Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Apostila de Teoria do Conhecimento

20/04/2021

 

Teoria de conhecimento

A tradição do Ocidente definiu o conhecimento como adequação da sentença (intelecto) com a coisa: veritas (i. é, o conhecimento verdadeiro ou a enunciação ou o juízo verdadeiro) est adaequatio rei et intellectos.

Em vez de nos agitarmos em nos informar avidamente sobre o que existe de teorias sobre o conhecimento, é necessário antes de tudo como tarefa elementar de uma disciplina filosófica tentar ver o que é conhecimento na sua estrutura interna. Pôr isso começamos a nossa investigação perguntando acerca de um dos elementos principais que constituem a definição tradicional do conhecimento que é a coisa. Daí a questão: o que é a coisa?

Depois de várias reflexões estamos nessa questão diante de uma resposta a mais natural, a mais aparentemente próxima de nossa vida cotidiano e concreta, a saber: coisa é  na sua essência portador de propriedades.

Se colocarmos essa definição da coisa na seqüência como ela apareceu na tradição da História do Ocidente temos a seguinte tabela:

  1. hypokeímenonsymbebekós : o que jaz debaixo; o que sempre já está ali junto, se colocou junto com o concomitante.

NB: keímenon: partic. méd. present. indic. neut. sing. de keimai: jazer, estar ali deitado, estender; radical kej, ki=morar, estância, assentamento. Para os germânicos:=lar, casa, aldeia incrustada no vale, home (inglês), civis (lat.), sítio. ypo: sub, sob, debaixo de, mas em diferentes variantes: se está em baixo=fundamento, base, sustentáculo, apoio; se vindo de baixo para cima=origem, causa, princípio; se indo para baixo, se aprofundando=profundidade, abismo insondável. symbebekós: symbebekoos, symbebekuia, symbebekós = part. ativ. perf. neutr. sing. de symbaíno (syn+baíno)=ir, andar; raiz=g(w)em = gehen (alem)=abrir as pernas vigorosamente e esticar para andar; marchar, andar, ir (cf. a idéia do caminho p. ex. na Idade Media: in via (=vida); tao chinês).

  1. substantiaaccidens.
  2. Portador – propriedades.
  3. >Sujeito – predicado<.

A partir dessa resposta natural e aparentemente óbvia do que seja a coisa, podemos então dizer que o conhecimento é verdadeiro quando se conforma com a coisa.  Dito com outras palavras, o intelecto, o conhecedor, o sujeito na ação de conhecer deve se adequar, concordar, conformar-se, se orientar com, segundo a coisa. O que quer dizer tudo isso?

Quer dizer:

Segundo a definição do conhecimento (conhecimento verdadeiro=verdade) a estrutura, a constituição interna do conhecimento deve reproduzir, espelhar, refletir, imitar a estrutura, a constituição interna da coisa.

A construção interna do conhecimento é idêntica com a construção básica da coisa.

Na estrutura do conhecimento podemos ler a estrutura interna da coisa e vice versa.

Com outras palavras: veritas est adaequatio rei et intellectus.

Examinemos melhor essa adequação.

De modo aparentemente direto e natural, concreto e imediato captamos a coisa como portadora das propriedades: substância e seus acidentes.

Captamos também direta e naturalmente a estrutura do conhecimento como adequação?

Conhecimento só é conhecimento quando ele é verdadeiro. Só é verdadeiro quando se adequa à coisa.  O que é e como é esse adequante, esse que se adequa, do qual podemos dizer é verdadeiro ou falso? O que é em concreto isso que chamamos muitas vezes de intelecto ou sujeito conhecedor ou a ação de conhecer?

O verdadeiro que captamos aparece em palavras. Mas palavras em particular não é nem verdadeira nem falsa. P. ex. abacaxi, chuva de verão, sujeito chato, Deus, nada, número. Qualificamos de verdadeiro ou falso somente quando temos ligação todo própria de palavras: i. é, chamamos de verdadeiro ou falso o juízo ou melhor a enunciação, a proposição, a sentença ou frase. Usando por enquanto esses termos enunciação, sentença, proposição, frase, juízo como sinônimos podemos dizer que o lugar, a sede, a morada da verdade é a enunciação.

Embora seja um tanto subtil, tentemos distinguir 4 momentos na estruturação da enunciação:

  1. enunciação de: frase, sentença, proposição, juízo.
  2. enunciação sobre: notícia, informação.
  3. enunciação a: comunicação.
  4. se enunciar: expressão.

A enunciação enquanto informação, comunicação e expressão se baseia na enunciação enquanto sentença, proposição, frase ou juízo: que diz o estado de coisa . Diz da coisa o que lhe é atribuído; o que lhe convém; o que lhe pertence: = a enunciação enquanto sentença é predicativa.

Resumindo:

A enunciação é sentença que dá informação; informação que relacionada a uma outra pessoa e comunicação; comunicação está certa se a informação é correta, i. é, se a sentença é verdadeira; a sentença é verdadeira, se o estado de coisa, i. é, se os atributos, os predicados referidos à coisa se adequam a ela.

Assim temos na construção da sentença, i. é, na estrutura interna do conhecimento: S (=sujeito) – é (=cópula) – P (=predicado): S é P.

A construção do conhecimento é a enunciação de que ao sujeito vem, advém, convém o predicado : S-P. Ora essa construção reproduz fielmente a construção interna da coisa: Substância e seus acidentes.

Teoria de Conhecimento: da Coisa como substância, um conhecimento natural?

  1. Resumindo o que viemos refletindo até agora podemos dizer:

– Nós captamos a coisa como substância (i. é, portadora de propriedades; suporte de qualidades; núcleo constante e consistente central que possui seus acidentes mutáveis etc.) de modo bem natural na nossa vivência cotidiana, direta e imediatamente. (Para perceber isso e tematizar essa compreensão da coisa que está  operativamente em nós você necessita de uma certa habilidade de fazer “introspecção”).

– Essa determinação da coisa como substância (e seus acidentes) foi aceita desde a Antigüidade na Filosofia. Pois ela se mostrava assim tão naturalmente e espontaneamente.

– Era aceita assim naturalmente, porque a própria constituição interna da coisa na sua estrutura substância-e-seus acidentes ou atributos ou predicados estava  reproduzida na própria estrutura do nosso conhecimento, i. é, juízo, enunciação, sentença ou proposição.

– daí a dominação da definição tradicional da verdade ou do conhecimento verdadeiro como adaequatio rei et intellectus.

  1. É necessário examinar essa tese de que a compreensão da coisa como substância e seus acidentes é natural e espontâneo. Para isso é importante perguntar: o que significa natural?

– Natural referido à natureza no sentido do binômio natureza-e-cultura.

