar em sentindo falta; investigar, pesquisar, perguntar, interrogar, indagar, inquirir, perquirir. Trata-se, pois, de uma ação toda própria que, no fundo, impregna e impulsiona todos os nossos atos, no que eles, de alguma forma, têm de saber, conhecer, compreender. Trata-se de uma força humana que poderíamos caracterizar como paixão. Infelizmente, a nossa maneira de compreender e vivenciar essa paixão tornou-se tão soft e doméstica que talvez estranhemos chamar de paixão o élan que está no fundo do saber, do conhecer e do compreender[112].

Existe uma frase das Confissões de Santo Agostinho que é usada e abusada à saciedade. Ei-la: “Inquieto está o nosso coração, até que descanse em ti”[113].  A paixão de busca da verdade, implícita e operativa no saber, no conhecer e no compreender do ser humano, deveria ser entendida mais ou menos no sentido dessa inquietação entranhada de Santo Agostinho. Portanto, provavelmente, tal inquietação pouco tem a ver com o coração feito de “eflúvios sentimentais”, a “cara-metade” negligenciada e abandonada pela razão através dos séculos da civilização da razão ocidental. Coração esse que, segundo a interpretação hoje em voga e tão a nosso gosto, devemos cultivar com muito carinho, para libertar a humanidade do racionalismo desumanizador[114]. Na frase de Santo Agostinho, trata-se, porém, não de complementar a razão com o coração, a racionalidade masculina com a afetividade feminina – como tudo isso soa “machista”!… –, mas sim da essência, da excelência humana, na existencialidade do seu anelo ardente. Anelo e saudade de estar em casa, no nascente, na fonte inesgotável da vida, na aventura do encontro de alma para alma, face a face com aquele a quem a espiritualidade cristã chama de Deus.

A questão indica esse élan vital de busca, esse impulso profundamente enraizado no âmago, no cerne da humanidade, que denominamos liberdade, e que aparece em concreto na ação essencial de nós mesmos, experimentada como conhecer, querer e sentir em singular vigor único de disposição e doação, intrépido, cordial e sem medidas. Questão é, portanto, uma postura humana fundamental que se chamou na tradição do Ocidente de amor à verdade[115]. É o engajamento insistencial, isto é, in-sistência (ser-no) de toda uma existência de busca, de quaerere, isto é, querer, amar o trabalho, o empenho de investigar, de interrogar, de ir atrás das coisas, para desvendá-las, para desencobri-las naquilo que elas realmente são. O que os entes realmente são se chama ser do ente.  Toda a questão é captar com precisão o que é o ser. Questão é, pois, sempre e cada vez de novo a busca do sentido do ser, sentir e pensar o ser no ente e o ente no ser. O que é, porém, o sentido na expressão sentido do ser?

  1. De que se trata quando dizemos “sentido”?

Sentido pode significar “os sentidos”, i.é, as faculdades, as aptidões da percepção, que denominamos visão, audição, olfato, paladar e tato. Essas faculdades se referem à apreensão sensível, chamada sensação. O adjetivo próprio para indicar a peculiaridade da sensação é sensorial. Os sentidos são faculdades de captação sensorial. O verbo sentir nesse caso significa a ação de captar sensorialmente. Enquanto captação sensorial, o sentir difere do sentir na acepção do captar sensível, cujas modalidades qualificadas se expressam nos adjetivos sensual – a acepção da sensualidade enquanto eflúvio “erótico” – e sensível, na acepção da sensibilidade enquanto finura e delicadeza. Sentido pode ser usado também, querendo dizer, por um lado, significação, acepção, e, por outro, meta, fim. Esses três grupos de acepção do que seja sentido, diferentes entre si, não conseguem dizer bem o que deve ser entendido por sentido, quando dizemos “questão do sentido do ser”. No entanto, nesses três grupos de acepção do sentido há, de alguma forma, um quê de indicação, sobretudo no verbo sentir,  que nos poderia dizer o que se deve entender quando usamos a expressão “questão do sentido do ser”. Tentemos, pois, aproximar-nos dessa acepção toda própria através de algumas descrições circundantes, examinando a significação do verbo sentir, que deu origem à palavra sentido.

Sentido vem do verbo latino sentire. Sentire quer dizer sentir, perceber, captar, entender, compreender, adivinhar. Significa também: apreender com os cinco sentidos; sofrer na captação; ser passível de toque, de influência, portanto, passível de ser atingido, ser sensibilizado no sentimento. Trata-se, pois, de um ato de conhecer; mas com um cunho, um modo todo próprio. Em que consiste esse modo todo próprio? Consiste naquele modo de captar que ocorre quando percebemos, apreendemos as coisas através dos sentidos sensoriais. Só que, aqui, quando falamos de sentidos sensoriais, devemos livrar-nos das representações que já de antemão fazemos, quando falamos de sentido referindo-nos aos cinco órgãos da apreensão sensível. Pois, essas representações já estão de tal maneira fixas dentro de uma interpretação fisiológica, psicológica, e também metafísica dos sentidos e da percepção sensível, bem como da apreensão sensorial, que não nos libertam o próprio fenômeno vivenciado na percepção sensível.

A percepção sensível em todos os cinco sentidos contém em si uma acentuada predominância da passsividade receptiva. Se nos libertarmos da representação que bloqueia a imediata percepção da vivência como tal, e que a congela dentro de uma determinada interpretação tradicional psicológica, e também metafísica, do que é percepção sensível, podemos intuir de imediato que essa passividade é o que constitui, digamos, o vigor essencial da vida propriamente dita dos sentidos como “sensoriais”, da sensibilidade, da sensualidade e das suas apreensões, e ao mesmo tempo das percepções do sentimento e do conhecimento (mesmo intelectual e racional) num certo nível da profundidade da sua constituição[116]. Mas em que sentido? E como? Para intuirmos tudo isso, vamos mexer, “massagear”, desbloquear um pouco a nossa compreensão usual do que seja passividade.

Usualmente a passividade e a atividade são representadas como movimento de uma coisa física. O ativo é algo em movimento físico, e o passivo é algo parado. Essa compreensão do ativo e do passivo segundo o movimento físico é a mais estática e morta[117] que possuímos. Ela é inteiramente inadequada para captar a atividade e a passividade dos entes vivos e, muito menos ainda, dos fenômenos humanos, principalmente o da liberdade.

Nos fenômenos dos entes vivos e nos fenômenos humanos, a passividade e a atividade não são propriamente duas coisas opostas. Elas são, por assim dizer, dois momentos recíprocos de uma e mesma dinâmica. Na dinâmica da vida e da liberdade, o momento passivo é como que o fundamento do momento ativo, e passividade ali é como o silêncio de fundo onde toa e repercute o som (=atividade). É como a abertura de possibilidade do todo (=passividade), dentro da qual surgem as diferentes concreções (=atividades). É que toda e qualquer atividade deve ser possibilitada primeiramente através de uma recepção prévia do todo, do horizonte, do espaço da possibilidade, dentro do qual se tornam possíveis e atuais as diferentes e variegadas atividades.

Na passividade receptiva que, por assim dizer, prepara o ponto de salto do surgimento da possibilidade do todo, no qual se sucedem as concretizações ativas da realização de uma obra, surge uma abertura de disponibilidade atenta a um a priori todo próprio. Este a priori não é uma possibilidade ali pré-jacente como espaço vazio, espaço-vácuo de privação e carência, mas sim um toque vivo, algo como direção prévia de condução, prenhe de esboços (não é melhor dizer esperanças?) de consumação vindoura. Esse ductus[118] prévio do toque na condução para a consumação final que há de vir se chama sentido. E o seguir esse ductus se chama sentir. Sentire, sentir significa, portanto, a dinâmica da recepção do lance inicial, a dinâmica do princípio-envio: o aviar-se, o seguir, o ir atrás de uma direção viva prévia, o ir atrás do vestígio, o in-vestigar. É nesse sentido do encetar o caminho, do enviar-se, do aviar-se, que a palavra alemã para sentido, Sinn, e para sentir, sinnen, cuja forma antiga é sinnan, significa viajar, ir,  tender.  O sentido, portanto, é a pura recepção no ductus, na direção, que se dá como o(s) esboço(s) do todo, sob cuja orientação a nossa busca se a-via na in-vestigação do que há de vir como o desvelamento do que ali sempre sub-siste sem ser isto ou aquilo, como abismo insondável de possibilidades sem fim. A disposição para o ductus do abismo insondável da possibilidade se chama pensar, que na formulação pré-socrática se diz: a espera do inesperado[119].

Ao ser jamais captamos como objeto, como coisa ou ente. Pois o ser somente vem à fala no momento do toque da disposição da espera do inesperado, portanto na aberta do pensar.

O termo pensar vem do verbo latino pendeo, pependi, pensum, pendere e significa: penduro; estou em suspensão, pairo; daí também, hesito, estou indeciso; dependo de; descanso sobre, repouso sobre; na formulação pendo, pependi, pensum, pendere significa peso, avalio, meço a modo de ponderar, i.é, balançar algo na mão para sentir o seu peso. As significações pesar (pendo) e pendurar (pendeo) são derivações do significado de “dependurar para pesar”, i. é, estar pendurado. Daí pensar conota também o fio estendido, esticado como fio referencial ao tecer um pano; conota, pois, o tecer; assim o termo substantivo latino pensum significa o pendurado, a quantidade de lã que se pendura para a tarefa de tecer e fiar por um dia. Daí, num sentido estendido pensum significava a tarefa, o encargo. O modo de ser do estar suspenso, do pairar e como que em suspensão do repouso; o modo de ser do tecer, cuidar de ajuntar para que se dê a serenidade de unidade bem descansada em si é pensar. Esse modo de sopesar, ponderar algo no seu peso, na sua importância, balançando-o na mão, como que a sondar a partir do que é avaliado nele mesmo, a partir dele mesmo, a partir de dentro dele, é pensar; por isso, pensar em português diz também fazer curativo numa ferida, i.é, colocar a mão sobre a ferida e a proteger e cuidar para que sob o calor e desvelo da mão cuidadosa, o que está rompido e separado recupere a sua identidade a partir de si[120]. Pensar em todas essas acepções significa portanto a disposição de serenidade atenta, cheia de diligente cuidado para acolher e deixar ser o sentir cordial e obediente ao ductus da possibilidade de ser. Esse “modo” é o que ali está presente de modo muito discreto e humilde na neutralidade, no ‘vazio’ de conteúdo do verbo eínaii, do verbo ser, cuja voz no seu sentir não é nem ativo, nem passivo, nem reflexivo, mas medial. Assim, sentir-e-pensar é o mesmo que ser e diz a essência, a aberta, que é o homem.

  1. E nós, hoje, o que fazer com o sentido do ser do nosso saber?

Como entender melhor essa presença do ser que é o mesmo sentir-e-pensar que jamais pode ser captado como objeto-ente, mas sim como “sentido” enquanto ductus de uma condução?

Em perguntando, junto do ente, do ente objeto do seu saber, da sua ciência, da sua especialização científico-acadêmica, junto da coisa, disto e daquilo, e em perfazendo com acribia, exatidão e quiçá pedantismo o movimento de generalização que é ao mesmo tempo de particularização, no zelo de classificação das respectivas ciências, nas quais somos gerenciadores e doutos. E se fizermos tudo isso até os limites da possibiilidade de “tudo” saber, a modo de classificação sobre isto e aquilo, “sentiremos” a fixação dessa tendência e inclinação da predeterminação de fundo do nosso ser e do nosso saber na manualística da Filosofia substancialista. O seu ser é a entidade do sentido do ser da ocorrência do simplesmente dado, i.é, do sentido do ser como coisa, como o quê, como substância. Mas ali pulsa e está oculto, debaixo do conceito, o mais comum do ser no processo histórico do esquecimento do sentido do ser, uma verdade, uma a-létheia, em cujo ductus nos pode ser dito ao sentir-e-pensar, à clareira do ser, o que e como é o ente na sua nascividade. Se isto acontecer, talvez seja-nos dado perceber a grande indeterminação, a suspensão que guarda e conserva, como tesouro precioso, mas ao mesmo tempo nos esconde e encobre, a “realidade realíssima” do sentido do ser. Sermos suspensos nessa realidade de fundo é o pensum, a tarefa do pensar nos nossos encontros.

Para aprofundamento desse pensum, uma dica é estudar o tema da alma nos sermões do Mestre Eckhart.

VERDADE E LIBERDADE (…apenas para começar a ler um texto de Martin Heidegger)

Mais do que nunca aqui aparece o caráter incompleto e enfermo, sugerido no título dessa coletânea de artigos e ensaios sobre temas da Filosofia. Aqui tudo é como se fossem, Filosofia…

  1. Em vez de uma apresentação

Carl-Friedrich von Weizsäcker é o iniciador de Max-Planck-Instituto para investigação das condições de vida do mundo técnico científico. Conta entre os maiores cientistas atuais que, como experto na moderna física teorética e filosófica ao mesmo tempo, procura mostrar o condicionamento antropológico-filosófico do modo de ser humano chamado Ciências, tenta conscientizar o mundo científico contemporâneo da necessidade de sentir a responsabilidade humano-ética nesse nosso século de energia atômica.

Weizsäcker é um cientista de avantaguarda que sente e pensa hodiernamente e vê na ciência e técnica contemporâneas a decisão, a chance, o risco, a tentação de ser-homem de uma forma nova, cheia de responsabilidade, perigos e promessas. Enquanto tal, tem muita afinidade com Heidegger.

Em vez de amontoar datas sobre a vida de Heidegger, talvez seja  mais interessante para nós, ouvir o testemunho de Weizsäcker, que em poucas palavras traçam o perfil espiritual de Heidegger. Quanto a dados biográficos de Heidegger, peço que cada qual procure se informar como puder nas enciclopédias, nas orelhas dos livros de Heidegger etc.

O importante para você é que tenha simpatia por um autor e a partir dessa simpatia procure aos poucos conhecê-lo, cada vez melhor, como quando procuramos conhecer um amigo nos detalhes da sua vida.

Testemunho de Weizsäcker sobre Heidegger, feito numa entrevista na televisão alemã, aos 24 de setembro de 1969.

Hoje, tenho a tarefa de dizer em duas palavras algo sobre Heidegger. No entanto, justamente a Filosofia de Heidegger nos esclarece que não é possível esclarecer em 4 minutos a Filosofia de Heidegger. Por isso, gostaria tão-somente de testemunhar que, segundo a minha opinião, Heidegger é o filósofo mais importante do século XX, talvez o filósofo do século XX.

Quem sabe contribua para a compreensão se seu descrever como fiquei conhecendo Heidegger. Foi assim. Naquele tempo, eu era um jovem físico, aluno de Werner Heisenberg. Alguém teve a seguinte idéia e a sugeriu a Heidegger: Heidegger convidaria Heisenberg, juntamente com o meu tio médico Viktor von Weizsäcker (célebre professor de medicina). Assim, poder-se-ia criar um contacto entre Heisenberg e Weizsäcker e provocar um diálogo sobre o problema de relacionamento entre a Medicina (como o meu tio a concebia) e a Física (como Heisenberg a compreendia). Diálogo, portanto, sobre a pergunta, se existe um encontro entre a Medicina e a Física na compreensão da realidade e do homem.

O diálogo foi realizado. E Heisenberg levou-me consigo como seu assistente. Foi no ano de 1953 na pequena cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Floresta Negra.

Nós estávamos sentados num pequeno quarto, ao redor de uma mesa estreita. Heidegger ocupava uma das extremidades da mesa. Ao seu lado, um contra o outro, Heisenberg e Weizsäcker.

Estes começaram pois a falar um com o outro. Falaram muito excitados, durante talvez uma hora. Discutiram e também brigaram. E finalmente se engalfinharam de tal sorte na mútua oposição que já não se entendiam mais.

Foi somente então que Heidegger – que os auscultava atentamente – se imiscuiu na discussão.

Dirigiu-se a um dos disputantes e disse: “portanto, Sr. Weizsäcker, se eu entendi bem, o Sr. Pensa o seguinte…” E seguiram três frases perfeitamente claras. E Weizsäcker: “Sim, é exatamente isto que eu quis dizer!”

A seguir dirigiu-se Heidegger ao outro disputante: “Sr. Heisenberg, o Sr., se é que o entendi certo, pensa isso assim…” De novo Heidegger formulou três frases bem precisas. E Heisenberg: “Precisamente, foi isso que eu queria ter dito”.

“Então, continua Heidegger, parece-me que o relacionamento entre as posições dos senhores pudesse talvez ser o seguinte”. E novamente seguiram quatro ou cinco frases. Cada um dos oponentes respondeu: “Sim, talvez assim pudesse ser. Sob essa base poderemos continuar a discussão”. E o diálogo continuou.

Esta cena, o meu primeiro encontro com Heidegger, me levou a perceber que Heidegger, abstraindo-se totalmente da própria doutrina que ele propagou nas suas escritas, é capaz de auscultar e compreender o pensamento alheio, de compreender melhor do que as próprias pessoas que o pensaram.

Diria pois: Isto é um Pensador.
Isto é tudo que hoje gostaria de dizer sobre ele (Weizsäcker, 1969).

 

  1. Sobre a essência da verdade

Ao ler um texto, seja talvez a sua atitude a de aprender. Você lê com a intenção de ab-prender, para tirar do livro o que está ali contido: uma doutrina, um ensinamento, um conhecimento.

Essa atitude no entanto não funciona com os textos de Heidegger. Pois, ali trata-se de um questionamento. Desde a primeira linha até a última, movimenta-se, desenvolve-se um processo, um caminho de indagação, de pergunta.

Antes de mais nada, portanto, você deve entrar na “jogada” do questionamento.

Com outros termos, ao ler, você deve despertar em você a pergunta, a indagação e seguir fielmente o fio do desenvolvimento da pergunta.

Se não tem muita facilidade de penetração num texto, é talvez porque você não abriu na sua mente rasgos de questionamentos. Talvez tudo dependa de acordar o seu intelecto para a atitude de questionamento. É preciso que você desperte da ingenuidade.

Abrir em si feridas de questionamento, na terminologia de Heidegger, se chama: colocar a questão. Colocar a questão significa: trabalhar um problema de tal maneira que ele se torne insuportavelmente pesado para você, ao ponto de se transformar numa questão de sua vida.

Ao ler o livro de Heidegger experimente ficar atento a trechos nos quais você pode meter, fincar a unha da sua compreensão. Um texto filosófico é como uma muralha lisa, maciça; para escalá-la você deve descobrir nessa superfície uma fenda, onde possa fincar uma unha.

  1. Sobre a essência da verdade

No texto original, em vez de “sobre a Essência…”, temos a palavra “vom” (Vom Wesen der Wahrheit).

“Vom” equivale ao nosso “de”. Portanto, em vez de “Sobre a Essência da Verdade”, é melhor dizer: Da Essência da Verdade.

Para que esta observação pedante e minuciosa?

Por causa da estrutura do título e do livro. Nessa partícula “vom” está concentrada toda a problemática do livro!

Da Essência (Von Wesen) é uma expressão propriamente ambígua.

De pode significar: sobre. Mas também: a partir de, pela força e pela graça de. Portanto: Da Essência da Verdade pode significar:

  1. a) Sobre a Essência da Verdade;
  2. b) A partir da Essência da Verdade.

No caso a) você está, por assim dizer, “fora” da verdade, tem a essência da verdade diante de si como objeto da sua pergunta, indaga, fala sobre ela. Mas, nesse caso, resta uma questão fundamental: ao falar sobre, donde é que você fala? Qual a sua posição, a norma, a medida que você usa para falar sobre? Qual a sua pré-suposição? A partir de que visão, de que enfoque, de que dimensão fala você sobre?

No caso b) você não tem a Essência da Verdade diante de si, mas por assim dizer atrás de si. Você, se fala, fala a partir da Essência da Verdade, envolvido, “acossado”, “entusiasmado”, na “possessão” da Essência da Verdade. A Essência da Verdade é o agente, o “sujeito” da sua fala.

A estrutura, tanto do fenômeno a) como a do b), são ocorrências banais do cotidiano. Experimente você mesmo descobrir 3 exemplos para o caso a) e outros 3 para o caso b).

O importante para nossa leitura é no entanto indagar:

Como se relacionam a estrutura a) e a estrutura b)? Que conexão existe entre o falar sobre e o falar a partir de?

O livro começa falando sobre a Essência da Verdade. Fala-se sobre ela isso ou aquilo. Fala-se bem, fala-se mal. Fala-se de modo concreto, vital, utilitário; fala-se de modo abstrato, inutilmente, de maneira alienante e alienada. Tudo isso, todos esses que falam isso ou aquilo sobre a Essência da Verdade, donde é que eles falam? O que é que os move, qual o agente da sua fala sobre a Verdade?

Com outras palavras: o que fala sobre a Essência da Verdade já está impulsionado por algo que está nele, que o envolve, algo que é mais fundamental do que e anterior ao falar sobre a Essência da Verdade.

Essa dimensão mais fundamental e anterior é o que se expressa pelo termo: da (a partir de) Essência da Verdade. Portanto, o caso b) é o fundamento do caso a).

O livro faz portanto no seu caminhar o seguinte processo: começa perguntando e falando sobre a Essência da Verdade. Mas ao perguntar sobre vai descobrindo ao leitor as raízes donde nasceu a estrutura do falar, perguntar sobre. Imerge portanto na pressuposição da estrutura “falar-sobre”, isto é, vai à História, examina geneticamente os fundamentos, donde o “falar-sobre” haure a sua verdade e sua constituição. Mas ao fazer isso o texto vai nos revelando aos poucos uma estrutura que não é mais o “ falar-sobre”, mas algo como a própria presença da Verdade que nos capacita a “falar-sobre” a Verdade.

Nós homens, enraizados na estrutura da Verdade que tem a forma de “falar-sobre”, estamos virados para o objeto, estamos presos por assim dizer a essa estrutura do “falar-sobre”. Diretamente não podemos ver o lugar a partir do qual olhamos e enfocamos os nossos objetos. Por isso ao examinarmos A Essência da Verdade, só podemos falar sobre a Essência da Verdade, ao passo que ao fazermos isso, nós na realidade já estamos falando e perguntando a partir da Essência da Verdade.

Como “virar a cabeça” e ver a origem a partir da qual estamos falando, pensando, investigando? Parece não haver outro meio a não ser caminhar, falar-sobre e nesse processo, dentro dele, auscultar e captar a presença de uma estrutura originária.

Por isso o texto desse livro deve ser lido nesse jogo de ambiguidades que no falar sobre sempre nos insinua um falar a partir de.

  1. Sobre a Essência da Verdade

O título do primeiro capítulo é: o conceito usual da verdade.

O método fenomenológico de Heidegger quase sempre começa a sua análise com o usual. Com a compreensão que possuímos na vida cotidiana. Começa tateando a palavra que usamos na nossa vida normal e procura descobrir a estrutura que lhe está atrás. Por isso, se você quiser compreender o texto, deve fazer o mesmo. Pronunciar a palavra verdade, observar como você a usa, e ouvir, auscultar em você mesmo, que sentido a palavra verdade tem em geral. Você deve pois escutar a voz que vem do interior da palavra.

Você vai ouvir várias vezes. O uso da palavra verdade na vida cotidiana nos e-voca diferentes sentidos. Ouvir a algazarra ou o murmúrio vago e confuso dessas vozes e tentar ouvir neles um tom fundamental, alto, que possa ser um traço comum em todos os sentidos.

A seguir vou rapidamente traçar o fio do problema da verdade no texto de Heidegger.

O conceito usual, em uso, da verdade nos indica que o pivô da dificuldade está na concordância: adaequatio. Pois quando digo “verdade” eu entendo: aquilo que faz com que isto ou aquilo (frase, juízo, coisa) seja verdadeiro: “Seja verdadeiro” significa: corresponda, concorde com a) o que devia ser, e b) com o que é.

  1. a) O que devia ser: é uma idéia, norma, ideal. Uma finalidade, o ponto final onde algo que é atualmente deve chegar para se tornar aquilo que ele em si é, “devia ser”. Aqui há um movimento de transcendência. Trans-cendência no sentido de ir para além do que é atualmente, superar (metafísica…).
  2. b) O que é: é a realidade hic et nunc. Quando emito um juízo: isto é assim, essa enunciação em relação à coisa apresenta um movimento de transcender a si mesmo para ir à sua norma que é aquilo que é na minha frente.

Portanto: em ambos os casos, quando falo da verdade, estou falando desse movimento de transcendência. Na transcendência há o ponto de partida e o ponto de chegada. Há também o movimento de superar o ponto de partida, isto é, ir para além de…

O ponto de partida e correspondentemente o ponto de chegada podem tomar várias formas e denominações: por exemplo

Dentro/fora; eu aqui/a coisa lá; juízo/objeto; conhecimento/realidade; sujeito/objeto; homem/mundo; mundo/Deus; contingente/absoluto; natural/sobrenatural; presente/futuro; realidade/utopia; começo/fim; etc. etc.

Em que relação estão o ponto de partida e o ponto final?

Em que consiste o movimento de superação, de transcendência?

Os dois pólos, a saber, o ponto de partida e o ponto de chegada, são pólos existentes em si, independentemente um do outro?

Não é assim que um não pode existir sem o outro; que ambos são correlativos como pai e filho?

Donde vem essa correlação? a correspondência?

O movimento de transcendência não é justamente o que cria essa correlação? Não é esse movimento de transcendência que cria os pólos de correlação?

Se for assim, então o problema é embaraçoso. Pois o uso comum do conceito de verdade começa a reflexão já fixando como existentes em si, óbvios, sem problemas, o ponto de partida e o ponto de chegada. E pergunta: como essas duas coisas estão ligadas?!

Que tal se o problema for anterior? Que tal se os pontos fixos como existentes em si fossem por assim dizer resultantes do movimento de transcendência? O problema da verdade se torna então problema do movimento de transcendência.

Posso chamar a transcendência de liberdade, pois é um movimento de superação e libertação.

O problema da verdade se transforma no problema da Liberdade.

E se a liberdade como o movimento de transcendência é a estrutura fundamental do homem, o problema da verdade, no fundo, é problema da estrutura fundamental do ser-homem.

Em vez de liberdade-transcendência posso dizer também: existência = ex-sistência. A estrutura do homem é existir, isto é, ser, conservar-se no movimento do ex, isto é, na abertura constante de se superar. O problema da verdade é o problema da ex-sistentia, é portanto um problema ex-sistencial.

Mas donde vem que o homem é ex-sistentia? Por que não é como pedra, que não necessita para “ser” do movimento de transcendência?

Haveria para o homem a possibilidade de não ser transcendência? De ser o presente puro, sem o dever-ser? O que é ser originariamente homem? A estrutura bipolar da transcendência não é uma modalidade menos originária do ser-homem? O que é ser originariamente homem?

Eis como o problema abstrato da adequação se transformou na indagação pela essência originária do ser-homem como ex-sistentia.

  1. Protocolo da 3ª reunião do seminário: sobre a essência da verdade

Referente:

  1. a) existência do senso comum.
  2. b) existência filosófica.

Traçou os característicos de ambas as existências que demonstram nitidamente as diferenças entre si: Características opostas: a) comum a todos os homens em geral – b) só a pequeno número de dotados especialistas; a) concreta, vital, prática – b) abstrata, longe da vida, teorética; a) cotidiana, sensível, palpável – b) especial, inteligível, intelectual, irreal; a) normativa para a vida prática – b) essencial, aprofundada intelectualmente.

As diferenças eram tão opostas que entre o a e o b parecia não haver reconciliação.

Surge então o problema: como se relacionam a existência do senso comum e a existência filosófica?

A discussão nos mostrou o seguinte relacionamento:

A existência do senso comum é uma existência que esqueceu e por conseguinte ignora o fundamento da sua existência. Ela funciona e opera dentro de uma limitação, de uma bitola, sem saber donde vem o élan, a força e o sentido da sua totalidade.

A Filosofia, isto é, a existência filosófica não é outra coisa do que a busca do fundamento, do sentido originário da existência do senso comum. Portanto, as verdades reais do senso comum, só serão compreendidas originariamente na sua limpidez e autenticidade a partir da verdade essencial revelada pela investigação da existência filosófica. Nesse sentido a verdade-essência é num sentido mais profundo e autêntico a verdade real, vital.

Aqui surgiu outra pergunta: mas como a existência do senso comum desperta para a necessidade do questionamento essencial?

Pelo esgotamento, pelo bloqueio ocorridos no próprio seio da existência do senso comum. Dali o sentido “positivo” dos fenômenos como tédio, angústia, esvaziamento do sentido, crise etc. Ou pela invasão e pelo impacto vindos de fora, do encontro com uma outra dimensão mais forte e originária.

A partir dessa discussão ficou-nos claro o seguinte:

O que Heidegger chama de verdades do senso comum não devem ser confundidas com as verdades vitais da existência autêntica, onde as ocorrências são manifestações espontâneas e dinâmicas da plenitude da Vida.

A existência do senso comum em Heidegger já está numa situação de decadência e fossilização.

Essa situação é a situação histórica da estrutura “ocidental” que é a estrutura da “ratio”.

Para que nessa estrutura de ratio surja a dimensão do questionamento essencial é necessário imergir na situação da existência do senso comum, para levá-lo ao esvaziamento, na esperança de que dali surja a chance de aprofundamento.

Reflexão para ambos os seminários

A Filosofia, segundo Hegel, é o “mundo às avessas”, visto a partir da sã razão humana (cf. Que é Metafísica, Capítulo 1º). Em vez de sã razão humana podemos dizer “o senso comum”.

O senso comum é a nossa existência cotidiana, cara a cara com a realidade. É o senso prático, concreto, palpável, o mundo da verdade real.

A Filosofia para esse mundo de realidade é um mundo abstrato, inútil e sem eficiência real. Para a descrição dessa oposição entre a existência do senso comum e a existência filosófica cf. a introdução do livro Sobre a essência da verdade.

Por que “o mundo às avessas”? Às avessas indica a direção oposta ao normal. Às avessas é o outro lado daquilo que estamos vendo. O filosófico em relação ao homem do senso comum é aquele sujeito que anda de pernas para o ar e cabeça para baixo, como quem anda dando continuamente cambalhotas. Se o senso comum vê que as montanhas estão firmes, assentadas majestaticamente nos seus alicerces inabaláveis, o filósofo, como vê tudo às avessas, de cabeça para baixo, vê as montanhas penduradas, como que ameaçadas a cada momento de cair, de se precipitarem no abismo sem fundo do céu. Você já imaginou que se não fosse a atração da terra, todas as coisas soltas cairiam para cima? (cf. Chesterton).

O característico do homem do senso comum é a sua objetividade.

Objetividade aqui significa: virado para o objeto, para o ser. Virado, enfocado para a coisa diante de si. É real. É rea-lista. É coisista. Está dirigido, fascinado, apossado pelo ente. Certamente, ele é também “subjetivo”. Ele se olha a si mesmo e se define: eu sou o sujeito. Mas ao fazer isso, ele está dirigido a si mesmo como a um ente real (res: objeto), a um objeto; ele tem a pré-tensão de captar o subjetivo objetivamente.

A existência do senso comum, portanto, é uma existência sobre a coisa.

A Ex-sistência, abertura sobre a coisa. Para isso, o pensar, o falar e o perguntar dessa existência é pensar sobre, falar sobre, perguntar sobre: isso é…; o que é isso? A verdade do senso comum portanto é a verdade sobre.

A existência filosófica fica intrigada com tudo isso. Ela se pergunta: Por que é que o senso comum não é capaz de captar a si mesmo a não ser objetivamente, a não ser objetivando-se como objeto? É necessário sempre e absolutamente falar, pensar e perguntar sobre? Não haveria a possibilidade de não pensar, falar e perguntar-sobre, mas a partir de si mesmo?

O que é esse sujeito que se chama a existência-do-senso-comum, existência que se estrutura como abertura, a tensão debruçada sobre a coisa, sobre o ente? Essa abertura ela mesma deve ser também objeto, necessariamente? Ou não será uma “realidade” que está para “além” ou quem sabe para “aquém” da existência objetiva, portanto, também do subjetivo objetivista da existência do senso comum?

Se para o senso comum a res, a realidade, o objeto é um dado a partir do qual tudo enfoca, tudo ordena e constrói, para a existência filosófica ele é por assim dizer o término de uma tendência, por assim dizer o pro-ducto de uma abertura. Abertura que é um dado, um estar-ali antes do objeto.

A existência do senso comum dirige-se a, encontra-se com os entes, vive e opera no meio deles, ocupa-se com eles, considera-se ela mesma como um ente entre os entes. Mas não percebe que tudo isso é possível porque já está ali aberto um mundo, dentro do qual algo como isso ou aquilo se torna possível e recebe um sentido.

A existência filosófica não se interessa por isso ou aquilo, não por ela ser abstrata, mas porque ela percebe que anterior a isso ou aquilo é necessário preocupa-se pela abertura, pela totalidade em que isso ou aquilo aparece e tem sentido como isso ou aquilo.

Com outras palavras, a filosofia não se dirige a coisas, mas sim à possibilidade das coisas, às condições fundamentais que possibilitam as coisas.

Coloque-se agora na situação de uma vaca, de um boi ou se quiser de um coelho. Você vê tudo sob o enfoque do capim suculento. A realidade, os entes para você se constituem de diferentes modalidades de capim, a realidade das coisas são medidas segundo o grau de intensidade de “suculência”. Num mundo assim constituído a medida do real é a suculência. Uma pedra, p. ex., não existe, não é real, e, se real, ela o é somente enquanto tem referência à suculência, aqui sob o aspecto de “não-capim”. Você já viu um coelho comendo uma catedral de pedra? Você (enquanto coelho, vaca, boi) vê uma rosa. Você dirá: que gostosa! A beleza é não ser. A beleza é não-tragável. Portanto, na dimensão, no mundo, no horizonte da suculência a rosa enquanto bela não existe. Como você está só virado, aberto às coisas enquanto suculência, o real, o prático, o palpável é o “comestível”. A partir dessa realidade, tudo quanto não é comestível, ou não existe ou está fora do mundo, ou é abstrato, irreal, imprático. E, se existisse uma vaca que começasse a questionar a totalidade da sua impostação e começasse a desconfiar que a sua realidade é um produto de uma determinada e limitada abertura, as outras vacas normais diriam: está cismando com um mundo irreal, é uma vaca des-locada, fora do real, o seu mundo é “às avessas”. Mas a vaca filosófica como teve a intuição da situação a partir da qual algo como rosa se torna real só enquanto comestível, dirá: vocês deveriam ver o seu mundo às avessas, pois às avessas significa: ser fundamental, ir às raízes do mundo comestível.

Você não é vaca, nem boi, muito menos um coelho. Você é homem. Mas como homem, você está virado para as coisas, chama tudo de ente, de objeto. Você pode reduzir tudo quanto encontra a um último núcleo de compreensão: o ente. De tudo você pode dizer: é, é algo, é coisa, é objeto, é ente. Será que a sua situação é diferente à da vaca, à do coelho? Em vez de “comestível” diz você: é ente.

A partir de que, donde, de que situação fala você?

O que possibilita que você tenha esse tipo de abertura na qual tudo lhe aparece como ente? Não somos prisioneiros de uma dimensão, não somos cativos de um tipo de totalidade, onde, devido à nossa limitação, não somos capazes de ver e perceber “realidades” que estão diante do nosso nariz, porque não somos capazes de operar a não ser dentro do horizonte do “ente”? Mas o horizonte que não é do ente, será que é ainda horizonte? O que é afinal?

O primeiro capítulo de Que é Metafísica nos coloca no centro dessa desconfiança. Desconfiança que nos faz questionável a coisa mais óbvia do mundo comum. Faz problemático, faz digno de questionamento, o fundamento mais evidente de todo o nosso pensar, falar e ser. Será no entanto tão evidente?

A partir desse questionamento, o conceito de nada começa a tomar uma importância vital. Pois o nada parece ser uma “realidade” que não se encaixa dentro da dimensão do “ente”.

O que é afinal o nada? Por que tudo é ser e não nada?

Essa reflexão baseada no Que é Metafísica vale também para os que fazem o seminário de Sobre a Essência da Verdade. Pois, a mesma reflexão vale para o que ali dissemos de: falar sobre a verdade e falar a partir da verdade.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Favor ler o segundo capítulo que fala da possibilidade interna de concordância. O texto no começo é fácil de entender. Começa a ficar difícil, quando começa a determinar mais detalhadamente em que consiste a concordância entre a enunciação e a coisa.

Peço que leia o trecho mesmo que seja difícil. Não largue a idéia de que é você que deve descobrir o sentido do texto. A descoberta, por pequena que seja, se for sua, é de máximo valor. A seguir, somente algumas reflexões para talvez facilitar (ou dificultar?) a abordagem do texto.

1ª Reflexão: A dificuldade principal na compreensão do texto somos nós mesmos. Quando falamos de ou ouvimos falar de conhecimento, objeto, coisa, comportamento, adequação etc. já temos uma determinada imagem pré-estabelecida, “epistemológica” ou “psicológica” de tudo isso. P. ex.: quando dizemos: “esta pedra”, eu a pressuponho como algo ali existente anterior a mim, como se pedra fosse sempre pedra como ela está ali na minha frente, como se bastasse eu simplesmente captar a sua imagem como ela é. Ou quando falo da imagem da pedra, eu me imagino à guisa de uma máquina fotográfica que recebe na câmara interior a imagem do objeto exterior. Heidegger diz: é necessário suspender a fé nessa precompreensão para intuir a “realidade” como ela é. (Na linguagem da filosofia contemporânea essa suspensão se chama “redução”; e volta à intuição direta da realidade: “volta-à-coisa-ela-mesma”).

O que Heidegger faz nesse capítulo 2 não é outra coisa do que analisar a estrutura de um jogo (S é P), quando dizemos p. ex. esta pedra é quadrada.

O termo-chave usado por Heidegger é Vor-stellen. Vor-stellen significa colocar na frente. No texto português temos apresentar, representar ou presentear. Pode-se dizer também: objetivar, apreender, conceber. Nesses termos como apresentar (ad-presentar), representar, objetivar, apreender, conceber etc. o pivô da questão está em vor-stellen, isto é, colocar na frente = fazer com que apareça.

Você aponta para a pedra e diz: isto aqui é pedra. O “isto aqui” é colocado na frente como pedra. Mas antes, já ao apontar e dizer “isto aqui”, coloquei o “apontado” como “isto aqui” na frente. Experimente perguntar: o que é afinal esse X-coisa que está ali como o núcleo de todas as atribuições que eu faço dele? Essa coisa X não se perde no infinito, sempre para frente? Portanto, ao dizer “isto aqui é pedra”, como coloca o “ente” na frente, faz aparecer assim como pedra? E dessa pedra que lhe aparece, que lhe vem ao encontro, como pedra, você diz adiante é quadrada, pesada, granítica etc. etc. Todos esses qualificativos (o assim como) que você vai atribuindo à pedra são como que explicações de uma abertura criada pelo fato de esse “algo-X” lhe aparecer assim como ele é. Portanto, anterior às atribuições e enunciações que você faz das “coisas”, já está ali um relacionamento, um comportamento dentro do que algo lhe aparece, algo que vem ao encontro, se lhe resiste assim como ele é, se torna ob-jecto.

A possibilidade de eu me relacionar com o objeto depende dessa abertura, na qual o ente se coloca como ob-jeto na minha frente e se me apresenta assim como ele é. Que abertura é essa? Que abertura é essa a partir da qual eu posso fazer um juízo como esse: essa pedra é quadrada? É a questão colocada no fim do capítulo 2 e que introduz ao capítulo 3.

2ª Reflexão: Nós em geral somos ingênuos no que se refere à objetividade. Pensamos: o objeto está ali; eu posso conhecê-lo objetivamente. O conhecimento objetivo é o protótipo da verdade!… Heidegger pergunta: a partir de onde fala essa “mania” de objetividade? Ver o ente como objeto objetivo não é já um comportamento, uma referência determinada ao mundo, uma abertura especial para com o mundo que já é uma tomada de posição? O que acha você?

Quais são os critérios de objetividade? Não existe também o objetivo do subjetivo? O que significa nesse caso o objetivo?

3ª Reflexão: Quando falamos de colocar na frente (vor-stellen) o ente como objeto (em português apresentar = ad-presentar) não devemos pensar só nos casos de objetivação coisista, como p. ex. esta pedra na minha frente. Esta objetivação não é senão uma das modalidades de objetivação num sentido mais pregnante de tornar-se consciente numa acepção carregada de: sentir o peso da presença.

  1. ex. quem ama vê mais do que quem não ama, isto é, o amor abre uma ótica na qual certos aspectos se me tornam presentes de uma forma nítida, se tornam objetivados, ao passo que para quem não tem essa ótica, tais objetos não surgem assim como eles são, não existem.

Experimente mudar o seu modo de ver e considerar p. ex. alegria, contrição, ódio, angústia, fome, sede (fome e sede da Justiça!), trabalho, preguiça, curiosidade, ambição etc. etc. e vendo-os não como atos psicológicos e sim como óticas, oculares, referências ao mundo, como registros de ser, como horizontes, onde se abrem diversas possibilidades de novos tipos de objetos.

Depois de ler o que se disse acima, examine-se a si mesmo. Desconfio que você entendeu tudo “subjetivamente”, isto é: como se esse ocular, essa abertura fosse um ato meu, um ato psicológico, subjetivo. Mas, atenção, percebe você que ao dizer isso, ao conceber a você assim como sujeito do ato subjetivo, você se objetivou e colocou a você mesmo como algo na sua frente? Sua frente? Frente de quem? Pense muito nesse ponto, experimente quebrar a cabeça com esse fenômeno. É importante para você entrar no modo de pensar contemporâneo.

  1. A teoria do conhecimento

A denominação teoria do Conhecimento designa imediatamente que se trata de um conhecimento sobre o conhecimento.

Se interpretamos a teoria como um conjunto de doutrinas, conhecimentos certos e hipóteses, organizados sistematicamente, podemos dizer: a teoria do conhecimento é uma disciplina científica que tem como objeto o conhecimento. De fato, dentro da organização institucional do ensino filosófico nas universidades ela é uma das disciplinas filosóficas. Disciplina, aliás, ainda relativamente nova. Chama-se também epistemologia (doutrina do saber), gnoseologia (doutrina do conhecimento), noética (doutrina do pensamento) ou criteriologia (doutrina dos critérios da verdade).

Como disciplina a teoria do conhecimento constitui um cabedal de doutrinas, conhecimentos e hipóteses sistematicamente agrupados. O centro sistemático de tal agrupamento, o enfoque, a pressuposição fundamental de tal conjunto (e por conseguinte a explicação, o cunho do próprio conjunto) varia conforme a posição de cada autor, de cada escola filosófica ou da época. Se tenho, por exemplo, como a pressuposição fundamental a psicologia mecanicista do século passado, hei de explicar o conhecimento como um fenômeno psíquico que funciona conforme a lei mecânica, explicada conforme a concepção mecanicista. A teoria do conhecimento se torna assim um ramo da psicologia. Poder-se-ia portanto concluir que cada autor, cada escola, cada ciência e cada época têm a sua teoria do conhecimento.

Mas por outro lado podemos fazer a seguinte reflexão:

O conhecimento é um fenômeno objetivo.

Coloco esse objeto na minha frente como objeto de investigação.

Um objeto posso enfocá-lo sob diversos aspectos: tenho p. ex. o aspecto fisiológico, psicológico, histórico, filosófico, cibernético, físico, químico, psicoterapêutico, lógico, sociológico, etimológico etc. Todos esses enfoques constituem uma ciência. Se eu ajuntar os conhecimentos de todos esses aspectos tenho a Teoria do Conhecimento.

Você vê logo a dificuldade de um tal empreendimento. Pois surgem imediatamente perguntas como essas:

– Como ajuntar num sistema coerente tantos aspectos e enfoques diferentes? Basta simplesmente justapor essas explicações heterogêneas como um tapete de retalhos? Se isto não basta, sob que ponto de vista, sob que enfoque vou organizar todos esses dados diferentes? Com outras palavras: qual é o enfoque, o objeto formal da Teoria do Conhecimento?

– Todos esses enfoques das diversas ciências, todas essas ciências são por sua vez também conhecimentos. Pressupõem portanto o conhecimento como algo já conhecido, óbvio. As ciências estão portanto dentro de uma determinada posição geral a respeito do conhecimento e a partir dali, já dentro do horizonte dessa sua posição, elas investigam o seu objeto. Assim não podem sair de si para investigar a si mesmas de fora como conhecimento. Para investigar as ciências como conhecimento seria necessária uma outra ciência que tivesse essas ciências como objeto e as enfocasse quatenus conhecimento. Essa ciência seria a teoria do conhecimento. Mas então volta de novo a pergunta: o que é, como é o enfoque da teoria do conhecimento?

A teoria do conhecimento do passado não faz reflexões básicas que poderiam elucidar essas perguntas acima mencionadas. Por isso ou eram de fato justaposições fragmentárias de conhecimentos heterogêneos ou era simplesmente uma explicação do conhecimento a partir de uma posição filosófica já assumida. Assim, temos p. ex. a epistemologia tomista, escotista, positivista, idealista etc.

Devido a essas dificuldades e à falta de uma penetração fundamental, a teoria do conhecimento como disciplina perdeu a sua cotação. Passou a ser considerada como tema da História da Filosofia, p. ex., a teoria do conhecimento em Franz Brentano, em Sto. Thomas, no Marxismo etc. E onde ela é ainda cultivada ou se trata de um enorme amontoado tremendamente complexo de explicações parciais fragmentárias ou de um enfoque particular filosoficamente ingênuo a partir de uma tomada de posição inanalisada.

Portanto, ao meu ver, a teoria de conhecimento considerada como disciplina, como uma ciência, se ela quer ser uma explicação filosófica do conhecimento, torna-se algo muito problemático. Isto é: torna-se um problema de uma reflexão filosófica.

Na filosofia não se deveria portanto falar de teoria de conhecimento, mas muito mais do problema do conhecimento.

Como problema, o conhecimento está intimamente ligado com o próprio problema da filosofia. Pois a filosofia é conhecer. Ao fazer do conhecimento um problema, a filosofia está perguntando pela sua própria essência: o que é afinal a filosofia?

Aqui nesse círculo, nessa pergunta que pergunta sobre si mesma, está toda a dificuldade e o modo de ser sui generis do conhecer filosófico, do conhecer filosoficamente o conhecimento.

Se quiser ser filosófica, a teoria do conhecimento deve acabar numa estrutura circular. Sair de um questionamento objetivo de uma coisa que está na minha frente, chamada conhecimento, para se transformar num questionamento fundamental: o que é afinal a própria filosofia?

Reduzir tudo a um estado de questionamento circular poderia ser a tarefa da filosofia. Portanto, se na filosofia falamos da teoria do conhecimento, então isso não significa fornecer conhecimento sobre algo existente, dar informações variegadas sobre o objeto conhecimento, mas sim mostrar que o conhecimento é um problema a partir de sua raiz. É nesse sentido que dissemos acima: na filosofia não se deveria falar de teoria do conhecimento, mas sim de problema do conhecimento.

Poder-se-ia perguntar pela utilidade de um tal empreendimento.

Em lugar de resposta, gostaria de expor um processo de transformação da pergunta operada dentro da teoria do conhecimento. A exposição é esquelética e simplificada. Pretende tão-somente insinuar a ossatura do problema.

Quando se fala de conhecimento, pensa-se num determinado fenômeno. P. ex. num sentido estrito da palavra, uma cabeçada na parede, a apreensão do vermelho quente da gravata estrambótica, o gosto azedo da laranja verde, o calafrio ao sentir na nuca uma aranha caranguejeira não são conhecimentos. Antes denominados com o termo “experiência”.

Conhecimento propriamente dito se estrutura num juízo: isto é…, portanto S (Sujeito) é P (Predicado). Já quando perguntamos: O que é isso? funcionamos dentro de um esquema, onde há o objeto diante de mim, sobre o qual (objeto) perguntamos. A resposta é dada também na mesma estrutura, p. ex., isto é branco. Tem-se um núcleo de atribuição, ao qual atribuímos uma cor, uma qualidade, uma propriedade etc.

Se examinarmos de uma forma muito ingênua e simplificada essa maneira de ser do conhecimento judicativo, percebemos que a concepção da nossa situação é a seguinte: diante de mim existe um objeto (uma coisa) independentemente de mim. Aqui estou eu, o sujeito que conhece. Eu atribuo a essa coisa diante de mim a cor branca. E a cor branca pertence de fato ao objeto. Tenho o conhecimento que a coisa é branca. Essa “coisa”, porém, contém vários aspectos, os quais posso ir aos poucos descobrindo. Assim aumento o meu conhecimento. Enquanto você sem muita suspeita “funciona” dentro desse modo de ver as coisas, não há problemas. Mas, um dia, você percebe que nem tudo que você atribui ao objeto, de fato, pertence ao objeto. Você pode se enganar. Ao se enganar redondamente sobre um objeto você leva um susto. De repente, naquela fé ingênua que você possuía pelas coisas, entra uma fenda. Você sente que o objeto, a coisa é algo estranho a você. Percebe que existe uma distância entre você (o sujeito do conhecimento) e o objeto. Objeto lá, eu aqui! Como é que o objeto lá entra no meu conhecimento aqui? Como é que acerto a coisa? Como é possível o conhecimento? O que é o conhecimento? O que é o objeto? O que é o sujeito do conhecimento? Você despertou para o problema do conhecimento. De súbito, você é assaltado por um terrível pensamento: que tal, se tudo, que penso ser assim, não for assim, tudo que penso ser, não for? Se tudo for ilusão? Sonho? Projeção da minha mente? O problema se torna dramático quando o objeto do seu conhecimento tem um significado vital para você: p. ex. Deus, certeza da ciência para qual consagrei toda a minha vida etc.

Notemos bem como o interesse da pergunta se transformou. Antes você esteve dirigido ingênua e confiantemente para o objeto e perguntava curioso, ávido de saber: o que é isso? Examinava, se corrigia e ia aumentando o conhecimento sobre o objeto.

Agora, depois daquele surgimento repentino de dúvida, o seu interesse se virou sobre o próprio conhecimento e pergunta: como é possível o conhecimento? Qual é o critério de certeza do meu conhecimento? O que é afinal o conhecimento?

Ao questionar assim, você pode estar animado de um interesse vital de adquirir a certeza do seu conhecimento. Procurará então colocar a base da sua certeza ou no sujeito que conhece ou no objeto de alguma forma por uma ligação. Dessas tentativas surgem diversas tendências filosóficas que denominamos: realismo, realismo crítico, idealismo, subjetivismo etc.

Essa linha de investigação, porém, não se mostrou muito frutífera, por isso, hoje está abandonada. E isso pelo seguinte motivo.

Antes de toda essa discussão, se o objeto tem a primazia ou o sujeito, ao analisarmos o fenômeno conhecimento, percebemos que o sujeito e o objeto e o seu relacionamento (= conhecimento) já são elementos constituídos, formados de uma estrutura anterior.

Quando digo: eu, sujeito, aqui e o objeto lá na minha frente S*******O já pressuponho que haja um campo aberto que possibilite algo como o sujeito e o objeto e o conhecimento, uma área onde aparecem esses elementos.

Conseguir ver essa abertura é uma tarefa muito difícil que exige um certo treino de reflexão intuitiva. Se você consegue compreender a filosofia contemporânea ou não, depende justamente dessa intuição que consegue ver essa abertura. Essa abertura recebeu o nome de Subjetividade ou Eu transcendental. Com uma grande margem de simplificação, podemos dizer que hoje essa abertura recebe muitas vezes também o nome de: Da-sein, Existência, Situação. É uma abertura que constitui uma dimensão de profundidade e não coincide com o eu empírico que está contraposto ao objeto, pois é anterior a ele, mais originário. Essa abertura na qual cada “coisa” recebe o seu sentido peculiar é diferente conforme a época. Ela pode se chamar: eidos (Platão), energia (Aristóteles), Substância (Idade Média), Espírito (século XIX), Consciência, Eu, Subjetividade (início do século XX), Dasein, Existência (século XX), hoje em dia: função, estrutura.

Notemos que o problema do conhecimento transformou-se na busca da abertura funcional, dentro da qual o homem encontra o ente (incluindo-se a si mesmo) e o coordena dentro de um mundo de sentidos que brotam da respectiva abertura fundamental. O problema do conhecimento é a busca do núcleo originário da totalidade de sentido. Se você denomina essa abertura fundamental de Ser, o problema do conhecimento se torna o problema do Ser. E o problema do Ser é o problema da Metafísica. O problema do conhecimento no fundo é o problema da Metafísica.

Vemos assim que o interesse da busca se transforma de uma simples busca de propriedade de um objeto numa indagação da profundidade do Ser.

Portanto, hoje, o interesse da Filosofia em relação ao conhecimento é tratado na perspectiva desse problema do Ser.

Continua porém existindo a teoria do conhecimento que não vai na direção da profundidade do Ser, mas que constrói na direção do acúmulo de dados informativos acerca do conhecimento. Essas teorias de conhecimento têm certamente o seu valor. Mas, se você quer ter a última evidência de seus fundamentos, é mister investigar na direção do Problema do Ser (bibliografia para isso, você encontra nas referências. Cf. Hegenberg, 1965; Hessen, 1952; Heidegger, 1969).

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Uma sugestão reflexiva de como entender as pp. 27 e 28.

Eu tenho um objeto na minha frente. Digamos uma roda de bicicleta. Esta coisa toma uma posição em relação a mim. Se coloca de encontro a mim.

O que quer dizer isso?

Dou um pontapé na roda de bicicleta. A roda se opõe (ob-põe) a mim. Faz resistência. Cria um relacionamento. Mas nesse relacionamento de pontapé, a coisa toma posição “assim como” obstáculo, resistência. A roda de bicicleta no relacionamento pontapé re-age, se ob-põe, vem ao meu encontro como, coisa-dura-que-machuca-o-meu-pé. Ela não se ob-põe a mim como uma peça de máquina.

A coisa ao se me opor (ob-por = por-se de encontro a) se coloca dentro de uma dimensão (inter-esse), de um âmbito aberto, onde essa coisa recebe o sentido, aparece, se posiciona, se ob-jectiva como resistência-que-me-machuca-o-pé. Está sob um determinado modo de posição.

Que seja um modo de posição ou ob-posição você o percebe logo quando compara esse modo de aparecer como resistência-a-pontapé com um outro modo de aparecer como “roda-de-bicicleta”. O pontapé você não o dá à roda de bicicleta enquanto (os escolásticos diziam: Qua ou quatenus = assim como) roda de bicicleta, mas sim enquanto resistência-coisa.

Para que você possa se encontrar com esta coisa como roda de bicicleta, ela deve aparecer, deve se colocar sob o modo de posição: peça de máquina chamada bicicleta. Mas para se colocar, isto é, aparecer como roda de bicicleta, esta coisa já deve estar dentro de uma dimensão, onde algo como roda de bicicleta seja possível, tenha um sentido, uma função: dentro do âmbito da máquina. Numa cultura onde não existe a abertura “máquina”, a bicicleta jamais aparecerá, jamais virá ao nosso encontro como bicicleta. Ela será talvez um gafanhoto esquisito supradimensional p. ex. dentro da dimensão “natureza”.

Isto quer dizer: lá onde a roda de bicicleta aparece como roda de bicicleta, isto é, como uma peça de máquina, esta coisa cobre, implica, contém em si, descortina um âmbito aberto, um horizonte dentro do qual ela pode vir ao nosso encontro como peça de máquina.

Portanto, ao se ob-por a nós como esta roda de bicicleta, esta coisa, já me manifesta simultaneamente todo um horizonte, de inter-esse, cobre, percorre um âmbito aberto, onde ela se torna possível, toma uma posição e recebe um sentido.

Mas não é assim que abra simplesmente o horizonte “máquina” e fique nisso. Ela abre uma visão, um ocular, um horizonte, uma perspectiva, todo um mundo chamado “máquina” e ao mesmo tempo se posiciona, se afirma, se estabelece como algo estável, como sentido fixo, dentro dessa perspectiva.

Com outros termos: a roda de bicicleta exerce uma função dentro de um todo que é bicicleta. Ela é peça, isto é, uma função estabilizada materialmente. Esta função, porém, está em função de uma outra função estabilizada, até constituir a bicicleta. Mas a própria bicicleta está em função de uma outra função e assim aos poucos temos uma rede imensa de funções que constituem digamos o mundo da máquina. O mundo da máquina, o âmbito aberto é algo como uma energética de expansão, uma espécie de élan vital. As peças, as máquinas individuais são como que “materializações”, estabelecimentos, fixações das funções dessa energética total, dessa abertura.

No termo ob-por, na partícula “ob” está insinuada a abertura, no termo “por” o estabelecimento.

Essa abertura, esse âmbito aberto, no nosso caso, o élan, o poder, a potência do mundo da máquina que com uma grande margem de imprecisão – existem máquinas-instrumentos e máquinas tecnológicas – poderíamos chamar de élan tecnológico, é um modo de ser, que não é criado pela apresentação, isto é, por meu ato subjetivo de representar a coisa assim, nem pelo fato de a coisa se me apresentar assim. É anterior. Eu posso me relacionar a essa coisa assim, essa coisa se me apresenta assim, porque tanto eu como a coisa já estamos dentro desse âmbito aberto, dentro desse campo de relação: do inter-esse.

O relacionamento entre a enunciação e a coisa já opera dentro desse campo de relação, ou melhor, é a realização, a atualização, a concretização dessa abertura.

Portanto, o que possibilita a manifestação de algo assim como peça de bicicleta é o âmbito da “técnica”. E o que possibilita o comportamento ou o relacionamento típico técnico para com a roda de bicicleta é o âmbito da abertura “técnica”.

Por conseguinte: a abertura é anterior ao relacionamento. O relacionamento deve pois adequar-se à abertura.

  1. Recapitulando

À primeira vista, quando falamos da verdade da enunciação pensamos assim: a enunciação (o meu conhecimento, o sujeito aqui, o juízo, a frase) e o objeto (a coisa sobre a qual se faz a enunciação) e o relacionamento entre a enunciação e a coisa (adequação, o comportamento).

Vimos que a enunciação e a coisa se baseiam no relacionamento (comportamento). E esse relacionamento ou comportamento se baseia, se dá no seio de um âmbito aberto que poderemos chamar de horizonte.

O que se manifesta, assim, chamamos de “ente”, isto é, “aquilo que está presente”.

Esquema:

  1. Enunciação Adequação coisa
  2. (enunciação) ad presentação     (coisa)
  3. (enunciação) ad presentação     (coisa)

comportamento

  1. (enunciação) ad presentação     (coisa)

comportamento

âmbito aberto-Abertura

O ente é aquilo que se torna presente no movimento de ad-presentação do comportamento.

 

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Um esquema do capítulo 3:

1º Passo: Algumas perguntas que resumem a situação da problemática, exposta no capítulo 2, ressaltando o arcabouço fundamental da questão.

Os passos da pergunta nos levam à tese: A essência da verdade é liberdade.

2º Passo: A afirmação “a essência da verdade é liberdade”, o senso comum já a conhece: portanto nada de novo!? Para a busca da verdade você não deve ter a coação. Liberdade da imprensa, liberdade de opinião, liberdade política, religiosa etc.! Atenção: essa compreensão do senso comum é superficial. Não toma a sério a afirmação: a liberdade é a própria essência da verdade. A verdade é liberdade, a liberdade é verdade.

Uma tese aliás estranha, surpreendente ao nosso modo geral de pensar! A tese… deve portanto, surpreender. Na surpresa, no entanto, eu me desperto para a problemática.

3º Passo: O senso comum no entanto é tenaz. Volta à carga, agora com uma outra objeção. E diz: mas como isso é possível? Liberdade e Verdade não se coadunam bem. Não é assim que a verdade é a norma absoluta e objetiva, em si, acima do homem, segundo a qual o homem orienta a sua liberdade? Se é assim, como pode a “verdade” encontrar seu apoio e fundamento na liberdade do homem? Não é isso uma perigosa tese do relativismo e subjetivismo?

4º Passo: Essa objeção se baseia num pré-conceito, isto é, numa determinada concepção já preestabelecida da liberdade humana. O que é liberdade do homem, todo mundo sabe… Pois a liberdade é uma propriedade do homem. O homem tem a liberdade. Sabemos nós? Sabemos nós o que é o homem? É tão óbvio que o homem possui a liberdade? Ou não é antes assim que a liberdade possui o homem? O que é pois a essência da liberdade?

Resumindo: O que é a essência da verdade?

A verdade é a adequação da enunciação com a coisa.

A adequação da enunciação com a coisa baseia-se na ad-presentação.

A apresentação se radica no comportamento.

O comportamento se radica no âmbito aberto.

O âmbito aberto surge da liberdade.

Liberdade é a essência do homem.

A essência do homem tem o seu fundamento no SER.

Portanto: com a margem a uma imprecisão bastante grande, podemos dizer:

A adequação da enunciação com a coisa está no campo da lógica.

A apresentação no campo da teoria do conhecimento.

O comportamento no campo da psicologia.

A liberdade no campo da antropologia.

O fundamento da essência do homem no ser está no campo da ontologia.

Assim a busca da essência da verdade que inicia com a busca da adequação lógica, se transforma e termina na busca do fundamento ontológico da essência do homem.

Uma reflexão:

Na p. 29 fala-se de “Liberar-se para uma medida que vincula”. Para isso é necessário “estar livre para aquilo que está manifesto no seio do aberto”.

A formulação de Heidegger só se torna compreensível se você procura ver o fenômeno. Por isso é indispensável você tentar e-vocar um fenômeno (experiência) que manifeste a evidência da formulação.

Quando falamos de liberdade, em geral a primeira coisa que nos vem à mente é a liberdade de coação. Ser livre significa: não estar coagido, preso, condicionado por ou de alguma coisa.

Aqui em Heidegger não se trata tanto dessa liberdade de coação. Trata-se antes de liberação de coação, digo liberação de uma possibilidade, ou melhor de abertura de uma possibilidade que cria todo um mundo de vínculos, normas, valores, sentidos e obrigações. Mais do que livrar-se de alguma coisa, trata-se da capacidade de assumir todo um mundo novo.

Imagine p. ex. um missionário ocidental que entra em contacto com uma tribo de índios nas selvas brasileiras. A partir do seu mundo ocidental, ele a considera como um povo primitivo. Tenta compreendê-la, mas sempre de novo reduz o mundo índio ao seu mundo ocidental, explica-a, interpreta-a a partir do seu ocular europeu. Acha-a tola, primitiva, sem cultura, digna de compaixão, quer promovê-la, convertê-la. Vive com ela, luta, trabalha, mas fracassa “pastoralmente”.

Certo dia, de repente, não sei como, ao ver um velho feiticeiro fazer um gesto estranho, estala na mente do missionário uma experiência, uma intuição de que o velho está a viver a partir de uma concepção fundamental totalmente diferente da sua, concepção cuja profundidade ele de repente vislumbra, por um instante. Desde esse momento, muda a atitude do missionário. Perde a segurança do seu julgamento, perde a altivez do europeu “desenvolvido”, percebe que está mais humilde diante do “outro”, se surpreende com enorme desejo de se abrir para o novo-e-outro mundo que ele não compreende. E de súbito, começa a sentir o seu mundo europeu como um obstáculo, como um bitolamento que lhe impede de libertar o olhar para o outro como o outro é.

Depois de muita luta, fracasso e boa vontade, ele percebe um dia que se transformou. Ele sente que o seu olhar tornou-se dócil à medida do mundo índio, percebe que não o interpreta de fora, mas como que se situa no meio dele, e a partir da abertura originária desse mundo, deixa-se vincular, deixa-se levar pela lógica interna que emana dessa experiência originária do mundo índio. E des-cobre todo um mundo riquíssimo de sentidos, valores, descobre uma lógica interna complexíssima que na sua flexibilidade e riqueza supera de longe a lógica “clara” e racionalista do seu mundo europeu. E o missionário percebe que se testou no seu âmago, abriu-se uma comporta de evidência no seu “coração”, donde emana uma visão nova, libertadora de suas energias vitais.

Mais ou menos nesse sentido é que Heidegger fala aqui de liberdade.

Experimente evocar na sua vida alguns outros exemplos desse “livrar-se para uma medida que vincula” o “estar livre para aquilo que está manifesto no seio do aberto”. P. ex. o fenômeno simpatia, pudor, ver um quadro de arte, compreender o outro etc.

Experimente comparar esse conceito heideggeriano de liberdade e o que você entende comumente por liberdade.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade
  2. O comentário do texto: “A enunciação recebe sua conformidade… considerado como a essência da verdade” (p. 28/29).

Sob o ponto de vista abstrato-formal o texto diz:

  1. A enunciação conforma-se com a coisa.
  2. Mas essa conformidade, ela, a enunciação não tem de si, nem da coisa-na-minha-frente.
  3. Ela recebe essa conformidade da abertura do comportamento.
  4. Portanto, é somente através da abertura do comportamento que “o que é manifesto” se torna norma, a medida diretora de uma apresentação adequada, isto é, da adequação da enunciação com a coisa.
  5. Isto significa: o comportamento na sua abertura já deve ter recebido, já deve ter assumido algo como uma estrutura, algo como medida universal que sirva de norma para toda e qualquer apresentação, isto é, para toda e qualquer adequação da enunciação com a coisa.
  6. Se é assim, então, a essência da verdade deve ser originariamente procurada não na adequação da enunciação com a coisa (= proposição, juízo), mas sim naquilo que possibilita essa adequação, isto é, na abertura do comportamento que por sua vez assume a medida universal da abertura originária, caracterizada por Heidegger pela formulação: “o que é manifesto”.

NB: São praticamente sinônimos os termos: apresentação, adequação da enunciação com a coisa, juízo, proposição.

Resumindo: originariamente temos o âmbito aberto como “o que é manifesto”. Esse âmbito dá a medida ao e comanda o comportamento. O comportamento é por sua vez uma abertura que recebe a medida de sua abertura do “âmbito aberto originário” e possibilita a adequação da enunciação com a coisa.

O que dissemos permanece no abstrato e formal. É necessário concretizá-lo para termos uma intuição do fenômeno. Vamos pois fazer uma tentativa de ilustração.

A tentativa:

A concepção tradicional da verdade, coloca a essência da verdade na proposição, isto é, na adequação da enunciação com a coisa.

Em vez de dizer a adequação da enunciação com a coisa podemos também dizer: adequação do intelecto e da coisa.

Dentro dessa concepção tradicional há duas correntes opostas.

Uma diz: A primazia está com a coisa. O intelecto recebe a medida da verdade da coisa, ele se conforma com a coisa: é o objetivismo.

A outra diz: A primazia está com o intelecto. A coisa recebe a medida da verdade do intelecto. A coisa se conforma com as formas inatas do intelecto. É o subjetivismo.

O subjetivismo e o objetivismo se opõem. São contrários. Enquanto continuarem a se opor, não há saída para a questão. É como se fosse a oposição entre duas pessoas, das quais uma diz: é preto; e a outra diz: é branco.

Preto   branco

Sujeito objeto

Intelecto         coisa.

Um exame mais crítico no entanto nos mostra o seguinte: tanto o preto como o branco estão em oposição à base de um fundamento comum. Esse fundamento comum é a tonalidade da cor que é a intensidade da luz.

Tanto o preto como o branco são duas modalidades extremas da tonalidade da luz. Tanto o preto como o branco têm a mesma estrutura: a luz.

Conforme a intensidade da presença da luz que se chama claridade, temos a tonalidade: preto, diferentes escalas de preto, cinzento, diferentes escalas de cinzento, branco, diferentes escalas de branco.

Isto significa: entre o preto e o branco não há propriamente oposição. Existe sim uma escala de intensidade na claridade. Por isso, é ingenuidade afirmar que o preto tem a primazia e serve de medida ao branco ou vice-versa, que o branco tem a primazia e serve de medida ao preto.

A verdadeira primazia tem a claridade que serve de medida tanto para o preto como para o branco.

Aplicando esse exemplo ao relacionamento intelecto e coisa, sujeito e objeto, podemos dizer: sujeito e objeto são dois momentos de uma estrutura “anterior” que possibilita uma tal realidade como sujeito e objeto e o seu relacionamento.

Até aqui creio que você acompanhou o pensamento. Façamos uma parada aqui para revisar a mente  e ver se de fato você está vendo a realidade. Não é assim que você diz: sujeito aqui, objeto lá, o relacionamento, e esses três momentos têm uma estrutura comum? E imagina a “coisa” assim:

 

Relacionamento

S          O

estrutura comum

 

Isto é apenas um esquema. Enquanto você não consegue “realizar” como esse esquema funciona na realidade, você não está vendo o fenômeno.

Como funciona esse esquema na realidade?

Como é o sujeito? O objeto? O relacionamento?

Vamos e-vocar uma experiência. Existem encontros nos quais nos sentimos humildes. P. ex. você encontra uma pessoa pobre, sem muito estudo, simples, talvez até marginalizada na sociedade. Digamos que ela é o empregado da sua firma que tem a função de varrer os büros. Sua linguagem é humilde, ele o trata de senhor, é serviçal. Você o trata como um João ninguém, impessoalmente, como um operário da sua firma, uma peça insignificante no conjunto da sua firma. Certo dia, você está de mau humor. E descarrega a sua irritação sobre o empregado. Você o humilha injustamente. O “pobre” homem não re-age. Ele aceita a humilhação. Mas de súbito você percebe que ele ao aceitar não se avilta, não se torna servil, você sente nitidamente uma transparência nesse homem, uma grandeza humana: a dignidade. Há nele algo de superior, superioridade que não se eleva humilhando-me, rebaixando-me, mas uma superioridade ontológica, que está-ali simplesmente sendo, singelamente como a rosa que floresce sem o porquê. E nessa transparência você sente um calor humano de compreensão. Ao aceitar a humilhação o pobre me aceita não como “chefe”, como “superior”, mas como uma pessoa mal-humorada que precisa de compreensão do amigo. Há nessa aceitação do pobre algo de cordial, amor de simpatia pela minha fraqueza, uma doação generosa que vem ao meu encontro como serviço gratuito e livre à minha pessoa humana. E, de repente, compreendo o que é humildade; A essência da humildade se me torna presente, se ad-presenta, se torna “objetiva”, não como coisa, não como idéia abstrata, mas como “o que é manifesto” na concreção dessa pessoa.

Para você que quer compreender o que é a “essência da verdade” é de máxima importância ver que esse “o que se manifesta” não é a coisa “esse sujeito humilde ali”. Esse empregado na minha frente é como que o representante da dimensão de profundidade chamada humildade, é o lugar de concentração da humildade; Certamente, a dimensão-humildade não é algo separado dessa pessoa pois é nela que se torna presente na nitidez e plasticidade da sua manifestação. Mas não é uma qualidade que esse sujeito diante de mim possui como sua propriedade psicológica. Antes, pelo contrário, é a Humildade que “possui” essa pessoa como humilde, é a presença da dimensão-humildade que dá o brilho, o sentido, a grandeza a essa pessoa. Se essa pessoa é humilde, isto vem porque ela está, aparece à luz desse “o que é manifesto”, “a Humildade”.

Essa presença da Humildade me transforma. Ela me faz também transparente, me faz aceitar a aceitação do pobre com gratidão, com a gratidão de quem recebe, eu me sinto não como superior, como poderoso, mas sim como alguém que se abre com gratidão à simpatia do outro. Com outras palavras, tomo a mesma atitude do pobre empregado, me torno humilde, surjo como “objeto” dentro da mesma dimensão-humildade de que envolve o empregado. Assim, entre mim e o empregado, surge um relacionamento, um comportamento chamado: aceitação mútua na simpatia e generosidade gratuita.

Tanto eu como o empregado e o relacionamento somos como que três momentos de concretização de uma mesma luz daquilo que é manifesto: da Humildade.

A humildade é o âmbito aberto, no qual se torna possível algo como eu humilde, o empregado humilde em relacionamento humilde, em cujo seio concreta e viva se torna presente a medida da Humildade como aquilo que é “manifesto”.

  1. Algumas sugestões para a interpretação do capítulo 4: a Essência da Liberdade
  2. A reflexão anterior sobre a Humildade foi uma tentativa de insinuação como devemos entender “o que é manifesto”.

A reflexão evoca um trecho já analisado por você no capítulo 2, p. 28: Ali se diz: “Todo o comportamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se manter referido àquilo que é manifesto enquanto tal. Somente, isto que, assim, no sentido estrito da palavra, está manifesto foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental como ‘aquilo que está presente’ e já desde há muito tempo, é chamado ‘ente’.”

De fato, os gregos chamaram de ente (ón ontologia) a totalidade daquilo que se manifesta, se revela, se mostra, se torna visível nele mesmo. A totalidade daquilo que está à luz, ou que pode ser trazido à luz do dia; o que se manifesta, se mostra, se revela como aquilo que é nele mesmo!

Essa formulação porém é abstrata.

O que quer dizer essa formulação em concreto?

A chave da questão está na formulação: como aquilo que é nele mesmo.

Vamos refletir sobre esse ponto, à mão de um exemplo já batido.

Vejo uma rosa. O que é a rosa naquilo que ela é nela mesma? Nela mesma. Em ela. Isto significa: a rosa é algo que está dentro dela mesma. Dentro de quê? Dela mesma? Um absurdo incompreensível, jogo abstrato de palavras? Sim. Mas isto acontece, porque as nossas palavras são incapazes de nos comunicar o que está manifesto diante dos nossos olhos.

Antes de prosseguir na nossa reflexão, é necessário conscientizar-nos de um entrave que nos dificulta a compreensão. Esse entrave é a nossa pré-compreensão cotidiana que funciona em nós inconscientemente, quando colocamos uma pergunta como essa: o que é a rosa naquilo que ela é nela mesma?

Experimente formular essa pergunta e se examinar: como concebe a realidade ao fazer essa pergunta? Não é assim que ao dizer “o que é a rosa” eu já tenho na mente um esquema pré-concebido da realidade como algo que está pronto na minha frente, algo-rosa que tem atrás da aparência sensível um núcleo chamado essência ou substância, núcleo que constitui aquilo que a rosa é em si?

Da existência de uma tal pré-compreensão devemo-nos conscientizar e neutralizar assim a sua influência. Pois essa pré-compreensão nos bitola o olhar de ante-mão, nos impede a visão livre daquilo que se manifesta ele mesmo.

Uma vez imunes da influência dogmatizante dessa pré-compreensão, a primeira coisa que vemos é que a rosa se manifesta cada vez diferente, conforme a dimensão em que ela se revela a si mesma. A rosa é pão na dimensão da pobreza de uma vendedora, filha na dimensão do jardineiro, a bela do seu coração, para a dimensão do Pequeno Príncipe, Deus na dimensão mística de um Angelus Silesius.

A rosa não é em si, já pronta, como coisa. Ela se manifesta cada vez diferente, se revela naquilo, isto é, na dimensão em que ela aparece cada vez diferente como ela mesma.

Descobrir as diferentes dimensões, abrir e descortinar diversos horizontes, onde, à cuja luz, à cuja claridade a rosa se manifesta na sua significação, cada vez diferente, límpida, sem confusão de dimensões, isto é fazer aparecer o ente, deixar-ser o ente, fazer de algo um fenômeno, deixar o ente ser naquilo que pode ser.

Mas, se é assim, não existe a rosa em si?

Não existe a rosa como aquilo que ela é em si mesma? Qual a rosa entre as diversas dimensões possíveis de rosa, a rosa por excelência? Onde ela se revela de maneira mais evidente como ela mesma?

Essa pergunta não pode ser respondida de “fora”, de um modo geral. A resposta só é possível na intuição concreta, factual. Em que sentido? Como?

Imagine p. ex. um S. Francisco. Toda a luta pela conversão, dias de dúvida, angústia, oração, busca do sentido da sua vida. Todo o processo de despojamento e transformação, até aquele momento, onde grita diante do bispo de Assis e de seu pai Pedro: Pai nosso que estais nos céus… O jovem Francisco, depois dessa cena, ao vagar pelas ruas da cidade, encontra entre os escombros de um muro, uma rosa silvestre. Singela, alegre, abandonada à gratuidade da existência. Sem o para que, sem o por que, simplesmente ali como graça. O jovem Francisco para diante dessa rosa e agradece. A rosa se lhe revela como a concentração viva, cristalização cósmica do sentido do universo: Abba, Pai! A rosa aqui se revela como aquilo que ela é nela mesma na máxima concentração, como a quinta essência, como o princípio, a fonte do sentido do universo.

Passa por ali um botânico. Ele diz para si: Uma rosa, uma planta, uma coisa viva, orgânica, celular, composição química etc.

O que é mais rosa? A planta ou a concentração cósmica do sentido da Vida? Heidegger dirá: a rosa de S. Francisco é mais rosa, talvez a rosa por excelência, porque concentra mais intensamente o sentido do ser. Ali, a rosa se manifesta, se revela como ela mesma naquilo que ela é a partir de si como ela mesma. É o que é manifesto.

Essa rosa, no entanto, não deve ser “interpretada” como sinal, como indicação para algo que está além dela. Não é assim que tenho primeiro uma doutrina sobre a gratuidade do Amor do Pai e aplico esse conhecimento à rosa, chamando-a de um símbolo, de uma figura.

Trata-se de uma intuição, trata-se de um ocular que se rasga no ser, onde a rosa ela mesma nasce, surge, se revela como a presença viva e concreta do amor gratuito do Pai, de tal sorte que posso dizer: a rosa é a dimensão graça, é todo um mundo chamado graça.

O ente neste sentido coincide portanto com a dimensão que na filosofia atual se chama: coisa-ela-mesma. E a coisa-ela-mesma não é algo como objeto, mas a presença da intensidade do ser como a dimensão concretizada da profundidade humana.

Esta profundidade humana da qual o ente recebe o seu sentido é a “experiência de um fundamento original oculto do homem” que se chama “ser-aí”, ou Dasein (p. 31). Esse ser-ali chama-se também Liberdade. E a liberdade se define: “o que deixa-ser o ente” (p. 32).

Liberdade como deixar-ser-o-ente significa: fidelidade, docilidade, doação ao “que é manifesto”, à abertura originária que se chama alétheia.

  1. O texto da p. 22: “O entregar-se ao caráter… Toda a frase tem o caráter de desvelado”. Como entender essa frase? E principalmente como entender a estrutura da ex-sistência? Talvez um exemplo possa nos servir de apoio para compreender esse texto da p. 33.

Antes dissemos que o comportamento não deve ser entendido como um ato psicológico de um sujeito já pré-existente como uma substância coisa.

O termo “comportamento” designa a totalidade de correlação eu-objeto-relacionamento, constituída na dinâmica processual de ad-presentação. É no comportamento que surgem o eu, o objeto e a relação.

Esse surgimento do eu, objeto e relação, podemos chamar – com risco de ser entendido psicologicamente – de consciencialização.

  1. ex. o viver assim ao léu, na onda dos acontecimentos, não é propriamente comportamento. Vegetar na vida também não é comportamento.

No comportamento há sempre uma ex-posição (p. 33).

Uma tomada de posição, a partir de um despertar para o que está além do estado factual de mim mesmo.

Vamos ilustrar o que dissemos com um exemplo.

Estou no refeitório e no meio de um zunido indefinido murmuro sem entusiasmo o Pai-Nosso. O meu pensamento anda não sei onde, um cansaço agradável de estômago cheio toma conta de mim e o Pai-Nosso que estou pronunciando não é outra coisa do que o murmúrio confuso no qual flutuo meio sonolento, entediado.

Você abre um livro-relatório do campo de concentração em Saigon. Câmaras de tortura, fossa de concreto armado, onde os prisioneiros vivem – se é que isso ainda é viver – um estado infra-animal. Você abre o jornal: guerras, lutas, seqüestros, assassinatos, injustiça, roubo, destruição absurda e cruel. Você abre o livro de História: uma corrente ininterrupta de matança, prepotência, opressão dos pobres. Você abre os olhos ao seu redor. E de repente passa-lhe pela cabeça a oração: Pai Nosso… A tese: Deus é Amor… o slogan: Deus é bom, é Pai… Tome a sério a realidade-noite da Terra dos homens. Tome a sério que cada uma dessas pessoas esmagadas é seu pai, sua mãe, seu irmão, sua irmã, seu filho, sua filha. E reze então o Pai Nosso… Chame a Deus, que tudo isso permite, de Pai, se você puder… Ele é Pai? Não é também todo-poderoso?

A oração do Pai-Nosso se me torna infinitamente difícil, pesada. Ele se manifesta como realidade, nitidamente, brutalmente como um soco no estômago. Para você dizer “Pai nosso”, você se expõe a uma tremenda aventura de auto-superação. Antes, o Pai-Nosso era um murmúrio que brotava sem dificuldade do bem-estar do meu estômago cheio e satisfeito. Era por assim dizer um epifenômeno, uma sensação de sonolência indiferente, irreal do meu eu. Agora, de repente, estou como que colocado na parede, encurralado, na iminência de me expor ao que é manifesto, de assumi-lo, isto é, de “entregam-se ao caráter de ser revelado” (p. 33). Você está numa situação onde é colocada a exigência: Diga “Pai” se você pode! Esse poder é uma nova relação com você mesmo. É um novo comportamento para com você mesmo.

Você deve assumir todo seu ser de até então, para se ex-por à nova abertura que lhe dita a medida de decisão. É pois a Liberdade. Na medida em que você pode “entregar-se” ao que se manifestou como Pai, na medida em que você se autosupera e se transcende para o revelado, na medida em que consegue se abrir à face terrível do Pai, você ex-siste, você é.

Esse ex-sistir é portanto um recuo. Quando você rezava no refeitório, você não recuou diante do ente. Vivia numa simbiose amorfa, sem “consciência” do que é o Pai-Nosso. Agora, nessa exposição, o ente Pai se lhe manifesta como objeto da sua decisão, se manifesta nitidamente como a realidade a que você deve se expor, colocando em xeque o eu, para se abrir à estrutura da autosuperação como a transcendência de si mesmo na entrega ao “revelado”. Recuo no sentido de tensão-despertadora que faz aparecer o objeto nitidamente diante de você como exigência de decisão.

Essa estrutura que Heidegger chama de Da-sein (ser-aí), Ex-sistência, Exposição, Transcendência, é a essência da Decisão, isto é, da Liberdade, e constitui a “experiência de um fundamento original oculto do homem!”

O PUNHAL

A Margarida Bunge

Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, em fins do século passado: Luís Melian Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego segurou-o algumas vezes.

Aqueles que o veem sentem necessidade de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o estavam buscando; a mão se apressa a apertar a empunhadura que a espera; a folha obediente e poderosa movimenta-se com precisão dentro da bainha.

O punhal quer outra coisa.

É mais do que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de um certo modo, eterno, o punhal que ontem à noite matou um homem em Tacuarembó e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar sangue brusco.

Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, o punhal conta interminavelmente o seu simples sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige, porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para o qual os homens o criaram.

Às vezes me dá pena. Tanta dureza, tanta fé, tão tranquila ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis (Borges, ano, p. 66).

Este trecho é do escritor e filósofo argentino: Jorge Luís Borges. Aqui temos um exemplo de “deixar-ser o ente”. Borges deixa-ser o punhal naquilo que é manifesto como punhal.

Refletindo o que Heidegger diz de Liberdade como deixar-ser o ente, será que você consegue “ver” por que esse texto é um exemplo para o “deixar-ser-o-ente”, portanto, para a Liberdade?

Ler o texto de Borges, tentando entrar no coração do punhal…! E tente intuir o que é manifesto. Se você conseguir ver, então você mesmo nesse intuir está deixando o punhal ser. Depois disso, consegue dizer o que você viu?

Para a seguinte reunião, cada grupo poderia apresentar uma descrição do que viu, para ilustrar os textos abstratos de Heidegger sobre a liberdade como deixar-ser o ente, entregar-se ao desvendado etc.

 

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Reflexão acerca do 4o capítulo.

  1. Na nossa leitura, talvez você tenha percebido um fato muito importante. Importante para a compreensão do estudo da filosofia.

Você inicia a leitura, disposto a buscar a resposta para a pergunta: o que é a Verdade? Motivo, talvez curiosidade. Talvez um mero desejo de informação ou simples ocupação. Talvez uma verdadeira sede de saber, cultura. Ou, quem sabe, uma dura necessidade de resolver a dúvida que se apossou de sua mente.

Cada qual, a partir de uma atitude em frente ao texto começa a entrar no processo da leitura. Atitude em frente ao texto que é expressão da sua atitude perante a filosofia, perante o estudo em geral. Esta, por sua vez, se entrosa numa tomada de posição talvez inconsciente perante a sua vida. Toda essa rede de atitude, da qual a sua atitude perante o texto é somente uma das articulações, não é apenas uma atitude moral. É antes uma pré-compreensão. Algo como ocular, enfoque preestabelecido que você carrega consigo. É tomada de posição intelectiva. O processo de leitura, em vez de responder à pergunta “o que é a verdade?”, leva você a se confrontar com essa sua pré-compreensão. Ficar confuso p. ex. é uma confrontação. Pois se o texto o deixou confuso, você está colocado diante da pergunta: por que fiquei confuso? Talvez, a minha atitude intelectual esteja bitolada no sentido de achar que o estudo deve dar resposta pronta às minhas perguntas à guisa do catecismo da doutrina cristã. Ou talvez o que possuo de cabedal de conhecimento não passe de meros conceitos recebidos, jamais refletidos, uma espécie de etiquetas que uso para ordenar as situações ao redor de mim. Verdade, liberdade, será que já travei uma luta corpo a corpo com esses conceitos, confrontando-os com a realidade que eu vivo, que nos cerca? Mas afinal como vivo? Qual é a minha ex-sistência? O grau de transcendência? Qual a minha existência intelectual? O grau de confronto com teologia, filosofia? Receptiva na atitude dócil, filial, sem o distanciamento da conscientização confrontal? Atitude de aluno que é informado. Informação. Erudição. Cabedal de conhecimento. Para mais tarde usá-lo etc…

Mas… e você mesmo?

O texto de Heidegger, se você consegue entrar em luta com ele, leva-o necessariamente a um confronto. Em vez de me responder às perguntas e dissipar as dúvidas, ele começa a me revelar a minha estrutura mental. Começa a me mostrar que jamais pensara com res-ponsabilidade sobre a realidade muito séria e pensada como p. ex. verdade, liberdade. O texto começa então a sacudir, a abalar meus pré-conceitos, mostra a necessidade de me dispor para a transformação do pensar (p. 31). Transformação aliás, que traz consigo o risco de revisar todo o meu modo de ser, ver, sentir e julgar. Nesse sentido talvez a reflexão é uma coisa bastante perigosa e não algo inofensivo e abstrato. Talvez seja necessário estudar, refletir como quem salva a sua pele…

Um tema para a reflexão individual: por que sou tão insensível para o peso de tudo quanto lemos, pensamos e estudamos? Parece que me envolve uma nuvem de leviandade acadêmica que considera como material de informação, erudição, saber, instrumento de pastoral as realidades explosivas e periculosíssimas da Vida como: Deus, Liberdade, Verdade, Mal etc. Donde vem que temos ao redor de nós um mundo de conceitos, etiquetas e pré-conceitos que nos fazem cegos e insensíveis para a Experiência da Realidade na qual estamos metidos até o pescoço? Donde vem que tantos anos de estudos nos tiram a capacidade de admirar, de nos angustiar, de nos surpreender? De nos deixar atingir? Por que perdemos o vigor, o frescor, a vulnerabilidade do Espírito? Donde vem essa tendência em mim de nivelar tudo no “já-conhecido”, de “acostumar-me a tudo”, de não conseguirmos mais dar a nitidez e a plasticidade às coisas ao nosso redor? Essa tendência de “acostumamento”, no qual o frescor da experiência originária decai para o cotidiano monótono, tedioso e sem colorido está intimamente ligado com o que Heidegger chama de: não verdade no desvelamento (p. 36) isto é: o encobrimento ou erro.

  1. Heidegger afirma na p. 31 que reflexão sobre o relacionamento fundamental entre a verdade e liberdade nos leva ao questionamento da essência do homem etc.

Experimente ver bem o processo. Você começa uma reflexão pegando a ponta do fio de um problema: o problema da essência da verdade. Um problema nunca está só. O fio de um problema nos eleva imediatamente às suas implicações. Logo que você começa a des-fiar uma questão, vem junto toda uma rede de outros problemas. Com outras palavras: a busca da essência da verdade é ao mesmo tempo busca da essência da liberdade, essa é ao mesmo tempo a busca pela essência do homem. E esta por sua vez uma pergunta pelo Ser. Na filosofia é necessário ter a paciência e coragem de assumir esse des-fiamento em diferentes direções, ao mesmo tempo. De aceitar como algo natural esse estilo de investigação na qual, quando você começa num ponto surgirá aos poucos todas as implicações ali contidas.

  1. Heidegger chama o fundamento latente essencial do homem: Da-sein. Da-sein é tradução literal do termo latim: Ex-sistentia.

Na linguagem comum e nas “filosóficas” que se baseiam no senso comum, usamos o termo existência para indicar algo que é real em contraposição ao fictício, ao irreal. Existência é aquilo que faz com que algo seja real, e não fictício ou irreal.

Em Heidegger o termo significa a estrutura de profundidade fundamental do ser-homem.

Ele escreve ex-sistência.

Sistência no ex. Sistir no ex significa: constituir-se e manter a sua consistência (sistencial) a partir de uma abertura (ex).

Tomemos um exemplo da coragem. Coragem não é uma coisa que você adquire como objeto já existente diante de você. A coragem é uma abertura, um modo de ser no qual você tomando todo seu ser deve entrar. Mas esse entrar não é um entrar no “espaço” já existente. É um abrir-se e manter-se renovando-se sempre de novo nessa abertura. Aqui surge a estrutura que poderíamos caracterizar como contínua auto-assumpção, renovação contínua, na qual cada passo que você dá deve reassumir todo o seu ser passado e se expor de novo à abertura coragem que vai se tornando cada vez mais nítida, que vai se desvelando no que ela é; e ao se revelar exige por sua vez o engajamento renovado e potenciado. É o transcender-se a si mesmo, a auto-superação. É nesse movimento dinâmico que vai se constituindo cada vez mais plástica e nitidamente o eu-coragem ou o eu-corajoso e esse eu-corajoso é uma espécie de ocular que me faz ver ao meu redor todo um mundo de valores de coragem.

Essa estrutura da ex-sistência no fundo é uma compreensão originária do que coisisticamente chamamos de estrutura sujeito-objeto.

Portanto, Heidegger não quer eliminar a estrutura sujeito-objeto. Aqui, ele pretende é ver o fundamento originário dessa estrutura. Ou, em outros termos: a estrutura-sujeito-objeto como nós estamos acostumamos a entender não é outra coisa do que uma compreensão fossilizada e ingênua, coisificada de uma estrutura originária que se chama ex-sistência.

  1. Na raiz de Da-sein, de Ex-sistência está sempre uma experiência originária que é algo como uma abertura toda nova, na qual eu entro e devo me sustentar na ex-posição, para eu poder ex-sistir.

Algumas perguntas:

  1. É necessário que vivamos nessa tensão da ex-sistência, da ex-posição? Não é possível um modo de ser no qual não é necessário essa “tomada” de consciência, essa re-novação contínua ex-sistencial para que subsistamos? Cf. índios, plantas, animais, crianças etc.

Será que não é possível viver funcionando simplesmente? Ou vegetando? Donde vem que a humanidade entrou a viver nessa estrutura dinâmica de transcendência?

Se eu identifico esse modo de ser (ex-sistência) com a História, podemos formular a mesma pergunta: não é possível um modo de ser que não seja histórico?

  1. Existem diversas experiências originárias. Heidegger cita uma delas, a experiência da Physis grega.

Existe uma experiência originária “mais originária” que seja como que o fator fundamental das diversas experiências originárias? Como se relacionam as totalidades, os modos que surgem cada vez diferentes a partir dessas experiências originárias?

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Ainda algo sobre o capítulo 4.

A reflexão sobre a verdade nos leva a refletir sobre a liberdade. A reflexão sobre a liberdade nos leva a refletir sobre a essência do homem. A reflexão sobre a essência do homem como liberdade só é possível se nos abrirmos à experiência de uma dimensão original oculta no homem, à experiência do ser-aí. Essa experiência nos leva a, ou melhor, é o âmbito, o lugar onde a essência da verdade se revela originariamente.

Dissemos: experiência do ser-aí.

Peço conferir o texto à p. 31. O texto diz: “… nos garantirá a experiência de um fundamento original oculto do homem (do ser-aí).”

Esse genitivo “do ser-aí”, está no lugar de “do homem”? Ou está no lugar de “de um fenômeno original oculto do homem”? Portanto: “… nos garantirá a experiência de um fundamento original oculto (do homem) = (do ser-aí); ou nos garantirá a experiência (de um fenômeno original oculto do homem) = (do ser-aí)?

Nós vamos interpretar o texto na segunda acepção. A experiência do ser-aí é a experiência de um fenômeno original oculto do homem.

Em vez de ser-aí, Heidegger também usa o termo: ek-sistência, ser-aí ek-sistente (cf. p. 35).

Embora uma análise minuciosa do texto nos mostre nuances e distinções, para facilitar a compreensão, vamos falar a grosso modo, sem detalhes à guisa de esboço fundamental.

Nessa perspectiva, são praticamente sinônimos: ser-aí (p. 31), ek-sistente (p. 33), abandono ek-sistente, presença, ek-sistência (p. 34), ser-aí ek-sistente (p. 35).

O nosso interesse é de saber em que consiste a essência da verdade. Partindo da verdade da enunciação, chegamos a ver que liberdade é a essência da verdade. Por isso, a pergunta pela essência da liberdade. Mas a pergunta pela liberdade se revela como uma pergunta pela experiência de um fundamento original oculto do homem: a pergunta pela experiência do ser-aí, experiência da ek-sistência.

A formulação: a experiência da ek-sistência no entanto pode insinuar uma falsa pista na reflexão. Pois, ao ouvir essa formulação podemos imaginar o estado de coisa da seguinte maneira: o homem como o sujeito de uma experiência psicológica do estar aberto ao mundo de coisas. Esse modelo deve ser afastado da nossa mente.

A experiência da ek-sistência não é uma experiência sobre um objeto chamado ek-sistência. É antes uma experiência a partir da estrutura fundamental chamada ek-sistência. A ek-sistência é ela mesma a experiência originária e fundamental, a partir da e na qual o homem se torna homem como livre. Ek-sistência é a essência do ser-homem-livre; a ek-sistência é a essência da liberdade. A ek-sistência é liberdade.

O capítulo 4 tenta descrever a estrutura da ek-sistência como liberdade. Com outras palavras: aquilo que faz com que o homem seja homem é a estrutura fundamental originária oculta do homem chamada liberdade ou ek-sistência.

Mas, atenção: a ek-sistência não é uma coisa-substância, algo que existe como “coisa” debaixo da aparência chamada homem, à maneira de um núcleo, “fundamento”, fundo. A ek-sistência é experiência. Ela é só no acontecimento, no processo, no viver.

Toda a dificuldade de compreensão provém do esquema usual coisista do nosso modo de pensar. Quando falamos de experiência, viver etc., logo perguntamos: quem vive? quem experimenta? E imaginamos o homem como uma substância que tem o ato de viver, ato de experimentar. Você percebe que para você entender Heidegger é necessário abandonar esse esquema, é necessário se dispor “para a transformação do pensamento” (p. 31).

Pois, aqui no nosso caso, não é o homem que tem a ek-sistência, mas a ek-sistência é que possibilita o ser-homem. É a experiência originária que constitui a essência do ser-homem. O modo “fundamental” do ser-homem, a maneira originária do ser-homem, não consiste em ele ser algo, ser uma substância, mas sim em: ser ele Vida. Vida jamais é uma coisa, ela é processo, experiência.

Mas o termo Vida é também ambíguo. Pois posso entendê-lo na objetivação biológica como vida biológica.

Vemos, portanto, que as palavras não conseguem exprimir sem ambigüidade essa realidade fundamental que denominamos: ek-sistência, liberdade, vida.

O capítulo 4, usando termos e expressões que a cada momento podem ser interpretados inadequadamente como indicativos de fenômenos psicológicos, tenta mostrar em que consiste essa “realidade” essencial.

Esse processo, essa vida foi concebida desde o seu início pelo pensamento ocidental com a palavra alétheia: o desvelamento.

Desvelamento como processo no qual os entes se manifestam enquanto entes, é o processo, a estrutura dinâmica fundamental que impregna e está na fonte do pensamento ocidental. Trata-se portanto do modo de ser fundamental.

Hoje, quando falamos de ente, logo pensamos no objeto, na coisa diante de mim.

Essa coisa, dizemos nós, me está presente, me aparece, se me revela, se me manifesta, me surge, se me coloca em frente, está ali como o manifesto etc.

O pronome “me” indica o sujeito a quem o ente se manifesta. Mas esse sujeito ele mesmo também é somente enquanto está presente, aparece, se revela, se manifesta, surge, se coloca em frente, está aqui como manifesto, isto é: enquanto ente.

Surge assim a pergunta: em que consiste pois o processo em que tudo – incluindo o próprio sujeito a quem tudo se manifesta – se torna presente como ente?

Esse processo, dissemos, chama-se desvelamento.

O homem somente se torna homem, quando se abandona, se abre a esse desvelamento. Somente então ele é ek-sistente. Abandonar-se, abrir-se, deixar-se levar pelo processo de desvelamento é expor-se (ex-por) à manifestação do ente, pois o desvelamento é o processo no qual o ente se manifesta como tal. Esse abandono ao desvelamento se chama ek-sistência. É, portanto, na ek-sistência que o homem surge como homem no meio dos entes que se lhe manifestam como tais. Ex-sistência liberta o homem como homem, tornando-o o lugar de manifestação do ente.

Mas como é, em que consiste essa experiência originária ek-sistente, ex-positória ao desvelamento?

Os gregos a denominaram: alétheia, o desvelamento. Esse processo-vida chamado desvelamento é o que os gregos entendiam por physis, natureza.

Para nós que entendemos a natureza como o mundo de entes opostos ao espírito, ao sujeito, portanto dentro do esquema sujeito-objeto, torna-se difícil entender o que seja physis, natureza como o processo de “presença que eclode” (p. 34).

Trata-se da experiência originária na qual, pela qual, tudo nasce (natureza nascer), vive, se torna vida, se manifesta, se liberta para a Vida.

Sempre sob o risco de sermos entendidos psicologicamente, de nos expressarmos inadequadamente com termos “coisistas”, vamos procurar intuir o como dessa experiência originária, por meio de exemplos. Peço enfocar não as coisas que ocorrem no exemplo, mas o modo de ser, o “como” insinuado nos exemplos.

Depoimentos de Eugène Ionesco, tirados do livro Diálogos com Eugène Ionesco, Claude Bonnefoy, Rio de Janeiro: Editora Mundo Musical Ltda., 1970.

Eu morava numa casa muito bonita, muito antiga. Não era um castelo, era uma velha herdade que se chamava “O Moinho”. Na verdade, era um velho moinho declarado sem utilidade pública depois de cem anos… Esta casa ficava num local extraordinário, no cruzamento de três ou quatro caminhos, um lugar rodeado de colinas, de todas as pequenas colinas, de bosque… Era exatamente um ninho, um abrigo. Eu tinha já, naquela casa sobremodo sombria, como todas as casas do campo o eram naquele tempo, um sentimento extraordinário de conforto… Tudo se prestava à simbolização. Como morávamos no fundo do pequeno vale, devíamos, para ir ao povoado, subir um pequeno outeiro que chamavam de “Le Roquet”. O que principalmente se avistava ao escalar-se este outeiro era, alto, o campanário. Lembro-me de certa manhã muito feliz, muito luminosa, em que eu ia em trajes domingueiros rumo à igreja. Vejo ainda o céu azul, e, recortando-se no céu, a agulha da torre da igreja. Os campanários, eu os entendo. Havia o céu, havia a terra, a união perfeita do céu e da terra. Creio que certos psicanalistas, os adeptos de Jung, dizem que sofremos porque sentimos em nós a separação do céu e da terra. Ora, lá havia verdadeiramente a união do céu e da terra. É agora que tento explicar-me por que a gente se sente assim feliz. Naquela época, eu vivia aquele paraíso. Havia as cores, as cores estimulantes dum frescor e duma intensidade que nunca mais terão, ganvílias na primavera, o caminho que se abria. Aquilo também era misterioso, aquilo também tinha uma significação profunda, uma verdade elementar. No inverno, o caminho era lamacento, verdadeiramente fechado. Não se podia atravessá-lo. Depois, de repente, havia como que uma transfiguração da paisagem. Tudo se enchia novamente de flores vivas, de esquilos, de pássaros canoros, de insetos dourados… Era realmente, eu o sentia, a ressurreição daquele mundo de lama, de árvores petrificadas, das quais os braços se estendiam, retornando à vida (p. 8-9).

A luz é o mundo transfigurado. É, por exemplo, na primavera, a metamorfose gloriosa do caminho lamacento da minha infância. De uma só vez, o mundo adquire uma beleza inexplicável. Quando eu era mais jovem, possuía reservas luminosas. Isso começa a minguar… eu me encaminho para a lama. Lembro-me que certo dia um pessimista chegou a minha casa. Naquele tempo, eu morava num rés-do-chão, à Rua Claude Terrasse. Minha filha era ainda um bebê e não dispúnhamos de muito espaço: havíamos posto sua roupa a secar dentro de casa. Ora bem, este amigo chegou dizendo que aquilo não era vida, que a vida não era bela, que havia a indignidade, a tristeza, que tudo era sórdido, que nossa casa era triste e feia etc… E eu no cordel ao meio do quarto – “é muito bonito isso”. O amigo me olhou, admirado e desdenhoso.

“Sim – insistia eu – basta saber olhar bem, é preciso ver. É admirável. Não importa qual seja a maravilha, tudo é uma epifania gloriosa, o mais pequeno objeto resplandece”. Porque, repentinamente, eu tivera a impressão de que a roupa, sobre o cordel, era duma beleza insólita, o mundo virgem, refulgente. Eu conseguira vê-la com olhos de pintor para suas qualidades de luz. A partir disso, tudo parecia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo, veja essa casa em frente à minha. Ela é feia, com suas janelas triangulares. Pois bem, ela resplandece, se eu a olho com amor e boa vontade; quero dizer, ela se ilumina subitamente, é um fato que se manifesta. Todo o mundo pode ter essas impressões (p. 22-23).

Frescor, nitidez, vivacidade, luminosidade, limpidez, pureza, originariedade, a nascividade: isto é o desvelamento como Vida.

Tudo isso são qualidades objetivas estáticas da coisa, não são projeções subjetivas do eu-sujeito-aqui, mas sim processo-vivo, presença que eclode, fazendo manifesta cada coisa na sua nitidez, frescor e vivacidade, na sua identidade, revelando o ente enquanto tal. Como processo é movimento, ele vai e vem, ora abrindo para a manifestação luminosa, ora fechando para a opacidade. Esse movimento revelador e vivificador é a “natureza” no sentido de physis, a nascividade.

Mas por que o termo des-velamento? Desvelar é desencobrir algo escondido. O que é escondido? O que é que se revela? Como entender o desvelamento em relação ao frescor, vigor, nascividade da physis?

Rosto de uma mulher. Pálpebras fechadas, serena, leve vibração de pudor, séria mas não rigorosa. Aqui percebemos um “encobrimento”. O rosto está “fechado”, virado para o interior, palpita suavemente numa vivacidade contida para dentro. Nesse “encobrimento”, nesse “esconder-se para o interior de si mesmo” se torna presente, se manifesta, se desvela a interioridade feminina.

De repente ela sorri. Levemente. Dizemos: o rosto se abriu num sorriso. Brilham os olhos na sua profundidade. O rosto parece emergir do profundo “esconderijo”. O sorriso se revela, se manifesta, se desvela. Mas ao se desvelar como um sorriso no seu frescor e inocência, torna-se o que ele é nele mesmo, na consistência viva de um sorriso; há portanto um “encobrimento”, um “fechamento”. Pode-se observar isso nos rostos que aparecem na televisão: rostos de criança, de jovem, da mulher, do homem, dos velhos, dos funcionários, dos soldados, da dona de casa, dos comerciários, dos artistas etc. e tentar ver em que consiste o fechamento e abertura em cada caso.