– Natural referido à essência: ao próprio do ser de uma coisa, i. é, o que a diferencia fundamentalmente.

– Descoberta de que o natural do homem é ser-historial. Tudo que ele é, mesmo o que ele acha ser natural no sentido do binômia natureza-e-cultura é historial. Daí o seu compromisso com a tradição. Como tal a nossa compreensão ‘natural’ de que coisa é substância é decisão epocal da tradição  historial.

  1. Mas tudo isso, saber que é uma decisão historial, o que na realidade que está ao meu redor, o que muda em mim?

– Filosofia é aquilo com o qual ou sem o qual tudo fica tal e qual.

– Filosofia é buscar um gato preto num recinto escuro, onde não existe nenhum gato.

– Filosofia é ficar  olhando para o céu, sem se dar conta do que está debaixo dos seus pés, e assim cair na fossa e tornar-se objeto de caçoada dos  que vivem a vida real e concreta.

-Mas sob certas circunstâncias podemos ser levados a vislumbrar a necessidade de confrontarmos com questões que a partir do nosso usual são inúteis e sem sentido. P. ex. se nos submetermos ao empenho da responsabilidade de pensar a estruturação interna das ciências naturais hodiernas dos entes não viventes como também dos viventes; do relacionamento existente entre a existência humana e a técnica de máquinas; as causas últimas das questões de ecologia etc. Aqui o saber e o perguntar chega a um limite e se mostra que aqui falta uma referência mais originário e próprio com as coisas. P. ex. na zoologia e na botânica, por mais exata e correta que seja a sua fala sobre os animais e as plantas, surge sempre de novo a dúvida: estamos falando realmente animal e planta?

  1. “Natural” é: o que se capta sem mais nem menos, imediatamente, sem esforço na compreensão cotidiana.

– natural na técnica do computador; natural no caboclo que caça um tatu; o natural para o bombeiro; o natural para um tibetano; o natural para um esquimó; o natural para o homem da Aufklärung; para o homem da Idade Média etc.

– Como dissemos o natural  do homem é sempre essencialmente historial.

– A determinação essencial da coisa como substância e seus acidentes e da sentença como S é P vem da descoberta de Platão e Aristóteles: daí o início da definição ocidental da verdade como adaequatio rei et intellectus.

– O que denominamos de cosmovisão ou mundividência natural, a qual sempre de novo apelamos, quando falamos da verdade do senso comum  não é natural, óbvio e evidente: é altamente questionável.

  1. Nós podemos permanecer instalados nisso que para nós é “natural” , i. é de não pensar adiante. Podemos aceitar como medida da realidade esse não-pensar. Pois as coisas permanecem e vão para frente tais quais são. Pois a decisão historial e epocal não se dá no nível de coisas tais quais como elas são “naturalmente”. Mas sim no reino da liberdade historial, i. é, lá onde a existência humana decide a se assumir como o ente que deve-se determinar a escolher que grau e que intensidade de liberdade do saber ele coloca como sua liberdade. Estas decisões não podem ser forçadas ou planejadas e agenciadas. É com  o grau e a intensidade da liberdade, cada vez  escolhida, do saber, i. é, com a inexorabilidade do questionar, um povo se coloca a si mesmo o quilate e a dignidade da sua existência.  Os gregos viram  no poder questionar a nobreza de sua existência. Esse poder questionar era para eles a medida de distinção entre eles e outros povos (os bárbaros).
  2. Instalar-se no natural, é no fundo existir na história como se o homem fosse um estado da natureza. Nesse sentido podemos deixar o saber sobre a coisa como substância (portadora das propriedades) tranqüilo como está e viver despreocupados com questões que nem se quer sabemos no cotidiano se são reais ou ‘especulativas’. E funcionar no mundo tecnológico e no mundo do saber cada vez mais especializado e gigantesco sem investigar as suas causas, seu sentido, sua significação como usuários e consumidores. (Cf. o espanto epocal no tempo de Copérnico, Galileu, Descartes etc.).  Mas podemos também acordar e deixar-nos atingir pela  necessidade de decisão de nos colocarmos diante de nós mesmos e do nosso destinar-se, acordar para a responsabilização do saber o caminho, de sentir no nosso próprio corpo a inexorabilidade de um questionar pela envergadura, profundidade e verdade do que até hoje aconteceu e está acontecendo em nós.
  3. O que significa uma questão historial? O que é histórico é o que passou. Um fato acontecido que ficou para trás. O passado é assim já era. Podia ter sido no passado atual na temperatura máxima da atualidade de então, ter levantado poeira. Mas hoje muito distante de nós está quieto, como um fato sem atualidade e atuação. Por isso todas as explicações sobre a coisa, que vieram até nós do passado poderiam ser consideradas como coisas do passado. Teorias e opiniões, teses e pesquisas, coisa como hypokeimenon e symbebekota, coisa como substantia e accidentia etc., saber tudo isso em detalhes históricos não é colocar  uma questão historial. Pois ajuntar fatos e constatar o que congelou no passado e ali está como fato não é fazer o movimento do destinar-se historial.
  4. Tudo que jaz parado e quieto, pode estar guardando um enorme potencial contido do sentido do ser. Essas colocações do passado, essas teorias e doutrinas são sedimentações e cristalizações de colocações fundamentais que a existência humana acolheu e desenvolveu no meio do ente no seu todo. A questão historial pergunta e busca essas colocações fundamentais, pelo evento, pelo acontecer dessas colocações referentes ao ente no seu todo, movimentos que aparentemente não são mais movimentos nem realidades porque são passados. Mas pelo fato de não mais os captarmos como movimentos atuais não significa que eles não estejam ali presentes. Pois podem ter entrado no estado de hibernação, de quietude, de recesso ou retraimento. O que vem a nós como passado pode não ser algo que já foi e não existe mais.  Poderes ser que está presente no repouso e quietude. E o repouso e quietude pode ser também plenitude de contenção da energia. Pode ser atuação e atualidade em potencial. Este quieto estar ali subjacente, esse retraimento pode não ser ausência, mas antes presença, uma forma fundamental da presença.
  5. Diz Kant: “Entrementes os esforços humanos giram num círculo contínuo e vem sempre de novo a um ponto, onde eles já estiveram uma vez; como tais, podem os materiais que agora jazem no pó ser talvez reelaborados, numa construção maravilhosa”(Kant, Antwort an Garve, Proleg. ed. Vorländer, pg. 194).

TCON. 3

– Questionar historialmente a questão da teoria do conhecimento é: pegar a definição tradicional do passado, i. é, a definição ‘platônico-aristotélica’ da coisa, da sentença e verdade e colocá-la sob o interrogatório,  para que ela nos entregue o movimento, o sentido do ser que ela oculta no seu bojo.