Abrir-se e fechar-se; desvelar e velar; dar-se e conter-se; livrar-se e reter; ex e sistência, o equilíbrio harmonioso, sensível desses dois movimentos no presente de uma presença viva, límpida, cristalina e nítida, eis o que constitui o movimento (ex) que siste (sistência) como a manifestação do ente como ente. Desvelamento portanto não significa des-cobrimento de algo existente escondido, mas sim o movimento contínuo de Vida que ao desvelar se constitui como ente.

Ek-sistir é por isso deixar que aconteça esse equilíbrio da Vida, deixar-se carregar por esse ritmo e essa pulsação de equilíbrio do des-velamento-velamento que é a Vida, o suco, a essência, o vigor, a energia do ente, a sua manifestação.

Só quem palpita nesse movimento vive como homem.

Viver assim é abrir-se “ao ente em sua totalidade, percebido sob a forma de uma presença que eclode”.

Viver assim é ser livre, não livre no sentido de poder fazer isso ou aquilo, mas de deixar-ser-o-ente como desvelamento da Vida, como o lugar da libertação do ente na sua manifestação.

O desvelamento do ente em sua totalidade como Vida, marca o início da História. Pois essa estrutura ek-sistencial do ser-homem como Liberdade é ela mesma a estrutura da História.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Que relação existe entre a ek-sistência e a História?

O texto: “Se, entretanto, o ser-aí ek-sistente, como deixar-ser do ente, libera o homem para a sua “liberdade”, quer oferecendo à sua escolha alguma coisa possível (ente), quer impondo-lhe alguma coisa necessária (ente), não é então o arbítrio humano que dispõe da liberdade. O homem não possui a liberdade, como uma propriedade, mas antes, pelo contrário: a liberdade, o ser-aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem e isto tão originariamente que somente ela permite a uma humanidade de inaugurar a relação com o ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboça toda a história. Somente o homem ek-sistente é historial. A “natureza” não tem história” (p. 35).

Peço ter bem presente o que dissemos nas reflexões anteriores sobre a ek-sistência.

Ela é abandonar-se ao processo de desvelamento da physis. Ela é deixar-se carregar pela pulsação da nascividade libertadora dos entes. É deixar-se impregnar pela luminosidade da manifestação dos entes.

O modo de ser ek-sistencial é portanto receptividade, algo como disponibilidade à nascividade que vem de “dentro”, é algo como deixar-se conduzir, ou melhor, eduzir.

Quando falamos de liberdade na linguagem comum, imaginamos essa liberdade como o meu poder (possibilidade) de fazer isso ou aquilo, de não fazer isso ou aquilo, fazer ou não fazer assim. Tudo quanto limita esse poder é algo necessário (necessidade). Possibilidade e necessidade indicam portanto o âmbito dentro do qual o meu poder de escolha, o arbítrio humano dispõe da liberdade, campo de ação.

Mas donde vem esse “poder”? Donde vem esse âmbito do meu poder, dentro do qual algo aparece como possível, algo como impossível, outro algo como necessário?

Que eu, dentro desse âmbito, tenha a escolha, é explicável pelo arbítrio humano. Mas que este âmbito com sua regra de jogo e espaço, sua possibilidade e necessidade, me é dado, não posso mais explicar pelo arbítrio humano.

Esse âmbito eu não o escolhi. Pois escolher me é só possível já dentro desse âmbito de possibilidade e necessidade. O âmbito da minha liberdade, a possibilidade, a impossibilidade, a necessidade do meu poder já está ali aberto, dentro do qual eu me livro para o meu arbítrio de escolha.

A abertura do âmbito da minha liberdade de arbítrio não a possuo eu, ela não está sob o meu poder. Antes, pelo contrário, é ela que me tem sob o seu poder, sob sua condução e disponibilidade. Liberdade é portanto a disponibilidade à condução do poder que me domina como Vida dos entes, como o desvelamento dos entes.

Mas o que tem a ver tudo isso com a História? Como entender a frase de Heidegger: “A liberdade, o ser-aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem, e isto tão originariamente que somente ela permite a uma humanidade de inaugurar a relação com o ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboça toda a História” (p. 35)?

Notemos que o texto diz: a liberdade, o ser-aí, ek-sistente e desvelador. Aqui, pelo modo de dizer, a Liberdade, a Ek-sistência e o Desvelamento são uma e mesma “coisa”.

Liberdade, Ek-sistência, Desvelamento são três termos para indicar a experiência de um fundamento original oculto do homem, a experiência do ser-aí (p. 31).

Essa experiência do ser-aí nós a caracterizamos na reflexão anterior como pulsação da vida ou Vida simplesmente.

Essa vida chamamos também de physis, natural no sentido de nascividade.

O exemplo do depoimento de Ionesco nos serviu para evocar os traços de uma tal experiência originária em nós mesmos. Mas todo o problema de compreensão reside nisso que, ao tematizarmos os traços de uma tal experiência, ao usarmos palavras como Vida, pulsação da Vida, Vivacidade, Luminosidade, Transparência, Nitidez, Vigor etc., sem o querer, os concebemos como estáticos, como “algo”.

Se, porém, sem deixar-nos fixar por tais tendências estatizantes, tentarmos ficar na evidência da experiência, talvez consigamos observar o seguinte: a vivacidade, a luminosidade, a transparência, a nitidez, o vigor é por assim dizer a plenitude de tensão, o equilíbrio da pulsação. O que percebemos como estático p. ex. a transparência, nitidez, luminosidade não é propriamente estático, parado, mas sim o resultado de uma energética contida, a tensão da serenidade de uma energia armazenada, carregada que está prestes a saltar a cada convite. Com outras palavras, atrás da serenidade se esconde a tremenda tensão do equilíbrio entre a energia de expansão e a energia de contenção. Se a tensão perde o seu meio do equilíbrio e tende a acentuar a expansão, a Vida se esvai, o sentido da vida se torna inflacionário, ameaça a morrer na inanição, no esvaziamento, ou desbotamento. Se a tensão perde o seu meio de equilíbrio e tende a acentuar a contenção, a Vida se fossiliza, o sentido da vida se torna asfixiante, fechado, na linha do endurecimento, falta de espaço vital, estarrecimento.

Como porém, conceber esse equilíbrio-tensão, a fonte da pulsação vivificadora, a fonte da luminosidade e nitidez na vivacidade?

Em geral, como nós só percebemos a superfície serena, a face harmoniosa do equilíbrio, esquecemos o processo e a fases de movimento armazenados no interior da tensão harmoniosa.

Se nos colocarmos por dentro de uma tal plenitude de tensão, percebemos que ela não é simplesmente um espaço homogêneo cheio de energia contida, mas sim um mundo de tendências, oposições, níveis e camadas de energia, articulados entre si, mundo coeso e organizado numa totalidade única como concreção.

E, se seguirmos a gênese dessa concreção, percebemos que os passos dessa concreção para a totalidade se realizam num movimento que poderíamos chamar de superação.

Em que consiste pois essa estrutura de superação?

Talvez um exemplo possa nos mostrar o modo de ser na superação.

Você é dramaturgo. Um dia, de repente, ocorre-lhe uma idéia estranha. A idéia de um homem que não consegue morrer. Ele morre, mas quando todos o consideram morto, ressuscita. Essa idéia o fascina. Você lhe dá osso e carne. Ele vai se chamar Wolfgang Schwitter, um eh…, digamos, sim, talvez… bem, esse Schwitter vai ser o portador do prêmio Nobel, já que estamos na época de coleção de troféus.

Schwitter vai dar o primeiro passo da sua estória. Para onde vai? Digamos para o atelier de um pintor. Já que deu o primeiro passo, esse condicionamento implica num passado. Donde ele parte? Bem, digamos duma clínica. Espere ali, do necrotério de uma clínica moderna. Mas já que vai a um atelier, para esse passo deve haver no passado um motivo. Bem, vamos dizer que ele antes de começar a escrever foi um pintor. Pintor medíocre com pretensões. Fracassou e por isso começou a escrever e acabou ganhando o Prêmio Nobel. O primeiro passo, assim dado ao acaso, em direção do atelier de um pintor, acaba implicando num passado desse passo: Schwitter foi um pintor fracassado. Que se realizou na literatura. Mas por que volta ao atelier? O passo se dirige para o atelier. O passado do pintor fracassado implica no futuro do passo que deu na direção do atelier. Vai ali, para morrer ali. Quer morrer ali, porque a vida literária não lhe matou a saudade pelo primeiro amor da vida, a pintura. Entra no atelier. Ali vamos fazê-lo encontrar-se com um pintor que é também fracassado com pretensões. Schwitter entra, cambaleia e cai. Suor frio, olhos virados. O Pintor se espanta. Leva-o à cama. Ali ao lado numa outra cama, um mulher virada de costas, nua. Está sendo pintada, um modelo portanto.

Todos esses passos e acontecimentos são condicionados pelo primeiro passo de Schwitter que implicou na criação de um passado como portador do Prêmio Nobel que é um pintor fracassado. Mas esses acontecimentos futuros ao primeiro passo implicam em novas facetas do passado do nosso herói. O homem está moribundo. Pudera, ela já estava no caixão. Ele saíra de gatinhas de baixo dos ramalhetes de flores que o enterravam, saíra do necrotério para morrer no atelier de pintura onde outrora trabalhara. A estória continua. Cada passo que acontece, traz nova revelação, novo sentido do passado de Schwitter, cria condições para novos acontecimentos futuros, estes por sua vez criam novas implicações do passado. Assim aos poucos a personagem fictícia que iniciou por assim dizer o seu passo do nada, com o primeiro passo vai se emaranhando numa rede de sentidos, vai se formando ao redor dele todo um mundo de acontecimentos, encontros, pessoas, relacionamentos, coisas. Cada passo vai retomando a totalidade do sentido já constituído, portanto, do passado, vai criando novos arranjos como nova possibilidade do futuro, num processo de reintegração e abertura de horizontes. Processo de contenção e expansão. Concresce assim o conteúdo do homem que queria morrer mas não conseguia morrer, conteúdo esse que vai se amarrando cada vez mais para um mundo de totalidade dos entes, cada vez mais coeso, unitário e necessário. Cada passo é superação do que já se passou, do que já se foi, e ao mesmo tempo abertura do âmbito de possibilidade que está implicada naquilo que se foi e se é. Cada passo é uma decisão que vai traçando o fio da estória desse hapening, fio esse que cada vez mais vai se tornando único e sem escolha.

É portanto um desdobrar que ao mesmo tempo implica no enrolamento para um todo chamado mundo. E quando esse processo chega à sua saturação, onde todas as implicações e explicações forem por assim dizer articuladas numa totalidade coesa, necessária, tensa mas equilibrada, o herói Schwitter surge como uma figura, uma Gestalt, como uma obra de arte dramático-cômica.

Esse processo de desdobramento que cria no movimento de auto- implicação e autoexplicação todo um mundo coeso na sua imanência a partir de um acaso, chama-se o processo de superação. Essa estrutura é a estrutura da estória. Vista de fora como totalidade essa figura cristalizada como a obra de arte dramática parece um bloco monolítico, pleno, vigoroso, transparente e nítido. Vista por dentro é todo um mundo de movimentos que se articulam numa estória. Ora, isto é a estrutura da História. Essa estrutura é a própria essência, o próprio processo da história. Vida, Nascividade é ser cada vez a coesão equilibrada, cheia desse processo complexo da História.

Se o processo me leva a uma coesão cristalizada do equilíbrio na totalidade de uma obra de arte, como no caso de Meteoro, de Friedrich Dürremat, o qual usamos acima como o nosso exemplo, então há a nascividade da Verdade, então houve o “deixar-ser-o-ente-na-sua-totalidade”, houve a Liberdade, o Desvelamento. Mas esse processo pode ficar bloqueado, pode endurecer, ou pode ficar frouxo e sem coesão interna na sua necessidade articulada. Nesse caso surge o erro, o velamento, o encobrimento, a dissimulação (p. 36).

Esse encobrimento ou velamento no entanto está sempre presente como condição da decisão, em cada passo que se dá nesse processo da estória. Pois cada passo que se dá, retoma aquilo que já foi, abre-lhe nova chance de ser, mas ao mesmo tempo no processo de reintegração o faz contrair para um novo é. O é atual do passo na decisão do presente é o fio infinitesimal de equilíbrio, onde na passagem do foi para o será se revela cada vez a implicação da totalidade do processo. Esse vislumbre da totalidade é o desvelamento. Mas esse desvelamento, simultaneamente com o seu fulgor momentâneo, já se contrai para um é, que logo após se tornará foi para a nova chance do será.

Entregar-se, abandonar-se ao desvelamento, ek-sistir, ek-sistência, sistir no ex, significa portanto: abrir-se ao vislumbre infinitesimal do desvelamento no agora da passagem e contrair-se para o encobrimento do “é” e “foi”, procurando fazer transparente essa contração à luz desse vislumbramento. A contração é a situação, a encarnação, a concretização que contrai a luminosidade do desvelamento numa concreção: isto é o erro como encobrimento. Essa concreção no entanto recebe a sua luminosidade somente a partir da luz do desvelamento. Quanto mais transparente se torna a contração à luz do desvelamento, tanto mais se adapta à essência da Verdade.

NB: sinto muito que essa reflexão se tornou um tanto obscura. Para mim no entanto é clara até certo ponto. É bom ler essa reflexão e sob seu enfoque tentar compreender o texto de Heidegger, capítulo 4 e 5. Esse estudo é a preparação para a próxima reunião. Ali discutiremos o que não se entendeu.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

O capítulo 5 procura sucintamente dizer em que consiste a essência da verdade, à luz do que foi dito nos capítulos anteriores. E revela a essência da verdade como a presença do ente em sua totalidade que se manifesta na vibração do equilíbrio entre o desvelamento e o velamento.

O capítulo faz mais ou menos os seguintes passos de pensamento:

  1. Resume o que foi dito nos capítulo anteriores:

– a essência da verdade = liberdade.

– a liberdade = abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade e enquanto tal.

– esse abandono = disposição de humor.

  1. Mostra que essa liberdade (disposição de humor) não deve ser entendida psicologicamente.

3 Mostra que o ente em sua totalidade, revelado pela liberdade (disposição de humor), não é a soma de entes realmente conhecidos. Não coincide com o ente em sua totalidade científica.

  1. Mostra o modo da presença desse “o ente em sua totalidade”: o modo de presença é ambiguidade: desvelamento e velamento.
  2. Conclui, insinuando a tese: pertence à essência da verdade tanto o desvelamento como velamento.

Não sei se você percebeu o seguinte. Ao ler o texto, ao discutir, temos a dificuldade de compreender. Entendemos as palavras. Ligamos formalmente as frases, entendemos a sequência, a lógica dos trechos. Mas não vemos a “coisa”. As palavras como ek-sistência, desvelamento, velamento, o ente em sua totalidade vão e vêm na nossa mente como fantasmas vagos, indeterminados, acompanhados de certas imagens esporádicas que nos dão a impressão de compreensão, mas que nos deixam insatisfeitos, pois, não temos nada de palpável na nossa mão.

Por isso, o pensar filosófico nos dá a impressão desagradável de abstrato, inutilidade, alienação.

É nesse sentido que lemos na p. 38:

Este “em sua totalidade” jamais se deixa captar a partir do ente que se manifestou, pertença ele quer à natureza quer à história. Ainda que este ‘em sua totalidade’ a tudo perpasse constantemente com sua disposição, permanece, contudo, o não-disposto (não-determinado) e o não-disponível (indisponível, indeterminável) e é, desta maneira, confundido, o mais das vezes, com o que é mais corrente e menos digno de nota.

Este afastamento do “ente em sua totalidade” se chama dissimulação do “ente em sua totalidade” (p. 38).

Essa dissimulação pertence à essência da verdade. Nós devemos contar com ela.

Mas na prática concreta da nossa leitura, o que fazer para não “boiarmos” na vaguidade e indeterminação de um compreender casual, esporádico, uma espécie de anemia do pensamento?

A resposta, você mesmo pode descobrir seguindo as indicações dadas por sua própria experiência. Ao ler os termos como “desvelamento”,  você percebe imediatamente como a partir dessa palavra a sua mente tende instintivamente a algo visível que possa dar um conteúdo sensível concreto ao conceito “abstrato”. Você procura ilustração, exemplos que podem ser fixos para ajudar a fazer mais nítido o que o pensamento lhe sugere vagamente. Essa fixação é necessária. Mas traz consigo o perigo de coisificar a intuição, confundido o pensamento com o exemplo. Por isso é mister ficarmos continuamente no processo: seguir a tendência da concretização, trazer ante os olhos um exemplo, mas a partir da ilustração voltar ao pensamento. Ilustrar dali o pensamento e ao mesmo tempo iluminar o exemplo a partir do pensamento. Procurar portanto balancear num contínuo vai e vem entre pensamento e exemplo. Não se fixar em nenhum deles, mas entrar na jogada desse processo de abertura (pensamento) e fixação (exemplo) e fazer surgir desse jogo de vai-e-vem uma intuição clara, dinâmica e viva daquilo que se manifesta, no processo. Percebe você que este processo de vai e vem entre a abertura e fechamento é justamente o processo descrito como a essência da verdade: desvelamento e velamento?

A seguir vamos tentar ilustrar o capítulo 5.

Vimos nos capítulos anteriores como a essência da verdade se desvelou como liberdade.

Em que consiste a liberdade?

Liberdade consiste em: “deixar-ser ek-sistente que desvela o ente”. Como entender isso?

Verdade, na acepção usual, é a adequação de uma enunciação com o ente. Enunciação é um comportamento seu em relação ao ente. O seu comportamento corresponde ao ente. Mas, para que o seu comportamento possa corresponder ao ente, tanto o seu comportamento como o ente já devem estar “afinados” um para o outro, isto é, estar em harmonia. Devem portanto estar já-pré-dispostos um ao outro.

Esta pré-disposição é o que o capítulo chama de “disposição de humor”.

É o que chamamos de abertura originária, ek-sistência, abandono ao desvelamento, liberdade.

Por que se chama: disposição de humor?

Por que essa abertura totalizante da liberdade que é abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade se deixa exemplificar de uma forma muito visível no que chamamos de humor? P. ex. você levanta com pé esquerdo. Está de mau humor. O mau humor “afina” todos os seus comportamentos, de antemão, com o sentimento de descontentamento. Predispõe cada um dos seus comportamentos do dia.

Esses comportamentos, desde a hora em que você acordou, já estão por assim dizer dentro do âmbito do mau humor. E cada comportamento, no qual você se abre ao ente, vibra na frequência da abertura totalizante do mau humor. E cada comportamento corresponde então ao modo mal-humorado da manifestação do ente.

A disposição do humor é portanto a condição prévia, anterior, para que possa se estabelecer o relacionamento do meu comportamento mal-humorado com o ente que se me manifesta também como tedioso, irritante, adverso.

Mas a gente poderia objetar ao capítulo 5, dizendo que essa tal disposição de humor é coisa velha, já conhecida aos psicólogos. Esta disposição de humor não é outra coisa do que a “vivência”, “o estado de alma”, “um sentimento”. No fundo uma tal explicação do desvelamento do ente em sua totalidade não passaria, segundo essa objeção, de explicação subjetivista do mundo. É claro que a gente vê tudo preto, porque o estado da alma da gente está “escuro” pelo mau humor. Explicação subjetivista, particular, privada, uma teoria ultrapassada do século XIX etc. etc.

Examine-se a si mesmo se, ao ler Heidegger, você não está entendendo tudo ainda “psicologicamente”. Uma compreensão assim seria ingênua.

Heidegger chama atenção do leitor contra essa falsa interpretação daquilo que ele chama de liberdade como disposição do humor.

Na p. 37 Heidegger tenta refutar essa interpretação psicologista em algumas frases.

O exemplo de cima do mau humor, citado acima, não nos ilustra muito bem em que sentido a liberdade é o abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade. Como entender: em sua totalidade?

No dia do mau humor, quando estou pré-disposto ao sentimento do mau humor, o cachorro que brinca na rua se desvela como esse ente desgraçado que me agride com suas gracinhas caninas ridículas, merecedoras de um pontapé. A totalidade se refere ali ao meu mau humor, a esse “algo” envolvente, não porém ao ente na sua totalidade. O ente aqui é esse cachorro singular. Em que sentido ele aparece na sua totalidade?

Para ilustrar essa totalidade fosse talvez mais interessante pegarmos um outro exemplo.

Quirino, numa reunião mencionou a resposta laconicamente magistral do seu pai diante da majestade rochosa da montanha, via Paraná-Santa Catarina. Diante do entusiasmo poético-místico do filho, o pai: “Não sei porque tanto barulho!… Lá não posso plantar nada!”

É necessário observar nitidamente essa resposta. O entusiasta pela paisagem dirá: “paciência, não tem dimensão pelo belo. Aqui há um velamento de uma totalidade. O ente em sua totalidade chamado majestade, cristalizada na nitidez e grandeza dessa massa compacta de granito, não se desvela ao camponês”.

Esse esteta no entanto deixa escapar uma coisa. Que nesse velamento, nesse esconder-se, houve de fato o desvelamento de uma totalidade. Ao se velar, se desvela uma totalidade: houve a dissimulação. Em que sentido?

O que significa: “La não posso plantar nada”?

Significa: essa pedra seca, deserta de vida, sem água, sem o húmus negro e suculento da terra, não serve para o plantio. Isto é, pode ver no granito majestoso a pedra inútil, quem está pré-disposto dentro de uma abertura vital, de vida e morte, que se chama plantar. Plantar para o camponês é o seu mundo. Sua vida. O sustento. O sol, as vicissitudes da fome, sua família, vida ou morte dos seus filhos, negócio, a angústia da colheita incerta, a festa dos trigais ondulantes, a educação dos filhos, a felicidade da sua mulher, seu prestígio etc.

Com outras palavras: na ausência da possibilidade de plantar, se desvela a totalidade do ente chamado plantio.

Depois desse excurso, vamos analisar como o ente em sua totalidade se desvela ao camponês.

Um camponês e o seu campo.

Campo é um ente. Plantar é um comportamento. Enunciação: esse campo é bom para plantar. O campo é este ou aquele ente particular. Não é totalidade. Relacionamento “plantar” nesse campo é um comportamento. Não é totalidade.

Isto, considerado à primeira vista. O próprio camponês ao plantar, só percebe esse seu comportamento e este campo particular diante de si. O ente em sua totalidade está velado. Está dissimulado.

Onde está pois o aberto? O ente em sua totalidade? A disposição do humor? A ex-posição ek-sistente?

Heidegger diz na p. 37:

Todo o comportamento do homem historial, sentido expressamente ou não, compreendido ou não, está disposto e através desta disposição colocado no ente em sua totalidade.

O plantar é um comportamento do homem historial?

O ato de plantar como o movimento físico, fisiológico, biológico, psíquico etc. não é historial. Mas todos estes “atos” no comportamento concreto desse camponês estão por assim dizer antes de toda e qualquer interpretação “científica”, encravados numa determinada situação que é a Vida, isto é, a História desse camponês.

Você percebe aqui, quando dizemos Vida, pensamos na História de um homem e não vida como bios, vida como sucessão de dados da biografia, mas algo mais concreto, real, anterior a todas essas interpretações “delimitativas”?

Para vermos o comportamento historial do plantio em cujo processo se desvela o ente em sua totalidade, vamos recordar a canção argentina do último festival:

Pedro trazia a manhã às costas,
Pensando na Joana para a sesta,
Nas mãos trazia o trigo maduro,
E o amor puro como a terra,

Saboreando um mate, infindo como o tempo,
Minha pátria é o sulco da terra, contava Pedro,
Sou lavrador do campo alheio,
Tenho os pés velhos com o caminho,

Pedro Arado,
Pedro Terra,
Pedro Joana,
Pedro da Guitarra,
Pedro Ninguém,
Pedro, Pedro… etc…

O campo alheio que Pedro lavra, para nós que estamos fora, é um ente ao lado do outro ente. Para Pedro no entanto é a presença de todo um mundo que é a sua Vida: Joana, Guitarra, arado, terra, nada. O complexo de conflitos, lutas, amores, alegrias, humilhações, complexo que num processo de incorporação no plantar, nessa luta de vida ou morte pelo sustento e autorealização, se torna o habitat, onde eclode todo um mundo de significações vitais. Nesse pedaço de terra alheia está portanto presente a totalidade que constitui o sentido desse ente chamado campo. Mas não somente desse campo para esse indivíduo chamado Pedro, mas sim o sentido do campo como tal, como o sentido que perfaz a essência de todos os campos enquanto campo.

Um problema difícil de compreender é que esse desvelamento do ente “campo”, em sua totalidade, é a revelação do sentido não somente desse campo, para esse indivíduo Pedro, mas sim o sentido do campo em sua totalidade e como tal. ”Como tal” significa: de todos os campos enquanto campo.

Volta aqui aquele problema, lançado na última reunião: se a totalidade se torna presente nesse ente particular, na sua diferença singular, como é possível haver mais do que um único ente singular?

Heidegger na p. 37 diz: “O grau de revelação do ente em sua totalidade não coincide com a soma dos entes realmente conhecidos”.

Isto significa: para que haja a presença do ente em sua totalidade, não é necessário estar presentes todos os entes em sentido numérico. Ou melhor, a totalidade, da presença desvelada é outra da totalidade numérica. Existem também graus de revelação, isto é, graus de intensidade da totalidade. A totalidade no desvelamento não se mede pela extensão, mas sim pela intensidade. Com isso, esse campo assim é o exemplar, o típico (Gestalt) para todos os outros campos. O típico não é o coeficiente comum, a média comum de todos os indivíduos, o típico não é também a soma dos indivíduos. O típico é a forma originária, da qual os outros recebem o seu modo de ser.

Deixar-ser o ente na sua totalidade é fazer aparecer no ente todas as implicações “historiais” de uma vida, implicação que não se manifesta como explicitação desdobrada de algo já existente nesse espaço campo como que potências escondidas, mas sim na presença da concreção atuante. Essa presença da totalidade só se manifesta como processo, no qual devemos “andar” juntos com o caminhar historial da estória de Pedro camponês.

Somente no processo factual e real da estória (História) se nos revela o ente campo em sua totalidade.

Uma tal revelação, não me traz o vasto conhecimento sobre a composição química da terra, sobre a sua “história” no sentido historiográfico, não me mostra qual o rendimento e econômico optimal da área de x metros quadrados etc. “Não coincide com a soma dos entes realmente conhecidos”, diz Heidegger.

Trata-se antes de uma experiência, sob aspecto científico rudimentar, mas que tem uma intensidade e concreção do ser muito maior do que a extensionalidade horizontal dos conhecimentos científicos.

O que dissemos antes da revelação do ente-campo em sua totalidade no processo da estória de Pedro pode ser mal entendido. A presença da totalidade não é propriamente a totalidade dos fatos que constituem a história particular da vida de Pedro. Por outro lado, porém, a presença da totalidade se revela no processo da vida concreta de Pedro.

A totalidade que constitui o campo alheio lavrado por Pedro se torna presente como a concentração da presença do sentido cósmico da Vida. Esse sentido cósmico é que dá a nitidez e a transparência universal à vida particular de Pedro que se torna aqui um símbolo universal do camponês pobre.

Esse sentido se manifesta como disposição de humor, isto é, como Stimmung do ente em sua totalidade. É dessa “afinação” que surgem os interesses, os comportamentos do camponês, aos quais correspondem os entes “agrícolas”.

Na vida cotidiana de Pedro no entanto, embora essa Stimmung esteja presente, o interesse imediato e vivencial está voltado para esse pedaço do campo que hoje tem de lavrar, esse arado, essas sementes, essa planta, portanto, como este ou aquele ente. Que este ou aquele ente surja com o sentido na minha frente, isto está condicionado pela presença do ente em sua totalidade. Mas logo que se dá o desvelamento do ente em sua totalidade, justamente com esse desvelamento se dá a afluência concêntrica da totalidade no corpo desse ente particular. Essa afluência particularizante é o fechamento da abertura numa objetivação. Com isso se dá o velamento. Esse velamento é uma espécie de esquecimento da manifestação do ente em sua totalidade. Esquecimento em que se faz olvidar o âmbito da abertura, esquecimento que fixa o ente na sua aparência, hipostalizando-o como este ente particular. Esse velamento é dissimulação.

Com isso surge um conceito ambíguo de velamento.

O velamento como a “gestaltização” da abertura na nitidez transparente da presença universo-singular.

O velamento como a dissimulação: isto é, objetivação da “Gestalt” (o ente em sua totalidade presente como “Gestalt”) numa coisa.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Para o seminário de “Sobre a Essência da Verdade”, essa reflexão tenta ilustrar o que seja o desvelamento, o deixar-ser como liberdade e o historial.

Da morte livre

A expressão “a morte livre” parece insinuar a morte livremente escolhida. Mas a rápida leitura do capítulo deixa-nos em dúvida se de fato o texto pensa na morte natural ou morte livremente escolhida e causada por mim.

A morte, que fenômeno é esse, descrito por Nietzsche, seja ela suicida, seja natural?

Para ter acesso à morte a partir da qual o texto fala, é necessário examinar o horizonte dentro do qual acabamos de colocar a pergunta: a morte, que fenômeno é esse descrito por Nietzsche?

Essa pergunta pressupõe a morte como objeto da descrição. Um fenômeno observado no outro objeto do meu conhecer. O homem nasce, vive e morre. Vida como um trecho de tempo, com o seu começo, meio e fim. A morte é o fim como o ponto final de uma linha que inicia com o nascimento. A minha morte, nessa perspectiva, eu a percebo também como objeto do meu conhecer. Certamente, esse conhecer não é a morte que eu morro, mas sim a morte que eu concebo como antecipação, segundo o modelo adquirido através da observação da morte do outro.

A morte que eu observo no outro ou a minha morte concebida segundo o modelo da morte do outro; e a própria morte que eu vou morrer, morte que atinge também a possibilidade de eu conceber a minha morte como objeto… como se relacionam esses dois modos de ser da morte?

A nossa compreensão usual da morte quando dizemos “a morte, que fenômeno é esse? a morte daquela pessoa; a morte do meu pai; a morte de John Kennedy; depois da morte, virá o juízo e a ressurreição; na morte tudo se acaba etc. etc.”… já opera dentro de uma pré-compreensão do tempo.

Poder-se-ia examinar também a intencionalidade p. ex. das companhias de seguros, das empresas funerárias, as instituições clínicas, associações para o salvamento de vida etc. Provavelmente descobrimos como horizontes dessas objetivações, o mesmo modo de ser da morte, cuja pressuposição assinala uma determinada pré-compreensão do tempo que é idêntica com a nossa pré-compreensão usual do tempo.

Esquematizando ao máximo o modo de ser desse tempo usual, teremos a estrutura acima insinuada de um trecho de linha, cujo começo é o nascimento, cujo meio é a vida e cujo fim é a morte. É o modelo de sucessão progressiva do passado, presente e futuro. A nossa compreensão usual da morte se constitui dentro desse esquema de sucessão.

Examine-se a si mesmo para se tornar nitidamente consciente de como o nosso pensar está preso a esse modo de ser do tempo. E a partir dessa consciência, perguntar, será que a morte que eu vou morrer, pode aparecer como a morte, dentro do horizonte de uma tal temporalidade?

É bom também observar o processo da nossa indagação. A pergunta inicial “a morte, que fenômeno é esse?”, se transformou numa pergunta fundamental pela temporalidade da morte.

E a pergunta pela temporalidade não diz respeito somente à morte, mas também à vida. Pois, na compreensão usual da morte e vida, operamos dentro do horizonte da mesma temporalidade cuja estrutura se caracteriza como sucessão linear de passado, presente e futuro.

Portanto, a pergunta se amplia numa outra pergunta: será que o horizonte da temporalidade sucessiva é o horizonte adequado, onde a vida e a morte podem se revelar como elas são na verdade?

Dentro do processo da nossa reflexão nietzschiana, a resposta é negativa. Pois esse modelo de temporalidade usual já é o produto da Vida. A morte é justamente a impossibilidade dessa vida que serve como fundamento e origem do esquema da temporalidade sucessiva. Como tal a morte não pode ser pensada a partir dessa temporalidade-produto. Como pode algo pensar através da categoria de algo a sua própria impossibilidade, o seu próprio nada?

Nietzsche diz no capítulo sobre a morte livre: “A ensinamento que diz ‘morre a tempo’ ainda nos soa estranho” (cf. a tradução do livro…).

Na perspectiva do que dissemos acima, “morra a tempo” nos diz: a morte tem o seu próprio horizonte de temporalidade. Temporalidade que não se estrutura no esquema de tarde (futuro) e cedo (passado), esquema esse familiar ao nosso pensar da metafísica. Por isso o tempo da morte é-nos estranho, ainda estrangeiro.

Essa impotência do pensar diante da morte, nos leva a perguntar: como é possível experimentar a morte? Talvez possamos responder com muita cautela: a morte é experimentada como o que nos sobrevém.

O que quer dizer isso? Por que é necessário a cautela?

A cautela se refere à formulação: a morte é experimentada como o que nos sobrevém. Essa formulação está dentro do esquema: experimento algo chamado morte como objeto.

Essa morte-objeto não é mais originária. É o produto do horizonte da temporalidade-sucessão acima mencionada.

A morte enquanto morte é antes ela mesma um horizonte. Uma abertura, uma disposição ontológica, estrutura fundamental da vida que possibilita as “experiências”. Porque a vida já tem no seu seio uma abertura fundamental chamada morte, podemos pensar algo como objeto morte.

Mas esse pensar algo como objeto morte não é mais a experiência originária da morte. A experiência originária não é experiência de (sobre). É antes a própria abertura ontológica a partir da qual há a experiência de alguma coisa.

Por isso, a formulação supracitada “a morte é experimentada como o que nos sobrevém” deve ser corrigida. Possamos talvez dizer: a morte é a abertura fundamental da nossa vida, é a essência onipresente na nossa vida, é a própria estrutura da vida.

Mas essa estrutura tem o seu modo próprio de ser. Esse modo de ser pode ser caracterizado por um verbo: “sobre-vem”.

Portanto: a morte é a estrutura da vida que tem o modo de ser da sobreveniência.

Para compreender o que acabamos de dizer, vamos recorrer a um termo que na filosofia contemporânea substitui o termo vida, a saber, existência, que se escreve: ek-sistência.

Ek significa: abertura originária. Sistência significa: permanência, objetivação, corporificação.

A estrutura da vida humana é ek-sistência, isto é, a vida se constitui como o processo no qual se abre um horizonte dentro do qual surge, aparece, toma corpo aquilo que o homem é cada vez na sua concreção.

A dificuldade de compreender essa exposição vem certamente do meu modo desajeitado de formular, mas também de um pré-conceito que infecciona a nossa mente. Esse preconceito é o nosso bitolamento objetivista. Ou para ser mais exato: bitolamento subjecto-objetivista.

Bitolamento objetivista porque pensamos que a verdade para ser verdade deve ser ob-jectiva. E nem percebemos que o termo “objetivo” significa pro-jectivo. Ob-jecto é o que é pro-jectado. Projectado a partir donde? A partir de uma abertura, dentro de um horizonte.

Bitolamento subjetivista, porque ao ver que o ob-jecto é pro-jecto de abertura originária, dizemos: ah!, então tudo é subjetivo. E não percebemos que o subjetivo não é oposto ao objetivo. Quem diz objetivo, diz ao mesmo tempo subjetivo e vice-versa, como no caso da correlação: pai-filho, absoluto-relativo, dentro-fora, direita-esquerda etc.

Além disso, quando você, desconfiado, pergunta “não é tudo subjetivo?” não percebe que está concebendo o subjetivo como objeto, isto é: você está imaginando ou o outro ou a si mesmo como esse sujeito ali, à maneira de coisa que tem seus atos psíquicos, com os quais se relaciona aos objetos, existentes em si. E não percebe que considera tanto o objeto como o sujeito (lá e cá) dentro de um único horizonte coisista: tanto objeto como sujeito são “coisas”. Com outras palavras: quando você diz objeto e sujeito, você pode dizer isso, porque você já está dentro de uma abertura, onde algo como sujeito e algo como objeto se tornam possíveis, podem aparecer. Portanto, você já é ek-sistente de um modo todo especial.

O horizonte, a abertura originária por conseguinte é uma dimensão anterior ao sujeito e objeto. Por isso devemo-nos acautelar continuamente de não interpretá-la como uma simples vivência subjetiva psicológica. Você pode vivenciar algo subjetivamente porque você está dentro da abertura originária.

Depois dessa reflexão preventiva contra uma falsa objetivação do horizonte, vamos voltar à estrutura da ek-sistência.

Dissemos acima: ek é a abertura originária. Sistência é a permanência, a objetivação, a corporificação a partir e dentro dessa abertura.

Como devemos entender isso? Como um processo. Processo, como? como História. Ou melhor: como estória. A vida é pois estorial. O modo de ser da vida humana não é o modo de ser da pedra, da planta, do animal. Ele é estorial. Como?

Explicar o como do modo de ser estorial é muito difícil.

Pois no pensamento de quem fala e de quem ouve infiltram-se sempre de novo conceito e imaginação objetivados.

No entanto, se quisermos compreender ao menos um pouco o modo de ser da filosofia, é necessário tentarmos ver essa estrutura do processo estorial.

Por isso a seguir, uma tentativa de elucidação. Para isso vamos recorrer a uma figura desenhada por Raul Klee (cf. uma das enciclopédias, sob o verbete: Klee).

(entra ilustração)

Klee

Descrição:

A linha começa num ponto. É o zero do movimento, parado, ponto morto, como que a concentração de todas as energias da possibilidade desse ponto. Dou os primeiros passos, tateantes, indefinidos, inseguros. Começo a correr, aos poucos, a acelerar. Desse aceleramento, no ponto certo, no tempo certo, que nasce da acumulação do aceleramento, a partir dessa concentração energética dou uma guinada e levanto vôo, não num vertical explosivo inflacionário, mas sim numa curva que economiza e ao mesmo tempo acumula e retoma a energia já armazenada para um salto vigoroso e vertical para cima. Monto por assim dizer no vigor desse salto, deixo que o impulso me carregue até o ponto certo onde se esgota, aproveito então a curva da queda para montar num outro impulso cadente e deixo-me levar para um outro salto de âmbito maior que por sua vez, no tempo certo originante do impulso de curvatura, traça mais duas curvas que me impulsionam para um novo salto ascencional.

Esse salto resultante de todo o complexo dos saltos anteriores, é um pairar elegante que se esvai numa suavidade elegante e vigorosa da linha prolongada com ponta que não é um ponto final, mas sim a síntese de todo o processo.

Interpretação

Comparando a linha de Klee com o traçado ao lado, vemos claramente a distinção. A linha da Klee tem história. O traçado geométrico, não.

Mas em que consiste a história ou melhor a estória?

Consiste na estrutura processual, em que cada passo nasce do outro numa implicação de progressão que não é simplesmente uma evolução, mas sim a constituição, a criação do destino. Nesse sentido cada momento retoma os passos já percorridos para dar-lhes novo sentido dentro da totalidade que brota do acúmulo da energia da situação presente, decidindo com isso o rumo do passo seguinte.

O tempo nessa estrutura não é uma sucessão de trechos homogêneos, cronológicos. Antes, cada passo constitui o cairós, isto é, o tempo da decisão. Há portanto momentos exatos de guinada, momento exato onde o impulso perde o seu fôlego, para deixar-se cair, há momento exato, onde a queda se transforma em novos impulsos, há também o momento exato, onde todo o élan se esvai num esgotamento necessário. O momento exato é o tempo. O tempo da estória é o tempo da decisão. O tempo oportuno. A hora (cf. a Bíblia).

Esse tempo oportuno não é previsível, não é calculável, ele nasce no seio de um processo que concresce (concreto!) de dentro como o acúmulo de vida que num certo ponto crítico salta para uma nova decisão, dando com o salto uma nova orientação à totalidade do processo. O ponto oportuno deve ser por isso nem mais nem menos. Se for demais, é demasiadamente tarde, se for cedo, não é a tempo (cf. Nietzsche, Da morte livre).

O ponto final não é um ponto de chegada como no caso do traçado geométrico, mas como que a última ressonância da totalidade. Nesse último acordo-harmonia, está todo o presente na retomada que é mais um remate da obra de arte do que um ponto final. Quanto mais se avança, mais se torna presente o passado como a presença da totalidade. De tal sorte que o fim é lá onde se revela a vida como estória na sua totalidade.

Morte, nessa estrutura, portanto, não é o fim, mas sim a revelação, o desvelamento da totalidade na sua estoricidade. Morte e Vida coincidem nessa estrutura.

Experimente agora imergir no movimento desse processo e andar (andar junto com o processo se exprime em alemão pelo termo: erfahren, er-fahren: andar junto. Ora erfahren significa: experimentar) o caminho dessa linha, concrescendo com a sua estória. Isso é experiência originária. Você verá que os momentos da vida não são criados por mim, não estão sob o seu poder de dominação. Eles lhe sobre-vêm. Isto é, a sua atitude é de auscultar no caminhar. Qual o atleta que, ao correr, vai auscultando a voz da energia que cresce em si para o salto decisivo. A sua atitude é de abandono, de obediência. A sua vida portanto é uma abertura (ex) que deixa-ser a vida, acolhe a sobreveniência do tempo oportuno, e nesse abandonar-se se constitui (sistência) como a vida humana, isto é, como ex-sistência estorial. Isto é ser homem. Ek-sistência é ser homem, e ser homem é a abertura para a sobreveniência estorial.

Este abandonar-se à constituição estorial se chama liberdade.

Morte livre por conseguinte é um termo que resume essa estrutura do processo estorial.

A partir dessa estrutura, a partir desse modo de ser, desse horizonte você poderá compreender o capítulo da morte livre em Nietzsche, no qual ele descreve tipos deficientes do ser-humano, em que não se deu, não aconteceu essa sobreveniência, por terem sido intempestivos: cedo ou tarde demais, não no ponto oportuno do sazonamento.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Capítulo 6: A não-verdade enquanto dissimulação

Vamos fazer algumas considerações sobre o capítulo.

O capítulo tem duas partes.

A primeira parte vai da primeira alínea da p. 39 até à primeira alínea da p. 40, exclusive: “O velamento… do ente”.

A segunda parte vai da primeira alínea da p. 40 até o fim do capítulo: “A Liberdade… da verdade”.

O capítulo todo fala da não-verdade, do não-desvelamento, isto é, do velamento.

Na compreensão do velamento, porém, vibram dois momentos. O termo velamento é pois ambíguo.

O primeiro momento, tratado na primeira parte diz: o velamento é o mistério do Ser.

O segundo momento, tratado na segunda parte diz: o velamento é o esquecimento do mistério do Ser.

O título do capítulo “A não-verdade enquanto dissimulação”, traduz o termo alemão Verbergung com dissimulação. Pessoalmente haveria de traduzir o Verbergung com o termo: encobrimento. Pois encobrir pode significar: cobrir para defender, guardar, proteger, p. ex. as pálpebras fechadas encobrem as pupilas dos olhos: contém o mistério do olhar. Encobrir pode também significar: tapar, fechar, entulhar, fazer desaparecer, tolher.

Encobrimento como continência do mistério é o sentido do velamento na primeira parte do capítulo.

Encobrimento como tolhimento do mistério é o sentido do velamento na segunda parte do capítulo.

O capítulo é difícil de entender, pois a exposição, para nós que não vemos, parece muito abstrata. Para ter alguns fios de condução, precisamos de fenômenos. Com a devida cautela em não se fixar demais nos fenômenos, eis aqui alguns fenômenos que ilustram o velamento como continência e o velamento como tolhimento.

O velamento como continência do mistério

Existe um filme japonês que se tornou célebre no Ocidente e ganhou a palma de ouro em Cannes; chama-se: A porta do inferno. O filme, baseado numa estória budista da Idade Média japonesa, narra a tragédia de Kessa, assassinada pelo General Morito, em defesa da fidelidade conjugal.

Kessa, esposa do nobre Wataru Saemon-no-jo, serve como dama de corte no palácio do senhor feudal, de quem o seu marido é general. Um dia o palácio é cercado pelos inimigos. Torna-se necessário salvar a princesa real, a quem os inimigos queriam capturar como refém. Diante da supremacia da força inimiga, não há possibilidade de romper o cerco, a não ser por uma estratégia. A estratégia consiste em atrair a atenção do inimigo para a saída oriental do palácio, aproveitar a confusão e fazer escapar a princesa real pela saída ocidental. Para isso Kessa, livremente se oferece para entrar na carruagem real, simular a fuga da princesa pelo portão oriental. Morito, jovem oficial, com um pelotão de guerreiros decididos a morrer, acompanha a carruagem falsa e atrai a atenção do inimigo. Mas numa luta feroz, Morito consegue romper o cerco e salvar a Kessa, que está desmaiada. Ao ver a dama da corte, inconsciente, Morito fica apaixonado por ela.

Voltam os dias de paz. Morito tenta aproximar-se de Kessa. Esta o evita. Morito descobre que Kessa é a esposa do nobre Saemon-no-jo. Mas a sua paixão por Kessa aumenta. Jura possuí-la a todo custo. usando de um ardil, Morito consegue atrair a Kessa para a casa da tia dela, onde ameaça matar a ela e a seu marido se não aceitar o seu amor.

Levada pelo cuidado pela vida do esposo, mas na decisão de jamais quebrar a fidelidade conjugal, Kessa decide a morrer no lugar do seu marido. Ela diz sim à proposta de Morito, mas com a condição de ele na mesma noite matar o seu marido. Ela promete deixar a porta do quarto de Saemon-no-jo aberta, para que Morito o possa matar. (Na Idade Média, os casais dormiam em quartos separados). Volta à casa, finge alegria, convida o marido a tomar vinho, o embriaga, fá-lo dormir no quarto dela e a própria Kessa vai dormir no leito do marido. À meia-noite Morito assassina a Kessa, pensando ser Sae-mon-no-jo.

A cena do encontro, onde Kessa se decide a morrer, é muito sóbria.

Não há violências externas. Há, porém, na expressão do rosto uma intensa luta de sentimentos.

A câmara mostra o rosto de Kessa. Delicado, profundamente feminino, aparentemente tranquilo. Mas nessa serenidade de fraqueza impotente, perpassa um tremor quase imperceptível, qual um hálito de vento na superfície tranquila do lago, e numa fracção de segundos se revela a agitação das profundezas.

Há um silêncio prolongado. Na tensão desse silêncio, Kessa pronuncia a palavra sim. Ao dizer sim, fecha os olhos, lentamente. Todo o rosto se vela numa tranquilidade serena. Poder-se-ia dizer: o sim são as pálpebras fechadas numa concentração interior. As pálpebras cobrem o abismo da dor que se rasgou por instantes, quando o tremor sacudiu a superfície do seu rosto. As pálpebras trêmulas numa vibração imperceptível, serenas, con-têm, cobrem, guardam todo o pudor da dignidade feminina ultrajada, dor, ternura do amor ao esposo, cuidado pela sua vida, medo, saudade, tristeza, ódio, a decisão inabalável de manter a sua fidelidade, o abandono da fraqueza entregue à ameaça da morte.

Esse encobrimento que ao guardar, ao fechar, revela o âmago do Ser, esse desvelamento no velamento é o que Heidegger chama de não-verdade, enquanto encobrimento. É o Mistério do Ser, a Presença da Totalidade do ente na sua interioridade, o reino “não-experimentado e inexplorado da Verdade do Ser” (p. 40).

Podemos, portanto, dizer que a não-verdade, isto é, o não-desvelamento, ou seja, o velamento, o encobrimento pertence essencialmente ao desvelamento como o avesso do verso de uma folha. É por assim dizer anterior ao desvelamento pois o mistério consiste na interioridade, na profundeza do Ser, donde a verdade eclode no desvelamento.

Um outro fenômeno do velamento como guarda e proteção da totalidade do Ser na sua interioridade é o botão de rosa. As pétalas, quais pálpebras, encobrem a rosa que vai eclodir. Mas justamente nesse encobrimento, revela a Vida, as promessas de vida, todo o mundo de rosa na sua nascividade e frescor. O botão é nesse sentido mais rosa do que a rosa aberta. A rosa aberta está por assim dizer mais presente na proteção do encobrimento, nesse mistério do botão, que na própria rosa aberta.

O velamento tem o modo de ser da revelação do pudor. Pudor originariamente é cobrir-se, não no sentido de esconder algo vergonhoso. Essa interpretação já é derivada, coisificada. O pudor é algo como a proteção que a integridade total da vida mantém para não volatilizar a unidade e a autoidentidade no seu vigor, na sua plenitude. A vida na sua interioridade só pode se desvelar no encobrimento. É essa plenitude no vigor de sua totalidade que Heidegger chama de velamento como o mistério do Ser. “Mistério” em alemão, se chama: Geheimnis. Geheimnis vem do termo Heim. Heim é o lar. É o em casa, o torrão natal de familiaridade. Heim é lá onde o humano vive como humano sem o distorcimento da sua nascividade. Desvelamento é o humano, e o humano é a casa do Ser.

O velamento como o esquecimento do mistério do Ser

Esse tipo de encobrimento em vez de ser revelador no seu encobrimento do mistério, tolhe, entulha justamente o caráter do mistério. Encobrir portanto não tem tanto o sentido de esconder um ente. Antes, pelo contrário, ele põe à luz nítida de um determinado enfoque o ente. Mas, com isso, faz recuar o mistério do ente na sua totalidade, faz esquecer que o ente só se revela no âmbito do desvelamento cuja origem é o encobrimento como mistério. No caso p. ex. do botão de rosa, o velamento como tolhimento faz aparecer o botão dentro do enfoque bem claro e delimitado do objeto da botânica, objeto da venda etc. Com isso, no entanto, não deixa o botão ser no seu mistério como a interioridade da totalidade do Ser. Ao mesmo tempo não consegue explicar donde nasce o próprio enfoque botânico.

Ilumina o ente, este ou aquele, perde-se nele, sem poder revelar a própria fonte da luz.

Quando essa tendência e o poder do saber toma conta de mim, e eu não mais percebo nem sequer a presença da ausência do mistério, é então que o próprio poder do saber se torna ele mesmo radical impotência perante o mistério. É tão radical a sua própria impotência que nem sequer sabe da sua impotência.

É, portanto, na ausência da ausência que o mistério se torna presente como aquilo que é radicalmente outro ao poder do pensar, como aquilo que não está à mercê da vontade do poder.

É bem possível que essa autoconsciência do saber como o poder, quando se torna tão radical que nem sequer consegue perceber a sua total impotência, tenha-se tornado a partir da sua interioridade um campo aberto onde a ausência do mistério se torne dolorosamente presente, como a impotência do poder do pensamento.

  1. Reunião: Sobre a essência da verdade

Capítulo 7: A não-verdade enquanto errância

O capítulo 6 falou do velamento como contingência ao mistério do Ser. No fim do capítulo começou-se a falar do modo, digamos, distorcido do velamento que nos levava ao tolhimento, ao esquecimento do mistério do ser.

O capítulo 7 fala mais explicitamente desse esquecimento e o denomina de errância.

O termo errância, errar, devemos talvez ouvi-lo mais na acepção de vaguear, desgarrar errante fora do rumo originário. O termo alemão para a errância é Irre. A palavra indica também a pessoa louca, tresloucada. “Louco” aqui entendido no sentido da expressão de G.K. Chesterton, que fala de uma “verdade enlouquecida”. Você toma uma verdade, isola-a das outras, a absolutiza. A verdade por assim dizer se “desembesta” e acaba se tornando falsa. Uma tal verdade enlouquecida é por exemplo a justiça que só quer ser justa a todo o custo e nada mais: fiat iustitia et pereat mundus!

A liberdade como abandono ao desvelamento do mistério do ser é ek-sistência. Essa abertura nasciva não é uma abertura desbaratada, escancarada, mas algo como velamento sereno da superfície no lago profundo. Esse velamento tênue e fugaz no seu equilíbrio é a presença do ente na sua totalidade. Ek-sistir indica portanto a pulsação dessa vida, a respiração tranquila e plena desse equilíbrio. Como tal o desvelamento do mistério é somente possível no movimento, no processo. Ek-sistir é sistir, isto é, ser como e nessa respiração.

A presença do velamento desvelador como o mistério do ser, no entanto, não está sob o domínio do nosso poder. Nós não podemos causar, nem prever ou calcular o seu aparecimento. Pois, é justamente o mistério do ser que nos abre a possibilidade de abertura da liberdade.

Não possuindo poder nem supervisão sobre a Presença do ente em sua totalidade, ek-sistindo no âmbito tênue do velamento, a nossa tendência é de perpetuar, assegurar, apoderar-nos desse instante de nascividade. Fixamo-nos no ente, olvidando o seu nascimento como ente na sua totalidade. Esquecemos que é só à mercê da nascividade que nos é dado o ente. Na abertura da ek-sistência tomamos posição de asseguramento, in-sistindo no ente. A abertura que estava por assim dizer voltada para a gratuidade do mistério do ser dá-lhe as costas e volta-se para o ente, não mais no abandono do deixar-ser, mas sim na preocupação de tomar medidas de asseguramento do ente, de ter a certeza do ente. O ente como fator de nossa segurança, o ente como preocupação se torna a medida de nossa existência. Isto é in-sistência.

Esse dar as costas à nascividade, dirigir-se ao ente na busca da segurança, concatenar um ente com o outro na rede desse asseguramento e assim ir de um ente para outro, criando todo um mundo de ocupações, tudo isso acontece ao mesmo tempo. É esse movimento que cria a História da Humanidade como existência ocidental. Essa odisseia do pensar ocidental se chama: errância.

O movimento de afastamento da nascividade para a in-sistência nos entes em particular como articulações do autoasseguramento é irreversível. A errância pertence à essência do desvelamento. Nós, a Humanidade historial, estamos metidos nesse movimento. A errância como ex-sistência insistente é um destino, o nosso destino, isto é, a nossa História.

É como se fôssemos ondas circulares da superfície de um lago, que se afastam cada vez mais do centro onde se desencadeou o primeiro movimento ondulatório com a queda de uma pedra. Portanto, a raiz, o fundamento de todos os erros, está nessa estrutura historial da errância. Como tal a errância pertence à essência da Verdade; como a expansão da onda pertence necessariamente ao impulso originário do centro ondulatório. E o esquecimento, o afastamento do mistério do ser pertence necessariamente à errância, como o afastamento das ondas do seu centro pertence ao movimento da expansão.

O movimento da errância portanto estrutura essencialmente a abertura do ser-aí, da ek-sistência. Ele domina portanto o homem (p. 44).

Por conseguinte, a partir da reflexão desse capítulo, é necessário revisarmos tudo o que viemos dizendo até aqui sobre a abertura originária da liberdade.

O desvelamento na sua originária nascividade e limpidez não é mais possível à nossa época da humanidade. Não é possível sairmos da nossa situação, do processo expansivo da errância, para voltarmos ao arcaico-pretérito da origem no recolhimento.

Não podemos? Heidegger diz algo diferente. E di-lo de uma forma que nos leva a precisar a nossa reflexão:

Mas pelo desgarramento a errância contribui também para fazer nascer esta possibilidade que o homem pode tirar da ek-sistência e que consiste em não se deixar levar pelo desgarramento. O homem não sucumbe no desgarramento se é capaz de provar a errância enquanto tal e não desconhecer o mistério do ser-aí (p. 44).

Nós estamos, pois, metidos até os ossos nesse processo de errância. Não há para nós nenhuma possibilidade de sair dela. Sair seria uma tentativa tão absurda como saltar sobre a própria sombra, como a tentativa do Barão de Münchhausen de sair de um pantanal, que o engolia, puxando-se pelos próprios cabelos.

Não se trata de sair da situação.

Antes, pelo contrário, trata-se de imergir nela. Mas ao imergir surge a chance de o Mistério do ser se desvelar como a ausência, de o movimento da errância, que nos carrega, fazer-nos ver no seu movimento que ele é o movimento de desgarramento. A nossa situação é semelhante à de um astronauta que inteiramente fechado no seio escuro de um foguete, sem janelas, foi lançado no espaço. Não possuímos nenhum ponto de referência a não ser a nossa imanência. Pois toda a comparação estabelecida com o passado é uma comparação feita a partir da nossa imanência. Mas o lançamento originário imprimiu ao foguete uma aceleração (errância). Que tenha havido um lançamento não podemos saber de fora. Mas resta uma possibilidade ao nosso astronauta. Ao auscultar de dentro, imerso no movimento, ele pode perceber aos poucos o aceleramento do foguete e descobrir que está se perdendo cada vez mais no espaço. Essa percepção é “provar (isto é, experimentar) a errância enquanto tal” (p. 44). Nessa experiência se manifesta o mistério do ser-aí, como ambiguidade, como presença do ser na ausência.

Com outras palavras: ao auscultar a aceleração da errância, o homem percebe a ausência do mistério do ser como ameaça de algo que lhe falta. Assim “a ameaça de desgarramento” que é a presença ameaçadora da ausência do mistério do Ser “mantém o homem na indigência do constrangimento” (p. 44).

Com outros termos, o homem começa a perceber a inanidade, a indigência, da sua segurança. Ele que vivia na errância, esquecido do mistério do Ser, portanto, ele que vivia na sua situação como um estado normal, sim, como progresso, desenvolvimento, conquista e vitória começa a perceber que tudo isso está se minando por dentro, em si mesmo, que está ficando vazio de sentido. Nesse vazio, isto é, na experiência da errância como errância, se revela o mistério do ser como ausência.

Assim, o homem começa a oscilar entre a sua total imersão na expansão errante e no vazio da ausência de sentido. Com isso ele não é mais o esquecimento do mistério do ser que nem sequer percebe o esquecimento. Ele se volta ao mistério do ser, não através de uma reviravolta, mas pela radicalização do esquecimento do ser. Avança tanto que no próprio afastamento começa a surgir o vácuo do afastamento como ausência, como indigência. O ser-aí como errância se transforma e, se torna um voltar-se para a indigência. Esse voltar-se para a indigência é a necessidade como transformação operada a partir do interior do próprio movimento da errância através da autoradicalização (p. 44).

Do capítulo 6 sabemos que “o desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo, a dissimulação do ente em sua totalidade” (p. 44).

No entanto, essa afirmação deve ser entendida exatamente. O desvelamento do ente enquanto tal se dá originariamente como o velamento do mistério do Ser. Esse velamento não é o esquecimento do mistério do ser. Antes pelo contrário é a Presença do Ser. Mas essa presença que é o equilíbrio tênue do desvelamento no velamento, para nós, Humanidade historial, só se torna presente como a “dissimulação do ente em sua totalidade” (p. 44). Nesse sentido o desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo, isto é, simultaneamente, o esquecimento do ente em sua totalidade. Nessa simultaneidade, nessa ambigüidade está o ponto onde pode acontecer o declínio do desvelamento para a errância. O velamento como guarda do mistério se hipostatiza como este ou aquele objeto em particular, serve então como articulação e dá abertura ao autoasseguramento da ek-sistência insistente, isto é, da errância.

Portanto: a dissimulação do que está velado (isto é, a entificação, a objetivação) e a errância (isto é, o desencadeamento do inter-esse assegurante) vão juntas e pertencem à essência originária da verdade (isto é, ao modo da presença atuante da verdade como ela se apresenta na situação epocal da atual humanidade).

A Liberdade como abertura que deixa-ser o ente na sua totalidade deve ser compreendida a partir da errância, do nosso destino historial, a partir da ek-sistência in-sistente do nosso ser-aí (p. 44, última alínea).

No início do nosso seminário dizíamos: usualmente se define a essência da verdade como adequação da enunciação com o objeto, isto é, como conformidade da apresentação. Essa, a concepção da verdade ou melhor da presença atuante (essência no sentido verbal) da verdade.

É a concepção do “senso comum” e vê a essência da verdade dentro dos moldes da errância. A coisa, o objeto é a medida da verdade. Mas, ao dizer isso, já se concebeu o ente como objeto. O ente não é mais visto como a presença encoberta do mistério do Ser, mas sim como aquilo que dá e determina a certeza e o asseguramento da minha existência que consiste em saber. Eu não deixo mais o ente ser, mas o uso como medida de minha segurança. Isto já pressupõe um horizonte de pré-compreensão, a saber: ser homem não é estar aberto ao mistério do Ser, mas sim ter conhecimentos certos. E ter conhecimentos certos é assegurar a minha existência, perpetuá-la, criando um mundo de entes, colocando-os sob normas e leis que me possibilitam a previsão, o cálculo, o domínio, o progresso.

Dizer: “o ente é a medida do meu conhecimento” soa bem. Parece estar-se dizendo: deixemos o ente ser ente. Não se percebe no entanto que, ao dizermos isso, tacitamente já acrescentamos: objetivamente. E não nos damos conta de que atrás desse “objetivamente” se esconde um inter-esse virulento de autoasseguramento: somente o que é previsível, calculável, certo, assegurativo do meu saber tem o direito de ser ente. A ek-sistência obj-ectiva que perfaz a nossa estrutura historial está inteiramente ordenada, dominada, pelo processo da errância como a vontade de dominação, de apropriação do ente para a nossa própria segurança, embala-se na aceleração da errância. A nossa ek-sistência, o nosso ser-aí é in-sistência, na objetivação. Libertar o ente, deixar-ser o ente, se entende como arrancá-lo do mistério para a dominação, para a apropriação. Portanto, a adaequatio rei et intellectus se baseia nessa abertura da ek-sistência in-sistente, na abertura da errância!

Revisando o que dissemos e entendemos antes dessa análise do capítulo 7, podemos agora dizer: não é assim que por debaixo da fossilização objetivista do adaequatio rei et intellectus esteja imediatamente a abertura originária autêntica do deixar-ser-o ente como o desvelamento da liberdade?

Isto porque o capítulo 7 nos mostra que a Liberdade na nossa situação epocal ocidental só atua como a presença ausente, como a errância que se chama objetivação, ou vontade do poder.

Devemos portanto procurar a “possibilidade” da abertura originária no próprio processo historial da errância. Haverá essa “possibilidade”?

Heidegger responde: essa possibilidade é a própria opressão (constrangimento) da ameaça da indigência, que irrompe no próprio seio da ausência como necessidade inelutável (p. 44), como a ausência do mistério do Ser.

Com outras palavras: a liberdade, a abertura originária, o deixar-ser o ente em sua totalidade para nós que estamos perdidamente embalados no élan da errância, é a experiência da própria errância como um mistério (p. 44/45).

A exacerbação da vontade do auto-asseguramento, a aceleração do saber que é a dominação do ente, na proliferação frenética trans-cendente de medidas de segurança, organizações, cálculos e pro-gressos, começa a se reascender, volver-se para dentro de si mesma e experimentar a total gratuidade, a inanidade da sua im-posição. Com outras palavras, se experimenta a própria energética da errância como o mistério da errância que não está mais sob o meu poder. Isto é: o próprio poder no seu poder não se tem a si mesmo sob a medida do seu poder. Dito de uma outra forma: o esquecimento do mistério do ser se intui (intus esse) como mistério do esquecimento do ser.

É somente quando a estrutura do conhecer assegurativo (adaequatio rei et intellectus) racha por assim dizer de dentro para fora e liberta a sensibilidade, isto é, a capacidade de uma abertura para o mistério que se torna possível “colocar mais originariamente a questão da essência da verdade” (p. 45). Somente então “se revela afinal o fundamento da implicação da essência da verdade com a verdade da essência”.

Com outros termos, a essência, isto é, a presença atuante do desvelamento do ser está ligada intimamente com o modo de desvelamento dessa própria atuação que no nosso caso é ausência, silêncio, esquecimento, velamento, modo de ser esse que o saber da dominação desconhece.

Essa rachadura que liberta o campo aberto onde se coloca a questão da essência da verdade, onde se percebe a diferença onto-lógica entre o mistério do ser e o seu esquecimento, entre ser e ente, é a ferida originária que nasce juntamente com o desvelamento do ser. Dessa ferida (Ur-sprung, salto originário) irrompe o abismo infinitesimal da Wende (versão, guinada), como o movimento da errância, como o desgarramento que embala a História da Humanidade na busca trans-cendental dissimulada da sua própria origem como Unidade da total Identidade. Esse movimento da trans-cendência que hoje se camufla na expansão imperialista e planetária chamada civilização científico-tecnológica é a Meta-física, lugar onde habita a questão do ser do ente (p. 45).

A Liberdade como ek-sistência in-sistente da errância na presença do desvelamento na ausência dissimulada é a filosofia. A essência da Verdade é a essência da filosofia.

 

Referências

BORGES, J.L. Nova Antologia Pessoal.  p. 66.

CARNEIRO LEÃO. E. Aprendendo a pensar. Vol. I, 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1989.

CHESTERTON, G.K. O homem que era Quinta-feira

CHESTERTON, G.K. S. Francisco de Assis

HEGENBERG, L. Introdução à filosofia da ciência, Herder, 1965.

HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. (Tradução de Emanuel Carneiro leão) Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1969.

HESSEN, J. Teoria de conhecimento. Coibra: 1952.

MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

WEIZSÄCKER, Martin Heidegger im Gespräch, entrevista na Segunda televisão alemã, aos 24 de setembro de 1969.

 

 

VII

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 1

Cada vez que for possível será feita uma espécie de relatório das reuniões do nosso seminário sobre fenomenologia. Relatório que não é nenhum relatório, nenhum protocolo, resumo que de alguma forma reproduza o que vivamente foi tratado no encontro, mas apenas alguns arrazoados avulsos mal feitos, ocasionados pelos pensamentos que surgiram e circularam entre nós, graças à colaboração e participação de todos.

Todos nós viemos para o seminário, cada qual com uma determinada expectativa em relação à fenomenologia.

As expectativas que a gente tem da fenomenologia são boas quando se afinam à boa audição do que vai surgindo do/no círculo do seminário; menos boas, se na sua exigência e excelência são mais altas do que “o quê” a fenomenologia na sua finitude consegue dar. Finitude aqui significa o modo de ser do que é finito. Representamos o finito como delimitado, o que está cercado, não totalmente livre ab-soluto, i. é, não solto como in-finito sem limites, sem limitação. Se não for bem entendida, essa representação introduz na compreensão do finito a “idéia” de privação, de carência. Assim, “finito” é o que é imperfeito, porque ainda não chegou a ser infinito. Nessa concepção de finito-infinito estão atuando nossas expectativas usuais de excelência na ciência e na vida. De tudo, esperamos, na ciência e na vida, o melhor, a excelência. A qualidade total, a melhor, sem limites, sem fim, infinito. E deslocamos o ponto de chegada da perfeição absoluta dessa excelência infinita para além, para a utopia assintótica. Olhamos, pois, para além com ânsia do infinito transcendental e passamos “por sobre, acima do finito”, que acaba caindo no esquecimento, se retrai como ausência, carência, falta da excelência do tipo in-finito.

A fenomenologia, pois, não se sente em casa na atmosfera da expectativa dessa excelência infinita da busca para além. Pois não se dá o ar de excelente, de infinito, porque respira na atmosfera do finito, do sempre e cada vez consumado, terminado, bom, naquele sentido que expressamos, quando, tocando de cheio mas de leve o lóbulo da orelha, ao degustar a primeira porção de uma pamonha, dizemos: está no ponto, é bom, demais. Esse demais não é para além, transcendental nem transcendente, não é falta do infinito, não sabe à inchação, inflação, não tona grandioso nem gigantesco, mas como plenitude, simples e imediata; está ali no con-creto e sóbrio como a “coisa ela mesma” que a fenomenologia chama de mundo. Em vez de mundo, na fenomenologia se diz também ser-no-mundo. Em geral, quem não se familiarizou com a fenomenologia entende essa “coisa ela mesma”, esse “estar ali concreto e sóbrio, pleno, simples e imediato”, esse mundo ou ser-no-mundo, equivocadamente. Interpreta tudo isso dentro do horizonte do usualmente conhecido, como se todas essas “realidades” fossem objetos: objeto-subjetivo aqui e objetos objetivos de vários tipos, diante e ao redor de mim.

Uma das inúmeras tentativas do trabalho da fenomenologia é reconduzir a nossa compreensão prefixada da “realidade” padronizada dentro do esquema sujeito-objeto à compreensão da “realidade” como mundo ou ser-no-mundo.

Como preparação para essa redução ou recondução, embora ainda permanecendo no esquema sujeito-objeto, tentemos ver a nós (objetos-subjetivos) e os entes ao nosso redor que não são sujeitos (objetos-objetivos) como “mundo”. Para isso uma comparação (embora ainda muito objetiva).

Sobre a mesa estão espalhadas gotas de água da chuva que pingaram de uma goteira do meu quarto. São 21 pingos d’água, uns menores, outros maiores, formando duas pequenas poças d’água. A superfície da mesa é chata, uniforme, lisa, sem muita diferença. As gotas e poças d’água também não se diferenciam muito entre si, a não ser pela quantidade e formas geométricas. Quanto mais me distancio da mesa e tenho uma visão longínquo-panorâmica, tanto mais neutra e indiferenciada se torna a paisagem: só alguns pontos sobre uma mesa de superfície lisa e homogênea.

Mas seria bem diferente a paisagem que se descortinaria se, por exemplo, através de um possante microscópio eu conseguisse entrar para dentro da paisagem interior de uma gota d’água. Ali se abriria todo um mundo habitado por diferentes tipos de seres estranhos, riquíssimos em detalhes de formas e constituições “fisiológicas” movimentando-se, relacionando-se, reproduzindo-se e devorando-se mutuamente, no meio de uma floresta de seres parecidos com plantas e fungos. Assim, em cada gota encontraríamos todo um mundo, e neste mundo, mundos e mundos; e em cada ente que os povoaria, por sua vez, toda uma estrutura que perfaria de novo todo um mundo de realidades.

E ainda, se focalizássemos uma pequena parcela da superfície da mesa, sobre a qual se espalham as gotas como se fossem pontos isolados entre si, descobriríamos com surpresa que também essa superfície, aparentemente tão lisa e homogênea, apresenta acidentes “geográficos” variados, vales e montanhas, sulcos profundos e abismos, também povoados por micróbios e bacilos de variados tipos e constituições.

A quem se abrem cada vez de modos diferentes e diferenciados “a realidade” como mundos e mundos e mundo no mundo é o homem. Mas o homem, enquanto visto como objeto, se abre também a si como mundo. O que é, quem é e como é a quem tanto o homem como os entes não-homem se abrem como mundo? Na fenomenologia essa pergunta é a aguilhão que sempre de novo e cada vez estimula o nosso saber a se perguntar e em assim se perguntando “ver”.

Por enquanto, deixemos no ar a suspeita e pergunta: esse a quem se abrem os mundos, cada vez no seu modo, esse “quem”, que não é objeto subjetivo ou sujeito, portanto nem sujeito nem objeto, é o homem, que em não sendo nenhum objeto (nem objeto subjetivo nem objeto objetivo) é exatamente esse modo de ser de cada ente aparecer como mundo? Se assim for, o homem apareceria entre outros entes não-humanos como objeto, mas ao mesmo tempo como modo de ser do aparecer de cada objeto, inclusive ele mesmo, como mundo. Ou melhor, ele propriamente não apareceria, mas haveria de se retrair como a aberta que ao fazer aparecer o mundo cada vez no seu modo de ser próprio, se oculta como a interioridade a mais íntima do mundo? Ele seria assim ser-no-mundo. Não dentro do mundo de objetos tanto subjetivos como objetivos, qual um sapo dentro da lagoa, mas como o ponto de salto da eclosão do mundo, como olho d’água, como a aberta do mundo. Quando o objeto-sujeito é reconduzido assim para o próprio de si mesmo como ser-no-mundo, então ele deixa de ser a ânsia assintótica da carência do infinito, e volta a ser bem no ponto, bom demais na sua finitude. É então que o mundo finalmente se tornaria redondo, simples, concreto, a coisa ela mesma da fenomenologia.

As infindas discussões, troca de idéias, vai e vem das discussões do seminário acerca da fenomenologia nos podem enervar e impacientar na nossa ânsia do infinito da excelência objetiva. Elas são, porém, movimento circular, uma espécie de rodopios que pedem de cada um de nós muita paciência, plena atenção e principalmente muita cordialidade na valentia de pensar. Eles podem sovar o nosso saber e gastar seus cantos, transformando-o de quadrado para redondo, conduzindo-o à ciência cordial, que para Nietzsche tem o modo de ser da arte.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 2

►Nesse segundo encontro tentamos girar ao redor da proposta de entender a fenomenologia como possibilidade, segundo um texto de Martin Heidegger que diz: A fenomenologia “é a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos se transforma e que só por isso, permanece, a saber, a possibilidade de corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar. Se a fenomenologia for experienciada e considerada assim, então ela pode desaparecer, enquanto título, em favor da coisa do pensar, cuja manifestação permanece um mistério”.

A esse texto de 1963, Heidegger acrescenta em 1969: “No sentido da última frase se diz já em Ser e tempo (1927) p. 38: o essencial da fenomenologia não reside nisso de ela ser real como “corrente” filosófica. Mais alta do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da fenomenologia repousa unicamente nisso, em captá-la como possibilidade”.

Compreender uma coisa significa prender algo. Prender se refere à ação de ligar e unir o que está espalhado, ajuntando-o no uno. O movimento de ajuntar-se no uno está dito no com que no grego se diz syn (= uno; synthese = síntese). Algo assim com-preendido não fica encarcerado, mas aderente e coerente, consistente e firme em si mesmo. Firme aqui não deve ser confundido com fixo, estático, imóvel num encaixe. Pois a firmeza significa a própria dinâmica que se assenta em si mesma como movimento. É como o movimento de um dínamo que gira com tamanha velocidade e energia em si a ponto de parecer parado.

Queremos com-preender a fenomenologia. Nessa tentativa de compreender a fenomenologia, nós a colocamos diante de nós, como uma realidade, portanto como algo para o qual nos dirigimos: em linha reta, como a uma meta →→●. Nós ainda não sabemos o que é e como é a meta chamada fenomenologia. É por isso que a buscamos. Cada um de nós, pois, é mais e/ou menos essa flecha. Esse modo de ser e esse modo de caminhar para a meta, esquematizado →● é o modo de busca do saber objetivo. E o assim chamado saber subjetivo em geral, de imediato e na maioria dos casos, é também objetivo →, só que virado para trás •←. Esse modo de saber, de abordar, de buscar e progredir na busca, pode ter os mais diversificados objetos, como, p. ex., arte, história, ciência, religião, tempo, espaço, ser-humano, entes vegetais, entes animais, entes físico-corpóreos, entes ideais como números, equações matemáticas, quimeras etc. No entanto, apesar das diferenças consideráveis nos objetos, o modo de dirigir-se ao objeto é sempre uma seta assim →● ou ●←; nós, seres do saber objetivo em modalidades “objetivo” (→●) e “subjetivo” (●←), embora nos apercebamos das diferenças dos entes, por submetê-los na sua abordagem ao ocular objetivo e objetivante (e isto vale também quando falamos das nossas “coisas” subjetivas como vivências, sentimentos etc.) deixamos escapar o modo de ser próprio do ente em questão, que sob a dominância desse ocular objetivo-objetivante se retrai à e da nossa mira. Damos um exemplo. Lemos no jornal uma notícia, em que se relata o heroísmo de uma menina de 10 anos que para defender o seu irmãozinho de 5 anos da investida de um cachorro pitt-bull, se atracou com ele, gritando para o irmãozinho que fuja. Para ajudar a irmã, em vez de fugir, este se atraca também com o cachorro. Ao ler esse relato, surge na minha vivência um turbilhão de mil e mil colocações acerca dessa situação e acontecimentos. Sinto, porém, no fundo desse turbilhão, um forte “sentimento” de admiração por essas crianças, e me surpreendo exclamando alto dentro de mim: Grande! Um amigo meu ao ouvir a minha exclamação me pergunta: Grande como? O que é que é grande? Tem quantos metros? É pesado? Quantos quilos? E lhe respondo atônito: Mas de que você está falando. E ele: Não é do pitt-bull? Aqui houve um equívoco acerca do objeto. De um lado, o objeto era o pitt-bull. Da minha parte, a grandeza e nobreza da coragem das crianças. Nesse instante do arrazoado, é de grande importância que se perceba o seguinte: o problema não é a troca, o quiproquó acerca do objeto. Portanto, nesse exemplo a questão é de ver que se trata uma vez da realidade no caso da pergunta; e outra vez da possibilidade, no caso da exclamação. Mas vamos passo a passo:

A primeira vista, o exemplo é fácil de entender, pois todo mundo, principalmente nós, que de alguma forma estamos acostumados com a objetividade das ciências, quer naturais quer humanas, percebemos logo que houve troca de objeto, ou melhor, engano acerca do objeto. O meu interlocutor estava pensando que eu estava falando de pitt-bull e queria saber qual o tamanho do cachorro que se pode medir em metros e peso. Eu estava, porém, em admiração, que nasceu da grandeza heróica da coragem das crianças. Na nossa maneira exata de pensar científico, dizemos: ouve um equívoco. Mas não houve extrapolação. Extrapolação científica haveria se o meu amigo soubesse que a minha exclamação se referia à grandeza da coragem das crianças. Aqui perguntar quantos quilos pesa a coragem das crianças ou quantos metros mede a grandeza do ato heroico das crianças é reduzir um gênero de objetos a um outro gênero de objetos, é sair da impostação ou do enfoque próprio a um gênero de objetos e entrar na impostação ou no enfoque próprios de um outro gênero de objetos, bem diferentes, continuando ingenuamente a pensar que está ainda na antiga impostação dentro do igual modo de ser e pensar do antigo gênero de objetos. Quanto maior são a acribia e o cuidado de uma ciência, sejam ciências naturais ou humanas, em relação à sua cientificidade, de manter-se limpa e sem mistura na precisão, a partir e dentro da lógica operante no gênero próprio da área dos seus objetos, evitando constantemente as extrapolações, tanto mais as ciências são aptas a clarear os objetos que pertencem ao gênero da sua área. Por isso, acribia e cuidado pela limpidez da cientificidade fazem que numa ciência se examinem sempre de novo e constantemente as pressuposições e as pré-compreensões a partir e sobre as quais a ciência avança, progride e constrói o seu sistema.

Nós, aqui presentes, vivemos dentro da busca de excelência científica do saber positivo objetivante e objetivo. Por isso, mais e/ou menos, em diferentes graus, exercemos esse modo de ser da busca do saber objetivo e adquirimos qualidades e competências nesse modo de ser da existência humana chamada existência científico-acadêmica. Mesmo as pessoas que não estão no ambiente dessa existência científico-acadêmica, hoje de algum modo, mais e/ou menos participam dela, pois vivem no mundo funcional da civilização científica tecnológica, criado e sustentado na sua dinâmica por esse modo de ser objetivante-objetivo. Isto significa: é dominante em todos nós, estudados ou não, a impostação da abordagem do saber objetivante-objetivo, configurado no logotipo acima mencionado (→●) (●←) (=saber de objetivação objetiva e subjetiva). Até aqui, até certo ponto conseguimos nos conscientizar e ficar vigilantes em nossas abordagens da “realidade”. O primeiro passo para nos introduzirmos na fenomenologia é começarmos a desconfiar que esse modo de ser do saber objetivante-objetivo (→●)(●←), portanto, a impostação retilíneo-flecha, espanta e “espanca”[121] a fenomenologia, que não pode e não quer vestir a camisa de força do modo de ser da flecha retilínea objetivante. Pois, ela não é em primeiro lugar e antes de tudo produtora, agenciadora, guarda e vigia da consistência e fixação das realidades que se formam na ponta da flecha retilínea e objetivante da dinâmica do inter-esse do saber objetivante-objetivo.

Certamente a fenomenologia aparece também dentro do mundo da existência científico-acadêmico como saber objetivante-objetivo; e quiçá em vários estilos como escolas, movimentos. Como tal, sob esse aspecto exotérico (virado para fora) a fenomenologia é buscada e ensinada nas academias e universidades como sistema de saber ao lado da psicologia, sociologia, antropologia etc. Nesse uso da fenomenologia, ela embora tenha muito gabarito e competência, em vários casos mais recursos de análise e descrição e sofisticação do que outras ciências positivas, ela permanece, na sua impostação, no mesmo modo de ser do saber de objetivação, portanto ►● (→●) (●←) (☼ ↔ ☼). São pois diversas realizações da fenomenologia, fenomenologia como realidades. Temos assim fenomenologia como antropologia, como psicologia, como existencialismo, como fenomenologia descritiva, fenomenologia de Merleau Ponty, de Husserl, de Heidegger, Rombach, Pfänder, Fink, Gabriel Marcel, Sartre, Gadamer. Mas todas essas realizações da fenomenologia, portanto as fenomenologias como realidades na media em que vem à fala e muitas vezes se sistematizam como teses e doutrinas, vivem de alguma forma operativamente a partir e dentro de uma evidência de que na raiz, na gênese do movimento do surgir, estruturar-se e consumar-se como todo um mundo de compreensão, portanto também na raiz, na gênese de toda e qualquer ciência, de toda e qualquer manifestação da arte, da religião, há uma presença, bem no seio de cada existência, como possibilidade de ser. Presença silenciosa qual retraimento do abismo insondável e inesgotável de ser, como que um hálito de suave leveza do toque da possibilidade livre de ser, na precisão de tênue vibração da doação de um sentido do ser, contido com pudor na espera da recepção. É o “aspecto esotérico”, a dimensão de fundo, a inclinação virada para dentro da fenomenologia, a sua possibilidade. Essa disposição de fundo, a “interioridade” profunda do homem como animal rationale[122] (leia-se: ânimo cordial atinente ao logos) é o que na fenomenologia de Heidegger se chamou de clareira do sentido do ser, a aberta, não como a abertura escancarada de uma passividade neutra enrijecida, mas límpida espera no tinir de disponibilidade da generosa pura recepção para o suave toque do sentido do abismo da possibilidade de ser, o ser-aí, o Dasein (Da-sein). Esse aí, o Da, o ex– da existência é clareira e ao mesmo tempo algo como profundo silêncio no in-stante do salto da eclosão do mundo, a entoação do mundo sob o toque da possibilidade de ser. Desse modo de ser da clareira-ponto-de-salto da eclosão do mundo se diz no texto de Heidegger:

É a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos, se transforma e que só por isso permanece, a saber, a possibilidade de corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar.

►Para entender de alguma forma de que se trata quando falamos da fenomenologia como possibilidade e em que sentido a possibilidade é mais alta do que realidade favor ler e refletir o seguinte trecho da conferência pronunciada por Paul Klee aos 26.01.1924 sob o título: Supervisão e orientação na área dos meios pictóricos e sua ordenação espacial.

Gostaria, agora, considerar a dimensão do objeto num novo sentido para si e ali tentar mostrar como o artista vem muitas vezes a uma tal deformação aparentemente arbitrária da forma natural do aparecer.

Por sua vez, ela não dá a essas formas naturais do aparecer a importância obrigatória como o fazem os muitos realistas que exercem crítica. Ele não se sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processo natural da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas terminais. Sem o querer seja ele talvez justamente, filósofo. E se não faz como os otimistas que explicam este mundo como de todos os mundos, o melhor e se também não quer dizer que esse nosso mundo circundante seja ruim demais para tomá-lo como exemplo, diz ele, no entanto assim:

Nessa sua configuração formada, o mundo não é o único de todos os mundos!

Assim, o artista olha as coisas que a natureza formou e lhe faz desfilar diante dos seus olhos com mirada penetrante.

Quanto mais profundamente mira, tanto mais facilmente ele consegue distender os pontos de vista, de hoje para ontem. Tanto mais o impregna no lugar de uma figura pronta da natureza, a figura somente ela essencial da criação como o gênese.

Então, se permite também o pensamento de que a criação hoje mal poderia estar concluída, e com isso, estende aquela ação criativa do mundo, de trás para frente, dando duração à gênese.

Ele avança ainda mais.

Diz para si, ficando desse lado: Esse mundo apareceu diferente e ele há de aparecer diferente.

Tendendo para além, porém, pensa: Nas outras estrelas se pode ter vindo, de novo, a formas de todo diferentes.

Tal mobilidade nos caminhos naturais da criação é uma boa escola de formas.

Ela consegue mover a quem cria, do seu fundo, e ele mesmo, já móvel, há de cuidar da liberdade do desenvolvimento para seus próprios caminhos de configuração.

A partir dessa impostação, a gente deve ter como a seu favor, quando o artista esclarece o presente estágio do mundo do fenômeno que lhe diz respeito, como casualmente bloqueado, bloqueado temporal e localmente. Como demasiadamente delimitado em contraposição ao intuído profundamente e sentido vivamente por ele.

E não é verdade que, já o relativamente pequeno passo do olhar através do microscópio faz desfilar diante dos olhos figuras, que nós todos haveríamos de declarar como fantásticas e exacerbadas, se, sem pegar o pivô da coisa, as víssemos de todo por acaso em algum lugar?

Senhor X, porém, ao dar de cara com uma cópia de tal figura numa revista sensacionalista, haveria de clamar indignado: isto seriam formas naturais? Isto é, sim, o pior dos comércios de arte!

Portanto, o artista, pois, se ocupa com microscópio? História? Paleontologia?

Apenas a modo de comparação, apenas no sentido da mobilidade. E não no sentido da possibilidade de um domínio do controle científico da fidelidade à natureza (wissenschaftliche Kontrollierbarkeit)!

Apenas no sentido da liberdade!

No sentido de uma liberdade, que não conduz a determinadas fases de desenvolvimento, que uma vez na natureza foram assim exatamente ou hão de ser ou que em outras estrelas (um dia talvez uma vez constatáveis) poderiam ser justamente assim, mas no sentido de uma liberdade, que apenas exige o seu direito de ser igualmente assim móvel, como o é a grande natureza.

Do exemplar para o arquétipo!

Arrogante seria o artista que, aqui, logo fica metido em algum canto. Chamados, porém, são os artistas que hoje penetram até certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei originária alimenta os desenvolvimentos.

Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal, chame-se ele cérebro ou coração da criação, ocasiona todas as funções. Quem como artista não gostaria de morar, lá?

No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde a chave do mistério para tudo jaz guardada?

Mas não todos devem para lá! Cada qual deve se mover para ali, aonde a batida do seu coração acena.

Assim, no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressionistas, tinham plena razão em morar junto dos rebentos da raiz, junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar do nosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profundamente para baixo, para o fundo abissal.

O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele como quiser, sonho, idéia, fantasia é de todo para se tomar a sério, se ele se liga sem reservas à configuração com os meios pictóricos adequados.

Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidades da arte, que levam a vida um tanto mais adiante do que parece medianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais ou menos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuído na intimidade oculta (geheim).

►Quando se fala de possibilidade, nós consideramos a possibilidade como sendo de densidade de ser inferior à realidade. Havia uma viúva que tinha 10 galinhas. Um dia ela se achega de um curandeiro e pede um remédio eficaz para suas galinhas, pois ficaram doentes. Recebeu remédio eficaz: um grão de milho três vezes por dia. Morrem 3 galinhas. A viúva volta ao curandeiro. Pede um outro remédio para galinhas. Novo remédio: um grão de milho, duas vezes por dia. Morrem mais 2 galinhas. A viúva volta de novo ao curandeiro. Este prescreve novo remédio: um grão de milho uma vez por dia. Morrem mais 4 galinhas. Revoltada, a viúva volta ao curandeiro e lhe pergunta: Até quando fica prescrevendo grão de milho? O curandeiro lhe respondeu: Até enquanto a senhora tiver galinhas. Heidegger diz no que se refere ao pensar: “O essencial da fenomenologia não reside nisso de ela ser real como “corrente” filosófica. Mais alta do que a realidade é a possibilidade. A compreensão da fenomenologia repousa unicamente nisso, em captá-la como possibilidade”, e continua: A fenomenologia

é a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos, se transforma e que só por isso, permanece, a saber, a possibilidade de corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar. Se a fenomenologia for experienciada e considerada assim, então ela pode desaparecer, enquanto título, em favor da coisa do pensar, cuja manifestação permanece um mistério.

  • Em que consiste a moral da estória zen das galinhas da viúva, não para moralizar nossos atos em relação à fenomenologia, mas em relação à compreensão da utilidade da fenomenologia como possibilidade?
  • Quando dizemos: “Acabou! Estou no fim das minhas possibilidades”, entendemos possibilidade como realidade ou como possibilidade?
  • O que pode vir (possibilidade) depois do fim das minhas possibilidades, i. é, a potencialidade, a potência que mantinha a minha realidade? Se nada, se vazio, se “baixa depressão” como representa essa nihilidade? Como realidade no estado 0? Como fim da possibilidade? Como entender a possibilidade no sentido de Heidegger que diz ser mais alta do que realidade? Há aqui um aceno para uma possibilidade que é anterior, é aquém da possibilidade e realidade no nosso sentido usual?
  • Há experiências nas quais estou no fim da picada. No “paredão”. Estou na baixa, na fossa. De tal modo no fundo da possibilidade da minha realidade que nem sequer me resta mais gosto, vontade, ânimo de querer fazer alguma coisa para sair “dessa”. De repente, não sei como, inesperadamente “estou noutra”. Numa outra possibilidade. Essa nova “realidade” seria no fundo continuação, portanto uma possibilidade até agora escondida da realidade anterior ou uma inteiramente nova possibilidade de eclosão de todo um novo mundo da realidade? É possível saber dessa possibilidade? Se não, há possibilidade de ser assim possibilidade? Ser-assim = ser-aí = Da-sein? Mas então já sempre não o fomos? Voltar a ser o que já sempre fui é possível? Possibilidade mais alta do que a realidade: entrar para dentro da re-cordação, ser recolhimento, repouso em-casa (Ge-heim), ser o que somos, a cada instante, sempre de novo, de tempo em tempo na transformação.
  • Em alemão, possibilidade se diz Möglichkeit. (Möglich = possível; –keit = sufixo designativo da abstração essencializada: –dade). Möglich vem do verbo mögen. Mögen significa poder mas no sentido de Mas de que se trata, quando gostar diz mögen? Quando uma veste cai tão bem no corpo que veste e corpo são uma coisa só, que a veste e o corpo estão satisfeitos, então temos o mögen. Se um caldo bem quente (mas não fervente e causticante) num dia de inverso rigoroso no sul do país me cai bem no estômago, e a “barriga” se me assenta de cheio numa satisfação gostosa, aparece, nessa gostosura da identificação do todo, o meu ser no/com/por caldo, o verbo, a ação bem feita em obra: mögen. É a nossa dita alta possibilidade.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 3

Fenomenologia como método: Caminho

Por método, entende-se, aqui, não um procedimento técnico, mas a atitude fundamental do modo de indagar aquilo que se dá, vindo ao nosso encontro ao longo do caminho de nossa investigação. Com “método”, queremos dizer o princípio que norteia todo modo de interrogar no âmbito da reflexão ou investigação, o como do colocar questões e a forma de abordar problemas.

Método: methodos = meta + hodos.

Meta – sentido original: no meio de, no elemento de, na ambiência de (au milieu de); em meio a, entre (parmi); > daí: com (= syn, com); > posteriormente: rumo a, em busca de; > por fim: em seguida a, depois de. Em composições: situar-se em meio a, no entremeio de > participar de > suceder. Às vezes conota transformação, mudança.

Hodos –: caminho, via, viagem, andamento marcha, curso, percurso, incursão, rota, procedimento.

“Onde homens estão, ali estão caminhos”.

“Caminho é uma outra coisa do que senda ou estrada. Senda insere-se na natureza. Estrada passa ao largo da natureza. Caminho, isto abre a natureza, mostra sua configuração, seu espírito. No caminho, homem e mundo encontram-se no meio, perfilam-se mutuamente! O homem se deixa guiar pela natureza e, no entanto, inclui aí a sua vontade. Caminho é acordo, ajuste de afirmação e desempenho, graça e gesta, necessidade e liberdade. Talvez nada exista de mais sublime do que este acordo. A experiência fundamental “caminho” diz que, através do favor do conseguimento, o homem pode ser conduzido para fora de um poder estranho, mas pura e simplesmente na liberdade de si mesmo. No espírito do caminho, o homem produz o que cresce, deixa vir a ser o que é cheio de dedicação e forte, penoso e decidido” (Heinrich Rombach, Leben des Geistes – Vida do espírito).

“Não obras, caminhos” (Wege, nicht Werke, M. Heidegger – Mote das suas obras completas).

“Weg und Waage / Steg und Sage / finden sich in einen Gang. // Geh und trage / Fehl und Frage / deinen Pfad entlang.” (M. Heidegger, Da experiência do pensar).

“Caminho e Balança / Senda e Saga / acham-se num passo // anda e suporta / Falta e Pergunta / ao longo da tua senda.”

  1. Na medida em que no nosso círculo fenomenológico começamos a circular, começamos também a ficar confusos acerca da fenomenologia. Quem nada sabe ou pouco ouviu da fenomenologia provavelmente fica boiando, perguntando-se: estão falando de que? Quem sabe bastante ou muito, quem lida com fenomenologia, quem já estudou fenomenologia dentro das suas especialidades, principalmente dentro da psicologia, pode também estranhar o método circular do nosso encontro e ter a sensação de que ali não se está falando de fenomenologia, mas miscelânea emaranhada de opiniões filosóficas ecléticas, misturando tudo, anedotas zen, textos de autores da fenomenologia, principalmente muitos textos de Heidegger, e experiências pessoais etc. Quem está enjoado e aborrecido com certas exposições acadêmicas lineares do tipo <<<>*?<>>>>> monótonas, sem vida, padronizadas, politicamente corretas, pode achar interessante esse método que balança, vai e vem, dá saltos, empaca, avoa, diz besteiras etc. Mas se somos metódicos, sistemáticos, trabalhamos com exatidão nas ciências, nas quais somos especialistas, consideramos o método circular insuficiente, para não dizer brincadeira ou como dizem os estudiosos e especialistas da corrente filosófica neopositivista lógica denominada filosofia analítica, delírios dos fenomenólogos.
  2. Talvez seja útil aqui, para nós que somos acadêmicos, atinentes à excelência e à exatidão do saber do ensino superior, conhecer o uso de duas palavras que é aconselhável não adotar no meio acadêmico alheio à fenomenologia, para não sermos taxados de seitas secretas. As palavras em questão são exotérico e esotérico (cfr. Aurélio). Vem do grego exoterikós (exóteros) e esoterikós (esóteros). Exotéricos significa virado para fora, o que vem de fora. Esoterikós, virado para dentro, o que vem de dentro. Desse significado simples se derivaram outros significados como dirigido ao público e dirigido aos particulares especiais já iniciados; aberto a todos e secreto e fechado; seita secreta, especialização, iniciação etc.

A fenomenologia pode aparecer como exotérica. Virada para fora. Fora aqui é um termo ocasional ou circunstancial, cuja significação pede que digamos em que ocasião, em que circunstâncias estamos usando o termo. Quando usamos o binômio exotérico-esotérico, geralmente entendemos o binômio no sentido de virado para fora como dirigido ao público, não iniciado numa determinada compreensão. Semelhantemente, virado para dentro é entendido como dirigido ao círculo de pessoas já iniciadas numa determinada compreensão. Um variante desse modo de entender o exotérico-esotérico é a diferença colocada entre graduação e pós-graduação; leigo no assunto e especialista etc. Se tomarmos exotérico-esotérico nesse sentido e falarmos de curso de fenomenologia, a fenomenologia aparece como uma especialização de um saber cultural acadêmico como outras ciências. Ali existem modos didáticos de ensino, onde para quem ainda está p. ex. na graduação da filosofia, se deve dar informações etc. etc. E dentro dessa perspectiva, quanto mais se sobe na “graduação” do saber para pós-graduação mestrado e pós-graduação doutorado etc. etc. aumenta o volume de informações e de competência técnico-objetiva. Esse modo de ser do saber científico-acadêmico cultural é uma conquista humana e possui o seu valor próprio. Fenomenologia que assim aparece no seu vir à fala a modo do saber científico-acadêmico cultural, tanto para iniciantes como para iniciados, tanto para quem está na graduação como quem já está na pós-gaduação, tanto para leigos como para especialistas é o exotérico da fenomenologia. Mas então a fenomenologia como esotérico, como é, o que é? Muitas pessoas que só conhecem a fenomenologia enquanto modo de saber científico-acadêmico cultural podem aqui cometer um quiproquó e achar que o esotérico na fenomenologia é algo como saber místico espiritual a modo de esoterismo ou mundividência religiosa que critica a exacerbação racionalista das ciências e reivindica uma sabedoria mais humana, profunda, antropológica. Entender a fenomenologia assim como, digamos uma filosofia de vida, um saber existencialista etc. pode trazer muita utilidade. Mas todas essas “manifestações” da fenomenologia são “exotéricas”. Aqui fosse talvez útil recordar o que refletimos nos Fragmentos de reflexões fenomenológicas 2 acerca do estilo flecha e do estilo círculo na compreensão da fenomenologia e da compreensão toda própria que a fenomenologia tem da realidade e possibilidade, e principalmente no texto de Paul Klee quando ele explica o que é criativo e o que é a forma-terminal na criação artística. Nas reflexões do encontro 2, as aparições exotéricas da fenomenologia acima apresentadas são todas elas realidades. E a dimensão chamada possibilidade não é parte, não é “possibilidade” ou “potencialidade” de “possíveis” realizações ou realidades por vir, mas possibilidade no sentido da circularidade do método, a qual se quiser, pode se chamar de virado para dentro da fenomenologia, o seu esotérico. O estranhamento diante do modo de vira e revira do caminhar em círculos do nosso encontro é no fundo estranhamento que sentimos diante da fenomenologia como possibilidade. Foi sobre isso que começamos a refletir no nosso encontro n. 3, ao começarmos falar do método fenomenológico.

  1. Tentemos recordar o que no encontro 3 foi exposto já no início acerca da palavra método ao examinarmos o sentido grego dos termos que entram na composição meth-hodós. Foi dito que a palavra método vem do grego methodós que se compõe de metá e hodós. Hodós é: caminho, via viagem, andamento, marcha, curso, percurso, incursão, rota, procedimento. Em geral quando dizemos caminho pensamos “ir para frente, progredir em direção a uma meta, deixando atrás um caminho”. É o modo de entender o caminho como uma flecha e suas variações. Para entender bem o que é originariamente caminho, porém, é necessário entender bem as implicações que jazem na palavra meta que compõe methodos. Antecipando, para poder ver as conexões existentes nas conotações da palavra metá entre si, seja talvez útil ter presente o modo como uma fonte abre numa paisagem um caminho. A fonte brota através do olho d’água, insondável e inesgotavelmente do abismo, formando uma poça, que tateando, pouco a pouco vai seguindo as conformações dos acidentes da paisagem e aos poucos vai tomando a forma do sulco e depois de um rio em direção ao mar. (Um pensamento para mais tarde aprofundar: na realidade a fonte que superabundante vai se avolumando na presença, e forma um fio d’água que serpenteia como trilha no meio da vegetação rasa de um cerrado e aos poucos se torna um rio caudaloso, não faz o movimento de uma flecha, mas da fonte que como fio d’água vai fazendo aparecer as cercanias como quem em passando no meio das vegetações vai inundando invisivelmente todas as cercanias e regiões, para que venham à luz como paisagem).

Meta significa no meio de: como entender aqui no meio de? Se formos bem precisos, no meio de não deve ser entendido como “dentro de” a modo de um sapo na lagoa. Deve ser antes entendido como: o entre-meio, o permeio, o médium que está entre as coisas, fazendo cada coisa ser uma com as outras mutuamente. É nesse sentido que dizemos p. ex. de uma pessoa que não se acha mais ali, aqui ou acolá diante de nós, porque faleceu, que ele está no meio de nós, ora como elo invisível onipresente de união ou de desunião etc. Meta é portanto o modo de ser presença do que na filosofia denominamos de condição da possibilidade de. É o que está junto de, junto com não a modo “real” disto ou daquilo ou parte deles, não como isto e aquilo, digamos algo a modo de coisa, ao lado, em cima, em baixo ou no fundo das coisas, mas como permeio, entre-meio, médium, elemento: como a unidade que congrega as coisas num todo, como mundo. Por isso metá significa também com, syn em grego que significa unidade de co-pertença mútua no todo. Daí significa ambiência. Afastando-nos agora da explicação etimológica da palavra metá, podemos dizer agora que com metá estamos nos referindo ao que queremos dizer, ao usarmos expressões e palavras como essas: hoje os participantes do curso estão inteiramente alheios. Há um quê no ar!; o ambiente da assembléia não está legal; atmosfera, tonância, humor, horizonte, sentido do ser.

Vamos agora apertar mais um pouco a precisão da nossa compreensão a respeito do sentido do metá, fazendo a seguinte observação. Provavelmente, ao compreendermos o sentido do metá como acima tentamos explicar, a maioria de nós, entendeu todas essas expressões e palavras usadas, como p. ex. elemento, tonância, humor, ambiência, atmosfera no sentido do que a antropologia cultural denomina de “participation mystique”[123], a saber, imersão num estado de ser tomado e ser possuído por uma força sentida como irracional que por assim dizer engole a nossa consciência; ou no sentido de reação instintiva que o animal possui por ele estar naturalmente adaptado ao seu habitat ou ambiência. No caso do meta do methodos há uma grande diferença, digamos “qualitativa” entre estar no “ambiência” e no “elemento” ao modo do methodo humano e o que foi dito da participation mystique e do “instinto” animal ou mesmo “vegetal”. Essa diferença então aparece na palavra hodós que está intimamente ligada com o que na fenomenologia chamamos de sentido do ser[124].

Hodós, segundo filólogos, cuja raiz é sed, que significa ir, andar, dar passos e está no verbo latino cedo, cessi, cessum, cedere (*ce-sedo), sugere um modo de ir para frente – não a modo de uma marcha, de um movimento retilíneo, onde a distância mais curta e mais rápida entre dois pontos é a reta –, mas de um fio d’água, que serpenteia, vai tateando a configuração dos acidentes da paisagem por onde passa, hesita, avança, recua, cede, tenta de novo, numa ginga, num balanço, do requebro serpentina de uma senda, de uma trilha. É a maneira de uma fonte, cujo modo de ser é circular, pleno e cada vez todo, num crescente aumentar em círculos concêntricos, ao encontrar resistências, cede para avançar, e começa a tomar forma de fios d’água que serpenteiam em diferentes curvas e retas, abeirado, abordando, identificando-se com a paisagem e a irrigando. Esse modo de caminhar, de ir, em vez de rasgar a paisagem, fazendo a desaparecer ou dominando-a e a forçando a alinhar suas curvas ao poder da reta do mais rápido e do mais curto movimento do progresso, fazendo aparecer a seta da força como highway automotora, se retrai para o sub-solo, para a profundidade da paisagem, como que unida à ambiência, à tonância, ao elemento da fonte e do seu abismo inesgotável e insondável que é a condição da possibilidade ou melhor é a possibilidade de mil e mil modalidades de ir, de caminhos e suas paisagens, a parecendo, se é que aparece, como o modo de ir do fio d’água, das trilhas e sendas de um cerrado.