– Os interrogatórios podem ser formulados mais ou menos assim:

* Essas determinações da essência da coisa, sentença e verdade aconteceram por acaso? Há concatenação necessária entre elas?

* Se não aconteceram por acaso, como se relacionam entre si?

– Resposta da tradição: Há uma ligação essencial e íntima entre o conhecimento verdadeiro e a coisa porque a estrutura interna da verdade (ou do conhecimento verdadeiro, ou enunciação, juízo, sentença ou proposição) está construída de tal forma que é adequação, correspondência, passível de corretura, de direcionamento, de fundamentação na estrutura interna da coisa: S é P = Substância – Acidentes. Isto nos leva a seguintes interrogatórios:

* A estrutura da verdade ou da enunciação (conhecimento verdadeiro) foi medida, foi adequada, foi adaptada à estrutura da coisa?

* Vemos a coisa como substância, portadora de seus acidentes porque ela foi sempre já interpretada conforme a estrutura interna, conforme a construção interna da sentença S é P?

* O homem consegue ler na coisa a estrutura interna da sentença porque já projetou a estrutura interna da sentença para dentro da coisa?! E se isso é válido:

* Como aconteceu isto que a sentença, o juízo se tenha tornado medida e protótipo, critério para determinar a coisidade da coisa?

* Sentença, enunciação, conhecimento é ação humana. Como é que as coisas se orientam segundo a ação humana, se adaptam ao homem? Não devia ser o contrário, de o homem se adequar às coisas? Não é isto um crasso subjetivismo?

* Tudo isso vem dos gregos? Não é assim que entre os pensadores gregos havia gente que  dizia exatamente isso, p. ex. alguém como Protágoras?

– Um excurso sobre a célebre sentença de Protágoras: cf. o comentário de M. Heidegger sobre essa sentença, no livro Nietzsche.

– Portanto, essa sentença de Protágoras não tem muito a ver com o subjetivismo nosso moderno.

– Mas se, a estrutura da sentença que determina a estrutura da coisa, onde está o fundamento e a garantia de que com isso atingimos a essência da sentença, i. é, da verdade?

– Assim, a questão historial, i. é, a ação de  busca historial nos conduz para dentro de turbilhão de perguntas atuais do presente.

– A nossa questão agora está nesta situação:

* Como é isso?: determina-se a essência da sentença e da verdade a partir da essência da coisa? Ou determina-se a essência da coisa a partir da essência da sentença?

* A colocação tradicional aqui é de: ou – ou excludente ou includente. Uma condiciona a outra? Para compreender a essência da verdade e da coisa basta esse ou-ou excludente ou includente que se espelham entre si mutuamente? Ou não é assim que ambas estão condicionadas por um comum, mais fundamental que está na raiz de ambas, mas numa outra dimensão?

* Em que consiste esse fundo, esse fundamento, tanto para a verdade como para a coisa? Esse anterior incondicional, i. é, a condição da possibilidade para que possa haver a adequação da verdade com a coisa e vice versa? Em que consiste pois esse ab-soluto anterior?

* se a coisa vala como ens creatum, como o criado que ali existe e ocorre, trazido à existência por Deus, então o incondicional, a condição da possibilidade de ser é o Deus Criador do AT. Se a coisa é objeto que está de frente e contra o eu, se o objeto é o não-eu, então o absoluto, o incondicional é o “eu”, o absoluto eu do idealismo alemão.

– Com isso está colocada a questão.

* Sacudimos a colocação natural do passado. * Deslocamos a direção do interesse da busca para o anterior, para o absoluto, para a condição da possibilidade da verdade e da coisa. *Nisso tudo não nos interessa corrigir o passado. Não nos interessa progredir num saber cultural. Mas sim voltar sempre de novo à  mesma questão: intuir  vigor subjacente anterior a todas as colocações, vigor esse que nos liquida toda e qualquer posição e seus congelamentos, para nos libertar continuamente a novas possibilidades, sempre novas e diferentes e ao mesmo  tempo, cada vez  mais vastas,  mais profundas e mais originárias.

– Essa tarefa de descongelar a tradição , para liberar o vigor do pensamento ali presente é a tarefa que deve valer para toda e qualquer questão filosófica.

* Toda e qualquer questão filosófica só é filosófica se ela coloca todas as suas questões, sejam elas quais forem, decidida a continuamente buscar antes de tudo o ser, o próprio modo de ser de si  mesma.

* Dito de outro modo toda e qualquer busca da essência da coisa é ao mesmo tempo a busca da essência dessa própria busca. * Isto quer dizer: toda a questão filosófica deve se mover em círculo: círculo hermenêutico.

– A doutrina há muito tempo fixada acerca da coisa diz: a coisa é substância como isto: tóde ti (Aristóteles): o isto aqui. Essa determinação da coisa aqui e agora como “isto aqui” , portanto a determinação da coisa como esta coisa particular, fixa como a coisa em geral deve ser entendida: a coisa, seja ela o que e como for, é determinada no sentido geral, como substância. O que as coisas particulares, sejam elas o que e como sejam, tem de comum, de geral, é que ela seja substância, portadora de, núcleo para propriedades, para acidentes. Este modo de encarar a coisa (a realidade) determina também a estrutura da sentença e assim esse modo de compreender a coisa influencia ainda hoje p. ex. a lógica e a gramática, portanto o nosso modo de raciocinar e de falar.

– E quando determinamos a coisa como “isto aqui”, com isso fixamos uma bem determinada compreensão do que seja tempo e espaço. Pois, consideramos o tempo e o espaço como algo vazio, imenso infinito, no qual podemos “pontualizar”, cada vez uma localização de pontos, isto aqui, isto lá, possibilitando uma medição quantitativa homogênea, quer métrica quer cronológica. Tudo isso já foi ‘formatado’ em  Platão e Aristóteles e chegou até nós. Nós estamos hoje nessa tradição. Só que aos poucos essa fixação tradicional começa a descongelar e fluir, nós estamos entrando num processo de transformação.

– Perguntamos o que é a essência da coisa. A coisidade da coisa. Com isso ao mesmo tempo perguntamos o que é a essência da sentença, do conhecimento. E com isso ao mesmo tempo perguntamos o que é a essência do homem, cujo ser se relaciona com a coisa através do conhecimento.

– Em assim perguntando, colocamos em movimento o que desde os gregos foi fixado como uma doutrina estabelecida que nos instala na compreensão usual e natural da coisa, como se essa compreensão não fosse hitórico-historial.

– Falamos dessa fixação, falamos da compreensão da coisa determinada pelos gregos, não para termos uma informação cultural do passado, mas sim para nos conscientizarmos de nós mesmos hoje, para ver como ainda é hoje, como ainda somos hoje, fundamentalmente.