Esse modo de caminhar, em tateando cada vez o modo do caminhar e do seu constituir-se caminho, é o que está dito na conotação do seguir, segundo ou seguindo, indo atrás de, depois de, tomando rumo a, em busca de. Assim, resumindo tudo o que dissemos, o método fenomenológico é o caminhar e se encaminhar, enquanto possibilidade, de toda e qualquer caminho como realidade, inclusive também da autoestrada. Assim, se no encontro 2, dissemos que os saberes com que estamos familializados seguindo as ciências e os estudos que cultivamos, ou como amadores, iniciantes ou já especializados, são caminhos, métodos a modo de flechas, objetivos (jectados, lançados para frente) e progressivos, então, em todos esses caminhos da flecha de excelência e competência retilínea pode estar pulsando ainda a recordação, – embora sofrendo ao mesmo tempo de alta e baixa pressão cardíaca, – do modo de ser da sua origem enquanto ciência. Uma vez tornadas estradas largas, eficientes, excelentes e poderosas no empuxo progressivo de tudo reduzir à mais veloz, à mais imediata e à mais econômica e facilitada eficiência retilínea e unidimensional da produção e sua produtividade, as ciências do saber retilíneo, esquecidas inteiramente da sua origem, desprezem talvez o methodós dela como estradas cheias de curvas e desvios inúteis, retrógrados, dispersivos e subjetivos (contrários do objetivos). Mas talvez sintamos hoje nós, ciências retilíneas, inclusive as fenomenologias reais exotéricas, que estamos perdendo a irrigação de fundo, que estamos ficando cada vez mais formais e claros e distintos na logicidade do sistema retilíneo de exatidão matemática, mas vagos, simplistas, corretos e retos, bitolados em infindas classificações padronizadas, no método do andar, como de quem “engoliu um cabo de vassoura” do sistema de limpeza “urbana” da realização da objetividade científico-cultural, na qual tudo que não se alinha a highway da objetivação, ou é subjetivismo racionalista ou racionalizações e irracionalidades subjetivas. Se highway se olhasse com detalhes no seu traçado-flecha, potente e geral, percebesse talvez que a sua largura se compõe de milhões e milhões de finérrimas linhas esticadas, formando uma superfície hirsuta repuxada para frente, sem rugas, lisas. No dia em que se afrouxar o poder da reta do repuxo da interpelação produtiva todos esses sulcos repuxados se enrolarão em pequenos espirais e serpentinas, recordando-nos que todo o caminho da existência não é reta de pro-gresso infinito, portanto não é o círculo assintótico, infinito, indeterminado, sem limites esticado como linha reta, mas cada vez o circulo espirado no surgir, crescer e consumar na finitude concreta, grata e cordial de um caminhar nas sendas perdidas. É mais ou menos nesse sentido que ao falar do método na fenomenologia se citou o texto de Heidegger:

  1. Caminho e balança: Caminho como caminhar acima explicitado é balança, é embalo, a partir e dentro do aconchego do berço, donde se ergue uma senda, tateante, no cuidado e na disposição cordial de abrir-se como caminho do destinar-se de uma existência. O serpentear da senda é como a fala da origem, a primeira fala criativa, na qual vem a si e à luz a possibilidade de ser como o mundo em eclosão: Senda e saga. Esse modo de balançar-se e se esgueirar pelos sulcos dos trilhos, o aviar-se como sendeiro é a fala do início, a saga, o abrir-se criativo da existência humana como linguagem, que antes de ser meio de comunicação e expressão do sujeito, é a aberta e o ponto de salto da eclosão e floração do mundo. Todo esse surgir, encetar, principiar e destinar-se, essa dinâmica do movimento da fonte, é passo, o encontro, o achar-se no balouço do caminho, o andar (Gang). Esse andar, o passo é imperativo, vai e porta, o apanágio humano de ter que ser como mundo na jovialidade da responsabilidade de ser, de ser sempre de novo a possibilidade, disposta, cordial, grata de ser, prenhe, na gestação (trage = porta, carrega) do conceber, guardar e cuidar, gerar, crescer e consumar-se. Falha e pergunta: esse passo, o se encaminhar na gestação do mundo deve se tornar prenhe, gestante de falha e pergunta, a saber, um esgueirar-se ao longo do movimento serpentina da senda da existência na busca errante, na investigação operosa através das trilhas do cerrado que em alemão se diga talvez Feldsweg, caminho do campo.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 4

  1. Estamos tentando compreender da melhor maneira possível o que devemos entender por método na fenomenologia. Para isso estamos tentando circundar o fenômeno caminho. Depois de examinar diferentes modos de ser do caminho, depois de distinguir caminho na senda, na trilha, e o modo deficiente do caminho no modo de ser da estrada e do highway, começamos a ler um texto de Heidegger que nos mostra de que se trata quando falamos ontologicamente de método como caminho na fenomenologia.

Acima foi usada a palavra ontologicamente, para considerarmos de alguma forma uma discussão, que é fruto de uma equivocação básica na compreensão da fenomenologia.

Formulemos a questão da seguinte maneira: Esse texto, O caminho do campo e outros que, supostamente, têm o caráter literário de poesia, considerados como obras da segunda etapa na evolução do pensamento de Heidegger, não são mais tidos como filosóficas. Nessas obras literárias poéticas, Heidegger teria abandonado o rigor filosófico para adentrar a área da poesia e da mística etc. Não vamos agora examinar essa questão. Só a mencionamos para que na nossa leitura de O caminho do campo desperte em nós um questionamento acerca de como devemos entender tudo quanto até agora falamos de método na fenomenologia. De que questão se trata?

  1. Em vez de dizer diretamente de que questão se trata, perguntamos a nós mesmos o que nos estranha ao lermos os primeiros parágrafos do texto. De modo geral estranhamos que o texto está impregnado de atribuições antropomórficas nas coisas que não tem o modo de ser humano, mesmo nas coisas inteiramente inanimadas, sem vida, coisas totalmente materiais: as velhas tílias o acompanham; o caminho deixa o portão; saúda um alto carvalho; o próprio carvalho afirmava: só este crescer pode fundar o que dura…

E justificamos esse antropomorfismo como sendo metáforas, gênero literário etc. Esse modo de considerar um texto como o nosso, que é fenomenológico, não é que esteja ele errado. É possível e é usualmente assim que o interpretamos. Com outras palavras, a fenomenologia é aquilo com a qual ou sem a qual tudo fica como antes tal e qual. Poder ver nesse modo de dizer e falar do caminho do campo e o próprio caminho do campo vindo à fala assim como é aqui no texto de Heidegger é o puro ver fenomenológico, o seu modo de caminhar: o met’hodós. O ser aqui, o ser assim, se chama fenomenológico, ou melhor, ontológico.

  1. Como tudo isso começou a ficar inteiramente incompreensível, vamos começar de novo e se possível, melhor. Mas antes, para que possamos sentir numa densidade maior esse modo de aparecer fenomenológico que se dá no Caminho do campo vamos ver uma fala semelhante à do Caminho do campo, numa outra obra que ao falar do quadro Sapato da camponesa de Vincent van Gogh, abre-nos uma paisagem do campo por dentro. O trecho aqui citado encontra-se na Origem da obra de arte de Heidegger. Diz o texto:

Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos “apenas” e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à terra a liberdade da impulsão permanente.

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a consequência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai à apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser a ele próprio.

Diante dessa exposição, quais seriam as qualificações que daríamos a ela? Que é poética, romântica, sociológica, existencialista, psicológica? Não é assim que todas essas qualificações soam estranhas, alienadas diante do que ali aparece na exposição de Heidegger como existência camponesa? É real? Impressões ou invenções subjetivas?

  1. A palavra existência aqui em uso na expressão existência camponesa é do uso na fenomenologia. O seu adjetivo é existencial. O que entendemos, quando dizermos e ouvimos o adjetivo existencial? Se o entendemos ou ouvimos ontológico ou fenomenológico (fenomenologia como sinônimo de ontologia fundamental), então talvez estejamos mais perto de uma compreensão quem sabe mais adequada da fenomenologia. Mas usualmente entendemos o existencial como existencialista. Existencialista vem do existencialismo. Existencialismo é uma denominação de moda que não diz respeito própria e primeiramente à filosofia mas antes à literatura da época pós-segunda guerra mundial. Onde se retrata a derrocada e se questiona o sistema dominante e dominador do humanismo ocidente-europeu da humanidade, alicerçado no ideal da cultura da razão do iluminismo que culminou na explosão da barbárie do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Isso que apareceu de modo dolorido, aterrador, no entanto era o vir a fala do que estava acontecendo há longo tempo no subterrâneo da nossa epocalidade, a saber, a dominação planetário de um determinado sentido do ser do ente na sua totalidade e o seu modo de ser que continua atuando, agora não mais na forma exacerbada e visível de um hecatombe, mas digamos pacificamente, criando um sistema que mais e mais se institucionaliza como globalização da racionalização do poder jurídico, científico tecnológico, de processamento do ente na sua totalidade, onde a vida, o humano, a dimensão pessoal e subjetiva começam a entrar em desolação de uma desertificação universal. Dentro dessa perspectiva o adjetivo existencial de novo é entendido talvez num âmbito mais vasto e talvez mais profundo, mas sempre referido de modo existencialista ao humanismo, ao antropológico, ao psicológico, de sorte que estranhamos que a fenomenologia use o termo existencial (e a existência) como ontológico. E perguntamos: “Ontológico não se refere ao ente, ao mundo real, existente em si, fora do sujeito, ao objeto? Ontológico não é o oposto do antropológico, do subjetivo?” Essa objeção que fazemos diante da afirmação de que o existencial é o mesmo que o ontológico – (p. ex. a fenomenologia de Heidegger é classificada por certos autores como filosofia da existência e é designada por próprio Heidegger de ontologia fundamental) – trai na pressuposição oculta atrás dela que entendemos por ente e ser o objeto-coisa diante e fora do sujeito, mas sem perceber ou sem desconfiar que é esse o sentido do ser que se tornou há muito tempo o sentido do ser dominante e totalitário, fixado como medida e critério da realidade. Aquilo que no último encontro foi exposto como o dogmatismo dominante de um determinado sentido do ser que aparece no que Husserl denominou de naturalismo, contra o qual ele dirigiu a mais intensa e aguda crítica no início da fenomenologia, e que sucessivamente recebeu o nome de psicologismo, biologismo e fisicismo, está impregnado desse acima mencionado sentido do ser, cuja dominação traz como última conseqüência a redução da realidade à pura quantificação extencional físico-matemática. Esse sentido do ser e o seu modo impregnam de tal modo o ente na sua totalidade que o próprio homem que no naturalismo propaga e fomenta uma tal explicação e compreensão da realidade é reduzido também à pura quantificação extencional físico-matemático como apenas uma determinada composição da quanta da energia material. Aqui o sujeito desaparece e se torna igual ao modo de ser do objeto. Ou melhor, aqui o ente na sua totalidade não é outra coisa do que essa coisa-mundo quantitativo. Mas não poderíamos antes aperceber que aqui o que denominamos o ente no seu todo, o mundo totalmente quantitativo é o sentido do ser constitutivo desse mundo, atuando e nesse atuar se ocultando, enquanto subiectum desse mencionado mundo? Subiectum aqui não é o sujeito-eu localizado como oposto do objeto, nem como algo do modo de ser de um ente constituído como isso ou aquilo, nem como plataforma ou fundamento que está debaixo do surgir do correlato sujeito-objeto, mas a aberta através, a partir e dentro da qual salta, vem à fala uma possibilidade de ser como eclodir, crescer e consumar-se do mundo, no caso de nosso exemplo, do mundo de desertificação do sentido do ser como mundo apenas quantitativo extensional: esse movimento, essa “ação” na sua estruturação dinâmica é o que se diz com ser-no-mundo, cujo fundo é nomeado como ex –sistência, a saber, sistir no ex: a aberta do ser. Ser a aberta do e para o sentido do ser como a passagem da possibilidade de ser para a realidade de ser é a essência do homem, portanto a essência do homem é existência. Nesse sentido, existencial significa ontológico ou fenomenológico, a saber, referido ao vir à luz, ao “phainómenon”.
  2. Ao lermos o caminho do campo fosse útil lembrarmo-nos sempre de novo que a paisagem que ali se descortina é existencial, i. é, fenomenóloga ou ontológica e não existencialista, poético-literária ou psicológica ou ecológica.
  3. O que segue pode não ter muito a ver com o que debatemos no último encontro do nosso círculo fenomenológico, mas pode ser útil para nos ajudar a exercitarmo-nos em revisar continuamente as nossas pressuposições escondidas na nossa pré-compreensão da filosofia e da fenomenologia e das ciências. O texto é tirado de uma preleção do fenomenólogo Heinrich Rombach, citado no texto examinado quando se falou do caminho. Trata-se de uma reportata de aulas ainda inéditas. Por ser reportata, pode haver certa imprecisão na formulação que deve ser atribuída a quem fez a reportata.

“O que se entende por filosofia? Perguntado com mais adequação e mais apropriadamente para a nossa finalidade: O que não entendemos por filosofia, o que não devemos esperar como se fosse filosofia, para onde não devemos ficar olhando na nossa reflexão? Tentarei caracterizar o que é filosofia por meio de uma rejeição, uma negação de dois quiproquós. O equívoco o mais geral que se encontra não somente entre os principiantes e estudantes mas também entre os especialistas e professores consiste em pensar que esta ciência chamada filosofia é caracterizada por uma área objetiva de problemas, portanto, como se um certo número ou um catálogo de questões constituísse o que a gente chama de filosofia. Assim, a gente quiçá fala de teoria de conhecimento como uma área dos problemas da filosofia, da lógica, da Ética, da metafísica etc. Tudo isso seria então determinados problemas, pelos quais cada um que lida com esses problemas, pode dizer que faz filosofia. Os problemas filosóficos nesse teor são como temas biológicos, pelos quais a biologia é definida como ciência e o biólogo como cientista. Mas não é assim com a filosofia. Questões como liberdade, conhecimento, verdade, imortalidade, mesmo tais questões e temas a gente os pode tratar de todo sem filosofar. Pode trata-los pensando que filosofa e no entanto, não o faz. As questões no entanto também não contradizem o filosofar. Lidando com todos eles é também possível que a gente filosofe. Mas essas questões e esses temas não bastam como critérios do processo da ação do filosofar. Assim, portanto, como determinadas matérias, tarefas, temas não caracterizam o filosofar, assim o filosofar não exige nenhum tema determinado a partir de si, e é possível por princípio filosofar com todos os objetos. Portanto, a gente não pode determinar a filosofia a partir da coisa, mas deve-se compreende-la a partir dela mesma, a partir do processo da sua ação.

Mas como é isso? O que a determina então? Quando podemos dizer que o filosofar acontece, em lida com o que? Tentemos uma primeira insinuação de uma resposta pela continuação do pensamento negativo. Portanto, não este ou aquele objeto, não um determinado catálogo de problemas perfazem o filosofar, pois todos esses objetos, problemas, tudo quanto podemos descrever e abordar, já estão de antemão colonizados, localizados num determinado chão da acessibilidade, da tematizabilidade, pré-compreensibilidade, pois se então eu quero começar a filosofar, pelo fato de eu remexer o problema da liberdade, devo já saber, o que é isso, a liberdade. Senão não poderia sequer me mover na direção à coisa no propósito de filosofar. Portanto, já o propósito de filosofar pressupõe uma situação de fundo, que atou a mim e o meu objeto numa comunidade. Quem, porém, funda essa comunidade, donde ela vem? O que a justifica? Como ela parece? Como está ele constituído, esse chão, sobre o qual eu já devo me achar com esses problemas que deveriam presumivelmente constituir a filosofia?

Essas perguntas todas, não são também elas uma pergunta e não seria esta pergunta mais radical, anterior e fundamental do que a outra que se dirige a um determinado problema, justamente a este problema preestabelecido? Quem coloca esta pergunta? Como e caracterizada essa pergunta? Vamos dar um exemplo: Nós temos um determinado grupo de objetos, caracterizados de tal modo que se destacam do outro grupo de outros objetos. Assim podemos aqui falar de filosofia, ali talvez de Psicologia, acolá de pedagogia e historiografia etc. Para que pudéssemos estabelecer diferenciação, necessitamos de uma base, um fundo de referência para comparação, que me abarca a mim e os objetos, para que eu possa me decidir na escolha. E agora a pergunta: e o que é isto? Não seria isto propriamente o tema ordenado à filosofia e a ela reservado? Se isto é o tema da filosofia, então se torna claro que não é nenhum tema que a gente pode trazer diante de si ou que possa ter diante de si; pois, ter diante de si significa justamente que está estabelecido: em contraposição a mim, i. é, portanto, colocado sobre esse fundo que justamente é tema propriamente da filosofia. Mas, se é assim que este fundo deve ser visto como o tema propriamente considerado filosófico, e ao mesmo tempo e é isto que não vem diante de nós, que de modo algum ocorre diante de mim como simplesmente dado, não deveríamos ali suspeitar que se trata do chão que deve ser criado? Portanto, eu não o acho de antemão. Como então? Como o encontro então? Não poderíamos supor, sim experimentar uma vez, experimentar em pensamento, se isto não é algo que ao mesmo tempo é criado; pois este chão não é propriamente algo, sobre o qual eu estou, mas este chão é o que me caracteriza o íntimo de mim mesmo. Se, porém, eu sou isto, que se coloca, pois, eu é sempre colocação de si mesmo, e este chão que é o mais íntimo, então ele é ao mesmo tempo o criado por mim.

Não estou seguro que tudo isso pode ter ficado evidente nessa série de argumentações, como elas se deram no momento. Eu parto disso que o eu é constituído por uma colocação de si mesmo. Isto é bem claro: é o que captamos em cada experiência de si mesmo sem mais. Isto não significa que a gente se criou em fim primeiro a si mesmo no sentido ôntico, mas se trata de uma colocação de si mesmo no sentido ontológico na forma de que, eu assim como eu me acho, posso existir de modo que eu me acho diante do outro, isto quer dizer exatamente, me contraponho de encontro ao outro. O ato da colocação é bem simplesmente isto que no entendimento usual chamamos de atenção. Postura de atenção, não simplesmente apenas boiar num acontecer, mas notar o que ali acontece, pressupõe um a-tender, e esse “a” não é outra coisa do que o momento de colocação de si mesmo. O exemplo, o mais nítido disso tudo é ouvir música: eu ouço música de lazer ou algo semelhante, sem que eu dela me aperceba realmente, embora eu escute todos os sons. Eu deles não me apercebo, mas eu deixo-me levar simplesmente como que boiando nesse suceder musical e p. ex somente me apercebo dela quando a música é interrompida, abruptamente. Durante a vivência musical eu posso ligar e desligar. Enquanto estou desligado escuto quiçá tudo, mas dele não me apercebo, ele não atua em mim, embora esteja ali dentro perfeitamente e ele em mim.

Justamente essa identidade dissolve (auflösen = Pode significar também desatar, libertar) a colocação do eu mesmo.

Vem então o ligar, que consiste nisso, que eu me coloco e somente então através desse colocar vou de encontro ao que ali está e a partir desse ir de encontro, eu me recolho para fora do acontecer, me coloco e desse colocar-me surge o “de-encontro-contraposto”, que então me permite aperceber a coisa como o que ela é. Esse colocar-se é um desempenho, uma efetivação do empenho. É interessante se observar quanto tempo consigo manter-me na atenção.

Jaz assim ao eu, no seu fundo, uma colocação de si, um posicionar-se, i. é, um criar. O que é propriamente criado, se eu me coloco? O que é isto que eu coloco? Eu não coloco um determinado conteúdo ôntico, mas sim, o que eu propriamente coloco é uma base de compreensão, i. é, ali-contra (Dawider), por-sobre-para-além algo pode me en-contrar, eu me coloco como o “ali-contra” de objeto e sujeito. Eu não sou o sujeito, que então se senta em contraposição de encontro a algo, mas eu sou o aberto “estar-ali-contra-posto” ele mesmo; e em me colocando como tal eu me torno sujeito. Portanto, este chão jamais é objeto, nem tão pouco algo que possa ser assinalado simplesmente como Sujeito, mas é o aberto que lança o um-com-outro-mutuamente ←☼→, um lance que se cria, se faz, que tem o caráter do colocar-se do eu. Fichte diz: agenciação efetiva (Tathandlung), ação operativa, a mais originante, que é mais originária do que um fato (Tatsache), pois todos os fatos pressupõem esta agenciação efetiva originária-originante, que faz saltar e ao mesmo tempo cria o chão, sobre o qual este e aquele fato pode achar o seu lugar.

Se, agora, a filosofia é isso que dissemos, se ela se ocupa com essa ação efetiva, então ela tem a ver e muito com a ação criativa, com o criar. Ela não é “contemplação”, “teoria”, mas poiesis: e-fectivar, trazer para fora, fazer surgir e quiçá fazer surgir um compreender. Essa compreensão de filosofia como ação criadora seria provisoriamente a primeira característica do conceito da filosofia, de cujas consequências não podemos agora ter supervisão, a saber, ela é fazer surgir o lance de fundo da base do compreender. Usualmente colocamos um chão, o qual não lançamos propriamente nem o temos lançado, pois por assim dizer, ele já estava ai por si. Por isso, a compreensão sobre a qual nos repousamos normalmente é a obviedade, a compreensão óbvia, ao passo que a compreensão da filosofia é absolutamente não-óbvia, isto que o criar, que está também na obviedade, própria e primeiramente deve efetuar, portanto criar o criar do criar, portanto criar realmente efectuado.

Esses pensamentos um tanto complicados foram expostos para justificar o que pretendemos nessa preleção de filosofia, a saber recorrer a dados e fatos, provenientes da arte, e da história da arte. Pois, se a filosofia é originariamente tão poética, de tal sorte que ela é mais caracterizada por esse comportamento originariamente poético, criativo e ponente do que pelo puro contemplar, puro receber o que vem de encontro, então deve haver no que chamamos de obras de arte conteúdos filosóficos. Mas não conteúdos acrescentados de alguma maneira a ela ou nela projetados, mas sim assim de tal maneira que precisamente perfazem a essência dessa obra e da arte. Assim, deve ser possível lidar com obras de arte e da história da arte como lidar com os textos da história da filosofia. É algo deprimente, observar que gerações inteiras de historiadores da filosofia, juntamente com bibliotecários, tenham deixado se prescrever a que eles devem se ater suas pesquisas. Tudo que está no setor da filosofia vale como texto da história da filosofia e o que ali não está, não pertence à filosofia. Isso acontece então, quando a gente determina a filosofia a partir de uma moldura temática, da qual são determinadas todas as ciências. No momento em que a gente observar que a filosofia não pode ser determinada a partir de padrões temáticos, mas a partir da dinâmica da criatividade, torna-se impossível distinguir e falar a modo de rubricas de objetos e fontes filosóficos, prescritos de antemão de modo bem determinado, mas pode-se incluir ali tudo, ao menos tudo isso que é caracterizado, não por uma compreensão preestabelecida, portanto pela obviedade, mas pela agenciação efectiva criativa da compreensão. Assim, portanto, pode-se entender por uma obra de arte, não o que veste simplesmente com certa configuração, de uma certa visibilidade, uma coisa já interpretada, mas que através do modo de configurar cria um modo de ver, que é ao mesmo tempo um modo do compreender. Assim considerada, a obra de arte não se diferencia do pensamento filosófico; deixa-se con-verter sem mais de um domínio para outro, o de filosofia, e vice-versa.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 5

(1) Continuamos na leitura do texto caminho do campo. A dificuldade que nas sessões anteriores estava presente, embora não a tenhamos tematizado especialmente, persistia, a saber, o que tem a ver todas essas descrições do caminho do campo com a fenomenologia e método fenomenológico. Assim, poderíamos perguntar: o que tem a ver as cenas da terra natal de Heidegger com as questões fundamentais da filosofia? Ou talvez nesse caminho do campo Heidegger não mais estaria interessado nessas questões objetivas e universais da filosofia e das ciências, mas sim com vivências e recordações da sua infância, ele que está numa idade em que a maioria das pessoas pensa na sua velhice e no seu fim vindouro… Usando jargão filosófico, poderíamos formular a nossa dúvida dizendo: De que se trata no caminho do campo, trata-se de uma dimensão ontológica ou apenas subjetivo-pessoal, privativa? Heidegger chamou a fenomenologia de ontologia fundamental no Ser e tempo. Em vários lugares de suas obras Heidegger nos mostra como entre os gregos antigos a palavra fenômeno (phainómenon; phainesthai) dizia a mesma “coisa” que ón, on-tos, a saber o ente, o em sendo. (Daí phainomeno-logia = onto-logia!). Acontece que usualmente, i. é, no uso da tradicional ontologia e metafísica moderna, ente e ser são termos cujo significado é lógico. O que quer dizer, de que se trata quando aqui dizemos que o significado usual dos termos ente e ser é lógico? Significa que o ente foi reduzido a ob-jecto (o que vem de encontro a partir e dentro da posição como projeto). O ser, ou melhor, o modo de ser de um tal ente ob-jecto é pura posição. Esse modo de ser da pura posição aparece no “é” da “cópula” do juízo, cujo esquema pode ser assinalado como S é P e corresponde ao esquema do ser do objeto, a objetividade (S ↔ O) O conceito do ser da ontologia tradicional se refere ao sentido do ser desse é da objetividade. Aqui ser, ao significar pura posição não possui nenhum conteúdo, não significa nada a não ser que é pura posição. Aqui é necessário perceber-se com precisão toda própria que esse puro movimento de se pôr, a pura posição não é tematizada quando dizemos é, ente, em sendo, ser, e já é interpretada como ente posto, como conteúdo formalizado como ocorrência, como o simplesmente dado, como objetividade. De tal modo que pode surgir uma exclamação: “Por que há simplesmente o ente e não antes o nada?”[125] O que denominamos de redução fenomenológica não é outra coisa do que “suspender”, “pôr entre parênteses” essa hipostatização que se dá na e da “pura posição” para a “entidade” formal sem conteúdo da pura “ocorrência” do simplesmente dado, em todas as “realizações” da “realidade” de tal modo que a “realidade” só vem à fala, vem à luz no puro médium (Grundstimmung = tonância, afinação do fundo) do nada a não ser a pura disposição da espera, recepção, cuidado no encaminhar se, seguindo os fios de meada (sentido do ser = Sinn vom Sein = sinnan = viajar) que quais trilhas e sendas abrem cada vez novas paisagens, mundos de realizações da realidade como mundos, sob o toque do destinar-se da insondável possibilidade de ser. Esse puro médium é o caminho do campo, o ontológico do fundo das constituições das paisagens que no jargão da fenomenologia se chama: ex☼sistência, a saber: ser-no-mundo: Da-sein = ser-ai = pré-sença. (2) Isto tudo significa que todos os nossos encaminhamentos, abordagens e interpelações objetivas e objetivantes, quer na vida, quer nas ciências, são posicionamentos que estão fundados na hipostatização entificante-objectiva da pura ocorrência do simplesmente dado. Essa plataforma formal entificada ou objetivada da compreensão lógica do sentido do ser[126], se nela atuar a força “de-construtiva” da Redução fenomenológica, há de perceber que a positividade dos nossos saberes e das nossas ciências repousa num abismo, donde e em cuja possibilidade reside o fundo das suas fundamentações e coerências lógicas cada vez próprias. (3) Tomemos um exemplo. O olhar da mãe que protege e cuida o mundo dos sonhos dos jogos das crianças. No olhar da mãe está implicado: o olhar é ocorrente, existe. O olhar existente é da mãe (mãe é ocorrente, existe) (nesse ocorrer, nesse existir há diferença de prioridade ou densidade da entificação: mãe é ocorrente mais densamente do que olhar de tal sorte que o olhar pertence à mãe, é da mãe). Esse processo de adensamento e rarefação da medida de “realidade” enquanto quantificação da ocorrência é o posicionamento, o fundamento, a plataforma sobre a qual se dão as conexões das diferenças de cada objeto, assegurando-se assim a unidade, o conjunto. Mas nesse asseguramento, o que dá o tom fundamental é já um primeiro produto geral de uma determinada pura posição, de tal modo que a dinâmica da ação originariamente criativa não se põe, não se coloca em questão, i. é, não está no ponto de salto da eclosão do mundo, mas se transforma em primeira camada fixa de uma construção que não se percebe enquanto a pura disponibilidade do ponto de salto, esquece-se que é pura posição e se interpreta como fundamento, causa, como o sentido do ser da ocorrência, da neutralidade geral da objetividade que empresta o caráter de realidade aos entes; dos entes (os em sendos) que se transformam em objetos dessa fundamentação e uniformização objetivante e objetiva. Os entes nas suas diferenças são como que encaixotados dentro da quadratura formal do sentido do ser como ocorrência factual, reprimidos nas suas diferenças, se retraem e não aparecem em sendo cada vez salto do vir à luz da estruturação do ente no seu todo como ser-no-mundo. Husserl chama essa impostação objetivante de impostação natural ou crença na realidade. A redução fenomenológica suspende, põe entre parênteses a vigência, a validez dessa hipostatização do é como ser da objetividade, mostrando que ela, a hipostatização, já é pro-ducto de uma presença anterior e originária, a saber da pura posição que na fenomenologia de Husserl se chamou inicialmente de intencionalidade e mais tarde de Vontade da evidência apo-díctica e em Heidegger Da-sein, a saber a aberta (das Offene) como pura espera do inesperado, a clareira do ser, a pura dinâmica criativa e ab-soluta do velar-se e desvelar-se (=verdade) do abismo da possibilidade de ser em multifárias eclosões da concreção dos mundos, i. é, ente na sua totalidade. A fenomenologia assim entendida desfaz o feitiço da dominação das estradas que rasgam paisagens, fazendo-as desaparecer na sua identidade diferencial, transmutando tudo em objetos concomitantes e componentes do seu traçado retilíneo e libertando cada ente como sendas e paisagens de um mundo cada vez seu, na variedade e riqueza de suas diferenças, todos eles unidos no mesmo médium, na mesma toada de repercussão do modo de ser, do met’hodos, a saber do caminho que no texto que estamos lendo é caminho e ao mesmo tempo o desvelar-se da paisagem e seu modo de vir à fala: o caminho do campo. E assim, podemos dizer por fim que o caminho do campo é ele pura e limpidamente ontológico ou fenomenológico. Nós que formamos um círculo e uma andança serpentina circular, mas marchamos valentemente na grande high way, na estrada poderosa das ciências e filosofias, não poderíamos ficar mais claros e nítidos na inquietação de uma questão ou da busca, do sentido do ser dos fundamentos das nossas posições de início, lá onde, se cavarmos um pouco mais para o fundo, pressentimos de súbito e de todo que essa pretensa superfície segura e firme das pressuposições fundamentais da nossa positividade científico-filosófica está por um fio no nada abissal da insondável e inesgotável possibilidade do sentido do ser que sempre nova e de novo nos envia acenos para o acordo e o despertar à espera do inesperado. Assim estamos no met’hodos, no elemento, no médium da coisa, i. é, causa ela mesma da fenomenologia.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 6

  1. Diz Heidegger: “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande”.

(…) O perigo iminente é o homem de hoje ficar surdo à linguagem do caminho, cabendo-lhe nos ouvidos apenas o ruído das máquinas que se lhe afiguram, então, como a voz de Deus. E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado, o simples parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta. O simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu (versiegt).

Nesse trecho onde no caminho do campo se fala do simples, para nos prepararmos a falar mais diretamente do Simples que guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande, conversamos longamente sobre a situação do que na fenomenologia poderíamos denominar de desolação da desertificação do nihilismo europeu e ao terminarmos o encontro, foi proposto pelo coordenador do nosso círculo fenomenológico, frei Marcos Aurélio que nos preparássemos para o seguinte encontro, cada qual de nós, tentando responder a pergunta: “haveria uma ligação mais íntima entre a compreensão mais própria do simples e essa desolação? E, se houver, em que sentido?”

Essa proposta foi feita para que a nossa compreensão do que seja simples não se incline e decaia na compreensão antropológica, psicológica, mas permaneça com rigor: ver simples e imediato o surgir do fenômeno.

Usualmente, achamos tudo isso um tanto ridículo ou exagerado. Para que essa acribia sofisticada da fenomenologia, a qual nem sequer os próprios fenomenólogos conseguem manter assim nesse modo “purista”. O nosso bom senso nos diz: por que não pode ser psicológico? Antropológico? Não tenho as coisas imediatamente diante de mim, não é tão simples admitir a coisa ela mesma ali como ela me aparece? Por que tanto medo sofisticado do realismo simples, aqui e agora, concreto?

Essa maciça evidência da captação da realidade em si, anterior a toda e qualquer captação nossa, essa crença na realidade não é para ser negada. É para ser admitida. A questão não consiste em admitir ou negar, ter certeza ou duvidar da existência da realidade. Trata-se simplesmente de examinar se o que vejo é evidente ou não. Se aparece ou se oculta. E trata-se de ver suas implicações. Trata-se de ver simples e imediato ou deixar ser o ente no seu ser: E-videri (voz medial, indica a dinâmica da presença, da vigência de e para si nela mesma). O que aqui foi dito é terrivelmente insuficiente e mal dito para dizer de que se trata. A tentativa de mostrar na e-vidência deve ser repetida sempre de novo. Tentemos pois dizer a questão de um outro modo. E isso repetindo o que já foi dito muitas vezes, a saber, indicando o que nos bloqueia de ver simples e imediatamente. Um dos itens que nos bloqueia e impede de ver simples e imediatamente é isso que nós pensamos ser simples e imediato, mas que de fato, longe de ser simples e imediato, é altamente complexo e mediado em várias camadas. Com outras palavras, confundimos facilmente o grosso modo e o em geral com simples e imediato.

  1. Suponhamos que os entes sejam como que novelos de linhas tão infinitesimalmente finas que estão enroladas em si e então, vistos de fora parecem este rolo, aquele rolo, indefinidamente. Cada qual diferente no sentido de um está duro como uma pedra, outro cheio de fiapos pontudos como um ouriço, outro achatado como figo esmagado, outro fofinho etc. Alguém que quer esses novelos todos como fios enrolados e quer os desenrolar e recuperar os fios para fazê-los feixes e fios mais grossos e resistentes e assim tecer tecidos etc., pega a ponta do fio que aparece num lugar do novelo e então seguindo esse fio condutor vai desenrolando todo o novelo. Nesse trabalho paciente vai ter que desembaraçar nós, cruzamentos de fios, fios rompidos que se enrolam com outros fios de uma camada mais funda etc. etc.

Esse trabalho de desenrolar o novelo cada vez enrolado, compactado e emaranhado de modos diferentes, seguindo a condução que está sugerida na ponta do fio da meada é o movimento de de-construção, para se chegar ao simples elementar de toda e qualquer coisa já constituída. Se compararmos os entes que nos cercam e inclusive a nós mesmos com os novelos enrolados de acima, os entes não aparecem neles mesmos a partir deles mesmos, mas já de alguma forma defasados, emaranhados por extrapolações, hipostatizações indevidas, entulhados sob categorizações de outras dimensões etc. e principalmente já fixados e congelados num determinado sentido do ser que não deixa ser o ente no próprio do seu ser como mundo. Isto significa que supostamente, no realismo usual, o que pensamos que se dá de imediato, direta e simplesmente não se dá de modo algum direta e imediatamente, mas necessita de um cuidadoso e paciente trabalho de desconstrução para que a coisa ela mesma se apresente à evidência no seu próprio. A maior parte do trabalho da fenomenologia é essa desconstrução que prepara o evidenciar-se do fenômeno. Mas aqui para poder trabalhar na desconstrução se é necessário que todo esse processo de decostrução se dê no médium do ver simples e imediato que é a pura disponibilidade de receber, que Husserl chama de transparência.

  1. A seguir, tentemos dar um exemplo de desconstrução, não diretamente, mas como que assim de tabela, falando da coisa ela mesma, que é uma expressão que entra no slogan que caracterizou a fenomenologia, a saber, Zur Sache selbst, à coisa ela mesma. Examinemos pois rapidamente o que entendemos por coisa, pois para entender o que é coisa temos que lidar com o processo de deconstrução.

Se perguntarmos: O que é a coisa, ela mesma, de imediato, no cotidiano, respondemos: coisa é isto e aquilo que está ali diante de nós, dado de antemão como objeto, à disposição da ação de visualização e de manipulação. Nessa ação, lidamos com uma porção de “coisas”. Os termos afins ao termo coisa que também indicam uma porção de “coisas” são ente, objeto, algo. Quando dizemos uma porção de coisas, queremos dizer uma infinidade de coisas. Coisa, portanto, indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, sem exceção, na sua totalidade. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação, inclusive o sujeito humano ele mesmo. E até ao nada podemos chamar de coisa, enquanto ele é passível de ser nomeado como coisa. Assim, dizemos: aquela coisa chamada nada não está com nada. Assim, coisa, objeto e ente são usados ordinariamente como sinônimos. Enquanto tais, indicam, ao mesmo temo, o conjunto todo do que é e pode ser, na sua generalidade abstrata e formal e ao mesmo tempo cada ente real e possível, em concreto, aqui e agora. Nesse sentido, coisa, embora indique também a generalidade abstrata e formal, se inclina para a direção de cada coisa, em concreto aqui e agora. Assim, nessa inclinação coisa ela mesma parece dizer: esta realidade concreta e real e nada de abstração, fantasia ou imaginação de “coisa” que é longe do que é de fato. Em português, na gíria do uso popular, p. ex. em vez de coisa, temos os termos troço e trem. Neste, aparece de modo mais palpável a ambiguidade acima conotada pela palavra coisa. Mas, quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “perplexo”, pois nos soam tão concretos e vivos, de tal modo que se tem a sensação de ter “a coisa ela mesma” diante da gente. No entanto, quando se pergunta de que se trata, nada dizem a não ser um indeterminado “algo”, indefinido, mas a modo todo e bem concreto, vagamente! Na fenomenologia, usualmente os termos acima mencionados como similares ou iguais à coisa, todos eles de alguma forma, embora cada qual a seu modo, dizem o que na filosofia se costuma denominar o ser e o ente, e a questão do sentido do ser e suas implicâncias. Na fenomenologia, pode ser que o slogan Zur Sache selbst se refira de alguma forma ao retorno a essa questão, como coisa ou causa da filosofia.

3.1. Coisalidade

Entrementes, como dissemos acima, há coisas e coisas, em diferentes modos. A expressão “há coisas e coisas”, no entanto, quer nos dizer que a coisa possui sua coisalidade. Para compreender de que se trata nesse “negócio” de coisa e sua coisalidade, vamos à mão de dois textos, digamos banais, tentar ordenar e fixar melhor que coisas e quantas coisas nos vêm à mente quando falamos de coisa, usualmente.

3.1.1: O primeiro exemplo é uma descrição acerca da pesca, escrita por Tokaishige Sadao, um chargista japonês, hoje bastante conhecido na mídia do seu país. No pequeno livro “Visão nipônica do Sr. Jooji”, na primeira estória, intitulada “Modinha pesqueira do Pacífico” implica ele:

Antigamente, era só sair um “tantinho” fora do subúrbio, havia riacho, lagoa e lago. E uma porção de pequenas lojas de secos e molhados, onde se podiam comprar bem barato, anzóis e varas de pescar e chapéu de palha. A gente se munia desses apetrechos, e um, dois, três!, se abancava à beira do riacho, e, pronto, tinha-se a panca de um pescador. A pesca, hoje em dia, não vai assim tão facilmente. Não dá para ir pescar, assim, sem mais nem menos. É domingo. Você dormiu bem, acorda tarde. O sol está já há tempo a aquecer a varanda. Depois de ter lido o jornal do dia, de repente, dá-lhe a vontade de ir pescar. Ajeita a camisa, desabotoada, enfia os pés num par de velhas sandálias, e lá vai você à loja de materiais de caça e pesca, comprar anzóis, vara e chapéu de palha e pedir conselho do vendedor. E, então, é ali que você sente na carne a vergonha de ter sido tão descuidado, frívolo e superficial nas coisas da vida humana. E vem o interrogatório: “O que o Sr. quer pescar?” “Ora, quero pescar peixes! A pesca não é para pescar peixes?” Com dignidade grave e solene, o vendedor especializado e perito inquire: “Peixe do mar? Peixe do rio? De lagos? E se peixe do mar, numa embarcação grande, ou na canoa, ou simplesmente à margem do lago e do rio? E que espécie de peixes, o Sr. quer pescar, salmão, atum, pescado, enguia?, lambari?”. Você um tanto deprimido sob a pressão de tantas perguntas, envergonhado pela ingenuidade e despreparo na abordagem da pesca, um tanto ferido no seu brio, tenta se salvar, timidamente: “Pois, eu quero só pegar peixes…, pode ser bem pequeninos, pensei só pescar assim, assim … e comprar anzol e vara de pescar…!” O vendedor competente, com rigor e precisão, não me vende nem anzol nem vara, assim sem mais nem menos: “Há anzol e anzol, vara e vara, linha e linha e isca e isca, conforme que peixe o Sr. quer pegar, onde e como quer pescar. Por isso, o Sr. que é o sujeito e agente da pesca, se não determinar com maior precisão e responsabilidade a mira e meta de seus atos e projetos, e não me disser o que, como e onde quer pescar, não lhe posso ajudar em nada, nem sequer vender-lhe os materiais de pesca e seus acessórios. Hoje, não é mais possível, nem é permitido pescar, sim viver a vida, considerando a vida e o mundo assim tão facilitados, numa postura vaga de “quero pescar apenas peixes!”

Nessa descrição da pesca temos o peixe, o anzol, a vara de pescar, o chapéu de palha. Portanto uma porção de coisas. Mas essas coisas para o pescador amador estão diante dele assim de modo geral, embora de modo concreto e vivo, no seu cotidiano como dentro da sua perspectiva, assim mais ou menos, na medida do uso, segundo o escritor, dentro da existência amadora japonesa de antigamente, de tal sorte que perguntado acerca de todas essas coisas, o amador, pescador do fim de semana, não sabe responder com exatidão, o que, como, onde pescar. Pois na paisagem da existência amadora de antigamente, no pescar peixes, com anzol, linha, vara de pescar e com chapéu de palha, todas essas coisas, recebem seu significado óbvio, cada coisa no seu lugar, nesse modo de ser solto, meio espontâneo, mas muito bem adaptado à realidade. O que, porém, não haveria de acontecer, se mesmo na existência japonesa de antigamente, se tratasse de uma pesca profissional, embora por sua vez o caráter profissional de antigamente tivesse o seu modo de ser todo próprio artesanal, cunhado pela existência japonesa de antigamente e bem diferente à da existência cunhada pelo profissionalismo técnico científico, insinuado pela estória de Tadao. Aliás, profissionalismo técnico científico não permite ser solto e descuidado mesmo no amadorismo.

Assim, dizer, por exemplo, como na caracterização da coisa acima, que “coisa é isto que está ali diante de nós, dado de antemão como objeto, à disposição da ação de visualização e de manipulação”, parece se tornar insuficiente, parece não dizer muita coisa, e ao mesmo tempo dizer tudo, mas de um modo assim e assim. O mesmo se pode dizer da outra caracterização acima mencionada da coisa. “Coisa indica uma infinidade de entes, objetos sem fim, um atrás do outro, cada algo, sem exceção, na sua totalidade. Portanto, coisa é tudo que aparece e pode aparecer diante do sujeito humano, à disposição da sua atuação, inclusive o sujeito humano ele mesmo.” Se observarmos a diferença da impostação diante da coisa chamada pesca e acessórios, entre a mirada do vendedor especializado de hoje e do pescador amador que brinca de pescador, como antigamente, descrita na estória acima, as características dadas por nós acima acerca da coisa parecem muito semelhantes à captação vaga e indeterminada do pescador amador de antigamente. Para que a captação do que seja coisa tenha a precisão e determinação da maneira de captar a pesca e seus acessórios, conforme a do vendedor especialista e competente da estória, é necessário mirar a coisa, enquanto esta coisa e aquela coisa, a partir do ponto de vista, da sua finalidade, da sua utilidade, e a distinguir dentro de determinados padrões de classificação que são derivados segundo o ponto de vista da sua finalidade e utilidade. Entrementes, aqui no que se refere à precisão e determinação a partir da finalidade e utilidade, se necessita de uma especificação mais acurada. Pois o que foi dito da determinação da coisa a partir da finalidade e da utilidade, segundo a descrição feita da pesca por chargista japonês, vale sem dúvida para os materiais de pesca como anzol, linha, vara, isca etc., portanto para as coisas confeccionadas para a pesca, mas não para o peixe propriamente dito. Pois peixe é uma coisa que pertence à natureza e não à cultura ou à técnica. Peixe é peixe, independente de finalizações e miras que lançamos sobre ele. Isto, como já foi mencionado antes, significa que a infinidade de coisas, por diferentes que sejam, podem ser divididas a grosso modo em coisas feitas pelo homem e coisas pertencentes á natureza, portanto coisas culturais e coisas naturais.

Mas que coisa é essa que especifica e determina a coisa, a partir e dentro de uma definida finalidade e utilidade? De repente, nos damos conta de que entre as coisas que acima foram mencionadas, digamos, divididas de modo bem geral em coisas feitas pelo homem e coisas pertencentes à natureza, aparece uma coisa toda estranha, denominada homem e suas ações. E a coisa homem pertence certamente à natureza, mas ao mesmo tempo parece ser de alguma forma produto feito por ele mesmo, portanto coisa que é da cultura. Não é a partir dele, nele e para ele que as coisas são colocadas, nas classificações, conforme o interesse, a determinação específica de suas finalidades e projeções?

3.1.2: O segundo exemplo é um trecho, citado por Foucault e atribuído por ele a Jorge Borges, que fala de “uma certa enciclopédia chinesa”, onde está escrito que

os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, f) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas[127].

Acima, assim de passagem, distinguimos coisas e coisas, classificando as coisas em coisas culturais e coisas naturais, coisas produzidas pela indústria humana e coisas pertencentes à natureza. Tentemos ordenar as coisas chamadas “animais”, classificadas na acima mencionada enciclopédia chinesa, em coisas produzidas pela indústria humana e coisas pertencentes à natureza.

Provisoriamente, à primeira vista, são coisas, produtos da indústria humana: b) animais embalsamados; h) incluídos na presente classificação; k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo.

Pertencem diretamente à natureza: d) leitões; i) animais que se agitam como loucos; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas.

Mas, e os animais, a) pertencentes ao imperador; c) domesticados; f) inumeráveis; l) etcetera? Certamente todas essas coisas são animais, e como tais não foram fabricados pelos homens, mas a referência que eles têm para com o homem, não os tira da região dos animais selvagens, portanto do reino das coisas que surgiram diretamente da natureza ainda não tocada pelos homens? E g) os cães em liberdade? Certamente vivem soltos, na natureza, mas podem ser também cães domésticos que se soltaram e se tornaram selvagens. E mesmo que sejam, desde o início, selvagens, o fato de serem classificados como selvagens, não é porque já são vistos a partir do ponto de vista do homem que divide os animais em domesticados e selvagens?

Mas, e) sereias, f) fabulosos são certamente “animais”, produtos da imaginação humana, portanto fabricados pelo homem?! Mas, mesmo que sejam imaginados, não são imaginados como pertencentes à natureza, e não fabricados pelo homem? Por outro lado, seja como for, seja desse ou daquele jeito, no momento em que se usa o termo animal para indicar todas essas coisas, não se está indicando que ao menos na última instância se está apontando para o bicho no sentido de coisa que não foi fabricado pelo homem mas, que pertence à natureza virgem? Mas que coisa é essa que chamamos de cultura e natureza, coisa fabricada pelo homem e coisa proveniente da natureza, toda essa divisão, classificação, não diz simplesmente referência ao interesse do homem? Tudo isso somente tem o seu sentido, a realidade do seu ser, se de alguma forma está referido ao homem!? É possível ser algo em si, independente da referência ao homem? Se não é propriamente ao homem, mas a um sujeito, seja ele homem, espírito, Deus etc.? A própria coisa em si, independente de toda e qualquer referência ao sujeito, não é uma referência ao sujeito, pois somente nele, a partir dele, com e para ele, a coisa tem sentido, a realidade, chamada independente, em e para si?

Assim, a palavra coisa é habitada por uma chusma de entes, a palavra coisa se entoa cada vez e se repercute numa celeuma de significados.

3.2. Coisa e coisalidade, uma estranha implicância entre coisa e homem

Assim, se os escutarmos bem, coisa e todos os termos similares acima mencionados insinuam nuances de diferença. Desse modo, distinguimos coisa e coisa, ou melhor, coisa e sua coisalidade. Tentemos, pois, enumerar as coisas que já se desfilaram, p. ex., na estória da pesca, diante de nossos olhos, nas diferenças de sua coisalidade. Coisas naturais: peixe, minhoca, o homem pescador, o bambu, o rio, o barranco, vento, o céu aberto, as árvores à margem do rio, o sol causticante, etc. etc.; coisas que eram naturais mas entraram na perspectiva do uso: bambu®vara de pesca; pedra®banco para se sentar; árvore e sua sombra®proteção contra o raio do sol; minhoca®isca; sol®secador da camisa molhada; o homem®pescador®fornecedor e fornecimento de peixe para a cozinha da mulher, na preparação do jantar etc.; coisas feitas pelo homem: anzol, vara de pesca, chapéu, vestimentas para a pesca, óculos escuros etc.; e são também coisas, p. ex., os pensamentos que ocorrem dentro da cabeça do pescador?; seus sentimentos, vivências, os números, através dos quais conta quantos peixes pescou, quantas minhocas ainda restam como iscas?; a beleza da paisagem bucólica; a chateação diante do pedantismo técnico do vendedor de anzol, linha e vara; o sistema sofisticado da pesca e a indústria dos instrumentos de pesca e seus acessórios; a civilização tecnológica que domina o Japão e a sua cultura antiga, que aos poucos desaparece etc.?; a morte dos peixes que pesca, a qual o pescador associa à sua própria morte vindoura; a concepção budista da vida e da morte, da natureza, da civilização etc. que de alguma forma move o pescador, quando se deprime ao comparar o Japão de hoje, ao de ontem?; essa própria comparação que ele faz de hoje com ontem, o tempo, ontem, hoje e futuro etc., etc.? Em todas essas coisas, e suas coisalidades, no nosso uso da palavra coisa, coisa, geralmente indica objeto. Podemos talvez, “grosso modo” e à primeira vista, dizer que coisa, como objeto, está referida ao projeto da produção do homem[128]. Objeto é a coisa produzida pela ação da indústria humana. Ao passo que coisa se usa de preferência para indicar mais um fato da natureza virgem, ainda intacta da indústria humana. Portanto coisa da e produzida pela natureza. E quando queremos indicar indistintamente tudo que é e pode ser, seja no sentido do objeto como também no da coisa, seja se é produto do homem, seja se é produto da natureza, usamos o termo inteiramente geral algo. A coisa-objeto e a coisa-coisa, a saber, o fato natural, e a coisa-algo, o que é? Há algo anterior à coisa-objeto (produto do homem) e à coisa-coisa, ao fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas?[129] E onde se localizam todas aquelas coisas que acima enumeramos que não se encaixam com tamanha facilidade, nem à classe das coisas da natureza, nem à das coisas da cultura ou feitas pelo homem? Mas sejam como forem, todas essas coisas, e suas coisalidades, se acham numa ordenação classificatória da mais geral para a específica, e desta para a individual: p. ex. peixe, lambari, este lambari etc. O nosso interesse a seguir seria o de observar que aqui se dá uma pequena distinção, a saber: usualmente nós pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. E a coisalidade de cada coisa como que indica a classificação específica e geral que subsume sob sua classificação as coisas individuais. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisa a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. Isto significa que se dá aqui uma espécie de coisalidade das coisalidades das coisas. Assim, com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação” contém sob a extensão do seu modo de referência como “ser-algo” todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo homem”. À coisalidade da classe “coisa”, pertencem primeiramente as “coisas produzidas pela natureza, mas também os objetos produzidos pelo homem. Nessa última acepção coisa exerce a mesma função de algo. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou inteiramente vazios de conteúdo ou prenhes de possibilidades concretas de conteúdo.

Em alemão, como acima mencionamos na nota, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Por enquanto, provisoriamente sem muita precisão nem certeza, talvez possamos dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisalidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de obra artesanal, feita à “mão”; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse como “a coisa ela mesma”. Sache possui o mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heróica, mito, indicando a “coisa” toda própria, referida à tradição antiga, primitiva e originária no início da história.