Essa pergunta filosófica, dentro da teoria do conhecimento, colocada como uma busca filosófica: o que é isto, a coisa? poderia ou deveria ser uma pergunta que nos introduzisse no processo de transformação historial da colocação tradicional do homem para com as coisas, transformação do modo de ver, sentir, querer e buscar e questionar da existência humana os entes na sua totalidade.

* Esse processo de transformação não é coisa de um indivíduo ou grupo de indivíduos, num curto período de tempo, mas sim uma tarefa de toda a humanidade, tarefa de toda uma época ou

* Todo o estudo de filosofia hoje, seja qual for o nível de escolaridade em que colocamos as questões filosóficas deve de alguma forma participar da inquietação, insegurança e dificuldades, mas também do fascínio e da novidade dessa iniciante transformação.

– A tarefa principal dessa participação, no entanto, é a de encararmos com olhar claro e distinto o que hoje mais nos impede de intuirmos, experimentarmos e de determinarmos mais livremente o nosso relacionamento com as coisas, com os entes na sua totalidade, a saber: a hodierna ciência da natureza enquanto ela se transformou no modo de pensar geral da humanidade, segundo certos princípios e normas. (É o que Edmund Husserl chamou de naturalismo das ciências naturais). Aqui também atua ainda (nas ciências naturais) a concepção tradicional da coisa como substância, embora já bem transformada, e não predominantemente nem exclusivamente.

– As questões dos nossos relacionamentos para com a natureza, do nosso saber da natureza e do nosso domínio sobre a natureza não são, porém, questões das ciências naturais. Essas questões nos arrastam para dentro da questão principal, se e como, até que ponto, ainda somos atingido pela presença do todo; se nós não estamos esquecendo totalmente o contato vital com o ser do ente na sua totalidade (cf. a colocação de Karl Rahner, nas aulas da fenomenologia da religião).

– Na constituição da ciência moderna começou a dominar e se tornar uma concepção usual e corrente uma concepção toda especial da coisa (realidade).

* Essa concepção diz: a coisa é um núcleo ou ponto de massa material (quanta de energia, onda, corpúsculo) ou respectivamente um conjunto correspondente de tais pontos, que se move numa totalidade de espaço e tempo, numa ordenação quantitativa extensional.

* A coisa, assim colocada, se tornou medida, base e fundamento para toda e qualquer determinação de todas as coisas.

* Examinar a redução de todas as coisas à entificação nessa concepção da coisa como ponto de massa no movimento espaço-temporal de quantificação extensional, p. ex.:

** dos viventes- à biologia-à química-à teoria físico-nuclear

** dos objetos de uso – à coisa núcleo-material que recebe depois  o acréscimo de valor.

** Sujeito———————>Objeto

/espiritual anímico / vivente / coisa< < < ]

** Essa dominação da coisa-matéria como o elemento básico de todas as coisas ultrapassa por sobre as coisas materiais e alcança e invade a região espiritual, seja qual for a denominação que dermos ao espiritual: linguagem, história, arte, religião.

– Assim a nossa tarefa hodierna na questão da teoria do conhecimento é o dever e poder i. é, ter privilégio de nos confrontarmos em duas direções:  a partir da direção do passado nos confrontarmos com o conceito da coisa como da substância; a partir da direção do hoje, dominada pela concepção da coisa como energia-matéria pontualizada no espaço e tempo da ordenação quantitativo-extensional.

TCON.4

(os pensamentos e a interpretação aqui colocados foram tirados do livro de Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur. Freiburg e München: Editora Karl Alber)

  1. O eu como “eu penso” não deve ser entendido como uma substância-coisa-sujeito que emite um ato de pensa (modelo do pensar substancialista). O “eu penso” deve ser entendido como a experiência originária que o homem tem de si mesmo, de modo imediato, concreto, vivenciado como auto-evidência, autopresença do autoposicionamento de si a partir de si, como estar-ali na disposição de ser, enquanto lance e projeto a partir de si e em si mesmo.
  2. Este “eu penso” como auto-evidência, autopresença imediata do ser do homem a si mesmo é o que denominamos de matemático ou máthesis. Um saber que se determina de antemão como aquilo que contem tudo em si e está na feliz posse de si mesmo. A consciência feliz plenamente realizada dessa autoposse de si é o que Descartes chama de bona mens ou espírito: i. é, “eu penso”. Para Descartes a ciência, o saber, o conhecimento, i. é, a máthesis não é outra coisa do que a plena realização do “eu penso” ou do espírito: é o próprio espírito plenamente ele mesmo.
  3. Aqui portanto o “eu penso” é o modo de ser que caracteriza o próprio do homem, de ser sempre já a partir de si, de estar sempre consigo mesmo. Se o próprio do homem é esse modo de ser, então o homem encontra o seu progresso não na aquisição dos conhecimentos mas sim no esvaziamento deles. Mas em que sentido?
  4. Até Descartes a Tradição ocidental definiu a verdade, i. é, o conhecimento verdadeiro como adaequatio rei et intellectus: como o espírito, indo à realidade, o saber se adequando, se dirigindo à coisa. Daí, a verdade é adequação, correspondência, concordância do intelecto à coisa e da coisa ao intelecto. Agora com Descartes, com a descoberta do “eu penso” i. é, do matemático como o princípio básico de todo e qualquer conhecimento verdadeiro, a verdade não é mais o movimento de relacionamento do sujeito-eu-coisa com a objeto-coisa, do ir de encontro à coisa, se abrindo a ela na adequação ou concordância. É antes simples, imediata e concretamente o eclodir, o abrir-se do próprio dar-se do espírito.
  5. Na compreensão usual da teoria de conhecimento, conhecer é um ato do sujeito-substância simplesmente dado, entre outros atos do mesmo sujeito de p. ex. volição, sentimento etc. Nesse ato de conhecimento o sujeito-eu se dirige às coisas, sejam elas coisas fora de nós ou dentro de nós em diferentes níveis de entificação, para assim adquirir um acervo de conhecimentos. Quando o conteúdo desses conhecimentos correspondem às coisas e reproduzem o conteúdo das coisas, dizemos que ali há verdade, i. é, conhecimento verdadeiro. Se não houver a correspondência, temos então falsidade, i. é, conhecimento falso. Nessa usual e tradicional teoria de conhecimento a mente (espírito, intelecto) é algo espiritual (portanto não material) que está no corpo humano, algo espiritual, cuja característica é de ser vazio, sem determinação, mas que na medida em que vai adquirindo conhecimentos, se torna como papel branco vazio que vai aos poucos sendo enchido de escritas. Quanto mais adquire conhecimentos, quanto mais se apossa do saber, quanto mais bem informada é a mente sobre a realidade, tanto mais verdades ela possui.
  6. Descartes inicia o processo da busca de uma certeza absoluta, duvidando passo a passo da validade do conhecimento de tudo, a partir dos conhecimentos os mais físico-materiais dos nossos cinco sentidos até a validade dos conhecimentos os mais abstratos e mais espirituais, até chegar a uma única intuição derradeira, onde não dá mais para pôr em dúvida a validade da adequação. Esse último ponto é o “eu penso, e enquanto penso, que penso não posso duvidar!”