Repetindo, observemos aqui que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que poderíamos chamar de entidade das coisalidades das coisas. São, portanto, cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não é muito preciso a gente chamar esses termos de classificatórios. Pois classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo” plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa e, no entanto, não se iguala a ela. Por isso, aqui, em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua entidade. Mas então, o que é horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado, talvez possamos dizer: Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm de encontro a nós, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinação de ser. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. É o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache, há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicâncias”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicâncias, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber, como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicâncias de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa auto-identidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa único singular perfilação do abismo insondável de ser. A referência do termo coisalidade ao horizonte e muito mais ao mundo, portanto, a coisalidade como horizontalidade ou como mundidade começa a mostrar uma implicação muito estranha na coisa, junto da coisa, tenha ela a acepção que tiver, seja qual for a sua significação dentre as acima mencionadas. Em que sentido?

De tudo isso que até agora, como que provisoriamente, refletimos da complexa acepção da palavra coisa, talvez possamos acentuar a observação de que o exame da coisalidade é de decidida importância para determinar melhor o que é a coisa ela mesma. E que o exame da coisalidade, i. é, do caráter do ser da coisa, nele mesmo, está intimamente ligado com o exame da sua referência ao interesse, a partir e dentro da qual, está implicada com o ponto de vista ora como classificação generalizante ou espaço vazio, aberto, ora como horizonte ou mundidade, que está intimamente ligada ao ser do homem. Ao homem a quem a coisa aparece ora como isso, ora como aquilo no modo de ser da sua presença como coisa.

Depois desses arrazoados bastante enrolados, fixemos ainda que provisoriamente a seguinte observação: à primeira vista, quando falamos de coisa ela mesma, da coisa e da sua coisalidade, tudo isso se localiza diante, ao lado, ao redor de nós, como a realidade em si, independente, sem referência imediata a mim ou a nós como sujeitos. E assim nós nos achamos usualmente, de “imediato”, virados para as coisas, com elas nos relacionamos como a objetos, i. é, a entes colocados diante de nós. E somente nos apercebemos a nós mesmos, enquanto também nos colocamos diante de nós mesmos como “objetos” da nossa captação. E quando me pergunto: quem capta a mim mesmo, quando me coloco diante de mim como objeto, o sujeito ele mesmo da captação de mim mesmo como objeto, como sujeito objetivado, se retrai, e não o capto enquanto sujeito, mas sempre de alguma forma como objeto. Assim, surge um estranho estado de coisas onde temos “diante” de nós coisas-objetos e coisas-sujeitos, dentro da totalidade que abrange esses dois tipos de coisas, como seu horizonte. E, no entanto, isso que aqui aparece como horizonte, como totalidade, como mundo, pode ser que não seja outra coisa do que a projeção do sujeito enquanto sujeito no seu ser que se retrai, objetivando-se como o espaço a partir e dentro do qual nos vêm ao encontro os objetos. Seria possível aqui suspeitar que toda e qualquer presença totalizante como horizonte, mundo, abrangência, imensidão, profundidade, e mesmo classe, setor etc. são projeções a modo de tematização do sujeito operativo que no retrair-se constitui a estruturação da unidade da “realidade” que vem ao nosso encontro como “objeto”? E usualmente, em nosso cotidiano banal, esse estado de coisas é colocado dentro do esquema de relacionamento sujeito e objeto, a modo de relacionamento entre coisa e coisa, embora coisas diferentes. Esse estado de coisa, que aparece na sua coisalidade, no e a partir do inter-esse, da referência ao homem, visto na sua dinâmica concreta, se chama fenômeno. Assim, a coisa e sua coisalidade, intimamente implicada com o interesse, com o ponto de vista, ora como horizonte, ora como mundo, tenha talvez muito a ver com fenômeno e sua fenomenalidade, na fenomenologia. É interessante observar que para os gregos, na antiga Grécia, donde provém a filosofia, a palavra variante para a coisa que é o ente (ón, –tis), se referia à mesma coisa a que se referia a palavra fenômeno (phainómenon).

  1. Depois de todas essas implicações com a coisa, perguntemos com grande concentração: Que coisa é o simples do caminho do campo?

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 7

  1. No sexto encontro do nosso círculo fenomenológico, não fomos muito adiante na leitura [pois o nosso animador frei Marcos teve de ausentar devido a uma viagem a São Paulo]. Em vez de ir adiante, tentamos retomar pontos das reuniões anteriores, sobre os quais alguns dos participantes acharam útil trocar idéias em repetição. Assim tentamos nos concentrar de novo sobre o tema possibilidade e realidade na compreensão fenomenológica. Esse tema nos levou a ver mais em detalhes o que seja redução, ideação e constituição etc. E com isso também examinamos a estrutura interna do modo de ser do esquema de teoria do conhecimento S ↔ O.

Nessa ocasião, comentando a observação de Heidegger no seu livro Fenomenologia da vivência religiosa que diz que dentro de um objeto não se pode morar, conversamos longamente sobre o modo de ser do mundo e da mundidade ou, com outras palavras, sobre horizonte e dimensão (embora esses termos não sejam simplesmente sinônimos do mundo), falamos também da existência e existencialidade (Da-sein e Existenz) como uma nova compreensão do ser do homem, diferente do ser-sujeito, diferente da subjetividade e com isso diferente também da objetividade. Tentamos ver assim que a realidade ao redor de nós, dentro de nós, diante de nós não se dá originariamente como objetos diante do sujeito-homem, mas o ente cada vez no seu todo se abre e se estrutura como mundo, digamos como uma paisagem cujo ponto de eclosão é o homem, não como sujeito e agente do mundo, mas como a abertura de passagem da possibilidade de ser, que vem à luz, se abre em leques como uma paisagem do ser, conforme a maior ou menor capacidade de o homem no seu ser, captar e deixar ser o sentido do ser que o conduz para deixar ser o mundo em eclosão.

Esse modo de compreender o homem como a aberta do mundo, como a possibilidade da realidade mundo, nos fez entrever que essa aberta-homem não aparece como esta coisa, aquela coisa, nem como sujeito e agente de ação sobre coisas, nem projetor subjetivista de objetos e conjunto de objetos, mas sim como a dinâmica de possibilidade do eclodir, crescer e estruturar-se do mundo. Tudo isso nos facilitou a ver uma paisagem-mundo toda estruturada no seu ser como um lado de uma folha, cujo outro lado é o homem, não como isto ou aquele, não como sujeito e agente dos objetos, mas como a aberta, como horizonte aberto: isto é ser-no-mundo.

  1. Da-sein como modo de ser próprio do homem deve ser entendido com precisão na oscilação da sua ambigüidade. Pois, uma vez pode ser entendido como o modo diferencial que distingue o homem dos entes não-humanos. Assim entendido, no jargão filosófico, dizemos que o Dasein é uma diferença ôntica que distingue o homem de outros entes não-humanos. Nesse caso, teríamos duas grandes regiões do ente como: a região do ente humano e a região do ente-não humano. Embora nessa divisão entre o modo de ser próprio do homem e o modo de ser do ente não-humano haja grande diferença, o sentido do ser que abrange essas duas regiões numa generalidade maior e mais vasta é o ser, num sentido bem determinado. Pois tanto os entes humanos como também os entes não-humanos são entes. O sentido do ser aqui é comum, geral a ambas as regiões. A expressão o modo de ser próprio do homem, entendido como diferencial diante do ente não-humano, debaixo do igual sentido do ser, comum a ambos, é diferença ôntica. O modo de ser próprio do homem, porém, ao ser entendido como diferença ôntica, pode ao mesmo tempo ser entendido também como diferença ontológica. Na diferença ontológica, a diferença existente não é entre este ente e outro, nem entre ente e ente num sentido mais geral, mas entre o ser e ser, ou melhor, “entre” o sentido do ser e o sentido do ser. Mas de que se trata? Em vez do ser ou sentido do ser usemos os termos horizonte, ou melhor, mundo. Nesse sentido, então, a diferença ontológica diz respeito à diferença existente entre horizonte e horizonte, entre mundo e mundo. Só que aqui é necessário não entender o horizonte (ou o mundo) de modo vago e abstrato como se fosse um grupo, uma classe ou uma região diferente de entes. Pois horizonte ou mundo diz respeito à totalidade, de tal modo que não se trata de “objetivar” a totalidade como ente, colocando os entes um ao lado do outro a modo de conjunto de coisas. O horizonte ou o mundo como cada vez totalidade abrange todos os entes atuais e possíveis sob o sentido do ser ali operante, de tal modo que, uma vez dentro, não há nada que possa ficar fora e, a partir de dentro não se pode perceber que é possível uma outra totalidade. Surge a pergunta, é possível se pensar o mundo o mais geral que abrangesse todos os mundos na sua mundidade? Não seria possível um mundo assim geral, pois o mundo não é um gênero, nem espécie, nem isso ou aquilo, mas …cada vez mundo, cada vez seu, na total autoidentidade de e consigo mesmo, sem se trancar em si, pois a partir de dentro se expande indefinidamente, mas na sua identidade diferencial, se perfaz radicalmente “fechado” ou “oculto” a si mesmo, pois não se pode sair do mundo e tomar pé numa posição extra ou além-mundo, para adquirir uma visão panorâmica geral dos mundos na sua mundidade. Uma tal visão panorâmica é fruto de um bem determinado horizonte, cujo modo de ser é caracterizado pelo termo algo (etwas) e mesmo ente (Das Seiende) ou também objeto (Objekt), cujo “grau” de mundidade é tão baixo que o ente não aparece aqui a não ser como um quê-bloco totalmente abstrato e indeterminado. O modo de ser da mundidade caracteriza o modo de ser ôntico do homem que ambiguamente se pode chamar também Da-sein, mas é precisamente nesse modo de ser onticamente diferencial que aparece a possibilidade de recolocar a busca, i. é, a questão do sentido do ser, na sua diferença ontológica, pois é somente no homem agora entendido como Dasein que se abre a compreensão de que se trata quando dizemos ser como horizonte, como mundidade do ente na sua totalidade. Esse modo de ser que é ao mesmo tempo ôntico e ontológico, ou melhor, o modo de ser ôntico, que na sua diferença ôntica, ao se distinguir do ente não-humano, traz nessa diferença identificadora do ser do homem a revelação, a abertura que mostra a mundidade como a diferença que caracteriza a identidade de cada ente no seu ser (diferença ontológica) se diz no Ser e tempo ser-no-mundo e se refere à finitude essencial do homem como Da-sein.
  2. Na fenomenologia essa expressão deve ser entendida com grande precisão em referência à partícula no (ser-no-mundo). No aqui não é dentro de. Mas sim como dinâmica do ponto de salto da eclosão do mundo. Esse ponto, porém, não é ponto, mas origem. Todo o problema com a compreensão da origem é que, por origem, usualmente representamos alguma coisa que está ali como causa, fundamento, base ou alguém, que faz surgir, que segura etc. Sendo assim, imaginamos a origem como um algo a modo de prolongamento para trás, do que foi originado. A origem como o surgimento e donde vem o mundo, não pode ser um algo ou um alguém a modo do mundo que surgiu, pois do contrário esse algo ou alguém anterior deve ter a sua origem, de tal sorte que a origem anterior não é origem, mas já era algo originado. Por isso, a fenomenologia diz que a origem originante é nada. Só que quando dizemos nada, de novo o representamos como algo espacial vazio. Aqui é melhor tentar representar esse nada como abismo de possibilidade de ser na sua dinâmica, que não aparece como uma coisa em si, mas que somente surge e logo se retrai como abismo de possibilidade de ser no instante em que eclode o mundo. Se compararmos o eclodir do mundo como uma cintilação, a escuridão que aparece como fundo do qual se dá a cintilação seria o nada-origem. Da-sein, o ser-aí como o modo de ser próprio do homem é instante da cintilação, onde se dá a passagem do abismo da possibilidade de ser que envia uma das possíveis possibilidades de ser como realização no abrir-se do mundo.

O decisivo para a compreensão do Da-sein como ser do homem, i. é, como ser-no-mundo é não se contentar em representar esse movimento da origem enquanto dinâmica como um movimento físico, neutro, digamos automático, que se dá por si, naturalmente, como um estado de coisas ou uma sucessão ou um acontecer de fato, mas como liberdade de responsabilização no deixar-ser o sentido do ser que se anuncia no instante da eclosão do mundo. Por isso, Heidegger define o ser do homem a existência ou o Da-sein como liberdade e ser-no-mundo.

Na medida em que começamos a compreender o ser do homem como Da-sein, como a passagem, como a aberta, no instante da eclosão do mundo, onde pela recepção da disposição da pura espera do inesperado, se deixa ser o sentido do ser que percute a eclosão do mundo no seu ser, é que começamos a compreender que o caminho do campo, sua paisagem e em seus acenos, tendo como a tonância do fundo o simples e o grande, na serenidade da imensidão, profundidade e liberdade de ser não é literário, comparação, símbolo poético ou descrição do estado psicológico do autor ou do leitor, nem sequer uma explicação antropomorfa ou antropológica do universo, mas sim pura ontologia.

  1. Em chinês caminho se diz Tao. Para de alguma forma podermos entender o que seja origem na fenomenologia, que coincide com o caminho do campo, tentemos ler atentamente o seguinte poema.

O texto é do pensador chinês Chuang-Tzu, na versão adaptada de Thomas Merton[130], e se intitula: Onde está o Tao?

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.

“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?”. “Está na vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?”. “Está no pedaço de taco”. “E onde mais?”. “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando “toda escala do ser”, como se o que chamamos “mínimo” possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Esses três aspectos são distintos, mas a realidade é o uno. “Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures onde todas as muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao é a simplicidade, a paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranquilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente, pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua razão de ser não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em “limites”, ficamos presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se “plenitude”. O ilimitado do limitado chama-se “vazio”. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um nem outro. O Tao congrega e destrói. Mas não é nem a totalidade nem o vácuo.”

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 8

  1. Fenomenologia é arte de ver. Husserl a chama de vontade para evidência. Evidência, evidentia em latim, vem do verbo evideri. Evideri significa aparecer a partir de si, evidenciar-se. E o que assim aparece a partir de si nele mesmo é o que chamamos de fenômeno da fenomenologia.
  2. Fenômeno: É comum, representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido atrás ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.

O aparecer do fenômeno, no entanto, não diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrás dela. Refere-se antes à autoapresentação ou autopresentação ou à intensificação de uma presença. Nesse sentido é algo como luzir, incandescer. É tomar corpo, crescer no sentido da expressão cresça e apareça. É, pois surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presença. Para podermos ver melhor, de que se trata quando falamos do fenômeno como auto-presença ou intensificação de uma presença, examinemos brevemente o que Ser e tempo nos diz da expressão grega phainómenon:

A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha– como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou que pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com ta ónta (o ente)[131].

O verbo do qual deriva a expressão fenômeno é medial. Como em português não há a forma medial, phainómenon é traduzido no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ação do verbo medial não é nem ativo nem passivo. Não seria, porém, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinâmica toda própria, um médium atuante, anterior à divisão em disjunção ativo e/ou passivo. Usualmente, quando falamos de ação e atuação, representamos alguém ou algo causando uma força sobre um alguém ou um algo. Assim quem causa uma ação e a própria força atuante é ativa; quem ou o que recebe padece ou sofre a ação é passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se dá o reflexivo: o agente é ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo não coincidem. Aqui o ser da iteração entre ativo e passivo e reflexivo é de tal feitio que é sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ação do verbo medial não pode ser captado, reduzindo-o à unidirecionalidade de flecha na iteração ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato é o que está dito na expressão: fenômeno, i. é, o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato são: em vindo ao dia, à luz, em colocando-se às claras, em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se[132]. O abuso do gerúndio, na forma em <…>ndo é proposital. Tenta insistir na consideração de que é necessário captar esse modo de ser da ação medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ação medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato, por ser simples. Só que o imediato e o simples não podem ser percebidos no seu ser, a não ser que a percepção ou melhor a recepção seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ação pede a captação imediata da realidade, antes da sua divisão e classificação em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo de tal sorte que a ação ou ato é “anterior” ao sujeito e objeto, é a dinâmica do todo, em sendo[133]. Esse modo de ser imediato e simples deve se tornar centro de nossa atenção, quando na fenomenologia falamos de intencionalidade como ver imediato e simples, e do Da-sein como a aberta. Aqui, o que pode nos dificultar a perceber de que se trata é a conotação que todas essas expressões trazem consigo de visualização[134]. Aparecer, mostrar-se à luz, vir à claridade do dia, no entanto, não têm primariamente muito a ver com visualização. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepção do que é em se mostrando a ele mesmo, é anterior a toda e qualquer visualização. Visualização é a maneira projetiva da objetivação interpelativa, pela qual colocamos o fenômeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.

Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivação interpelativa, não percebemos que o que nos vem ao nosso encontro como objeto, coisa “em si”, “real”, não coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas é algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivação interpelativa é uma das modalidades da objetivação.

  1. Embora um tanto “forçado”, usemos a palavra mira para explicar como devemos entender fenomenologicamente a palavra fenômeno. Em geral, quando entendemos mira como ponto de vista, perspectiva do foco, impostado para a meta, objetivo etc. etc., estamos falando somente de uma das modalidades da mira. Mira, mais propriamente, pode ser entendida como o atônito de um espanto ou de admiração, embora nesse espanto e na admiração já esteja de alguma forma implícito o início de lance, pois espanto e admiração está por assim dizer impregnado de luz clara, digamos abertura de alguma forma “escancarada”. Amaciemos a tonância da mira a modo de um luzir como o de madre-pérola, da luz das folhas de oliveira, da luminosidade de certas paisagens que não são propriamente iluminadas, mas como que abrindo-se de dentro para fora numa luminosidade cada vez mais intensa, mas a modo de um transluzir. Uma tal trans-aparência ou trans-aparecimento não é oposto da escuridão, mas sim é como o vir à fala de uma realidade abissal que em vindo à fala, em vez de esgotar a profundidade abissal, traz à tonância exatamente a imensidão, a intensidade da profundidade, o inesgotável abismal no seu ocultamento (escuridão) cada vez mais íntimo.
  2. Aqui é necessário deixar bem claro que fenômeno jamais é um objeto ou uma coisa. É cada vez mundo. Dito com outras palavras, é o ente na sua totalidade ou no seu todo. É de grande importância a gente ver essa diferença entre objeto e mundo. Mundo não é conjunto de objetos. Ou um espaço onde estão objetos. Mundo é paisagem. Mas como se abre a paisagem como caminho do campo? Diz o texto: “O apelo do caminho do campo acorda um sentido que ama a liberdade e, no lugar oportuno, suplantará as aflições numa última jovialidade. Esta se opõe (…) (…) (…) (…) (…) Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz morar de novo uma origem distante, onde a terra natal nos é restituída” (cf. p. 47-48 (327-328)). Diante dessa paisagem, exclamamos atônitos: Mas isso não é paisagem! Nem descrição da paisagem. Não é interpretação da paisagem a modo de uma metáfora ou alegoria para dizer certos processos subjetivos humanos e sua história. Ou não seria exatamente isso mesmo, uma metáfora, uma alegoria, uma comparação para, usando a paisagem natural referir-se ao humano e sua história, quer em particular, quer em geral? E, no entanto, em toda essa fala tudo que achamos ser natural, está impregnado de antropomorfismo[135]. E quiçá de um antropomorfismo altamente poético lírico!

Mas então o que é Anthropos, anthropomórfico, anthropológico: o que é homem, o humano? Mas, quando perguntamos e respondemos “o que é o homem?!”, dizemos que é diferente, oposto, igual à natureza, a partir e dentro de que sentido do ser é que estamos dizendo e negando tudo isso? Em que consiste pois o sentido do ser do homem, do anthropos, anterior ou diferente do sentido do ser comum, tanto ao homem como à natureza, de tal modo que todo e qualquer ente, seja natural, seja humano possa ser tocado pelo sentido do ser que acorda um sentido que ama a imensidão, a profundidade e a jovialidade da liberdade? Numa paisagem, onde o humano tocado pelo sentido do ser que acorda um sentido que ama o amor da jovialidade da liberdade, todas as coisas deixam de ser coisas e objetos, para ser cada vez, sempre de novo, mundo, em cujo médium e estruturação, homem e mundo, pensar e ser são o mesmo.

  1. Embora não tão bom e claro como o caminho do campo, tentemos dar um exemplo de um mundo, onde as coisas não são objetos, mas estruturações do mundo. Na Idade Média uma das categorias fundamentais para a compreensão do ente no seu todo era substância. A palavra substância é tradução latina do hypokeímenon grego.

Para nós hoje, sujeito indica o ente humano. Na gíria, juntamente com o cara, sujeito significa um individuo humano determinado, mas numa denominação “neutra”. Na Idade Média sujeito, subiectum era equivalente à substantia, substância, à coisa.

Nós temos dificuldade de entender de que se trata, quando o texto chama o subiectum, i. é, a substância de hypokeímenon. Isso porque, hoje, entendemos tanto o subiectum como também o obiectum medieval (substância-coisa) não a partir da substantia, da hypokeímenon, da pre-jacência, mas a partir da compreensão da substância como objeto da representação do homem enquanto sujeito, no sentido da nossa época moderna. Tentemos brevemente nos livrar desse pré-conceito moderno da compreensão da substância, pois compreender bem, com mais precisão de que se trata, quando o medieval dizia subiectum, substantia a modo do hypokeímenon, nos pode facilitar ver o que na fenomenologia quer dizer essa coisa que é descrita como fenômeno ou o em se mostrando a ele mesmo, o aberto, que os gregos chamavam também de ón, i. é, o ente.

A nossa compreensão usual da coisa como substância e acidente, mesmo em certos manuais de filosofia medieval, parece ser uma mistura de uma compreensão, bastante defasada, da substância medieval como hypokeímenon e da compreensão no nível defasada do objeto moderno, de “o contra-posto existente de experiência das ciências naturais”. Pois entendemos substância como um quê permanente, imutável, núcleo, cerne, que está sob (sub-stância), debaixo de um conjunto de acidentes, que vêm e vão, que são propriedades não essenciais, passageiras e mutáveis. Esse quê-núcleo é algo como um ponto abstrato, duro, compacto, o atômico. Essa compreensão é o último resquício da compreensão da substância já deficiente como essa ou aquela coisa maciça, o bloco, algo espesso, denso, substancial.

Se, porém, tentarmos compreender o subiectum a partir da substância medieval sem a pré-conceituosa mistura do antigo e do moderno, ambos defasados, ouvindo o que a palavra grega hypokeímenon nos quer dizer, percebemos que coisas não são blocos, núcleos, isto, aquilo, ali, lá, acolá, mas sim pre-jacência.

A palavra pre-jacência não existe em português. O verbo jazer significa o que o verbo medial grego hypokeísthai significa, a saber, estar assentado, bem repousado, fundado e ajustado ao todo de uma paisagem. Esse sentido ainda está vigente no adjetivo substancial em português. Casos de substância (hypokeímenon) nesse sentido seriam, por exemplo, montanha, imensidão que se estende como planície, o abismo do mar na sua profundidade, um filhote de porco que nasceu redondinho, perfeito, uma obra bem acabada, perfeita, uma pessoa bem assentada em si, madura, confiável, justa e reta. Portanto indica o assentamento, a integração, o ajustamento bem feito dentro de e como um todo, como atinência e pertença à totalidade prejacente da realidade ali estendida, imensa, profunda e bem consumada. Substancial é, pois, contrário ao avoado, ao “por a caso”. Substância, a prejacência não é algo projetado por um sujeito-homem como um caso da sua realização, mas coisa(s) destacada(s) de toda uma paisagem de um mundo que se abre e é sustentado como dádiva[136]. E o homem aqui não é um sujeito a que é dada a coisa como objeto, a partir e dentro da jogada do seu projeto de realização, não como dádiva, mas como produto da sua representação, mas ele mesmo é também substância, bem ou mal integrada e assentada dentro da imensa paisagem da prejacência. O seu destaque consiste justamente em ser uma coisa, integrada e assentada junto de e com outras coisas, mas de modo todo próprio e seu, ao qual se abre num lance toda a paisagem do ente no todo, e lhe é mantido uma imensa e profunda tarefa de ser concreativo junto do ente no todo da vigência da prejacência. A grande dificuldade de compreendermos a substância como sujeito no sentido medieval é porque objetivamos, representando, a substância homem ou como sujeito ou como objeto a partir e dentro do nosso modo atual da metafísica da subjetividade.

  1. Ao fechar por enquanto as nossas reflexões fenomenológicas acerca do methodo fenomenológico, expressão, aliás, que é um pleonasmo, talvez possamos provisoriamente concluir que método é caminho, e o seu modo de ser aparece no Caminho do campo, e se refere ao ser do homem. Com outras palavras, Caminho do campo é a própria essência do homem no seu ser, que na fenomenologia recebe o nome de existência ou Da-sein (liberdade e mundo, ou Ser-no-mundo): o aviar-se da existência para o seu ser se chama história. Enquanto história da existência, o homem é o movimento de retorno a si mesmo, à origem do seu próprio. A via-gem de retorno do Dasein, da existência à sua essência ou ao seu ser se chama errância, viagem cheia de vicissitudes, perigos, tentativas e tentações, na qual o sentido do ser que constituiu e constitui o ponto de salto da história da razão ocidental é colocado em questão. Em alemão, via, o caminho dessa viagem, se chama Holzwege, caminho da madeira.

Diz o pensador alemão Martin Heidegger no início do seu livro Holzwege (Caminhos do lenho): Lenho, assim, soa um antigo nome para mata. No lenho são caminhos. Deles a maioria decresce, cessa súbito no intransitado.

Chamam-se caminhos do lenho.

Cada qual percorre separadamente mas na mesma mata. Muitas vezes parecem ser um igual ao outro. Mas apenas assim parecem.

Lenhadores e vigias da mata conhecem os caminhos. Eles sabem o que evoca ser num caminho do lenho.

A palavra alemã Holzweg é composta de Holz e Weg. Holz é lenho, madeira e também mata, floresta. Weg é caminho. Holzweg significa: caminho falso, caminho que de repente se esvai e se perde no intransitado. Por que se chama caminho do lenho ou da madeira? Os lenhadores, depois de derrubarem árvores, as desgalham e então empurram o tronco montanha a baixo. Os troncos então descem para o vale, abrindo caminho e com a repetição do processo, com o tempo, formam pistas. Essas pistas parecem caminhos. Mas não o são e enganam os turistas inexperientes.

Desses Holzwege, diz Heidegger no Denkerfahrungen (Experiências do pensar, Vittorio Klostermann: Frankfunrt am Main, 1983, p. 41):

Ao homem vindouro, está eminente o confronto com a essência e com a história da metafísica ocidental. Somente nessa ponderação do pensar (Besinnung) se torna realizável a passagem para a existência planetariamente determinada do homem e alcançável esta existência historial-mundial como fundamentada.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 9

  1. Surgiu uma questão acerca da essência da fenomenologia como ver simples e imediato, formulado numa objeção: se o que estamos dizendo é verdadeiro, então que utilidade tem todo esse empenho de estudar mil e mil aspectos da fenomenologia? A resposta que foi provisoriamente sugerida foi a de ser todo esse empenho uma espécie de trabalho preparatório de limpeza das nossas pré-ocupações para abrir espaço para o fenômeno poder aparecer. É como preciosa e saborosa sopa de tigre de Bengala. É muito simples fazer sopa. Problema é encontrar e pegar o tigre. E não fazer sopa de gatos pensando que é sopa de tigre.
  2. Uma das dificuldades que mais nos fazem sofrer para ver simples e imediato, corpo a corpo, é a bitola do “esquema sujeito – objeto” em que nos achamos instalados. A dificuldade principal dessa bitola consiste em pensarmos que já conhecemos de sobra esse esquema. Por isso, tentemos examinar melhor esse esquema, que não é esquema propriamente dito, mas antes o nosso modo de ser hoje.
  3. Estou aqui e agora, num determinado instante do tempo e do espaço, cercado de coisas em diferentes classificações, e isto, tanto dentro de mim como fora de mim. Essas classificações são, p. ex., coisas da realidade sensível, coisas da realidade supra-sensível; dentro da realidade sensível: coisa físico-material, coisa-vida-vegetal, coisa-vida-animal, coisa vida-humana e seus produtos; na realidade supra-sensível: coisas divinas, a saber, Deus, anjos, espíritos, espírito e alma humanos, suas faculdades e seus produtos; coisas da realidade fora de mim, coisas da realidade dentro de mim; coisas da realidade, em si, independente da minha mente, existente por e para si; coisas da realidade, produtos da minha mente, fantasias, imaginações, crenças e interpretações etc. As coisas da realidade que está dentro de mim, imanente a mim constituem o meu mundo subjetivo; as coisas da realidade que está fora de mim, a min transcendentes, formam o mundo objetivo. Naquela definição “tradicional” da verdade que diz adaequatio rei et intellectus, eu e o meu mundo subjetivo, portanto, o eu como sujeito e agente de meus atos é o intellectus, e tudo quanto fica fora de mim, as coisas da realidade em si, a mim transcendentes, são res.
  4. Assim colocado no mundo, no meio de inúmeras e variegadas coisas, eu me pergunto: como é possível que se dê a relação chamada conhecimento, entre eu sujeito, sua imanência (S) e as coisas ou os objetos (O) que me são transcendentes? Como é possível que algo de fora, que está numa dimensão diferente à do eu-sujeito, pode entrar em mim e me dar notícia de uma coisa que está fora de mim? Embora tal esquematização da relação S – O seja uma simplificação quase caricatural do que realmente sucede no ato de conhecimento, é interessante observar que fora-e-dentro aqui é determinado pelo nosso corpo. E se observamos com mais detalhes o que queremos dizer aqui com fora e dentro, ficamos perplexos. Pois o dentro, i. é, o sujeito onde está? Dentro do corpo? Mas dentro do corpo, onde? Dentro do fígado? Nas entranhas? No coração? Ou na ponta dos dedos da mão esquerda? Mas todos esses “dentros” mencionados não estão dentro, mas sim fora do sujeito e agente do ato de conhecer, pois eles são objetos desse ato do conhecer. E o próprio eu-sujeito e seus atos, todas as representações, fantasias, estados do humor do eu-sujeito, tudo que me é imanente, portanto, todas essas “coisas” fora e dentro do sujeito e o próprio sujeito, não são na “realidade” fora do sujeito-eu, enquanto objetos do meu conhecer? Isto quer dizer que tudo quanto assim vem ao meu encontro, inclusive eu mesmo, é no fundo produto da objetivação. E o sujeito-eu ele mesmo enquanto sujeito não é nenhuma coisa, objetada, contra-posta como coisa ou objeto, mas o que é? Isto significa por sua vez que o sujeito e o objeto assim contrapostos no esquema S – O são objetos de objetivação realizada por quem? Esse quem é o ato, que não deve ser representado como uma ação ou atuação de uma coisa chamada eu-sujeito, mas como dinâmica do processo a qual Brentano chama de fenômeno psíquico, Husserl chama de vivência (Erlebnis), a qual, segundo Husserl, formulada em termos de um Descartes se chama cogitatio, ou cogitans sum ou, mais explicitamente, ego cogito cogitatum.

Captar essa dinâmica do processo, essa estruturação atuante, a vivência, o fenômeno psíquico nele mesmo, e não o enquadrar na bitola da compreensão usual do esquema estático S – O causa sempre grande dificuldade. Ao des-cobrir no fenômeno psíquico de Brentano a intencionalidade, no sentido fenomenológico, Husserl empreende uma tentativa exatamente contrária à nossa, a saber, reconduzir o esquema fossilizado S-O à dinâmica do Erlebnis, do cogitans-sum.

No quadro da compreensão usual estática do S-O, tanto sujeito como objeto, embora diferentes no seu ser, são coisas, objetos, ocorrentes em si, independentes no seu existir um do outro, ligados por ato de conhecer, cujo sujeito e agente é a coisa-sujeito, e cujo ser não tem o modo de ser da coisa em si (substância), mas da “coisa” no outro (acidente). Assim colocados, o sujeito e o objeto, na sua ligação no ato de conhecimento verdadeiro, portanto nesse ato duplicado em polo-objeto e em polo-sujeito, não é outra coisa do que a reprodução da definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus.

Essa fórmula latina da verdade é medieval e está formulada de tal modo que oculta duas definições: adequatio rei ad Intellectum divinum (adequação da coisa ao intelecto divino) e adaequatio intellectus (humani) ad rem (adequação do intelecto humano à coisa). No fundo dessa dupla formulação acoplada está a doutrina da criação: as coisas do universo, as criaturas, no seu ser, são feitas na adequação com o intelecto divino, que as concebeu e as trouxe à existência; por isso, o intelecto humano, ao abrir-se às obras do intelecto divino, às criaturas, na medida em que capta a sua essência, é iluminado, e pode assumir a viagem do retorno à fonte de todas as coisas, num intinerarium mentis in Deum (viagem da mente para dentro de Deus).

Para nós, hoje, o fundo dessa definição duplicada se retrai, por ser ele de origem teológica, e nos resta apenas a compreensão da definição, enquanto adaequatio rei et intellectus humani, na qual intellectus significa sujeito e res objeto, mas agora, de novo duplamente, num sentido bem diferente ao da definição medieval, a saber: adaequatio intellectus ad rem (conformidade do sujeito ao objeto) e adequatio rei ad intellectum (conformidade do objeto ao sujeito). Daqui, na manualística de certos sistemas de ensino da filosofia, surge o esquema S – O do assim chamado realismo (objetivismo) e idealismo (subjetivismo). Caricaturando numa simplificação máxima: no realismo o que se dá de antemão são coisas em si, diante e ao redor de mim; eu-sujeito com os seus atos, p. ex., no ato do conhecer, é qual chapa fotográfica que reproduz em imagens, representações e idéias a realidade de lá fora, dos entes do mundo circundante, pré-jacente. O critério da verdade e de sua certeza é a objetividade. No “idealismo” ou no subjetivismo, se dá o contrário: a cerca do que e como seja a realidade fora de mim, ou se realmente há uma realidade em si, a mim transcendente, não posso ter nenhuma certeza; pois o que se dá de imediato e primariamente é o eu-sujeito e seus pro-ductos imanentes. E se, mesmo que, como diz o realismo, haja a realidade em si, dele posso ter notícia através do eu-sujeito e das suas faculdades de captação, a saber, dos sentidos, do entendimento e da razão, imanentes em mim. Essa descrição do realismo e do idealismo, na teoria do conhecimento em certos manuais de filosofia, é sem dúvida, uma caricatura. Nenhuma teoria de conhecimento que leva a sério a sua busca ensina tal doutrina. No entanto, esse modo da compreensão “ingênua” da adaequatio rei et intellectus pode infestar a nossa mente, na vida, no uso e mesmo nas ciências, quando queremos sem pensar muito explicar a realidade, em nós e “fora” de nós. A esse modo de entender, tanto do realismo como do idealismo, tanto do objetivismo como do subjetivismo, Husserl caracteriza como impostação natural, virada às coisas, alienada do problema da possibilidade do conhecimento[137]. Aqui, tanto o realismo como o “idealismo” opera na ingenuidade de um “realismo” deficiente, que não despertou para a questão da possibilidade do conhecimento. Com outras palavras, na impostação do conhecer está fixa, presa na obviedade dogmatizada e opaca da condição da possibilidade do conhecimento. Entende a possibilidade do conhecimento dentro da estrutura estática S-O, sem jamais sequer desconfiar que aqui há um problema de fundo, a partir e dentro do qual se dá tanto o sujeito como o objeto e sua interrelacão como adequação, problema de fundo que coloca em questão, em busca, o sentido do ser do sujeito e o sentido do ser do objeto, na sua diferença ontológica. Possibilidade do conhecimento, portanto, alienada da compreensão do que seja o ser do conhecimento.

A questão do sentido do ser do conhecimento, num certo nível bem iniciante da compreensão do que seja intencionalidade, aparece como contensão do e tensão ao objeto. Assim diz Brentano, como já foi mencionado antes: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Essa contensão do e tensão ao objeto é usualmente entendida de modo banal: eu daqui, em meus variegados atos psíquicos, dirijo-me ao objeto ali presente diante ou ao redor de mim, como ao fim, e assim os meus atos contêm em si algo do objeto. Nessa tendência o objeto está diante de mim e me vem ao encontro em dupla distinção: ora como objeto em si, existente nele mesmo, ora como referido a mim, enquanto algo contido nos meus atos. Surgem assim os conteúdos objetivos e o objeto em si. O objeto em si não pode ser captado direta e imediatamente. Ele é de alguma forma apreensível através dos conteúdos objetivos contidos nos meus atos, a modo de aproximação paulatina num movimento assintótico. Nesse sentido, o objeto em si está também contido nos meus atos, enquanto função unitiva dos diversos conteúdos objetivos dos meus atos em referência à realidade do objeto em si. E por assim dizer na ponta da tensão indicativa do em si, enquanto função unitiva dos conteúdos objetivos imanentes nos meus atos, o objeto em si aparece com um ponto x em fuga para cada vez mais além do que se me apresenta como mostração dele. E ao mesmo tempo em que se dá esse movimento da “adentração” em direção ao em si x em fuga, os objetos enquanto conteúdos na contenção e tensão dos atos se estruturam em variegadas constelações de objetos multímodos, constituindo multifários uni-versos, mundos, regiões, sub-regiões, setores, áreas, campos, classificações dos entes, denominados por Husserl de noema. E o(s) sujeito(s)-eu e seus atos, enquanto também objeto da intencionalidade, i. é, da contenção e tensão do ato de conhecer, amar, julgar etc., se estrutura como uni-verso, mundo, região etc., todo próprio, o qual poderíamos chamar de mundo da subjetividade, ao lado do mundo da objetividade, perfazendo a grande divisão dos entes em mundo do ente humano e mundo do ente-não humano, a partir de cuja divisão, podem surgir binômios como homem e mundo, cultura e natureza, história e natureza etc., divisão que aparece p. ex. na classificação das ciências enquanto ciências humanas e ciências naturais[138].

Aqui surge um problema. Como captar o sujeito e seus atos enquanto sujeito e não enquanto objeto? O conjunto dos conteúdos referidos ao sujeito-homem e seus atos enquanto “objeto” da contensão e tensão do ato de conhecer o homem e o seu mundo são também noema? Ali também surge um ponto x assintótico, que une a série de dados acerca do sujeito e seus atos numa unidade? Há aqui uma diferença na objetividade, na objetivação, diferença que surge na medida em que de um lado temos o sujeito-homem e seus atos por objeto, portanto como objetos imanentes, e o objeto-não-humano e suas características por objeto, portanto objetos transcendentes? A essa altura da reflexão é útil observar que aqui, os termos “sujeito” e “seus atos”, recebem uma dupla significação. Uma vez significam sujeito e seus atos enquanto objeto; e sujeito e seus atos enquanto sujeito do ato que tem o sujeito e seus atos como objeto. Em Husserl, este recebe o nome de subjetividade transcendental. Aquele, sujeito empírico. Conforme o que foi dito II. Anotação, quando se falou da descoberta da intencionalidade, através do texto de Brentano no livro Psicologia sob o ponto de vista empírico em todo o fenômeno psíquico (leia-se intencionalidade ou ato) se dá como momentos do próprio ato dois momentos quais bipolaridade do mesmo ato, o polo objeto e o polo sujeito. Essa bipolaridade, na impostação natural cotidiana, aparece como duas coisas ou dois objetos separados, ligados pelo ato no esquema estática S – O na colocação do que acima denominamos de realismo deficiente. Nesse esquema o sujeito aparece como sujeito empírico e a ele corresponde o objeto empírico. Mas o que perfaz a condição da possibilidade para que se dê a realidade como esquema estático S – O, portanto a condição da possibilidade do sujeito e objeto empíricos, é o que acima denominamos de Subjetividade transcendental. Haveria aqui digamos no nível transcendental um correlato à subjetividade, uma objetividade transcendental? O que “realmente” quer dizer noesis em Husserl, quando a coloca como correlativa a noema? Tudo isso se dá somente no nível do empírico, ou se dá também no nível transcendental? Haveria noema transcendental e noesis transcendental? Que coisa é essa a subjetividade transcendental? A subjetividade transcendental de Husserl tem, ela, algo a ver com o que na fenomenologia denominamos com o termo a aberta, das Offene?

De tudo que até agora foi exposto, é importante observar que no subjetivismo empírico, tanto o sujeito como o seu objeto são objetivações bipolares da subjetividade transcendental. E no todo dessa implicância entre a subjetividade empírica e a subjetividade transcendental, o subjetivismo empírico é o ente no todo, o mundo e a subjetividade transcendental no seu caráter de transcendentalidade é o ser do ente. Com outras palavras, o ente no todo, o mundo, reconduzido ao seu modo de ser nele mesmo, imediato e originário na intencionalidade é o fenômeno, o que se mostra nele mesmo, a partir de si; e a subjetividade transcendental, ou melhor, o ser enquanto reconduzido ao seu modo de ser nele mesmo como transcendental é o que na intencionalidade foi chamado de ver simples e imediato. Com isso, o ver simples e imediato não possui mais o caráter do ente, ou melhor, enquanto ente é nada, pois o ente no todo é o mundo enquanto fenômeno, a saber, o que se mostra ele mesmo, a partir de si, de tal modo que aqui a relação entre a subjetividade empírica e a subjetividade transcendental se revela como o Da-sein/ser-no-mundo, i. é, coincidência da mostração nela mesma e ver simples e imediato. É o que Heidegger na preleção acerca do conceito do tempo sugere, caracterizando a intencionalidade, i. é, o ver simples e imediato como a demora junto do ente.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 10

  1. Uma outra dificuldade de entender e exercitar-se na fenomenologia como ver simples e imediato é a compreensão que temos da intencionalidade, mesmo dentro da fenomenologia como um ato que tende ao objeto no sentido de objetivação (S → O). Falemos rapidamente da intencionalidade no sentido fenomenológico, e não no sentido da teoria do conhecimento.
  2. É sempre difícil entender e dizer adequadamente o que a fenomenologia convencionou chamar de intencionalidade, livre inteiramente da tendência realista da teoria do conhecimento. Na tentativa de compreender a intencionalidade fenomenológica da melhor forma possível, mais condizente com ela, voltemos à obra de Franz Brentano, intitulado Psicologia sob o ponto de vista empírico, onde Husserl intuiu a idéia da intencionalidade.

Na p. 115 da acima mencionada obra diz Brentano: “Todo o fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Uma afirmação banal em que, se não a captarmos com precisão, nada encontramos de novo, nada que denotasse uma descoberta importante, a não ser o óbvio de uma constatação, conhecido por todos, na teoria de conhecimento. Conforme essa compreensão óbvia há, de um lado a coisa em si, e de outro lado o sujeito humano com seus atos psíquicos, i. é, fenômenos psíquicos, de diversos tipos como representação, juízo, volição, apreensão etc. Esses atos psíquicos se caracterizam como intenções, i. é, o ato de tender em direção a (in-tendere). Cada uma dessas in-tenções se dirige a, e na ponta da sua tendência tem um objeto, cada vez seu, para o qual está apontando. Assim compreendida, a intencionalidade não nos revela realmente de imediato o que, digamos, corpo a corpo, em carne e osso, i. é, como a coisa ela mesma, experienciamos no nosso vivenciar. É que no modo usual de “descrever” a intencionalidade, não percebemos que todos os elementos que constituem o esquema sujeito-ato-objeto já estão prefixados como: duas substâncias-coisa ocorrentes e enfileiradas uma ao lado da outra, ligadas por uma relação, que por sua vez não passa de uma representação vaga e sem conteúdo de ligação, i. é, de relação, como uma linha geométrica, reta entre dois pontos. Talvez seja por isso que Brentano não diz: cada sujeito com o seu ato, mas sim, cada fenômeno psíquico.

Como entender, pois, a seguinte afirmação de Brentano?

Todo fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado.

Não se pode perceber o que Husserl intuiu nessas frases, se continuarmos a interpretar a colocação de Brentano dentro do esquema usual da intencionalidade como “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele, através do ato de conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.” Mas por quê? Porque o indicado, o apontado pela frase “tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele, através do ato” não é vivência do ato, mas sim produtos, i. é, resultados constituídos num processo de objetivação. Se, somos assim que não percebemos tratar-se aqui de produtos de objetivação, e nos representamos esses produtos simplesmente como entes reais em si, acontece então conosco o seguinte processo: primeiro, isolamos os produtos da objetivação, separando-os do processo de objetivação, hipostatizando-os ora como coisas em si (substâncias), ora como “coisas” aderentes (acidentes) a outra coisa. A seguir tentamos ligar entre si essas coisas assim hipostatizadas, dizendo-nos mais ou menos “com os nossos botões”: aqui estou, eu, uma substância existente em e por si mesma, diante da qual está uma coisa chamada objeto, que é também uma substância em e por si mesma (ou se não o for realmente existente como coisa física, ao menos tida como algo em si a modo de coisa ideal, coisa psíquica, coisa estética, coisa-valor, coisa supra-sensível etc.), sobre a qual a substância-eu se dirige numa ação, i. é, numa “coisa” chamada intencionar (conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc.), que não é propriamente uma substância, mas algo que adere como seu acidente a uma substância. E se alguém nos chama atenção de que todas essas coisas (substâncias: res in se) e semi-coisas (acidentes: res in alio) são como que produtos da ação chamada objetivação, representamos a própria objetivação como acidente inerente a uma substância, chamada sujeito-homem, que por sua vez, através do acidente-ação, se dirige aos objetos, no nosso caso como p. ex. sujeito eu, o ato da intencionalidade, a saber, representar, julgar, amar, odiar, cobiçar etc. E esse processo, cujo esquema é o do sujeito-ato-objeto pode se repetir indefinidamente.

Mas, então, como entender a frase de Brentano, onde Husserl intuiu a essência da intencionalidade? Devemos entendê-la como acenando para vivência. Antes de percebermos a colocação de Brentano como indicativo da vivência, uma rápida observação sobre o título do livro de Brentano, onde Husserl leu a “definição” do que seja propriamente intencionalidade. O título do livro de Brentano soa Psicologia do ponto de vista empírico. O título pode nos enganar se entendermos a palavra “empírico” na acepção usual hodierna, própria do modo de ser experimental das ciências positivas do estilo das ciências naturais, físico-matemáticas. O empírico assim compreendido é o oposto do especulativo, do não-real, do fantasiado, apenas “fenomenal”. O empírico, aqui, deve ser tomado no sentido, o mais abrangente possível de captação imediata, simples, pele a pele – a tentação é de dizer –, anterior a toda e qualquer elaboração. Só que esse acréscimo desvia a compreensão do caráter empírico que Husserl reivindicava para a sua fenomenologia. Pois dizer anterior a toda e qualquer elaboração dá a entender que no início há o material informe, vago, indeterminado que depois toma forma e concreção; e que o empírico significa captar a realidade elementar ainda intacta, no seu estado material. Ao passo que, na fenomenologia, o empírico significa só e simplesmente o captar, ou melhor, o colher simples e imediato, sem mais nem menos que está expresso no slogan: à coisa ela mesma. Isto significa que, se acaso houver, aqui apenas dado como suposto, esse processo de elaboração do material indeterminado, vago e informe para a gradual coisificação até o processo se consumar numa hipostatização, a modo de coisa ali presente em si, o captar simples e imediato acolhe cada etapa, cada ligação das etapas, cada crescimento das etapas, cada vez de novo, cada vez simples e imediatamente, sem mais sem menos, assim como tudo isso aparece sempre novo e de novo na sua totalidade. Trata-se da claridade e distinção do tornar-se da e-videnciação, algo como o contínuo e renovado abrir-se da claridade, i. é, da clarificação, um surgir incessante, o vir à fala, o vir à luz. Essa claridade dinâmica da e-videnciação, da presenciação é o ponto de vista empírico. Aqui o ponto de vista não é um ponto fixo, a partir do qual se encaixam todas as coisas na perspectiva desse visual pressuposto, mas sim como que um ponto nevrálgico, ponto de toque, o fundo do salto, dentro e a partir do qual continuamente brota o vigor elementar do e-videri, a clareira, o olho da luz que, enquanto condição da possibilidade, e, enquanto espaço de jogo, impregna todos os entes, i. é, cada ente, cada em sendo, cada vez na sua totalidade dinâmica. Todo o segredo da compreensão adequada do que seja a intencionalidade fenomenológica está em compreender com precisão essa evidenciação, i. é, como é o puro ato chamado captar simples e imediato. Como já foi mencionado, para isso devemos fazer o processo de entender o modo de ser do conhecimento como vivência.

Como, porém nos reconduzir à vivência, a partir da representação que fazemos da intencionalidade como relacionamento do sujeito sobre o objeto, através do ato chamado intencionalidade?

Repetindo, diz Brentano: “Todo fenômeno psíquico contém algo como objeto em si, embora não cada um de igual modo. Na representação algo é representado, no juízo algo é reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no ódio, odiado, na cobiça, cobiçado”. Brentano não diz: eu, o sujeito-homem, dirijo-me ao objeto através do fenômeno psíquico, do ato. Diz simplesmente: Todo fenômeno psíquico. Em vez de fenômeno psíquico digamos vivência. Sem “definir” logo o que seja vivência, deixando vago de que se trata, ouçamos: “vivência” contém em si algo como objeto. Se a vivência se chama representação, algo é representado; se juízo, ajuizado ou julgado (reconhecido ou rejeitado); se amor, amado etc. Usualmente, no esquema sujeito-ato-objeto, temos primeiro o objeto como coisa em si fora, diante, independente de nós, existente em si, ali presente na sua ocorrência, pronto para ser representado, julgado, amado, odiado, cobiçado. O objeto, a coisa em si, é, por assim dizer, enfocada várias vezes, de modos diferentes, pelos atos subjetivos, i. é, do sujeito, denominados representar, julgar, amar, odiar, cobiçar. Na colocação de Brentano, o estado da coisa não é mais assim. Cada “fenômeno psíquico” é cada vez, por assim dizer um todo chamado representação, juízo, amor, ódio, cobiça que cada vez contém o seu objeto que tem cada vez o modo de ser que ele, o fenômeno psíquico tem. É como o fundo, o horizonte, o âmbito aberto, que se estrutura como uma paisagem, no qual, contidas estão as coisas, ordenadas como mundo. As coisas da paisagem assim abertas em leques como mundo são impregnadas, são coloridas, segundo a matiz, segundo o modo de ser de cada uma dessas aberturas. Chamemos esse âmbito aberto como mundo a modo de uma paisagem, de intencionalidade. Dentro dessa compreensão, ouçamos o que Brentano diz: “cada fenômeno psíquico contém algo como objeto em si”, visualizando o modo de ser da abertura da paisagem acima mencionada. Talvez, assim, possamos adivinhar de alguma forma o que Husserl poderia ter intuído, ao ler esse trecho do texto de Brentano. Se assim é a intencionalidade, então não se trata do ato de um sujeito-homem dirigindo-se ao objeto, existente em si, fora dele. Mas para que a nossa compreensão tenha maior precisão, devemos agora completar a nossa descrição dizendo: o que denominamos acima como âmbito aberto a modo de uma paisagem que se abre em leques de ordenações de detalhes concretos da mesma paisagem como mundo não é algo que está diante de mim como uma paisagem da realidade fora de mim. Antes, esse âmbito aberto com todos os seus “ingredientes” em mínimos detalhes de implicações e explicitações sou eu mesmo, eu mesmo não como esta substância-homem, mas sim como o âmbito aberto, vivido na sua concretude, intensidade, no seu desvelamento e velamento, em todas as suas camadas dinâmicas de estruturações como totalidade do mundo, diante de “mim”, ao redor de “mim”, fora de “mim”, dentro de “mim”, enfim, essa totalidade, esse mundo que “me” envolve e envolve todas as coisas. Portanto, essa abertura, essa presença é a minha essência, eu sou todo inteiro, tout court, de imediato, esse ser-no-mundo, dito de outro modo: eu sou essa vivência. O que aqui denominamos de vivência coincide com o que acima, ao tentarmos dizer em que consiste o significado do ponto de vista empírico caracterizamos como captar simples e imediato.

A tentativa de dizer o que seja propriamente fenomenologia na nossa exposição se concentra apenas em compreender com precisão esse captar simples e imediato. Para isso, a seguir falaremos brevemente do que se convencionou chamar na fenomenologia de redução, ideação e constituição. São três momentos da intencionalidade, ou melhor, são processos pelos quais e nos quais se dá a intencionalidade.