Por que Descartes duvida de tudo, assim passo a passo? E o que restou de tudo isso; – de que se trata,- quando por fim Descartes constata: eu, enquanto penso, que eu penso, não posso duvidar; enquanto duvido de tudo, da própria dúvida que duvida de tudo, não posso deixar de ver claramente que enquanto duvido não posso duvidar que duvido. Pois, se duvidar, o fato de duvidar já está mostrando que eu enquanto duvido, que duvido não posso duvidar.

  1. Tudo isso parece uma brincadeira, enquanto não intuirmos que aqui não se trata de averiguar, de descobrir um ponto firme, um fato, uma realidade em si, a qual eu não posso duvidar, realidade essa que receberia o nome de sujeito-eu, ou o subjetivo, i. é, o eu que é o ponto de referência centro-núcleo, e portador de todos os meus atos de conhecer.
  2. Mas então, de que se trata? Todo esse processo de duvidar de tudo é para eliminar da minha mente tudo quanto não é ela mesma, i. é, para esvaziar a nossa mente de conhecimentos adquiridos e inatos. Mas para que? Para chegar a um resto firme, a um fundamento, um ponto seguro que não se deixa eliminar, mas que ali está como algo, antes de todos esses movimentos?

Não! Mas sim para estar bem junto da mente, do espírito, como ele é nele mesmo, i. é, sem as sobrecargas, os acréscimos, as aquisições de conhecimentos. Dito com outras palavras, aqui Descartes quer encontrar-se com o ser do espírito, com o ser da mente, com o ser do intelecto, não o conhecendo a modo de conhecimentos de coisas, adquiridos ou inatos, mas sim se esvaziando deles e deixando ser  o espírito espírito.

Duvidar aqui portanto não tem a função de testar a validade da adequação do espírito ou do intelecto com a coisa, mas sim de esvaziar o espírito, a mente de todos os conhecimentos adquiridos e inatos, para que o espírito se torne presente nu, puro, como ele é, a partir de si, nele mesmo.

  1. Como é então o espírito esvaziado, limpo de tudo quanto não é ele, de todos os conhecimentos adquiridos e inatos?

Responde Descartes: é como “eu penso”. Mas atenção, Descartes não diz: como eu sujeito aqui, tendo um ato chamado penso. Mas sim: “eu penso” significa sou um conhecimento, uma experiência, um saber, uma ciência que não conhece distância para si mesma, não conhece caminho para si mesma, não conhece elaboração de si, porque vive na plena posse de si. Mas, não é muito exato dizer “vive na posse de si”, pois, ter posse é sempre um ter, que tem ainda distância entre o que se tem e quem o tem. Ao passo que no “eu penso” cartesiano, na experiência de Descartes do espírito de si mesmo, a coisa não está diante do espírito, mas ela é nele, ou melhor, ela é a presença do espírito ela mesma, é por si, para si, é o espírito ele mesmo. Uma tal “realidade” (eu penso, logo sou) não tem mais o modo de ser da substância, do sujeito, da coisa ou do ente simplesmente dado, mas sim possui o caráter da luz, claridade, incandescência, distinção, nitidez. Não vem de fora ao espírito, mas sim nasce nele, como ele mesmo, é ele mesmo em nascendo, portanto conascimento: conhecimento, conaître. Essa presença, essa presencialidade não é um espaço aberto dento do qual uma coisa se mostre (i. é, coisas prováveis e duvidosas), mas sim: o espírito ele próprio no seu tornar-se presente. Uma tal incandescência, a qual aparece a partir de si na sua própria presença se chama e-videri (se evidenciar), evidência.

Espírito (intelecto, mente) é vigência desse modo de ser de se estar junto de si, na autocaptação de si mesmo, na vivência da plenitude da imediatez. É esse modo de ser que está dito na famosa sentença de Descartes: “eu penso, logo sou”. E a partir dessa “realidade”, tudo quanto tem esse modo de ser da evidência é verdadeiro: idéias claras e distintas.

  1. Assim, Descartes dá à verdade uma nova essência, a essência da evidência. É sob o signo da evidência que se reconhece o “espírito”. Até agora, o espírito estava impedido de ver na evidência o seu ser, devido a uma compreensão falsa do saber, do conhecimento. Isto é, saber ou conhecimento = adequação do espírito às coisas; adquirir, ganhar o saber, o conhecimento, i. é, ir às coisas, dirigir-se às coisas, ser correto. Assim o espírito, em vez de permanecer nele mesmo começou a se afastar de si, alienar-se de si, começando a se interpretar a partir dos conhecimentos que estavam longe dele mesmo.

Recordemos porém que esse modo de ser do “eu penso” como o de estar junto de si naquilo que já sempre era, e buscar a si mesmo a partir do lance e projeto de si, sem jamais sair de si, mas sempre de novo só considerar válido o que se dá a partir de si, é o modo de ser que está expresso no verbo grego manqanein (ta maqhmata, maqhsiV) = o matemático.

  1. Esse modo de ser da autopresença da e-vidência é o espírito que na Tradição do Ocidente se chama logoV e que os latinos traduziram por ratio e em alemão se diz Vernunft (de vernehmen). Quando esse modo de ser da Vernunft está na sua absoluta limpidez, na plenitude de si, ele aparece na sua pureza. Esse caráter da pureza, essa qualificação da pureza, da limpidez da translucidez (portanto o adjetivo puro (a)) é o que está designado pelo termo o matemático no sentido da transparência límpida da e-vidência. Assim podemos compreender o que quer dizer o título do famoso livro de Kant: Crítica da razão pura.

TCON.5

  1. O “eu penso” cartesiano como modo de ser caracterizado pelo termo evidência é a experiência do espírito na sua auto-identidade absoluta. É o que em Kant recebe o nome de Vernunft, razão. O que num sentido mais profundo denominamos o matemático, que começa a vigorar como o “espírito” que anima e impulsiona as ciências naturais, não é outra coisa do que a pureza, a limpidez do modo de ser do “eu penso”. Daí, os termos razão, matemático e pura(o) dizem o mesmo. Esse “o mesmo” sui generis é a razão pura.
  2. Assim, depois de Descartes a razão se torna o princípio supremo ou fundamental de todo o saber, todo o conhecer, da sua certeza e sua verdade. Não somente isso, a razão é o princípio para que “algo” possa ser considerado como sendo, i. é, como ser. Isto significa: para que “algo” seja um conhecimento, um saber, verdade, certeza, para que “algo” possa aparecer como válido e objeto de uma captação, deve ser racional, i. é, ter o mesmo modo da razão, i. é, da autoevidência.
  3. No entanto, a razão, – que é princípio, i. é, fonte, fundo-, portanto, o espírito na sua auto-identidade, se manifesta, se tematiza em axiomas ou formulações fundamentais que servem de orientações e normas para todo e qualquer processo de volta a ele, para a busca de retorno ao princípio-razão. Os axiomas são chamados também de princípios, p. ex. no princípio de não contradição etc. Aqui, quando mencionamos essas formulações fundamentais, nas quais aparece o princípio no sentido estrito, usaremos o termo princípio no lugar de axioma. É mais por causa do uso comum.

São três as sentenças básicas ou axiomas que expressam o princípio chamado razão pura ou “eu penso” ou “o matemático” no sentido mais profundo:

  1. a) O princípio do “eu penso-sou”.
  2. b) O princípio de não-contradição.
  3. c) O princípio da razão suficiente.
  4. a) O princípio do “eu penso-sou” é o que acima e na outra apostilha explicitamos como autopresença, como evidência, como a feliz posse de si mesmo na auto-responsabilização da absoluta transparência da autonomia. Isto significa: não há nada que não seja eu mesmo enquanto pura razão.
  5. b) Essa auto-identidade radical se expressa: no “eu penso-sou”. Assim “eu penso-sou” aqui significa: eu evito tudo quanto contradiz esse modo de ser da auto-evidência, a qual diz: ser enquanto ser não pode não ser. É o que denominamos de princípio de não contradição. O “eu penso-sou”, i. é, o princípio do “eu” e o princípio de não contradição, que supõe e diz, ser é ser, não ser é não ser, ser não é não ser, saltam limpidamente da Razão Pura, são duas expressões da pura razão.
  6. c) Mais tarde se explicitou esses dois princípios num terceiro que denominamos de princípio da razão suficiente.

A razão pura vem à fala nesses três axiomas ou princípios. Esses três princípios são explicitações límpidas, homogêneas, puras da dinâmica da autopresença do espírito que denominamos razão pura. Esse fundo fontal lançado de antemão como condição da possibilidade de tudo que é, tudo que pode ser e pode ser conhecido, é o horizonte, a partir e dentro do qual a Metafísica pode e deve ser aclarada e ser trazida à fala.

  1. A partir desse horizonte e para ele deve ser fundamentada toda a metafísica, de tal modo que esses três princípios orientam a estruturação interna da metafísica e a impregnam.
  2. Acontece, porém, que a metafísica é a questão pelo ente no seu todo e pelo ser do ente.
  3. No entanto, o que caracteriza a virada da época, da Idade Média para a Moderna é o matemático, no sentido mais profundo já explicitado. Esse modo de ser “evidência” na auto-identidade da autonomia do espírito não se tematizou na metafísica tradicional, embora ele estivesse operativamente ali presente. Agora com a compreensão moderna da verdade, não mais como adequação, como correspondência do homem com a coisa, mas sim como a limpidez, a pureza da auto-identidade da autonomia do espírito, todos os temas e as questões da metafísica tradicional devem ser confrontadas por esse modo de ser da razão pura. Nesse sentido a metafísica se torna, somente agora no sentido mais rigoroso, racional ou espiritual.
  4. Vimos em algumas aulas anteriores como esse confronto dos temas da Metafísica tradicional com o “matemático” ou com a Razão Pura ou com “eu penso-sou” se deu através das iniciantes ciências naturais na região natureza (cosmos, universo ou mundo). E através desse confronto, a compreensão tradicional da natureza se transformou na natureza físico-matemática das hodiernas ciências naturais. No entanto, a natureza é apenas uma região entre outras regiões da metafísica tradicional. O que acontece com os temas e questões da metafísica tradicional, se esse confronto se der também nas outras áreas ou regiões da Metafísica tradicional? Eis a questão.
  5. Entrementes, é necessário darmos conta de que a natureza ou o universo (cosmos), como nós o percebemos, desde a dominação do cristianismo no Ocidente, é interpretada como criatura, ente criado, ente da ação criadora de Deus. E isto não somente na Idade Média, mas através de toda a filosofia moderna, mesmo até hoje. A metafísica moderna, desde Descartes até Kant, de Kant até a metafísica do Idealismo alemão, e depois dessa Idade moderna, até hoje, através da metafísica de Nietzsche, mesmo com a sua famosa “Morte de Deus”, não pode ser pensada sem as representações fundamentais cristãs. Por mais que essas representações estejam hoje fragmentadas, deficientes ou sem conteúdo, interpretadas equivocadamente, elas permanecem temas de confronto, pontos a partir dos quais se dá o confronto e questionamento.
  6. Resumamos pois aqui essas representações fundamentais: a criação e o seu modo de ser que cunha o ente na sua totalidade com um caráter todo próprio, que o faz ens creatum, ordena o universo criado em diferentes camadas de graduação do ser. O ente propriamente dito e supremo é aquele que vale como a origem criativa de tudo, que é um Deus pessoal como espírito e Criador. Todo o ente que não seja esse Deus é o criado. Entre os entes criados, há um ente todo próprio de destaque extraordinário. É o homem. Esse destaque recebe o homem por causa da alma e sua imortalidade, que o coloca como um ente, cujo ser está em jogo; ele é colocado em questão por causa desse seu destino. Como tal o homem não é um ente simplesmente dado, mas um ente, cujo ser continuamente está em jogo, por ele ter que ser: portanto por causa da sua liberdade. Temos assim o Deus Criador, o universo-cósmos como o criado, o homem com sua salvação: são três reinos ou regiões determinadas pelo pensar cristão como sendo as três grandes áreas da totalidade do ente. Porque a metafísica questiona o ente no seu todo, interrogando o que ele é, porque ele é assim como é, a metafísica propriamente dita e entendida no sentido da impostação cristã, pergunta por Deus (theologia naturalis), pelo mundo (cosmologia) e pelo Homem e pela salvação da sua alma (Psychologia). Na medida em que, segundo o modo de ser “matemático” do pensar moderno, todos os temas da Metafísica devem ser confrontados pela Razão Pura, a Metafísica deve ser racional: a questão metafísica de Deus se torna uma theologia rationalis, a questão metafísica do mundo, cosmologia rationalis, e a questão metafísica do homem, psychologia rationalis.
  7. Temos assim dois momentos essenciais na colocação dentro da metafísica moderna, i. é, da filosofia moderna:
  8. a) A representação cristã do ente no seu todo como ens creatum.
  9. b) O princípio “matemático” da razão pura.