Antes, porém, de modo provisório e sempre interrogativo, repitamos o que seria Psicologia sob o ponto de vista empírico, se entendermos a empiria como foi insinuado há pouco. Não seria mais adequado agora compreender alma (psyché) na acepção usual, na qual é um dos componentes do ser humano como substância: corpo, alma e espírito. Mas, então, seria a vida como vitalidade biológica no sentido “somático-vegeto-animal”? Ou vida simplesmente na sua compreensão, a mais vasta, a mais profunda e dinâmica possível? Seria ser, no seu sentido ainda originário como presença do abismo de possibilidade, como plenitude inefável e inesgotável do poder ser, sempre novo e renovado, sempre e cada vez mais origem, arché, ou melhor, hyparché, o nada, tinindo na potência da generosidade de ser?

Sem podermos nem querermos dizer o que é, deixemos abertas todas essas e outras perguntas, não como interrogações que tentam ter respostas que fecham, facilitam e satisfazem a busca, mas como questões que a abrem e a mantêm como questão, portanto como busca que se adentra cada vez mais cordial, generosa e crítica na jovialidade atônita do não saber que se adensa como o tinir do silêncio de ausculta como a espera do inesperado… De repente, talvez, possamos vislumbrar num in-stante o que significa: captar simples, e-videri, o ver simples da coisa ela mesma, a imediação do sem mais nem menos. A concentração, a densidade da ausculta que integra essa abertura da espera do inesperado é um dos elementos que constitui o significado da palavra “logia” (lógos) que expressa o caráter científico da psicologia. Lógos (-logia) vem do verbo légein, que usualmente significa falar, discursar, mas também no seu significado “radical” arcaico significa ajuntar, colher, recolher. Re-colher-nos na atônita ausculta de um jovial não-saber, na total disposição da ausculta do inesperado, seja talvez o significado, o mais interessante do “saber” que recebe o nome de Psicologia. Se tivermos como pano de fundo tal compreensão da psicologia sob o ponto de vista empírico, talvez possamos melhor compreender o que Husserl dizia, em criticando a empiria dos filósofos ingleses (Locke, Hume), a saber, que o empírico e o experimental dos antigos positivistas ingleses ainda sofria de fixação e da bitola do dogmatismo filosófico, não superado; e que somente com a fenomenologia se alcançou a compreensão legítima e autêntica do que seria realmente o empírico e o experimental.

  1. Agora, ao “definirmos” a fenomenologia como exercício, dizemos que fenomenologia é aprender a aprender o ver. A expressão “aprender o aprender” facilmente nos engana, pois sabemos o que é aprender e assim simplesmente mentalmente repetimos as palavras sem observar que o primeiro aprender é bem diferente do segundo aprender. Tentemos ver essa diferença para então no fim perceber que não se trata de aprender coisas chamadas aprender o ver, mas tanto no primeiro aprender como no segundo aprender, como no próprio ver, está o apreender que é ver simples e imediato. Fazer vários exercícios: exemplos, Iai-do; aprender a abaixar a pressão; Kurossawa e seu modo de fazer filme; pregar um prego; aprender a ficar na cama no tempo de convalescença. O que tem tudo isso a ver com redução, ideação e constituição. A partir dali, ler o texto de Ser e tempo (Sein und Zeit, p. 5): “Todo pôr pergunta é uma busca. Cada busca tem a sua direção prévia a partir do procurado. Perguntar é procurar conascente do ente no “seu que é” e “que é assim”. O procurar conascente pode se tornar “investigação” como toque de-liberante disso a que a pergunta está afim. Com o perguntar por…, o perguntar tem o seu perguntado. Todo perguntar por… é em certo modo um interrogar junto ou acerca de. À pergunta pertence, além do perguntado, um interrogado. Na pergunta investigativa, i. é, na pergunta especificamente teorética o perguntado deve ser tocado na sua de-liberação e ser trazido a conceito. No perguntado jaz então como o propriamente intendido o encontrado, isso, junto do qual o perguntar chega a sua perfeição. Enquanto com-portar-se de um ente, do perguntador, o perguntar, ele mesmo, tem um caráter próprio do ser. Um perguntar pode ser realizado como “apenas perguntar assim” ou como colocação explícita da pergunta. O todo próprio desta consiste nisso que o perguntar ele mesmo se torne antes, seguindo todos os característicos constitutivos acima assinalados, transparente”.
  2. Examinar com mais detalhes a primeira frase da apostila sobre o exercício fenomenológico e conversar sobre a relação da fenomenologia e Aristóteles em Heidegger: Fenomenologia de Heidegger como existencialismo? Antropologia? Poética? Mística? Abordagem defasada da fenomenologia que não consegue captar o radical-novo da fenomenologia = ontologia na repetição da colocação da questão pelo sentido do ser.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 11

  1. No encontro [do dia 24 No encontro passado???] foi colocada uma questão que parece não ter ficado evidente. Foi perguntado se conseguimos diferenciar entre ver simples e imediato e ver o ver simples e imediato. Dito com outras palavras não é assim que nós identificamos o ver simples e imediato com tomar consciência do ver simples e imediato? Como entender isso?
  2. Se observarmos bem, ver o ver simples e imediato não é ver simples e imediato. Isto aparece quando perguntamos: quem vê o quê? E respondemos: eu vejo e vejo o eu que vê e o seu ver. Isto significa que o sujeito-eu se faz sujeito-objeto e somente quando o faz, o sujeito que vê simples e imediato vê realmente? O simples fato de ver não é ainda ver? Mas, para eu poder ver um filhote de jacaré comendo pé-de-moleque, os globos oculares dos meus olhos devem estar irrigados com sangue. No sangue se encontram os glóbulos vermelhos e brancos, correndo de cima para baixo, de baixo para cima. Tudo isso é um fato. Mas o fato de o sangue correr nas veias dos meus globos oculares não tem muito a ver com ver simples e imediato? Pois é um ato psíquico. Mas não é também uma atividade físico-corporal? Mas quando se trata de físico-corporal, o que eu vejo quando vejo simples e imediatamente? Meu olho? O meu corpo físico? Mas…, e ao corpo físico que eu vejo, só o vejo refletido no espelho… Mas eu sinto o meu corpo, dentro do qual lá em cima na cabeça está uma caveira, e dentro da caveira tem uma cavidade, onde está incrustado meu olho que vê o que? Vê o ato? O ato psíquico? A cabeça? A coisa se complica…, ou não será muito mais simples? Em que sentido? No sentido imediato e simples de eu me achar antes de tudo no mundo circundante. Esse achar-se, ou ser-no-mundo-circundante é o ver-simples-e-imediato: Da-sein, a ex-sistência, a facticidade. Dito com outras palavras, ver-simples-e-imediato é o fenômeno, o que aparece a partir de si nele mesmo como ele mesmo. Todo o resto (consciência, sujeito, objeto, ente e ser) já vem atrasado, sempre de novo já à mercê desse ver-simples-e-imediato.
  3. Não poderíamos arriscar dizer que o que na fenomenologia se denomina transcendental e mesmo ontológico, e mesmo também existencial, é ainda uma maneira de interpretar o ver-simples-e-imediato à la idealismo e não enquanto a coisa ela mesma, i. é, enquanto fenômeno que entre os gregos se identifica com o ente, o em sendo.

Essa colocação hipotética, que tem muito mais de chutação do que de uma hipótese, pode de alguma forma ser justificada da seguinte maneira:

Do que usualmente se diz do transcendental da subjetividade transcendental, percebemos que o aspecto transcendental jamais pode ser pego diretamente, pelo modo da percepção usual objetivada e objetivante, mas sim, indiretamente, por tabela com um objeto. Mas há vários modos de captação por tabela, p. ex., percepção da causa, pelo efeito; captação pelos sinais, pelo “símbolo” no simbolismo, pela aparência etc. Aqui, por mais variegados que sejam os modos de uma percepção por tabela, ela é sempre captação de um objeto, do qual se vai à percepção do outro, que por sua vez de alguma forma é captado como ou a modo de um objeto. E assim, da impossibilidade de captar o transcendental, a não ser por tabela com o objeto, tira-se precipitadamente a conclusão de que o aspecto jamais é perceptível direta e imediatamente. Assim, o que aparece à captação do aspecto transcendental, por tabela, indiretamente é chamado de aparência transcendental, der trasnzendentale Schein, em cujo aparecimento, o ser do aparecer recebe a conotação de aparência, que no fundo esconde atrás de si um algo mais. Aqui recordemos tudo quanto falamos do aparecer, na exposição do que constitui o evidenciar-se do fenômeno como aclaração. Assim, a aparência transcendental não significa aparência que é mediação de uma outra coisa que está para além da aparência, mas o imediato e direto vir às claras, portanto, a evidência, a clareação que no seu evidenciar-se é o mostrar-se imediato e concreto, o aberto, das Offene, a translucidez do luzir, a autopresença ela mesma que transcende toda e qualquer objetivação, não a modo de uma escalação para além da coisa chamada objetivação ou objeto, mas como “mediação”, i. é, como ação ou dinâmica do médium, a partir e no qual toda e qualquer modalidade de objetivação e objetos vem a si na aclaração da sua pressuposição, i. é, no positum da sua automostração. É o que denominamos captar ou ver simples e imediato. Como, porém, o termo trascendental de alguma forma conota uma transcendência a modo do movimento de trânsito para além, a modo meta-físico, enquanto clareação transcendental, a subjetividade transcendental pode-se chamar subjectividade, o lugar donde salta a analítica existencial e sua “ontologia fundamental”.

  1. Um dos exercícios mais importantes do ver simples e imediato é procurar perceber a mundidade de cada mundo. Num modo de falar ainda bastante impreciso podemos dizer, em vez de mundidade do mundo, a dimensão das coisas, o horizonte a partir e dentro do qual algo nos vem ao encontro, a tonância de uma situação.

De que se trata? A linguagem fenomenológica em língua alemã usa o termo Stimmung para indicar a mundidade do mundo. Como Stimmung usualmente é traduzido por humor, sentimento, torna-se difícil associar Stimmung ao mundo. A palavra Stimmung contém a palavra Stimme que significa voz. Usualmente entendemos voz a partir e dentro das representações ocorrentes na fonologia e fisiologia da formação das cordas vocais e seu desempenho na emissão do som, formado na garganta e emitido pela boca. E tudo isso como meio de expressão e comunicação da palavra pela vocalização. Voz, Stimme na compreensão fenomenológica da Stimmung deve ser captada no seu próprio como tonância. Embora de modo desengonçado, tentemos dizer de que se trata.

A voz de alguma forma parece estar intimamente ligada com o próprio do homem. Assim, eu digo “A voz do meu avô está um tanto fraca”, mas não digo: “A voz do nosso Pitt-Bull está hoje melancólica”. Isso é assim porque a voz diz respeito à linguagem. Mas atenção, linguagem aqui entendida não tanto como meio de comunicação ou expressão, mas como eclosão do mundo, como surgir, crescer e se consumar de um sentido do ser ou como historiar-se, destinar-se de um sentido do ser. A voz aqui se refere ao “tom”, ao “toque”, à “toada” que caracteriza o modo de ser, portanto, voz é modulação do todo, a “matiz” de fundo de toda uma paisagem. É nesse sentido que dizemos: “É o tom que faz a música”. Já que falamos da voz, poderíamos dizer que Stimmung é a afinação do todo na limpidez do seu ser, a vibração de fundo do próprio da coisa ela mesma. Nessa acepção é que em alemão usa-se o verbo stimmen para afinar, estar concorde, harmonizar. Ilustremos o que dissemos através de uma anedota piegas clerical sem muita graça: No interior de Goiás, numa cidade muito católica, na paróquia dos freis capuchinhos, o pároco era um frade siciliano enorme que mais parecia um armário do que um pobre mortal, cuja voz trovejava num barítono, fazendo vibrar as janelas da igreja. Na Semana Santa, na desobriga da confissão, igreja cheia de fiéis, esperando para confissão, o pároco pastor das almas, desejoso de arrancar delas um arrependimento profundo, subiu bem devagar ao púlpito, degrau por degrau, pesadamente. Olhou de cima para baixo os fiéis, demoradamente, num silêncio pesado e lúgubre. De repente, como que vindo das profundezas do abismo, gritou numa voz aterradora: “Inferno! Inferno! Inferno!”. E desceu do púlpito para sentar-se no confessionário. Foi um sucesso estrondoso. O jovem co-ajutor, mocinho, recém saído dos fornos do seminário, magrinho como top-model, achou o método fantástico. Resolveu adotá-lo. Numa celebração penitencial numa das capelas, fez o mesmo. Com passos apressados subiu ao púlpito, piscou os olhos sobre a multidão, e piou numa voz fina esganada: “inferno, inferno, inferno”. Foi uma gargalhada geral. É que o “povo” vê simples e imediatamente.

Essa anedota idiota diz o mesmo que aquela estória zen na qual se narra que um famoso mestre ao ser consultado pelas pessoas sobre um determinado problema da vida, levantava o dedo polegar em silêncio e se inclinava. E as pessoas voltavam satisfeitas. Um noviço achou o método interessante e começou a usá-lo também. E funcionava relativamente bem. Um dia no jardim do mosteiro, alguém que se aproximou do noviço por trás, o chamou. Era o mestre. E perguntou: Em que consiste a essência de Buda? O noviço, em silêncio, pressuroso levantou o dedo polegar. Deu um grito, saiu correndo em pânico. Num só golpe de navalha, o mestre lhe decepara o dedo. O mestre o chamou em voz firme: Oi! O noviço parou, virou-se e olhou para o mestre. Este calmamente levantou-lhe o dedo polegar! Nesse instante o noviço teve iluminação. Tornou-se mais tarde um grande mestre.

  1. O exercer e exercitar-se sempre de novo e cada vez sempre no ver simples e imediato é o estudo, i. é, o empenho e desempenho da fenomenologia. Para Heidegger esse exercício é mais importante do que ler Hegel. Muitas pessoas se escandalizam com essa afirmação de Heidegger. Não se anula com tal afirmação todos os nossos estudos acadêmicos? Sim e não? Mas em que sentido sim? E em que sentido não? Como explicar esse assunto por escrito leva muito tempo, e como fazê-lo não está nem muito claro nem sob a competência desse relatório, conversemos sobre esse assunto bem em concreto tendo como ilustração exercícios físico-corporais. Exemplo do relax.
  2. Já dissemos várias vezes que o simples fato de existir, o simples fato do ser-no-mundo é ver simples e imediato, ou numa outra maneira de falar pré-compreensão do ser. Isto significa que ver simples e imediato não é a consciência, o ato de um sujeito que verifica que o simples fato de existir é ver simples e imediato. Se chamarmos o ver simples e imediato de pensar, então ser e pensar são o mesmo, coincidem. Nesse sentido, dizer exercício do ver simples e imediato não é muito preciso, pois se o ser e o pensar são o mesmo, bastaria então apenas o simples fato de existir. Já vimos que exatamente voltar a essa situação do simples fato de existir exige de nós um grande trabalho de realmente vermos que essa simples factualidade não é um fato, uma coisa, por mais abrangente e nada que ela seja, mas facticidade, o ser-lançado-ali, o Da-sein. O exercício dessa volta se chama na fenomenologia redução, i. é, recondução à(s) pré-compreensão(ões). Uma das modalidades de se aviar à redução é o método socrático de indagar pelas pressuposições até se chegar ao não saber total. Esse não saber é suspensão, o pensar (pendo, pepensi, pensum, pendere). Desse não-saber, dessa suspensão fala Chuang-tzu:

A luz das estrelas perguntou ao não-ser: “Mestre, vós existis ou não?”. Como a luz das estrelas não obtivesse qualquer resposta, dispôs-se a vigiar o não-Ser. Esperou para ver se o não-ser aparecia. Manteve seu olhar fixo no profundo vácuo, esperando par tentar ver uma sombra do não-ser. Olhou durante todo o dia e nada viu. Ouvia, mas não escutava nada. Tentava pegar, mas nada pegava.

Então, a luz das estrelas exclamou, finalmente”. “É isto!” “Este é o mais distante! Quem poderá alcançá-lo? Posso compreender a ausência do ser. Mas quem pode compreender a ausência do nada? Se agora, acima de tudo isso, o Não-Ser é, quem será capaz de compreendê-lo? (XXII, 8) (Merton, T. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 10a. ed. 2002, p.186-7).

  1. Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sobra e tão mal-humorado com as próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de outra. Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sobra o acompanhava, sem a menor dificuldade. Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra. O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas ( XXXI) (ibidem, p. 229-30).
  2. Nieh Ch’ueh, que não tinha dentes, veio a P’i e pediu-lhe uma aula sobre o Tão. (Talvez pudesse mastigar isto!).

Então começou P’i: “Primeiro, obter o controle do corpo e de todos os órgãos. Depois controlar a mente. Atingir o ponto único. Depois, a harmonia celeste virá e habitará em você. Você estará radiante com a vida. Você repousará no Tão. Terá o olhar simples de um bezerro recém-nascido. Ah, feliz de você, nunca saberá a causa do seu estado…”.

Mas, antes que P’i houvesse chegado a este ponto de sua preleção, o desdentado adormecera. A sua mente não podia “mastigar” o cerne da doutrina. Mas P’i ficou satisfeito. Saiu cantando:

“Seu corpo é seco como o osso de uma perna velha, sua mente é morta como cinzas apagadas. Seu conhecimento é sólido, sua sabedoria, verdadeira! Na profunda escuridão da noite ele vagueia livremente, sem objetivos e sem planos: Quem é capaz de comparar-se a este homem desdentado?” (XXII,3) Ibidem, p. 180-1).

  1. Heráclito: phýsis krýptesthai fileî: a phýsis ama ocultar-se (123); aúe psychè sofotáte kaì aríste: alma seca, a mais sábia e a melhor (118).

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 12

  1. Tentamos estranhar de modo mais adequado a afirmação de Heidegger de que na fenomenologia é mais importante (in-portar) se exercitar do que ler Hegel.

Foi dito que aqui não se está opondo o exercitar-se contra o ler, mas o que nos im-porta, i. é, nos carrega para dentro é: exercitar-nos na leitura. E a leitura, ler, legere em latim, lesen em alemão, vem do légein colher, recolher, ajuntar. No Denkerfarungen (Experiências do pensar, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1983, p. 61) diz Heidegger:

O que evoca ler?

O que evoca ler? O que importa e conduz no ler é o recolhimento. O recolhimento aonde se recolhe? Ao escrito, ao dito na escrita. O ler propriamente é o recolhimento ao que, sem nosso saber, uma vez já apropriou a nossa vigência, quer aí lhe correspondamos ou falhemos.

Sem o ler, propriamente também não podemos ver o que nos mira e ver simples e imediatamente o que aparece e transluz[139].

  1. Exercício é ação de se exercitar. É, pois, verbo que vem do latim: exerceo, -es, cui, citum, cere. É formado de ex e arceo. (arceo, –es, ui, ctum, ere = L. Quicherat, Novíssimo Dicionário Latino-Português, 11a. Rio de Janeiro: ed. Garnier, 2000, refere o verbo arcere aos verbos gregos érgo ou arkéo[140]; exercere significa acossar, perseguir, inquietar, molestar, vexar, ocupar e gastar o tempo em, fazer trabalhar, não dar folga nem repouso. Ora arcere significa conter, proteger, ajudar afastando os impedimentos. Então, ex+arcere, i. é exercere significa tirar alguém do ninho onde se instalou, onde se acastelou, para que se deslanche na dinâmica de uma busca, na ação, no exercício de sua liberdade. Essa é a dinâmica da autonomia da ação livre e se chama querer. Exercício é pois a dinâmica, a vigência do querer: a volição. Na linguagem comum dizemos: ter vontade. Na questão “vontade” e “pensar”, conferir o Feldwegsgespräche.
  2. Na fenomenologia, quando dizemos é importante se exercitar, não conseguimos ver simples e imediatamente o que dizemos, se não de-construímos os pré-conceitos com os quais entulhamos o nosso nos-compreender ou o ver simples e imediato[141]. Entre esses pré-conceitos, os que mais dominam são o fato de nós designarmos o querer como ato de volição a modo da ação irracional (irracionalismo) ou voluntarista (voluntarismo). E no fundo desses dois “ismos”, a dinâmica do querer é representada a modo da atuação da força da energia coisal, sob a norma do princípio categorial “causa-e-efeito”. E juntamente com essa pressuposição preconceituosa representamos o ato de intelecção dentro do esquema do que os alemães denominam de Bildstheorie, i. é, a intelecção como mecanismo de captação a modo da fotografia. Aqui seria necessário mostrar tudo que acima dissemos com mais detalhes e mais vagar, o que deixamos para a iniciativa e o interesse do grupo do nosso círculo fenomenológico nas discussões das nossas reuniões semanais.
  3. Nós que somos acadêmicos podemos achar, e com razão, tudo o que acima foi dito como uma tremenda simplificação caricatural do que com seriedade buscamos, cada qual na área da sua especialização, acerca da compreensão desses temas como volição e intelecção e outros temas afins. E na filosofia já fomos informados sobre tudo isso, no saber adquirido pela teoria de conhecimento, epistemologia, história da filosofia, já lemos e estudamos sobre o cogito de Descartes, sobre o problema da metafísica em Kant, sobre a vontade para poder de Nietzsche, sobre a fenomenologia do espírito em Hegel e sua lógica, sobre o esquema sujeito — objeto etc. E quando então nos confrontamos com o que está mais próximo de nós mesmos, com a minha intelecção de todas essas coisas que estudamos e sabemos, e com a vontade de querer mais e mais ver simples e imediato, ficamos perplexos e confusos, pois esse mesmo sujeito que sou eu mesmo por mais que diga que quer ver simples e imediatamente, não sabe nem quer muito se exercitar em si mesmo, não quer perfazer-se como o em se exercitando. Quando no estudo da fenomenologia começamos a assim entrar em perplexidade com todo o nosso saber, seja acadêmico, seja dos nossos afazeres banais e cotidianos, e realmente começamos a ser acossados, perseguidos, desinstalados das arcas e dos baús do nosso saber dentro dos quais nos acastelamos, perguntamos: como querer o querer, eu que tenho dificuldade de querer? Como me exercitar, se não tenho nem gosto, nem perseverança, nem o élan da busca? Aqui então recebemos da fenomenologia a resposta fatal: querendo, vendo simples e imediatamente ou sendo. Se ouvirmos essa resposta numa perplexidade total e dessa perplexidade perguntarmos: de que se trata? Estamos sob o toque da percussão da tonância (Grundstimmung) do exercício do ver simples e imediato.
  4. Quando esse problema, que aqui assim formulado soa artificial e não possui aquela necessidade que nos acossa de nossas arcas e nossos baús e que não mais nos deixa nem sossego nem repouso, voltar sempre de novo nas nossas interrogações e começar a nos irritar, a nos molestar e desanimar, e nos faz perder o gosto de estudar fenomenologia, pode ser que, quem sabe, estejamos começando a adentrar o exercício da fenomenologia.
  5. Então olhemos talvez para o que acima Heidegger disse do Ler propriamente com mais disposição e vislumbremos que esse ler, lhe correspondamos ou não, é exercício por excelência e que ali há o toque: a facticidade, a saber, o ver simples e imediato que na fenomenologia recebe o nome de Da-sein, Ex:sistência. Nós somos cada vez, sempre novo e de novo o lance, a facticidade do ver-simples-e-imediato, i. é, no recolhimento, no colher, no ser em sendo a aberta, simples e imediata da atinência à mostração: à fenômeno-logia.
  6. Esquecida de que era água e de que estava fluindo, disse a água corrente de um riacho à água corrente do mesmo riacho: “Ai, ai, como estamos longe das nossas fontes!” Disse o leito do riacho, em cujo fundo jaziam pedras redondas, que de quadradas se tornaram redondinhas de tanto ser desgastadas pela corrente: “Por favor, não fiques distraída a te enroscar, em querendo cavar covas e buracos, cavidades, salas, sim salões de luxo para te aninhar. Pois, para água corrente é mais importante fluir do que se estabelecer. Somente assim estarás junto da fonte que é o dentro de ti mesma, somente assim te podemos servir de leito”. Por isso diz Hölderlin: Pouco saber, mas muita jovialidade é dada aos mortais. É o segredo do sabor da fenomenologia.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 13

  1. Em nossas reflexões, na tentativa e tentação de adentrar a compreensão de que se trata, quando falamos da fenomenologia, decidimos aprofundar tudo o que até agora viemos refletindo, à mão da conferência pronunciada por Prof. Carneiro Leão no XII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e I Encontro de Fenomenologia Centro-Oeste, em Goiânia – GO, maio de 2006. O título da conferência soa A fenomenologia de Edmund Husserl e a fenomenologia de Martin Heidegger. No nosso encontro passado [de 22 de maio], lemos e comentamos os dois primeiros parágrafos da conferência.
  2. A tarefa da conferência é falar da fenomenologia. De Husserl e de Heidegger. E isso, referido à evolução da fenomenologia de Husserl à fenomenologia de Heidegger. Para mostrar em que consiste essa evolução, a conferência observa: Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia. Essa observação é o que nos nossos encontros anteriores viemos falando de vários modos acerca do que denominamos ver simples e imediato. Trata-se, pois de um princípio. Esse princípio mostra que: No aparecimento e desaparecimento, no desvelamento e velamento, da sua (i. é, da fenomenologia) vigência, a fenomenologia passa a recolher o ser e acolher o nada de suas diferenças e referências a si mesma e a todos os demais fenômenos. Trata-se, pois, da passagem da fenomenologia em e através de todo e qualquer fenômeno. A evolução da “fenomenologia” de Husserl e “fenomenologia” de Heidegger, de uma para outra, em uma e em outra, é um momento dessa passagem da fenômeno-logia em e através de todo o fenômeno: Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia.
  3. Se quisermos ilustrar o que foi dito com um exemplo, talvez possamos formular assim: toda e qualquer nota musical é música. Toda e qualquer nota ou composições, a partir de uma única nota, e se você quiser, de uma parcela infinitesimalmente “atômica” (Stockhausen: música eletrônica erudita), ou a partir de um conjunto de notas, é sempre e cada vez música, ou melhor, musicalidade, que atravessa todas essas realizações de composições musicais e está presente em todas elas, passa, é passagem, na e pela qual as notas vêm a si como musicalidade. Nessa passagem, nessa vigência da musicalidade ou do ser da música, ela recolhe o ser e acolhe o nada de suas diferenças e referências a si mesma e a todas as demais notas e possibilidades de notas. A música ou musicalidade não é cada uma das notas, nem dos seus conjuntos. A(s) nota(s), seja(m) ela(s) como for(em), não é (são) musicalidade. Mas uma não é sem outra. Trata-se de uma relação, de um encontro todo próprio, anterior à distinção entificada e entificante a esta nota, aquela nota, a este ou aquele conjunto de nota, a esta ou aquela música. Esse encontro, essa relação anterior, não é encontro ou relação ao lado de outro tipo de encontro ou de relação, mas sim dinâmica de e-vento, um destinar-se, um historiar-se, do vir à fala da musicalidade em todas as coisas, diferenciando-se de e ao mesmo tempo se identificando com elas como referida a elas, nelas e por elas.
  4. Depois dessa ilustração, o que significa: Em Husserl, é pela intencionalidade que a consciência está sempre passando continuamente do fenômeno para a fenomenologia e a intencionalidade lhe serve de ponte de ligação e passagem. Sem consciência intencional não se dá fenomenologia.

Isto significaria que em Husserl a fenômeno-logia vem à fala na diferença e referência a si mesma e a todas as outras “fenomenologias” na possibilidade e impossibilidade do sentido do ser que perfaz uma realização da fenomenologia enquanto conhecimento e suas inúmeras teorias, a saber, consciência intencional?

Mas essa colocação não é idêntica com o que a conferência critica ao dizer:

…está inteiramente fora de propósito pretender identificar a fenomenologia de Husserl com a análise intencional dos feitos e atos da consciência e a fenomenologia em Heidegger com a análise existencial da pré-sença, como se ambas, consciência e presença, fossem determinados objetos de conhecimento?

  1. Mas, e se agente considerasse consciência e pre-sença não como objetos, mas como sujeito? Não, porém como sujeito empírico, mas sim como subjetividade ou subjetidade ou consciência transcendental? Como fazer, porém, com que consciência transcendental não seja conhecimento? Deixando-a ser ab-soluta, deixando-a ser o ser da consciência. Enquanto ser da consciência, a consciência transcendental é subjetividade-objetividade transcendental, a saber, ab-soluta. É o modo como fenômeno-logia passa pela “fenomenologia” husserliana, tocando-a no seu ser.

E em Heidegger? Diz a conferência: “Em Heidegger, não! O fenômeno já é sempre esta passagem, e somente por isso se dá consciência e acontece intencionalidade”.

  1. A palavra passagem aqui é ambígua. Uma vez pode ser entendida como a passagem da “fenomenologia” de Husserl à de Heidegger; outra vez como o destinar-se, o historiar-se da fenômeno-logia, como a passagem da fenômeno-logia ao longo, junto de, em e através de, no processo do vir-à-fala, no seu aparecer e ao mesmo tempo no seu retrair-se como fenomenologias. Mas essa ambigüidade indica exatamente a implicação do relacionamento ou encontro entre a fenomenologia de Husserl e a fenomenologia de Heidegger não como evolução de uma para a outra ou variações específicas de um único e unívoco conceito geral de fenomenologia, mas sim como ressonância de repercussão do mesmo toque, em cuja tonância escutamos a entoação de uma como o silenciar do fundo da outra.
  2. Escutar numa o silêncio da outra se chama pensar. Assim,

pensar não é uma função tética de uma consciência transcendental. Pensar é acompanhar as peripécias, as vicissitudes e os percalços desta ininterrupta passagem. Para Husserl, pensar é exercer e exercitar a fenomenologia da consciência. Já para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno.

Mas então o que quer dizer “encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”?

Prossegue a conferência:

Num primeiro contacto, a diferença entre um e outro filósofo estaria na distinção entre Bewusstsein (“Bewusst+sein”), consciência, de um lado, e Dasein (“Da+sein”), pré-sença, de outro, e a referência, a comunhão de ambos, estaria na maneira de lidar, no procedimento e método, com que se trataria da consciência e da pré-sença, num e noutro caso.

  1. De tudo que lemos e comentamos do texto do Prof. Carneiro, seria possível colocar a questão, numa formulação como segue?
  2. a) No que está em jogo nessa exposição, ao se falar da fenomenologia de Husserl e fenomenologia de Heidegger, não se trata de considerá-las dentro do esquema de classificação a modo de gênero (Fenomenologia em geral) e espécies (F. de Husserl e de Heidegger) ou de espécie e seus indivíduos.
  3. b) Não se trata de considerá-las como evolução, aperfeiçoamento, complementação ou comparação. Pois numa comparação há sempre um comum, um geral que abrange os termos comparados.
  4. c) Trata-se de colocar a relação dessas “duas” fenomenologias como relação existente “entre” ente e ser. Portanto não entre ente e ente, portanto não na diferença e identidade ôntica, mas sim na diferença e identidade ontológica. Sobre esse modo de se diferenciar, diz Heidegger em Die Grundbegriffe der antiken Philosohie (Os conceitos fundamentais da filosofia antiga), obras completas volume 22, no parágrafo 4 intitulado A função crítica da filosofia como separar e diferenciar entre ente e ser, p. 7ss: “Crítico: krínein – “separar”, “diferenciar”, no diferenciar de algo contra algo, fazer visível a ambos, o diferenciado e sua diferença. Diferenciar: triângulo de um quadrado, vertebrado de pássaro, epopeia de drama, substantivo de verbo, um ente de um outro ente, assim cada ciência distingue continuamente e com isso determina o diferenciado.

Segundo o que dissemos, se filosofia é ciência crítica, de tal sorte que “crítico” lhe perfaz o caráter que a destaca, então se trata de um diferenciar todo destacado. Mas o que ainda pode ser diferenciado de outro modo, do ente a não ser ente? O que podemos ainda dizer do ente? Que ele é e que somente é ente. Ele é, ele tem ser. Do ente e no ente é diferençável o ser. Essa diferença não se refere a ente e ente, mas a ente e ser. >Ser<!?, com isso nada se pode representar. Ente, com ele certamente o podemos; ser, mas com ser!? De fato, a razão comum e a experiência comum compreende e busca somente ente. Nele, porém, ver o ser, captá-lo e diferenciá-lo frente ao ente é a tarefa da ciência diferenciante, da filosofia. Esta tem por tema o ser e jamais o ente.

Ciências positivas: Ciência do ente. Isto que pré-jaz para a experiência natural e para o conhecimento. Ciência crítica: Ciência do ser. Isto que não pré-jaz para a experiência natural, mas que está oculto, que jamais pré-jaz e no entanto já e sempre é compreendido, e isto até antes de todo experimentar do ente, ao mesmo tempo, o que há de mais positivo e no entanto igualmente o que há de menos positivo. Ser >é< não. Filosofia é ciência crítica, não filosofia crítica, expressão esta indicativa da teoria de conhecimento, a saber, a critica dos limites do conhecimento”.

  1. No nosso texto, fenomeno-logia está para o fenômeno, está para as “fenomenologias” como ser para o ente.
  2. Se, ao dizermos ente, logo pensarmos no mundo, é como ao falarmos de uma árvore, pensarmos na paisagem onde a árvore é momento constitutivo. Para “compreender” paisagem e paisagem, devemos cada vez trilhar as sendas e veredas de cada paisagem. Devemos acompanhar as peripécias, as vicissitudes e os percalços das ininterruptas passagens do caminho. O percurso do caminho é diferente na paisagem do deserto, na paisagem do cerrado, nas avenidas das cidades, nos caminhos do campo. No entanto, o caminho cada vez abre sempre de novo e cada vez novo todo um mundo que é o uni-verso. Essa ponderação, nós já a fizemos anteriormente, ao falar de método, quando lemos O caminho do campo de Heidegger. Como podemos recorrer àquela experiência do caminho do campo, para podermos compreender melhor de que se trata, ao lermos nos primeiros parágrafos da conferência do Prof. Carneiro as frases:

Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia. No aparecimento e desaparecimento de sua vigência passa a recolher o ser e acolher o nada de sua diferença e referências a si mesmo e a todos os demais fenômenos. No logos, isto é, no recolhimento, no estar junto de si na finitude concreta do ser em sendo, no ser do ente, como vir a si, vir à fala no se evidenciar a partir de si, em si mesmo, na identidade e diferença de si, portanto, como fenômeno, portanto na logia do fenômeno, a saber, na Fenômeno-logia, todo o segredo consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, i. é, na aberta do ente, em sendo, com o ser da aberta que só é na concreção corpo a corpo do em sendo aqui e agora na situação.

  1. Fenômeno e Da-sein dizem o mesmo. Fenomenologia e existencialidade dizem o mesmo. Fato e facticidade dizem o mesmo. O conhecimento do Da-sein não é conhecimento sobre ou acerca de, mas simplesmente Da-sein, o co- e re-nascimento: aqui ser e pensar são o mesmo.
  2. O que tem a ver tudo isso com o nosso ver simples e imediato?
  3. O que usualmente compreendemos como ente e ser é produto do conhecimento. Por isso o conhecimento que distingue o sujeito, ato de conhecer e o objeto conhecido não percebe que em tudo isso já está atuante o ser. Não percebe que já está ali em sendo, isto é, é ente, a mercê na alegria de ser. Ver simples e imediato não é ver isto ou/e aquilo, não é captar algo, é simplesmente ser, isto é, o em sendo.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 14

  1. Algumas reflexões para nos aproximarmos da constatação: “…para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”.

A palavra Da-sein, sua tradução para o português como existência, pré-sença e similares como existencialidade, existencial, está sendo usada na reflexão no sentido do Ser e tempo (Martin Heidegger). Indica o próprio do ser do homem ou da “vida humana”. Em vez de o próprio do ser do homem, podemos também dizer o ontologicum do humano. Geralmente, quando diferenciamos o ser do homem do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não “entre” o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra Da-sein, existência, pré-sença e seus derivados, no seu uso específico da compreensão usual fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem no sentido da diferença ôntica, mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é a de não representar a diferença “entre” ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala, se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando na mira de nossa atenção a diferença entre ente e ente, divisarmos numa “mira”, digamos oblíqua, a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse “intus” “ire” como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez, nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser, se chama homem, mas não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativa pelo sentido do ser: é Da-sein, existência, pré-sença.

  1. Em nosso caso, quando falamos de fenômeno e de fenômeno-logia ou, num sentido mais “geral”, quando falamos de ente e ser, sabemos muito bem que não devemos entender fenomenologia ou ser como se fosse o comum ou o geral no sentido da classificação de generalização para com os objetos classificados ou mesmo do gênero e suas espécies, e da espécie e seus indivíduos. Esse tipo de conceitos “gerais” que ultrapassam os entes subsumidos sob o seu âmbito, os medievais chamavam de “transcendentais”. Isto quer dizer, transcendiam o gênero. Mas tudo isso não significa que era um tipo de gênero mais geral do que o gênero supremo das classificações. “Transcendiam” todos os entes, no sentido de estarem “implicados” em todos os entes como que marcando sua presença, cada vez de modo diferente conforme o “conteúdo concreto” do ente, mas não a modo do ente. Surge aqui um impasse, pois se de algum modo representamos o ente como algo, e isso a modo disto e aquilo, concreto e individual, que coisa é essa que está em todos os entes e ao mesmo tempo não é nenhum ente? Surge assim o problema dos universais. Os universais são entes ou são apenas “coisas” mentais? Sem adentrar essas questões, observemos que nós, quando lemos: “Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia”, temos dificuldades de entender, ou melhor, ver essa simultânea identidade e diferença. A saída imediata e fácil de fugir dessa questão é dizer simplesmente isto surge porque a realidade diante de mim em si é uma coisa, ao passo que o nosso conhecimento é uma “realidade” mental, de sorte que o ser e sua universalidade são conceito, algo mental, embora de algum modo com fundamento na realidade etc. etc. A estrutura elementar e básica desses problemas, a formulamos naquele esquema S – O, Sujeito – Objeto que constitui o positum da Teoria de conhecimento. Na fenomenologia colocamos esse positum entre parênteses, suspendemos o positivismo, o dogmatismo do seu posicionamento, a saber, o reconduzimos à sua dinâmica anterior: ao fenômeno. O fenômeno é a partir de si, nele mesmo, para ele mesmo a dinâmica do surgir, crescer e se consumar. É o movimento de presenciação, patência, e-vidência. E não algo que se torna presente, se torna patente, se evidencia. É o próprio movimento, a própria dinâmica de adensamento, de plenificação, do tomar corpo, do vir à fala. No esquema S – O, por termos fixado esse movimento como uma “ligação posterior acrescentada” entre algo chamado sujeito e outro algo chamado objeto, não vemos que os três “algos” assim fixados e ligados são possibilitados pela dinâmica anterior do fenômeno acima mencionado. Por isso, Brentano, no texto já há muito citado num dos nossos fragmentos de reflexões fenomenológicas, chama o esquema S – O de fenômeno psíquico. Em nossas reflexões anteriores, já dissemos que nessa formulação de Brentano Husserl des-cobriu a intencionalidade, não como intencionalidade na sua acepção usual da tendência da imanência (dentro do sujeito) ao objeto transcendente (coisa fora do sujeito), mas correlação do ego cogito cogitatum como um todo. E ao assim captar o todo e ao chamá-lo de fenômeno, estava trazendo à fala o ser do conhecimento, o ser, i. é, a entidade, o ser do conhecimento, a con-sciência. Toda a passagem do fenômeno em Husserl para a fenomenologia consiste em se aproximar do ser enquanto ser do conhecimento. Isto significa que o ser não vem à fala a não ser enquanto ser do conhecimento, ou como con-ciência transcendental. Como tal, a identidade do ser e pensar, do ser e perceber, do ser e consciência não é pensada, mas pressuposta. E todo o ingente empenho e desempenho da fenomenologia de Husserl é se esgotar na tentativa de no limite da sua possibilidade, i. é, na impossibilidade possível da sua tentativa e tentação, anunciar o ser pressuposto operativamente na colocação da consciência transcendental como condição da possibilidade de ser consciência.

Diz a exposição do prof. Carneiro: “Já para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Da-sein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todos e em todo fenômeno”. Isto significa: o Da do Dasein é a dinâmica do recolhimento e acolhimento (légein) que no seu movimento constitutivo é fenômeno, a saber, phainesthai.

  1. 3. Segundo a conferência de E. Carneiro em Goiânia: “Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia”. Formulando o dito de modo equivalente em termos do ente e ser, podemos dizer: todo e qualquer ente (em sendo) já é em si mesmo, como ente, ser. Podemos de modo recíproco virar (Kehre) a equivalência e dizer: o ser já é em si mesmo, como ser, ente? Essa virada é apenas formal e diz apenas: ente = ser; ser = ente; fenômeno = fenomenologia; fenomenologia = fenômeno. É que aqui não se trata de igualdade mas de identidade e diferença. No fundo, temos aqui uma tautologia. Fenômeno e fenomenologia, ente e ser, ser e ente dizem o mesmo. Dizer o mesmo se chama passagem, Kehre no fundo diz o modo de ser da tautologia. Com outras palavras fenomenologia é tautologia. Nesse sentido: tò ón, tò phanómenon, tò autón dizem o mesmo: o ente no seu ser. Manter-se suspenso na tênue vibração do ente no seu ser é o pensar (Physis: Lógos-Nõus. No pensar se dá o salto da mira: a aberta da eclosão do mundo: é Er-eignis, Er-äugnis, o evento, a apropriação. Essa nira é o que denominamos de modo banal: ver simples e imediato. No salto há o ponto de toque da percussão como repercussão. Esse ponto de toque é a passagem, o ponto da Khere. Aqui a viragem é antes vira-vira do que virar de uma direção para a outra. Por isso, passagem. De cá para lá e de lá para cá, simultaneamente. É o movimento da entrada que é ao mesmo tempo saída de uma cantina num filme de Bange-bange. E entrada e saída simultânea da vira-vira num Western é o ponto de decisão da vida e/ou morte de um pistoleiro. É no ponto de salto que se dá a de-cisão, se o salto se dá. Mas aqui não é assim que seja a decisão que de-cide se o salto se dá ou não. Se é ponto de salto, o salto já se deu, mesmo que quando não se dá. O não acontecer do salto em nada tira do salto o seu ser decidido. O que usualmente chamamos de o salto que se não deu, não é salto. É apenas escolha de possibilidades já existentes. No salto, por menor que seja a altura, a intensidade e o volume do salto, ele faz saltar o infinito ab-soluto do qual o salto é repercussão. Assim o ponto de salto é lá onde se dá o uno do finito e infinito, ou melhor, o finito do infinito. Esse uno é o ente como em sendo: o finito na sua finitude. Na fenomenologia, essa finitude se chama de Da-sein. (“Já, em Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”).
  2. Aceitamos como algo óbvio e real que os nossos conhecimentos científicos sejam tirados desta ou daquela coisa, deste ou daquele objeto que é dado diante de nós para observação. Olhamos, observamos esta coisa de diversos ângulos e vamos adquirindo sobre ela muitos conhecimentos, os quais vamos ordenando num sistema. É assim que representamos o nosso conhecer (generalização). Mas, na realidade, não tiramos os nossos conhecimentos científicos dessa coisa ali diante de nós, dada simplesmente. Nós os tiramos, antes, da experiência do nosso próprio viver. Quando nos colocamos diante dessa coisa, para conhecê-la, antes de assim nos colocarmos e visualizarmos esta coisa e antes de esta coisa se nos apresentar assim como esta coisa, antes de tudo isso, há muito tempo, já somos de antemão uma abertura plena de vivências, usos, experiências, relacionamentos, convivências, pertenças, costumes, histórias. Antes de tudo, nós somos uma extensão viva, a priori, dinâmica, um prévio pulsante de pre-compreensões e sentidos, dentro e a partir do qual podemos tematizar um momento ou um aspecto de todo um mundo de compreensão atuante e operante como vida. Ex. jarra: para dizer devo estar dentro da cultura do (utensílio). No entanto não é assim que nessa tematização possamos, por assim dizer, olhar para nós mesmos como quem vê de fora uma área aberta, um grande espaço cheio de experiências dinâmicas pulsantes e então ressaltar desse todo uma parte, a qual enfocamos com a nossa atenção. É que esse suposto espaço aberto cheio de experiências somos nós mesmos enquanto somos, em olhando a nós mesmos, isto é, nós somos, em sendo, essas próprias experiências. Esse em sendo é compreensão. Não precisamos, portanto, ir pra fora e nos ver à distância, “objetivamente”. Basta sermos, pois, em sendo, já somos compreensão. Certamente, não uma compreensão conceptual, não uma compreensão elaborada numa definição, não objetiva como um determinado objeto de nossa investigação, mas sim uma compreensão prévia, anterior, uma precompreensão, viva, que pode ser bem concreta, cheia, clara, mas também pode ser apagada, indeterminada, vazia, confusa, obscura. Essa realidade concreta e dinâmica aqui denominada precompreensão é o que somos e o que, sem pensar muito, chamamos de compreensão da vida, isto é, em sendo, em vivendo, somos cada vez compreensão. É uma compreensão, em sendo, anterior a toda e qualquer explicação, conceitualização e definição. É uma compreensão em sendo, a que está referida toda e qualquer explicação, conceptualização e definição posteriores. Estranhamente já, há muito tempo, não conseguimos mais ver essa realidade simples e concreta nela mesma. Pois essa realidade que somos nós mesmos, em sendo, é o que somos no dia-a-dia, em concreto, em lidando com isso e aquilo, em trabalhando, em negociando, em construindo, em organizando, em repousando, em vivenciando, em teoretizando etc. Com outras palavras, é o que somos no uso e na vida, ou melhor, o que somos como uso e vida. Não conseguimos ver adequadamente essa realidade simples e concreta que somos nós mesmos em sendo, pois já há muito tempo nós nos representamos como sendo uma entidade ocorrente, simplesmente dada, um sujeito, um indivíduo, um algo, uma “substância” que através de volições, afeições, intelecções, através de atos, se relaciona com outros entes que são também simplesmente dados, entes que o cercam de todos os lados. Isto significa que o que pensamos usualmente ser o homem no seu mundo não é o fenômeno direto e concreto, mas sim uma representação, dogmatizada e tradicional. Isto, porém, quando nos perguntamos: o que sou? O que é o mundo? O que é o ente ao redor de nós?

Tudo muda quando, em sendo, vivemos no uso e na vida. Antes, na representação, havia o mundo, o universo como imenso espaço, dentro do qual estão diferentes entidades, sendo que eu sou um ente entre esses entes, também dentro do mundo. Temos assim o esquema: um mundo como imenso invólucro, dentro dele os entes, um ao lado do outro. Agora, quando, em sendo, vivemos no uso e na vida, ou melhor como uso e como vida: o mundo não é mais espaço que me envolve e envolve os outros entes ali simplesmente dados, um ao lado do outro. O mundo é agora, cada vez de novo e novo, a dinâmica do movimento de estruturação. Movimento de estruturação que somos nós mesmos, em sendo esse afazer, esse trabalho, esse engajamento, movimento de estruturação que faz desabrochar todo um leque de entes, inclusive a nós mesmos, interligados entre si, um no outro, um do outro, um para outro, um com outro, como uma totalidade cada vez viva e determinada, mas não fixa, totalidade que cada vez constitui a nossa situação, aquilo que somos cada vez em sendo concretamente. O ente não é mais esta coisa, ali dada simplesmente como algo-bloco. Pois, nesse movimento de estruturação, o ente ali presente con-cretamente é um momento visível de todo um mundo de entes, ali implicitamente pulsante, como outros momentos constitutivos do todo da situação que somos nós mesmos, cada vez em sendo concretamente.

Em sendo no uso e na vida, em sendo uso e vida, somos cada vez tudo, isto é, um todo unificado, explícito ou implícito, de entes, objetivações, sentidos, valores, vivências, experiências, idéias, recordações, imaginações, criatividades, cuidados etc. Um todo assim uno é o mundo. Nós somos cada vez, sempre de novo, uma totalidade. Ser mundo assim se chama ser-no-mundo, isto é, em sendo, constituído e se constituindo como mundo. Aqui o termo “no” não significa dentro de um espaço, mas sim em sendo, isto é, o movimento de ser cada vez totalidade dinâmica de eclosão e estruturação do mundo.

Esse modo de ser não é um fato simplesmente dado. Mas sim um modo de ser, isto é, maneira de ser, diferente do ser simplesmente dado.

Como já dissemos acima, esse ser-no-mundo somos nós mesmos como compreensão. Nós somos cada vez, em sendo compreensão de nós mesmos como eclosão e estruturação do mundo. Talvez seja melhor dizer, em vez de compreensão, conhecimento. Mas conhecimento entendido como conascimento. Em francês conhecer diz co-nâitre = conascer. Nascemos continuamente como e com mundo, nos desabrochamos, eclodimos, crescemos e nos consumamos, definimo-nos como mundo: somos esse eclodir, isto é, ser-no-mundo. Abrir-se como mundo se chama em grego epoché. Daí, somos época, somos epocais, cada vez: história.

Mas, tudo isso não é racionalismo? Reduzir tudo à compreensão? Ao conhecimento intelectual? Não somos também coração, sentimento, volição, vontade, não somos concretamente corpo físico, real e material? Não somos apenas intelecto, apenas compreensão…

No entanto, não se está dizendo que tudo é racional, que tudo dever ser reduzido à compreensão racional. Está-se dizendo que no homem nada há que não seja ele mesmo, que nada há nele que não tenha o modo de ser próprio do ser-no-mundo. Nenhum momento, nenhuma parte do homem tem o modo de ser do simplesmente dado. Mesmo aquilo que nele é a modo de ser do simplesmente dado, na realidade, não é simplesmente dado, mas sim um modo deficiente do conascimento. Pascal cunhou uma frase que de tanto ser citada, se tornou careta: Le coeur a ses raisons, que la raison ne connâit point: on le sait en mille choses (Pascal, Pensées, nº 477). O nosso ser físico e material, o nosso querer, o nosso sentir, tudo tem suas razões que a razão desconhece. Com outras palavras: tudo em nós é compreensão viva, em sendo: conascimento, conhecimento. Aqui não se trata de conhecer sobre uma coisa. É, como já foi dito, conascer. Conascer significa: em sendo, deixar que esse ser se mostre de dentro para fora, se e-videncie, se abra como clareza, apareça. Em sendo, ter compreensão de si, em sendo se clarear: esclarecimento, iluminação, ciência do aparecimento, fenomenologia.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 15

  1. Insistimos na leitura da última sentença do parágrafo 2, tentando ver melhor de que se trata. A sentença em questão é: “Já para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, com a pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno”.

E recordemos: “Para Husserl, pensar é exercer e exercitar a fenomenologia da consciência”. E nisso: “Pensar não é uma função tética de uma consciência transcendental”. Mas: “Pensar é acompanhar as peripécias, as vicissitudes e os percalços dessa ininterrupta passagem”. Sim, mas de que passagem? “Da passagem que em Husserl, pela intencionalidade, a consciência está sempre passando continuamente do fenômeno para a fenomenologia”. Pois: “Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenomenologia”. Mas em que sentido? “No aparecimento e desaparecimento de sua vigência, o fenômeno passa a recolher o ser e acolher o nada de suas diferenças e referências a si mesmo e a todos os demais fenômenos”.