Simplificando, poderíamos dizer: o primeiro momento constitui o conteúdo, o quê; o segundo momento, a forma, o como da metafísica moderna.

  1. Mas esse relacionamento de conteúdo e forma, aqui na metafísica moderna apresenta uma dificuldade própria que aparece no seguinte questionamento, questionamento esse que nos mostra um ponto nevrálgico e essencial da filosofia moderna.

A colocação cristã do ente no seu todo, não somente determina o conteúdo, mas de um modo muito acentuado também o como, i. é, a forma desse conteúdo. Pois na medida em que Deus como Criador é colocado como causa e fundamento do ente no seu todo, o como, o modo do questionar e buscar já está a priori orientado para e determinado por esse princípio.

Por sua vez, o matemático, a razão pura não é apenas uma forma lançada como uma rede sobre o conteúdo cristão, mas ele mesmo, enquanto referido ao homem, pertence a este próprio conteúdo. Portanto, na medida em que o princípio ou o axioma do “eu penso” se torna condutor como princípio fundamental de todo o saber e condição de possibilidade para o ente aparecer como ente, o eu, i. é, a subjetividade, e com isso o homem assume uma posição sui generis na questão, na dinâmica da busca do ente no seu todo: o homem não designa somente uma região entre outras regiões do ser, mas sim um princípio a priori fundamental e fontal para onde todas as posições metafísicas e suas enunciações devem voltar e a partir do qual todas essas posições e as suas enunciações devem brotar.

O processo da dinâmica do pensar metafísico agora se movimenta cada vez em diferentes regiões delimitadas da subjetividade.

Diz por isso Kant: “Todas as perguntas da metafísica, i. é, as das disciplinas mencionadas, se deixam reconduzir à pergunta: O que é o homem?”

Temos assim uma situação ambígua: o homem ocorre uma vez como pertencendo à psychologia rationalis, portanto a uma das regiões do ente no seu todo, mas ao mesmo tempo é a própria razão pura, i. é, o princípio a partir e dentro do qual e para o qual tudo deve ser tematizado.

Dito de outro modo: Conforme as três direções principais da busca metafísica, trata-se cada vez do ente: deus, mundo, homem. Por ser uma busca metafísica, deve ser cada vez decidida acerca da essência e possibilidade deste ente, deus, mundo, homem, e isto racionalmente, a partir da razão pura, i. é, a partir dos conceitos que são obtidos no puro pensar (“eu penso”). Se assim deve ser decidido sobre o ente no pensar e puramente a partir do pensar, decidido o que e como é, então antes de o ente na sua totalidade ser dividido e determinado em regiões, i. é, ente como Deus, ente como mundo, ente como homem, deve ser pressuposto e investigado uma precompreensão do ente como tal. Portanto, antes de se questionar acerca de deus, mundo e homem enquanto regiões do ser, deve ser questionado o ente enquanto ente, o ente como tal, deve ser questionado o ente de modo geral, o mais vasto, o mais comum do que as especificações regionais do ente como deus, mundo, homem. A metafísica que busca o ente na sua generalidade, se chama então metaphysica generalis, uma ciência filosófica anterior a e fundamental para theologia, cosmologia e psychologia, que constituem a assim chamada metaphysica specialis. Temos assim a clássica divisão de Christian Wolff e Baumgarten da Metafísica em disciplinas:

Metafísica geral: ente enquanto ente.

Metafísica especial:

– Cosmologia: natureza, mundo, universo, cosmos.

– Psicologia: alma, o homem e sua imortalidade.

– Teologia natural: Deus.

  1. É preciso, porém, agora tomarmos consciência da mudança da compreensão do ser que se oculta nessa ambigüidade da metafísica moderna e sua divisão. De que se trata?

O caráter geral e comum da metafísica geral da metafísica moderna não é igual ao caráter geral da metafísica tradicional. Pois nesta, a colocação do sentido do ser do ente na sua totalidade opera na precompreensão do ser enquanto este é interpretado como substância, com todas as suas conseqüências e implicações que essa colocação traz consigo. O ser aqui é entendido como simplesmente dado. Naquela, na metafísica moderna, o caráter geral da metafísica geral agora é o “matemático” no sentido do princípio do “eu penso-sou” ou da razão pura. Por isso, a compreensão do geral, do comum não pode mais ser o geral e comum usual, que por assim dizer, paira sobre o(s) especial(is). O geral aqui é o axiomático da razão pura, i. é, o modo de ser da auto-identidade do espírito na dinâmica da sua atuação em tudo e em todas as coisas, cada vez. Por isso, a compreensão do que seja o próprio especial, deve ser haurido dessa compreensão do geral, enquanto a dinâmica da razão pura. Tudo isto significa:

Antes de toda e qualquer colocação e posição acerca do ente na sua totalidade – entendido o ente na compreensão do ser como substância, como o simplesmente dado –, antes da pergunta pelas regiões especiais do ente (entendido no seu ser como substância, como o simplesmente dado), i. é, como Deus, homem e universo, é necessário buscar a compreensão do que a priori ali está como exigência da razão pura, i. é, como a exigência do “matemático” que não é outra coisa do que a autopresença do espírito na sua absoluta e a mais límpida auto-evidência da sua autonomia. É pois necessário perguntar pelo ser do estar-ali do espírito, pela essência do ser-homem, pelo ser da existência, não no sentido de examinar o homem dentro de uma já predeterminada precompreensão do ser como substância, como o simplesmente dado, mas sim no sentido de recolocar a questão do sentido do ser, seguindo os fios condutores implícitos no autoapresentar-se do próprio do homem como o ser do homem, no rastreamento desses fios condutores como de acenos e insinuações de um novo sentido do ser dos entes na sua totalidade.