  1. O simples fato de ser é fenômeno.
  2. Mas o fenômeno não é fato.
  3. Fenômeno já é em si mesmo, como fenômeno, fenômeno-logia.
  4. Fenômeno é, enquanto fenômeno, logia do fenômeno.
  5. Logia é Logos, e Logos é légein: é a vigência no aparecimento e desaparecimento, portanto no fenômeno, a recolher o ser e acolher o nada de suas diferenças e referências a si mesmo e a todos os demais fenômenos.
  6. Essa vigência é passagem.
  7. A passagem é entre-medio.
  8. Entre não é ligação dos já constituídos extremos, mas Stimmung, o verbo medial, a saber, a ligação como médium, ou melhor, como a tênue vibração da verdade do ser (a-létheia): passagem.
  9. No modo de ser, em que sempre de novo e cada vez temos ente e ente, o entre de um ente chamado sujeito e no e com o outro ente chamado objeto é uma relação intencional. Nessa relação intencional, embora não se dê o entre como ligação dos extremos já constituídos, o entre jamais é um encontrar-se no e com o outro de si na identidade de si, pois o que aqui se liga, o que aqui está ligado não é o ente no seu ser, mas re-petição do ente na sua entidade, na qual não se dá a passagem como re-vira-volta (Kehre), mas apenas como o médium do igual cujo sentido do ser se corporifica como algo. Assim o ente não vem à luz no seu ser, a não ser como “função” tética de uma consciência transcendental ou como conhecimento do ente, a partir, no e com o ente.
  10. Pensar nessa situação é exercer e exercitar a fenomenologia da consciência.
  11. Para Heidegger, pensar é a mesma passagem. Só que é a in-sistência nessa passagem na qual o fenômeno se encontra como re-vira-volta na qual o Ser não é nem fundamento, nem causa, nem ente como-tal (überhaupt), mas suave vibração infinitesimal do toque e da passagem da verdade do ser e do ser da verdade, a-létheia.

Fragmentos de reflexões fenomenológicas 16

  1. Terceiro parágrafo: O que aqui é assinalado como primeiro contacto com fenomenologia é o que usualmente se informa sobre fenomenologia de Husserl e de Heidegger. Assim o que usualmente se diz no meio acadêmico e especializado sobre a questão está resumido na afirmação: a diferença entre um e outro filósofo estaria na distinção entre Bewusstsein, consciência, de um lado, e Dasein, Pré-sença, de outro, e a referência, a comunhão de ambos, estaria na maneira de lidar, no procedimento e método, com que se trataria da consciência e da pré-sença, num e no outro caso. Dito de outro modo, no caso de Husserl o tema é consciência, no caso de Heidegger, Dasein. Diferença está portanto no tema; a união entre os dois no método: a referência, a comunhão de ambos, estaria na maneira de lidar, no procedimento e método, com que seriam trados os temas diferentes, uma vez consciência, outra vez Dasein. Ora, a diferença entre Husserl e Heidegger não se pode reduzir à distinção de tema e à união de método. Por que não? Porque, a diferença e a referência incluem ambas as coisas, tanto o tema, quanto o método. Pois, o que a fenomenologia nos faz perceber é que tema e método formam uma unidade e perfazem um movimento só. Sem o percurso dessa percepção, ninguém se descobre dentro, nem se encontra com o curso da fenomenologia em todo fenômeno. Isto significa que tema e método em Husserl e em Heidegger, em formando cada vez um movimento só, não possui referência a modo de um método comum, aplicado a dois temas diferentes, consciência e Dasein. No fenômeno-Husserl, o tema e o método, formando um movimento só, chamam-se consciência transcendental (fenômeno-intencionalidade-fenomenologia = <ego cogito cogitatum> = ego cogito <ego cogito cogitatum> = cogito-me cogitare = consciência transcendental. Trata-se, pois, da ação ou função tética de uma consciência transcendental. Nesse cogito me cogitare ou cogitans sum, o seu ser se retrai sempre de novo e cada vez como facticidade, portanto como não ser da consciência. Em Husserl esse não é de alguma forma colocado como algo transcendental. Esse colocar-se não é uma tese, mas o movimento de ininterrupta e contínua passagem do ser da consciência para o nada de si, como que a se perder, a se esvair na impossibilidade de se captar, a não ser a partir e dentro da consciência como não-consciência que é a condição da possibilidade da consciência. Nessa facticidade de ter que ser consciência na responsabilidade de e pelo ser da consciência é fenômeno que já é em si mesmo, como fenômeno-Husserl, fenomenologia. Em Heidegger esse transcendental da consciência como não-consciência é passagem, não no sentido de para além, de uma margem à outra, mas sim o Da, o médium, a clareira, o curso da fenomenologia em todo o fenômeno. Isto significa que nesse Da-sein, nesse Sein-Da está toda e inteira, cada vez de novo, a fenômeno-logia. Por isso, para Heidegger, pensar consiste em encontrar-se no Dasein com o Dasein, como Pré-sença na fenomenologia de todo e em todo fenômeno. Em Husserl a fenomenologia dissimula a sua Dasein-heit, a sua pré-sença como consciência transcendental: o nada como não-ente. Em Heidegger, o ser do não-ente desvela o Da, enquanto possibilidade de ter-que-ser cada vez de novo e novo o em sendo no recolhimento do ser e acolhimento do nada da identidade na diferença e na diferença da identidade de todo e qualquer fenômeno como fenômeno, ser passagem, a re-vira-volta, o retorno, do ente no seu ser e do ser no seu ente como o Da-sein do em sendo: como da-seiendes Seiende. Isto quer dizer: o ente não é (kommt nicht vor, não ocorre), se dá (es gibt): “é” evento, Er-eignis, é apropriação, Er-äugnis, a mira: por que se dá simplesmente o ente e não antes o nada? Porque o ente, o em sendo é sem porque. Se dá por se dar. Não vê se alguém o vê. É entoação do ser.
  2. Experimentar a ver se podemos “sentir” i. é, “mirar” (ad-mirar) o que foi insinuado nos seguintes versos de João Cabral de Neto (Antologia Poética, 5a edição, Rio de Janeiro: José Olímpio editora, 1979, p. 17-18):

Tecendo a manhã

1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
E o lance a outro; de outro galo
Que apanhe o grito que um galo antes
E o lance a outro; e de outros galos
Que com muitos outros galos se cruzem
Os fios de sol de seus gritos de galo,
Para que a manhã, desde uma teia tênue,
Se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
Se erguendo tenda, onde entrem todos,
Se entretendendo para todos, no toldo,
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
Que tecido, se eleva por si: luz balão.

Diz, pois, Ângelus Silesius: “Die Ros ist ohn warum; sie blühet, weil sie blühet, sie acht nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie sieht” (A rosa é sem por que; floresce por florescer, não sabe dela mesma nada, não pergunta se a vêem)

(Der Cherubinische Wandersmann. Sinnliche Beschreibung der vier letzten Dinge, Peregrino querubínico. Descrição sensível dos quatro novíssimos), n. 89.


[1] Usamos e abusamos das notas, para fazer reflexões laterais como comentários. Isto não é adequado e talvez nem é permitido num artigo acadêmico. Mas tomamos a liberdade de fazê-lo, pois a nossa reflexão não é reta, mas um tanto ’enrolada’.
[2] HEIDEGGER, Martin. Der Ursprung des Kunstwerkes. mit einer Einführung von Hans-Georg Gadamer, Stuttgart: Philipp Reclam jun. 1960, p. 29-31.
[3] Insistência sugere substância, i. é, o in se da escolástica medieval. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: hypokeímenon.
[4] Verlässlichkeit é a palavra do texto alemão. A tradução por confiabilidade não está bem correta. A tentação foi de traduzir por serenidade que em alemão é Gelassenheit. É que tanto na Verlässlichkeit como na Gelassenheit está a palavra lassen que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, se abandonar, digamos à serena imensidão, à serenidade como à plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. É algo como deixar se ser na, e a partir da imensidão, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotável e assim tornar-se uma presença totalmente confiável, por ser plenamente consumada em si e por si, idêntica a si. Verlässlichkeit tem a conotação do ‘inteiramente confiável’ p. ex. num artefato que cumpre totalmente o que promete e deve ser  e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteiriço na sua identidade.
[5] A redução de-cadente do artefato à entificação factual como sendo ele apenas uma coisa ali dada simplesmente, pressupõe que antes de algo estar ali simplesmente dado como fato, há toda uma presença viva de uma estruturação da manualidade, onde se acena uma dimensão mais profunda e subterrânea da existencialidade, lá onde ‘algo’ como realidade humana ou vida humana ou existência se torna possível.
[6] Embora na reflexão, o que houver ali de válido, tenha sido todo ele, de alguma forma assimilado – de modo certamente facilitado e imperfeito –, da mencionada obra de Heidegger, não citamos cada vez de onde foi tirado.
[7] Informações sobre o evento, o acontecer, Ereignis, ereignen, em alemão (cf. INWOOD, Michel. Dicionário Heidegger.  Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1944, p. 2).
[8] O ente (das Seiende) e o ser (das Sein) são termos que dizem tudo e nada, indicando a imensa, profunda e a mais criativa questão do sentido do ser. Assim sendo, podem indicar o significado, o mais abstrato e geral e, ao mesmo tempo, o mais concreto, singular, denso e universal de toda a realidade das realidades.
[9] Mas objeto pode também ser usado com a mesma função de algo.
[10] Mas coisa aqui pode ser também um termo usado com a mesma função de algo.
[11] Cf. nota 16. Aqui trata-se de artefato cuja densidade de ser não é a de um simples utensilio.
[12] Sujeito aqui, embora diferenciado do objeto, no fundo, participa da mesma coisalidade. A diferença do ser entre sujeito e objeto é encoberta debaixo de uma compreensão prefixada do ser, comum a dois, de modo que o próprio sujeito (Homem) é considerado como um caso do objeto.
[13] Se eu aqui é entendido como eu empírico ou como eu transcendental, no fundo parece não haver muita diferença no que se refere ao sentido do ser dominante no horizonte algo ou objeto.
[14] HARADA, Hermógenes. Reflexões de quem não sabe o que é oração, in: coleção de artigos de vários autores, no livro intitulado A oração no mundo secular, 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
[15] Se não ficarmos atentos, podemos estar entendendo tanto sujeito como objeto como uma determinada coisa-bloco. Aqui devemos entender, cada vez, tanto sujeito como objeto como mundo na sua complexa textura da dinâmica das suas implicações.
[16] Cf. HEIDEGGER, Martin. Das Ding, in: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Günter Neske, 1954, pp. 163-181. Ding diz mais do que um objeto, manufaturado artesanalmente, entendo a manufatura artesanal a partir da fabricação de um utensilio. Por Ding deve-se entender uma obra, na qual está presente a perfilação coesa de todo um mundo da existência humana.
[17] Cf. a compreensão antiga dos termos ars e téchne, no V. Arte e Mito.
[18] Artesanal aqui significa antes um modo de ser e trabalhar do que propriamente o estilo de confecção.
[19] Anonimidade aqui não precisa ser no sentido estrito de desconhecermos totalmente o autor. Pode também significar que o autor, enquanto sujeito e agente do produto, não im-porta.
[20] Lá onde, porém, se dá a badalação estética, a ‘obra’ é valorizada pela celebridade do autor.
[21] O único ou o singular aqui não é igual ao individual ou ao particular, oposto ao geral, mas densidade de ser convergido no uno, uni-versal.
[22]  Da-sein, traduzido na versão de Ser e Tempo, da Editora Vozes, por Pré-sença, é mais apropriado aqui para a nossa reflexão do que Existência. Pois existência além de conotar de um lado a acepção tradicional da existência como ocorrência, por outro lado traz insinuação de que se trata de um modo de ser a la Subjetividade Transcendental, embora mais concreta e elementar do que a de Husserl. Nós usamos o termo alemão Dasein. Só que Dasein pode nos levar a imprecisão de o entendermos como sendo, de alguma forma, ôntico-antropológico (cf.  HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. parte I, tradução de Márcia de Sá Cavalcati, Petrópolis: Vozes, 1988, notas explicativas, verbete Pré-sença = Dasein, p. 309).
[23] “Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondern macht sichtbar” (KLEE, Paul. Schöpferische Konfession, em: Das bildnerische Denken, Schriften zur Form- und Gestaltungslehre. Herausgegeben und bearbeitet von Jürg Spiller, 2ª edição, Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1964, p. 76). Por isso, não há situações, por mais banais e “piores” que sejam, que não se transformem em obras de Arte, sob o toque da essência da Arte.
[24] Fazer significa, aqui, a ação tecnológica de transformação da realidade na realização do saber. Do saber como poder de dominação da subjetividade do sujeito-eu-homem, dentro do projeto de asseguramento da certeza, no processamento de tudo como dados de cálculo projetivo.
[25] Poder aqui deve ser entendido não como dominação do projeto da subjetividade, mas sim como jovialidade da potência do próprio da autoidentidade como finitude.
[26] A compreensão da Arte como a Estética é um modo deficiente da compreensão da essência da Arte.
[27] Hölderlin  (IV, 240): Zu wissen wenig, aber der Freude viel, Ist Sterblichen gegeben.
[28] Raridade, ao mesmo tempo, que significa pouco comum, diz também rarefeito. Cfr. Heidegger, Martin, Der Lehrer trifft den Türmer, in: Martin Heidegger Gesamtausgabe, III. Abteilung: Unveröffentlichte Abhandlungen, Band 77 Feldweg-Gespräche, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main1995, 165 ss.
[29] O Mundo (Da-sein  = ser-no-mundo) se assenta no fundo abissal da existência humana (Da-sein), através do qual se abre e se oculta o abismo insondável do mistério do ser. “Terra” é na medida em que o Mundo é confiado, a partir de e dentro da aberta do ser ( = o Da do Da-sein). Aberta  significa clareira, abertura; nesga do céu que as nuvens, abrindo-se por instante deixam ver, através da qual vislumbramos a imensidão do céu aberto
[30] Ao falar do inter-esse da vigência criativa tanto na existência artística como na obra de arte, diz Klee: “Gostaria, pois, de considerar a dimensão do objeto, num sentido novo para si, e com isso, tentar mostrar como o artista chega muitas vezes a uma tal ‘deformação’ aparentemente arbitrária da forma natural de aparecimento. Aliás, ele não dá a importância obrigatória às formas naturais de aparecimento, como o fazem muitos realistas críticos. O artista não se sente tão ligado a essas realidades porque não vê nessas formas-terminais a essência do processo natural de Criação. Pois lhe interessam mais as forças formadoras do que as formas-terminais. Ele é talvez, sem o querer, exatamente filósofo. Embora não declare, como o fazem os otimistas, que este mundo é o melhor de todos os mundos e também não queira dizer que este mundo, que nos cerca, é ruim a ponto de não se poder tomá-lo como exemplo, embora, pois, não diga nada disso, diz para si: O mundo nesta forma prefigurada não é o único de todos os mundos! Assim mira as coisas que a natureza lhe faz perfilar diante dos olhos com um olhar penetrante. Quanto mais profundamente olha, tanto mais facilmente consegue estender os pontos de vista de hoje para ontem. Tanto mais se lhe cunha nele, no lugar de uma figura pronta da natureza, a figuração unicamente essencial da Criação como Gênesis. Ele permite também, então, o pensamento de que a Criação hoje, ainda mal pode estar concluída, e assim estende aquela ação criadora do universo de trás para frente, dando duração à Gênesis. E vai mais além. Permanecendo aquém, se diz: Este mundo tinha aspecto diferente e este mundo há de ter aspecto diferente. Mas, tendendo para além, pensa: Nas outras estrelas pode-se ter vindo de novo a outras formas bem diferentes”, KLEE, Paul, op. cit. p. 92: Übersicht und Orientierung auf dem Gebiet der bildnerischen Mittel und ihre räumliche Ordnung. Deixemos suspensa a pergunta: como é em tudo isso o artista, enquanto interioridade à disposição do nascimento da forma-terminal como obra de arte?
[31] Pressupomos como já conhecido esse modo de ser que se encontra exposto detalhada e exaustivamente no que se chama analítica do Dasein no livro “clássico” da Filosofia  “Ser e Tempo” de Martin Heidegger. Aqui, somente algumas considerações no que diz respeito ao nosso tema Mito e Arte. Da-sein como modo de ser próprio do homem deve ser entendido com precisão na oscilação da sua ambigüidade. Pois, uma vez pode ser entendido como o modo diferencial que distingue o homem dos entes não-humanos. Assim entendido, no jargão filosófico, dizemos que o Dasein é uma diferença ôntica que distingue o homem de outros entes não-humanos. Nesse caso teríamos duas grandes regiões do ente como: a região do ente humano e a região do ente-não humano. É o que no início pressupomos, quando falamos da classificação do Mito e da Arte como sendo produtos do homem, distinguindo-os de outros entes como produtos da natureza. Embora nessa divisão entre o modo de ser próprio do homem e o modo de ser do ente não-humano haja grande diferença, o sentido do ser que abrange essas duas regiões numa generalidade maior e mais vasta é o ser num sentido bem determinado. Pois tanto os entes humanos como também os entes não-humanos são entes. O sentido do ser aqui é comum, geral a ambas as regiões. A expressão o modo de ser próprio do homem, entendido como diferencial diante do ente não-humano, debaixo do igual sentido do ser, comum a ambos, é diferença ôntica. O modo de ser próprio do homem, porém, ao ser entendido como diferença ôntica, pode ao mesmo tempo ser entendido também como diferença ontológica. Na diferença ontológica, a diferença existente não é entre este ente e outro, nem entre ente e ente num sentido mais geral, mas entre o ser e ser, ou melhor, “entre” o sentido do ser e o sentido do ser. Mas de que se trata? Em vez do ser ou sentido do ser, usemos os termos horizonte, ou melhor, mundo, que no início da nossa reflexão, ao falarmos das diversas acepções dos termos algo, objeto, coisa, troço, trem, ou em alemão etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, mencionamos como indicadores do modo de ser característico de cada modo de ser. Nesse sentido, então, a diferença ontológica diz respeito à diferença existente entre horizonte e horizonte, entre mundo e mundo. Só que aqui é necessário não entender o horizonte (ou o mundo)  de modo vago e abstrato como se fosse um grupo, uma classe ou uma região diferente de entes. Pois horizonte ou mundo diz respeito à totalidade, de tal modo que não se trata de “objetivar” a totalidade como ente e colocá-las uma ao lado da outra a modo de conjunto de coisas. O horizonte ou o mundo como cada vez totalidade abrange todos os entes atuais e possíveis sob o sentido do ser ali operante, de tal modo que uma vez dentro, não há nada que possa ficar fora e, a partir de dentro não se pode perceber que é possível uma outra totalidade. Surge a pergunta, é possível pensar o mundo o mais geral que abrangesse todos os mundos na sua mundidade? Não seria possível um mundo assim geral, pois o mundo não é um gênero, nem espécie, nem isso ou aquilo, mas … cada vez mundo, cada vez seu, na total autoidentidade de e consigo mesmo, sem se trancar em si, pois a partir de dentro se expande indefinidamente, mas na sua identidade diferencial, se perfaz radicalmente “fechado” ou “oculto” a si mesmo, pois não se pode sair do mundo e tomar pé numa posição extra ou além-mundo, para adquirir uma visão panorâmica geral dos mundos na sua mundidade. Uma tal visão panorâmica é fruto de um bem determinado horizonte, cujo modo de ser é caracterizado pelo termo algo (etwas) e mesmo ente (Das Seiende) ou também objeto (Objekt), cujo “grau” de mundidade é tão baixo que o ente não aparece aqui a não ser como um quê-bloco totalmente abstrato e indeterminado. O modo de ser da mundidade caracteriza o modo de ser ôntico do Homem que ambiguamente se pode chamar também Da-sein, mas é precisamente nesse modo de ser onticamente diferencial que aparece a possibilidade de recolocar a busca, i. é, a questão do sentido do ser, na sua diferença ontológica, pois é somente no Homem, agora entendido como Dasein que se abre a compreensão de que se trata quando dizemos ser como horizonte, como mundidade do ente na sua totalidade. Esse modo de ser que é ao mesmo tempo ôntico e ontológico, ou melhor, o modo de ser ôntico, que na sua diferença ôntica, ao se distinguir do ente não-humano, traz nessa diferença identificadora do ser do Homem a revelação, a abertura que mostra a mundidade como a diferença que caracteriza a identidade de cada ente no seu ser, (diferença ontológica) se diz no “Ser e Tempo” ser-no-mundo e se refere à finitude essencial do Homem como Da-sein.
[32] Da em alemão significa abertura prévia tanto espacial (ali, ai) como temporal (pré, anterior). Significa também já que, por que, em sendo assim.
[33] Usar o termo aseidade que é só atribuído a Deus para caracterizar a finitude parece ser absurdo, para não dizer uma ignorantia elenchi. Aqui a pressuposição é a seguinte: o ponto nevrálgico da identificação no modo de ser a se, do ente finito e ente Infinito, reside no fundo na doutrina da mundividência cristã denominada Filiação divina e Mistério da Encarnação. O pretenso panteísmo que poderia surgir da atribuição da aseidade ao ente finito, é no fundo um problema da colocação mal feita e defasada da questão do sentido do ser. É que colocamos Deus e criatura numa igualdade. Igualdade não é idêntica com a mesmidade. O termo mesmo dessa mesmidade não está sendo usado como igual ( = ), que é uma categoria adequada para a quantidade nas coisas físicas. Quando o sentido do ser é horizonte de e para o ente qualitativamente mais rico, profundo e diferenciado do que um objeto físico, portanto mais e diferente do que o ente do horizonte algo (etwas) e objeto (Objekt), o termo igualdade não serve mais. Usamos, então, de preferência o termo identidade para determinar o relacionamento “entre” os entes no tipo do horizonte Gegenstand, Ding, Sache e a fortiori Pessoa (Person), que não deve ser entendido como Sujeito (Subjekt).
[34] I. é, ab-soluto, i. é, solto, inteiramente espontâneo na sua identidade: jovialidade da graça.
[35] O que segue não está mais falando da aseidade como ela é atribuída a Deus infinito da doutrina cristã. Aqui está se falando somente do Dasein, do ser da essência do Homem, na tentativa de ilustrá-lo à mão da aseidade, mesmo no seu uso inadequado. O a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si é como se a gente quisesse dizer: o Da do Da-sein é a gratuita liberdade ab-soluta da pura recepção, na qual o doador e o receptor são simultânea e mutuamente límpido nada, i. é, nada a não ser pura dinâmica de ser, no dar e receber. A saber, pura dinâmica de puro receber no puro dar e puro dar no puro receber, de tal modo que o dar é recebido e o receber é recebido na mútua doação de ser a não ser apenas o puro deixar ser. Esse aberto é o lugar do salto originário e originante da gênese do mundo novo. Essa mútua implicação no nada ser a não ser como a límpida dis-posição de doação na recepção da possibilidade do abismo inesgotável de ser é a essência do Homem,
[36] Finitude vem do finito. Finito é oposto do infinito. Finito é usualmente compreendido como privação do infinito. O que o infinito é em plenitude o finito é em parte. Finito carece da infinitude. No cristianismo a palavra finitude cai bem à criatura. Pois os entes na sua criaturidade são finitos, i. é, são criados por um ente supremo, cujo ser é o próprio ser, de tal modo que fora dele não há ser propriamente dito, portanto, por um ser supremo denominado Deus, cujo ser é absoluto e infinito. No fundo a criaturidade é nada, ao passo que a increabilidade e increaturidade é tudo.  Essa doutrina geralmente nos foi transmitida, já um tanto defasada e reduzida a uma compreensão de pouca precisão, na qual a finitude acaba virando sinônimo de privação. Mas, como seria essa doutrina da Criação se levássemos a sério a doutrina, na qual ser criatura não significa ser privado do  Ser Infinito, mas sim participar Dele como filho? Não é assim que o filho de dragão dragão é? Filhotinho de dragão, quando encontra na estrada solitária um tigre adulto que feroz avança sobre ele, abre instintivamente a pequena guela e lança-se sobre o inimigo, emitindo o chiado-dragão. Pois ser pequeno ou grande, finito ou infinito, não lhe é critério para a sua identidade. Ele, o filhotinho, no seu ser-dragão é o mesmo com o pai dragão…
[37] Cf. “… a alma é, num determinado sentido, a totalidade dos seres” (ARISTÓTELES, Da Alma, (De anima), introdução, tradução e notas por Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edições 70, 2001; cf. ARISTÓTELES, Peri Psyché, 431b 20).
[38] O finito, a finitude nesse sentido não é privação, carência do infinito. É antes positividade do infinito encarnado como esta obra aqui concreta na perfilação optimal da sua vigência assumida.
[39] Portanto, não é meta-física.
[40] mythos, Ö– toar, soar.
[41]  Mistério em alemão se diz Ge-heimnis. Ge indica densidade, ajuntamento. Heim, o lar, o ser em casa.
[42] MERTON, Tomas. A via de Chuang Tzu. 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A Tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. FEIFFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959. p. 47.
[43] E interessante talvez observar que, para nós hoje, o fenômeno é entendido como à luz da ribalta, no esplendor de um show ou na publicidade!
[44] HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 8ª ed., Tübingen: Max Niemeyer, 1957, p. 28.
[45]A grande dificuldade de ver o imediato concreto do phaínesthai do fenômeno é que essa imediação não significa facilidade, imediatismo isento de empenho e desempenho de preparação, busca demorada para a disponibilidade ao rigor e precisão de percepção à evidencia.
[46] O verbo ser que soa tão neutro, sem atuação, indique talvez esse modo todo próprio da vigência originária da autopresença pré-predicativa ou pré-científica.
[47] Distinguimos visualisar e ver. Visualizar conota em vista de um ponto predeterminado como meta, objetivo, como a priori prefixado, a partir e dentro do projeto prévio, em cuja predeterminação são captadas todas as coisas.
[48] Encontro realizado na Drew-University, Madison, USA, de 9 a 11 de abril de 1964.
[49] As coisas = Die Dinge.
[50] O termo alemão é Gegenstand. Gegen se refere de alguma forma ao Gen. Gen é como numa paisagem a imensidão que se abre e se ergue em direção ao céu aberto diante de nós e nos vem ao encontro, nos envolvendo na sua dinâmica vastidão. Stand vem do verbo stehen, e indica o erguer-se e tomar pé, a partir e dentro da imensidão aberta como uma das suas concreções in-sistentes, constituindo-se como elementos estruturantes de toda uma paisagem. Em lugar de Gegen, colocamos em português ante, no sentido de em face de, de encontro à face de.
[51] Aqui a expressão “sujeito e agente” não é muito adequada, pois ela é reservada para o outro modo de objetivação do objeto-representação. Talvez “receptor” seja mais viável, para a existência humana medieval.
[52] Por isso, segundo Heidegger, obiectum para os medievais, i. é, para a ontologia substancialista, é  o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar”, i. é, o que salta aos olhos.
[53] Estância, ousia.
[54] Aqui o homem não é o sujeito no nosso sentido hodierno, mas é também substância. Mas substância de nível e intensidade mais pregnante e integrante no assentar-se no ser. Ao ser no nível de maior pregnância e intensidade de ser, é que compreende outras substâncias que não são ele.
[55] Insistência sugere substância, i. é, o in se da escolástica medieval. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: hypokeímenon.
[56] Verlässlichkeit é a palavra do texto alemão. A tradução por confiabilidade não está bem correta. A tentação foi de traduzir por serenidade, que em alemão se diz Gelassenheit. É que tanto na Verlässlichkeit como na Gelassenheit está a palavra lassen, que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, se abandonar, digamos à serena imensidão, à serenidade como à plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. É algo como deixar se ser na, e a partir da imensidão, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotável e assim tornar-se uma presença totalmente confiável, por ser plenamente consumada em si e por si, idêntica a si. Verlässlichkeit tem a conotação do ‘inteiramente confiável’, p. ex., num artefato que cumpre totalmente o que promete e deve ser e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteiriço na sua identidade.
[57] Apalavra alemã é Vergegenständlichung.
[58] Por isso, aqui fosse talvez melhor não usar o termo objeto, objetivação (obiectum, objeto, Objekt, Gegenstand), seja qual for o seu nível e o modo de ser para indicar a presença da substancialidade da prejacência, e reservar para o obiectum no sentido da Idade Média o termo coisa, Sache, e Ding.
[59] Quanto a várias significações de scheinen, cf. Ser e Tempo
[60] Tentar dizer o luzir do scheinen como incandescer é talvez dizer demais, pois conota uma claridade talvez demasiadamente forte. O pivô da questão aqui no luzir do scheinen está nisso de o movimento do luzir dar-se a partir e dentro dele mesmo como tomar corpo da concreção. Quando a claridade do luzir é demasiada, esse modo de se perfazer pode ser ofuscado, como se fosse uma explosão de luz. Por isso o aclarar-se do scheinen se torna manifesto mais no luzir de uma pérola do que no de um diamante, na claridade de um luar do que na do sol.
[61] Cf. um uso da palavra Gegenstand, para indicar a coisa. Examinar o texto de cima.
[62] Cf. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.
[63] Anotação a.1: Aqui, com a expressão sentido do ser, não estamos falando da significação do ser, conceito do ser, adequação do nosso saber ao objeto, representação dentro de nós, a saber, na nossa mente, do objeto, diante, ao redor, fora de nós. O ser entendido como verbo, dinamicamente, sugere de imediato e originariamente viger, viver, animar-se, perfazer-se, surgir-crescer-consumar-se, liberar-se, desprender-se, soltar-se nasciva, espontânea e livremente no que é o seu próprio. E isto apesar de no nosso cotidiano dominar o uso do verbo ser na significação de estar ali como algo ocorrente diante de mim, à mão, ali parado, estático, à disposição do uso, ou como objeto-bloco permanente em si, do qual tenho da minha parte subjetiva impressões, sensações, representações etc. A dinâmica da espontaneidade da liberdade do próprio de si mesmo, portanto, o ser é expresso também por a presença, o vir à fala, o vir à luz, o manifestar-se. Trata-se, pois, de um movimento no qual há e do qual vem uma condução, um ductus, um fio condutor, qual subtil tração do sabor e gosto, da graça e beleza, portanto do fascínio da coisa ela mesma, ou melhor, da causa da propriedade de ser. Esse ductus que nos toca, vindo de e nos induzindo para a dinâmica do ser, se chama sentido do ser (anotação tirada do Glossário dos sermões de Eckhart).
Anotação a.2: Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente, por um a priori, para que se receba. Mas, aqui não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova, a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo (cf. Artigo: Scintilla).
[64] Variante: coisas da natureza e coisas da cultura.
[65] Adaequatio rei et intellectus.
[66] Cf. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.
[67] Anotação a.1: Aqui, com a expressão sentido do ser, não estamos falando da significação do ser, conceito do ser, adequação do nosso saber ao objeto, representação dentro de nós, a saber, na nossa mente, do objeto, diante, ao redor, fora de nós. O ser entendido como verbo, dinamicamente, sugere de imediato e originariamente viger, viver, animar-se, perfazer-se, surgir-crescer-consumar-se, liberar-se, desprender-se, soltar-se nasciva, espontânea e livremente no que é o seu próprio. E isto apesar de no nosso cotidiano dominar o uso do verbo ser na significação de estar ali como algo ocorrente diante de mim, à mão, ali parado, estático, à disposição do uso, ou como objeto-bloco permanente em si, do qual tenho da minha parte subjetiva impressões, sensações, representações etc. A dinâmica da espontaneidade da liberdade do próprio de si mesmo, portanto, o ser é expresso também por a presença, o vir à fala, o vir à luz, o manifestar-se. Trata-se, pois, de um movimento no qual há e do qual vem uma condução, um ductus, um fio condutor, qual subtil tração do sabor e gosto, da graça e beleza, portanto do fascínio da coisa ela mesma, ou melhor, da causa da propriedade de ser. Esse ductus que nos toca, vindo de e nos induzindo para a dinâmica do ser, se chama sentido do ser (anotação tirada do Glossário dos sermões de Eckhart).
Anotação a.2: Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente, por um a priori, para que se receba. Mas, aqui não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova, a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo (cf. Artigo: Scintilla).
[68] Variante: coisas da natureza e coisas da cultura.
[69] Adaequatio rei et intellectus.
[70] Exemplo da fenda de uma casa, porta aberta e o luar aberto, num provérbio chinês; zinco furado e o transluzir do luar através dele; o exemplo de Descartes nas Regulae dos cacos de espelho e o sol a brilhar em cada um deles etc.
[71] Cf. Husserliana, II, Die Idee der Phänomenologie, p.  3.
[72] Antigamente, pela influência do uso da terminologia alemã, se dizia em vez de ciências humanas, ciências do espírito, e de ciências naturais, ciências da natureza.
[73] Winden, Kehre
[74] Expressão ainda inadequada.
[75] Falar sobre Kehre.
[76] Falar da diferença entre Husserl, Heidegger, Rombach.
[77] Cf. Husserl, der transzendentale Schein.
[78] Portanto, não se trata de ontologia geral que fundamenta as possíveis ontologias, mas sim da sondagem, ou melhor, da questão do sentido do ser, a partir e dentro do qual se estabeleceu a ontologia tradicional e seus variantes.
[79]
[80] “Eu, porém, afirmo que em toda a doutrina especial da natureza pode ser encontrada somente tanta ciência propriamente dita, quanta ali pode ser encontrada matemática” (Kant).
[81] Cf. PLATÃO, Menon, o escravo e a sua recordação das ideias matemáticas.
[82] agewmetrhtoV mhdeiV eisitw.
[83] Discorsi, 1658; esta frase é considerada como precursora dos princípios desenvolvidos por Newton no seu livro Philosophiae Naturalis principia mathematica (1686/1687).
[84] Diz Newton: “Todo o corpo, cada corpo deixado em si mesmo, isto é, não é coagido pelas forças a ele impressas, se move de modo reto e uniforme”.
[85] Essência aqui está entre aspas, porque não se deve entender essência como substância, no sentido da Filosofia Antiga e Tradicional, mas sim no sentido literal de vigência em sendo.
[86] Somente lá, onde esse transcender no projeto cessa ou é enfraquecido, são ajuntados apenas fatos e assim surge a ideologia chamada Positivismo.
[87] É o que Descartes denominou de res extensa.
[88] P. ex. o cálculo de fluxo de Newton, o cálculo diferencial de Leibniz e a geometria analítica de Descartes, todas essas novidades são possibilitadas pela estruturação fundamental matemática do pensar “matemático” como tal.
[89] Colocamos o início do Pensamento moderno em Descartes (1596-1650). Descartes é da geração de Galileu. O seu tema principal é o Mundo! A idéia do Mundo está intimamente ligada com o movimento da determinação do Matemático da existência humana na França, Inglaterra e Holanda daquela época.
[90] O voltar à “coisa ela mesma” de Edmund Husserl que em outras palavras se diz também “sem nenhuma pressuposição, abrir-se ao dado ele mesmo” (Voraussetzungslosichkeit) ou a posição de um observador neutro não são outra coisa que a posição dessa absoluta validade do Matemático como o critério da verdade.
[91] Cogito, dizem alguns autores, vem do co-agito. Coagito significaria então em agitação, em vibração, que faz vibrar tudo. A palavra “auto” vem do grego e significa eu mesmo, ele mesmo, o mesmo, e indica não o ocorrer espontâneo de um “automático”, sem consciência, mas sim o responsabilizar-se de uma ação que vem de si, a partir de si e permanece nessa responsabilização de si em cada momento da sua ação.
[92] Até Descartes, o “sujeito” era a coisa ocorrente ali, simplesmente dada. Agora, com Descartes, o “Eu” se torna um subiectum bem próprio, em cuja referência estão todas as coisas e são determinadas. Se o “Eu” é a autonomia do autoposicionamento do projeto, então tudo quanto a priori é referido a esse projeto se torna ob-iectum. Aqui sujeito diz objeto e objeto diz sujeito.
[93] O que se segue é um resumo mal feito dos pensamentos que estão no livro de Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur. Freiburg i. B./München: Karl Alber.
[94] Esse é o modo de ser da Evidência Pura que mais tarde, depois de Descartes, em Kant recebeu o nome de Razão Pura no seu famoso livro “A Crítica da Razão Pura”.
[95] O termo manualística (ciência) significa o modo de ensino e pesquisa à guisa do manual. O que usualmente no ensino chamamos de manual não passa do resumo do resumo do resumo do que realmente é manual. Manual na língua alemã se diz Handwerk (Hand = mão, = manuseio; Werk = obra) e diz respeito à obra ou às obras do empenho e desempenho da existência artesanal. Nas ciências positivas, manuais, nessa acepção universal, são obras enciclopédicas. Elas contem em si todo o acervo do que numa ciência positiva se conquistou, se acumulou do saber, para que os seus dados, os resultados estejam armazenados no depósito do saber e informação, à disposição, à mão dos que querem se adentrar e se formar eruditos, especialistas no respectivo ramo do saber. Essa parte visível, o resultado de uma busca, fixado em sentenças, juízos, doutrinas, teorias, princípios, normas, leis etc. se chama o aspecto exotérico de uma ciência (aspecto ôntico ou positivo). A in-vestigação que tenta penetrar para dentro da possibilidade ou da potência (dýnamis) contida e retraída na entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva, entidade que constitui o fundo, o mais geral do nosso saber usual, se chama investigação ontológica ou transcendental. E diz respeito ao aspecto esotérico de uma ciência, e indica o modo de busca toda própria da ‘ciência’ que se chama filosofia, que por sua vez pode ser ensinada e pesquisada a modo da manualística, como se ela fosse, na sua essência, algo como ciência positiva, ao lado de outras ciências positivas. O termo igual se refere à base de comparações feitas entre dados ônticos; o termo mesmo é usado, quando essa base ôntica é interrogada e des-coberta como tendo em si a contenção e o retraimento do sentido do ser da entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva. A investigação da entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva estabelece, ou melhor, des-cobre os conceitos fundamentais de uma ciência, conceitos esses que indicam o positum de uma ciência positiva. A investigação do sentido do ser da entidade do ente no seu ser de toda a ciência positiva desvela a essência do ente na sua entidade.
[96] Pessoas cuja escolaridade pode variar como escolaridade do ensino fundamental, secundário, universitário (graduação, pós-graduação, pós-doutorado etc.) instruídas e instrutoras, gerenciadoras no saber a partir e dentro das disciplinas nas quais são formadas (ciências positivas, tipo naturais e humanas; mundividências e crenças e ideologias; habilidades artesanais como arte artística e diversos tipos de artes, marciais, culinárias etc.), viradas para as coisas, sem muito exercício de ‘introspecção (insight) transcendental”…
[97] Cf. a moda, já passada, de se falar muito na interdisciplinaridade; na necessidade de fundamentação de cada ciência; de uma formação integral mais completa etc. etc.
[98] Podemos ver isso no tema da alma em Eckhart. O inter-esse e o tema é o mesmo do sentir e pensar. Talvez falar da alma em Eckhart seja a melhor maneira de tocar nesse assunto, pois ali em Eckhart a questão está colocada com maior precisão e densidade. Em todo o caso, o inter-esse é o mesmo.
[99] E isso também em referência a si mesmo enquanto ente-homem, seja no sentido de substância, quer no sentido do sujeito-eu ou mesmo de pura função da mídia.
[100] Esse texto já foi tirado de Descartes, René (ou De Quartis, Renatus Cartesius, Des Cartes, M. du Perron), 31.3.1596 – 11.2.1650, pensador, cientista e filósofo francês, considerado o pai da Filosofia Moderna. A parábola se encontra de modo muito mais rico e sugestivo em Rombach, H., Strukturontolgie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg-Munique, editora Karl Alber, 1971, p. 139. O texto citado foi tirado do livro Harada, Hermógenes, Em comentando I Fioretti, cfr. pp. 38-41.
[101] Clareira é uma tradução bastante defasada da palavra alemã Lichtung. É o que se quer dizer com a palavra a aberta. Aqui na Lichtung a palavra Licht significa luz. Mas também conota leicht, i.é, leve.
[102] O que segue não está mais falando da aseidade como ela é atribuída ao Deus infinito da doutrina cristã. Aqui está se falando somente do Dasein, do ser da essência do homem, na tentativa de ilustrá-lo à mão da aseidade, mesmo no seu uso inadequado. O a se, i. é, a partir de si, em si, para e por si é como se a gente quisesse dizer: o Da do Da-sein é a gratuita liberdade ab-soluta da pura recepção, na qual o doador e o receptor são simultânea e mutuamente límpido nada, i. é, nada a não ser pura dinâmica de ser, no dar e receber. A saber, pura dinâmica de puro receber no puro dar e puro dar no puro receber, de tal modo que o dar é recebido e o receber é recebido na mútua doação de ser, a não ser apenas o puro deixar ser. Esse aberto é o lugar do salto originário e originante da gênese do mundo novo. Essa mútua implicação no nada ser a não ser como a límpida dis-posição de doação na recepção da possibilidade do abismo inesgotável de ser é a essência do homem.
[103] Finitude vem do finito. Finito é oposto do infinito. Finito é usualmente compreendido como privação do infinito. O que o infinito é em plenitude, o finito é em parte. Finito carece da infinitude. No cristianismo a palavra finitude cai bem à criatura. Pois na sua criaturidade os entes são finitos, i. é, são criados por um ente supremo cujo ser é o próprio ser, de tal modo que fora dele não há ser propriamente dito, portanto, por um ser supremo denominado Deus, cujo ser é absoluto e infinito. No fundo a criaturidade é nada, ao passo que a increabilidade e increaturidade é tudo.  Essa doutrina geralmente nos foi transmitida, já um tanto defasada e reduzida a uma compreensão de pouca precisão, na qual a finitude acaba virando sinônimo de privação. Mas como seria essa doutrina da criação se levássemos a sério a doutrina, na qual ser criatura não significa ser privado do  ser infinito, mas sim participar dele como filho? Não é assim que o filho de dragão dragão é? Filhotinho de dragão, quando encontra na estrada solitária um tigre adulto que feroz avança sobre ele, abre instintivamente a pequena guela e lança-se sobre o inimigo, emitindo o chiado-dragão. Pois, ser pequeno ou grande, finito ou infinito, não lhe é critério para a sua identidade. Ele, o filhotinho, no seu ser-dragão é o mesmo com o pai dragão…
[104] Cf. “…a alma é, num determinado sentido, a totalidade dos seres”, cf. Aristóteles, Da Alma, (De anima), introdução, tradução e notas por Carlos Humberto Gomes, edições 70, Lisboa, 2001; cf. Aristóteles, Peri Psyché, 431b 20.  
[105] O finito, a finitude, nesse sentido não é privação, carência do infinito. É antes positividade do infinito encarnado como esta obra aqui concreta na perfilação optimal da sua vigência assumida.
[106] Portanto não é meta-física.
[107] Cf. portanto para o maior aprofundamento do nosso tema, HEIDEGGER, Martin, in: Holzwege: Der Ursprung des Kunstwerkes (A origem da obra de Arte). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1950, p. 7-68.
[108] Mythos, Ömü- toar, soar.
[109]  Mistério em alemão se diz Ge-heimnis. Ge indica densidade, ajuntamento. Heim, o lar, o ser em casa.
[110] O que segue foi tirado de HARADA, Hermógenes, Coisas, velhas e novas. Bragança Paulista: Editora Universitária São Franciosco; IFAN, 2006, p. 27-32.
[111] Quaero, quaesivi, queaestum ou quaesitum, quaerere. O verbo e a palavra querer vêm também de quaerere.
[112] Os gregos chamavam essa paixão de virtude dianoética. Virtude, virtus significa a força do varão. Não diz respeito, portanto, ao “machão”, mas ao vir, –ris, a saber, ao modo de ser da dinâmica varonil, à coragem e sabedoria de ser. Se compreendermos o varonil como próprio do macho e o feminino como o próprio da fêmea, jamais poderemos compreender que o varonil e o feminino coincidem na dinâmica da identidade e diferença do ser humano; sem deixar, porém, que essa coincidência decaia bichada num unissexualismo, pois, tal decadência indica a queda na compreensão ontológica do sentido do ser do humano, em que o homem (a humanidade) é reduzido a planta e bicho coisificados.
[113] “Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te.” Sant’ Agostino, Le confessioni I, 1.1. Nuova Biblioteca Agostiniana. Opere Di Sant’Agostino (Edição latino-italiana), vol. I, Roma: Città Nuova, 1991. p. 4,1. 7-8 (Ed. Bras.: Santo Agostinho. Confissões. Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 23). Tradução nossa. Em se tratando de Agostinho, é importante não entender essa inquietação e o repouso final no nível de certas neurastenias espirituais, mas sim como ardentíssima paixão de busca, na qual se investe o melhor da possibilidade humana, o âmago, o cerne, o coração, o ser do homem, portanto, inteligência, vontade, sentimento, a ponto de não se contentar com nada, a não ser com a medida absoluta da dinâmica de transcendência. Aqui, o humano arrisca todas as suas seguranças numa perigosa, mas fascinante aventura de busca absoluta. Nesse sentido, o repouso final, o descanso, não significa a dormitação da requiem aeternam qual o esvaimento da paixão da busca. Pelo contrário, aqui, uma vez assentada, enraizada em Deus, a paixão aumenta cada vez mais, numa provocação cada vez mais íntima, terna, apaixonada, de perder-se na imensidão, profundidade e criatividade do Amor de Deus. Portanto, aqui a palavra coração não tem nada a ver com o contrapeso complementar de uma ‘harmonia’ ‘politicamente correta’ entre cabeça e coração, entre razão e sentimento.
[114] Vítima dessa maneira defasadamente soft  de colocar a questão da verdade e da afetividade, em reação à maneira hard de unilateralmente extrapolar a “cabeça”, é o famoso e abusado aforismo de Pascal: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Nesse nível de colocação, podemos dizer com Millôr Fernandes: “A razão tem corações que o coração desconhece”.
[115] Tal singular vigor único disposto do amor à verdade é o que chamamos no Ocidente de espírito, espiritual.
[116] Cf. Aristóteles, Ética de Nicômaco, VI 12, 1143b 5: “toútwn oûn échei dei aísthesin, haúte d’estìn noûs. (Isto deve ser captado através da aísthesis e esta é pois, noûs).
[117] Aliás, nem sequer se pode dizer “morta”, pois morto(a) pressupõe que o morto no seu ser já é um ente que tem por essência o viver, mas que agora deixou de viver. Nesse sentido, a pedra não é morta. Planta e animal podem ser mortos, porque vivem cada qual vida segundo a acepção própria conforme o seu ser.
[118] O termo ductus é latino e significa a ação de conduzir. Aqui, ductus não somente quer indicar a ação de conduzir, mas muito mais, o toque, o élan, a flexibilidade e docilidade do movimento que impregna e conduz a ação. É a finura, o frescor, a disponibilidade da ‘impulsão’. O pensamento medieval chamava esse ductus de boa vontade, ou melhor, vontade boa (cf. Os ditos do Beato frei Egidio de Assis). Não seria algo como suave vibrar do aceno de uma mira dos olhos que se abrem? Do in-stante do Augen-blick ou Ereignis ou Ur-äugen? Esses termos são intraduzíveis e por isso traduzimos sem mais com intuir?
[119] Cf. Heráclito, fragmento 18: eàn me élpetai, anélpiston ouk exeurései, anexereúneton eòn kai áporon. (Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso).
[120] Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira, p. 14 diz: “As grandes mãos da sombra evangélicas pensam /As feridas que a vida abriu em cada peito”.
[121] Espanca aqui não significa dar uma surra, mas faz sumir, no sentido de a luz espanca a escuridão. Se eu entendo, porém, a luz como triunfadora sobre a escuridão, de tal modo que a escuridão é o que um dia deve acabar, e entendo o saber como a luz que espanca a escuridão do não-saber, tanto a escuridão como o não-saber se retraem na sua essência, e são transformados em objetos a serem eliminados como nada. Com isso, a luz se torna algo semelhante à luz néon que na exacerbação da brancura destilada tudo esvazia numa claridade escancarada, onde todo e qualquer sombreamento das nuanças diferenciais somem, matando a possibilidade do surgir, crescer e consumar-se de toda a espécie de vida. Como é uma música onde não ressoa no fundo de cada nota que se entoa um silêncio profundo? Talvez não ouvíssemos nenhum som, pois tudo se transforma no mutismo exacerbado em gritarias.
[122] Se não o lemos a partir da impostação psicológica e biológica, o termo latino animal rationale não significa bicho, bruto mas o vivente, e no vivente o ânimo: a vitalidade e disposição anímica. A ratio, razão não se refere à faculdade mental chamada razão ao lado da vontade e do sentimento, mas à vigência de uma presença que tudo ajunta, recolhe e reconduz ao uno da origem, à compreensão como foi insinuada no início desse fragmento. Ratio, a razão, aqui é tradução do grego logos. Animal rationale é simplesmente a tradução da expressão grega: tò zõon lógon échon: vitalidade do ânimo atinente ao lógos. Dito de outro modo, fenomenologicamente, é a aberta do e ao sentido do ser.
[123] Em certas psicologias, identifica-se o ser possuído por inspiração na arte ou êxtase na experiência religiosa simplesmente com essa participation mystique (talvez por causa da palavra mystique). Na fenomenologia tenta-se distinguir esta e aquela como fenômenos bem distintos.
[124] Não confundir sentido do ser da fenomenologia com significado da palavra ou do conceito ser. É que, na língua alemã sentido é Sinn. Sinn vem do verbo sinnen. Uma das formas antigas do sinnen é sinnan e significa viajar, aviar-se, portanto, caminhar, caminho, hodós.
[125] Heidegger, Martin. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1987, p. 33.
[126] Essa plataforma da compreensão, portanto, somos nós mesmos.
[127] Foucault, Michel. As palavras e coisas (Uma arqueologia das ciências humanas). Lisboa: Portugália Editora, 1968, p. 3.
[128] A partir dali, agora, num sentido muito mais lato e formal, objeto constitui o momento correlativo do sujeito no todo do esquema sujeito-objeto, do modo de ser, cujo sentido se assinala como subjetividade ou, o que no fundo é o mesmo, objetividade.
[129] Em alemão existem vários termos referidos ao que denominamos em português de coisa, de res em latim, referidos à realidade e suas realizações: por exemplo, etwas (algo), das Seiende (o ente), das Sein (o Ser), der Gegenstand (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding (coisa) e die Sache (coisa).
[130] Merton Tomas, A via de Chuang Tzu. 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. Feiffel, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959, p. 47.
[131] Heidegger, Martin. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1957, 8ª ed., p. 28.
[132] A grande dificuldade de ver o imediato concreto do phaínesthai do fenômeno é que essa imediação não significa facilidade, imediatismo isento de empenho e desempenho de preparação, mas surge por uma busca demorada para dispor-se ao rigor e precisão de percepção à evidência.
[133] O verbo ser que soa tão neutro, sem atuação, indique talvez esse modo todo próprio da vigência originária da autopresença pré-predicativa ou precientífica.
[134] Distinguimos visualisar e ver. Visualizar tem a conotação de em vista de um ponto predeterminado, como meta, objetivo, como a priori prefixado, a partir e dentro do projeto prévio, em cuja predeterminação são captadas todas as coisas.
[135] Antropomorfismo: Aplicação a algum domínio da realidade (social, biológico, físico etc.), de linguagem, de conceitos próprios do homem ou de seu comportamento.
[136] Gegebenheit.
[137] Cf. Husserliana, II, Die Idee der Phänomenologie, p. 3.
[138] Antigamente, pela influência do uso da terminologia alemã, em vez de ciências humanas, se dizia ciências do espírito e em vez de ciências naturais, ciências da natureza.
[139] Was heisst Lesen? Was heisst Lesen? Das Tragende und Leitende im Lesen ist die Sammlung. Worauf sammelt sie? Auf das Geschriebene, aus das in der Schrift Gesagte. Das eigentliche Lesen ist die Sammlung auf das, was ohne unser Wissen einst schon unser Wesen in den Anspruch genommen hat, mögen wir dabei ihm entsprechen oder versagen. Ohne das eigentliche Lesen vermögen wir auch nicht das uns Anblickende zu sehen und das Erscheinende und Scheinende zu schauen.
[140] Cf. Pokorrny, Julius, Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch. I Band, Bern/München: Francke Verlag, 1959, p. 1168: raiz de érgo = 1. uerg-, ureg-, concluir, encerrar, incluir, conter; 2. fazer, atuar Werk = obra; arkéo = proteger, ajudar, manter, raiz = arek = concluir, fechar, incluir, cf. arca.
[141] Dito com outras palavras, o que usual e comumente denominamos de ver simples e imediato é um monte emaranhado de preconceitos empacotados de tal modo, que parecem um bloco de diversos tipos de concreto. Por isso a acepção usual do que seja concreto ou concreção conota concreto armado, e quando ele se dissolve achamos o que se desfaz como abstrato e vago.
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