  1. A metafísica geral se transforma assim em ontologia, mas não em ontologia do tipo tradicional, mas sim numa ontologia fundamental digamos fenomenológica, cuja propedêutica é a analítica da existência.
  2. Esse movimento do novo esclarecimento do novo sentido do ser que pode ser formulado kantianamente como completa trans-elucidação de todas as coisas em vista da sua coisidade, a partir da razão pura, é o que chamamos de Aufklärung, de Esclarecimento ou Iluminismo do século 18, o espírito da filosofia moderna. Certamente, esse movimento não coloca tematicamente a questão do sentido do ser, a modo da colocação da analítica da existência como da propedêutica da ontologia fundamental nova, mas prepara essa colocação, criando uma ambigüidade na compreensão do homem como do tema regional da metafísica especial que simultaneamente é também a própria condição da possibilidade da metafísica geral como o “matemático”, como o “eu penso-sou”.
  3. O objetivo dessas aulas foi para mostrar que a disciplina chamada teoria de conhecimento, enquanto coloca a sua busca como busca do conhecimento humano e sua descrição, não compreendeu bem a epocalidade que poderia estar na sua reflexão filosófica. Se ela tivesse impostado a sua mira naquilo que a filosofia moderna tem de decisivo, i. é, na descoberta da subjetividade, não como o sujeito-homem-substância, mas sim como o modo de ser da evidência da pura razão, seria como que uma introdução no pensar novo de uma nova ontologia.

Os pensamentos aqui colocados foram tirados de algumas colocações de Heinrich Rombach e principalmente na sua totalidade, das preleções de Martin Heidegger, publicadas como livro, intitulado  A questão pela coisa (Die Frage nach dem Ding, Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1962).

Descartes

  1. Colocamos o início da filosofia moderna em Descartes (1596-1650). Descartes é da geração de Galileu. O seu tema principal = mundo!. A idéia do mundo está intimamente ligada com o movimento da determinação do matemático da existência humana na França, Inglaterra, e Holanda. Cf. Leibniz na sua estadia em Paris (1672-1676); influência na Monadologia etc.
  2. O pensamento principal de Descartes:
  3. Obra: Meditationes de Prima Philosophia.
  4. Capítulo II, 2 e 3:

(2) “Suponho portanto que tudo que eu vejo seja falso; eu creio que nada disso existiu, que a memória mentirosa me representa: eu não tenho de modo algum sentidos; corpo, configuração, extensão, movimento e lugar são quimeras; o que pois de verdadeiro resta? Talvez apenas isto único que nada é certo.

(3) Mas, donde sei que nada é, nada que é totalmente diferente de tudo aquilo que acima mencionei, tudo aquilo do qual duvidar não tenho nenhuma ocasião? Acaso, existe algum Deus, ou seja qual for o nome com o qual eu o nomeie, alguém que me introduziu esses pensamentos? Porque, porém suponho isso, se eu mesmo poderia ser o autor desses pensamentos? Será que, portanto, ao menos eu sou algo? Mas, eu já neguei que tenha sentidos, e algum corpo; duvidoso pergunto, porém, e então, o que segue? Enfim, estou tão preso ao corpo e aos sentidos que não posso ser sem eles? Entrementes, eu já me persuadi que simplesmente nada há no mundo, nenhum céu, nenhuma terra, nenhum espírito, nenhum corpo, portanto também eu mesmo não. Mas certamente eu era, se eu me persuadi de alguma coisa! Mas há um enganador, não sei quem, sumamente poderoso, extremamente astucioso que me engana de propósito e sempre. Sem dúvida, porém, eu também sou, se ele me engana, e por mais que ele me engane, jamais conseguirá que eu seja nada enquanto eu penso que eu seja algo. Portanto, depois de ter ponderado tudo mais do que suficiente, seja pois estatuído o seguinte pronunciado (hoc pronuntiatum): ego sum, ego existo, quantas vezes isto é pronunciado por mim ou concebido pela mente, necessariamente é verdadeiro”.

Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur, I, p. 447:  “O que se desprende do percurso do pensamento como algo seguro não é – como usualmente é afirmado –,  o fato, de que eu, o eu que isto penso, existe, mas sim um determinado ente, a saber,  “o eu” como uma coisa ontologicamente destacada especialmente, como aquela “coisa” que tem a propriedade de perdurar, quando tudo sucumbe na dúvida. A autocerteza tomada estritamente não se refere a mim mesmo cada vez, que sou eu desse indivíduo pensante, mas ao pensar, ao espírito, à egoidade como tal. É salvo, não um fato individual, não este determinado eu como o eu que me acho aqui e do qual eu sei através da autoexperiência, mas sim salta uma verdade geral, uma “sentença comum” (hoc pronuntiatum), que vale sempre e em toda a parte e no mesmo modo: o ego é indubitável”.

Subsídio para a preparação ao exame oral da teoria de conhecimento  II Semestre 1996

São as seguintes as perguntas que serão feitas no exame oral:

  1. Formule a definição tradicional ocidental da verdade ou do conhecimento verdadeiro.
  2. a) Quais os termos essenciais dessa definição? Comente brevemente cada um desses termos.
  3. b) Como na Idade Média desdobrava essa única definição em duas modalidades: formule essas modalidades e comente cada vez os seus termos essenciais.
  4. c) O termo intellectus nessa definição tradicional da verdade na colocação medieval indica dois intelectos inteiramente diferentes. Quais são eles?
  5. d) Como se relacionam entre si esses dois tipos de intelecto?

[cf. as anotações das aulas e algumas das apostilas do I semestre]

  1. Na teoria do conhecimento buscamos a essência da verdade, i. é, a essência do conhecimento verdadeiro. Nessa busca da essência do conhecimento verdadeiro podemos pegar a definição tradicional do passado, i. é, a definição “platônico-aristotélica” da coisa, da sentença e verdade e colocá-la sob o interrogatório.
  2. a) Quais seriam perguntas desse interrogatório. Formule e comente algumas dessas perguntas interrogantes.
  3. b) Como a tradição respondeu a essas interrogações?
  4. c) Quais são interrogações que surgem dessa resposta da tradição?

[cf. apostila TCON.3]

  1. A tradição do Ocidente definiu o conhecimento como adequação da sentença com a coisa. <…>. Em vez de nos agitarmos em nos informar sobre o que existe de teorias sobre o conhecimento, é necessário antes de tudo…tentar ver o que é conhecimento na sua estrutura interna. Por isso, começamos a nossa investigação, perguntando acerca de um dos elementos principais que constituem a definição tradicional do conhecimento que é a coisa. Daí a questão: o que é a coisa?
  2. a) Qual seria a resposta tradicional a essa pergunta, a resposta aparentemente a mais natural, a mais aparentemente próxima da nossa vida cotidiana e concreta?
  3. b) Se colocarmos os termos dessa resposta em seqüência como ela apareceu na Tradição da História Ocidental, que tabela teríamos nós? Comente brevemente essa tabela.
  4. c) Explique o que é o conhecimento, a partir dessa resposta natural e aparentemente óbvia do que seja a coisa.

[cf. uma das apostilas do I Semestre]

  1. Quais são os 4 momentos distintos na estruturação da enunciação?
  2. a) Enumere e comente cada um desses 4 momentos e dê um exemplo.
  3. b) Explique o que é a estrutura S é P, estrutura essa que resume o essencial dos 4 momentos acima mencionados.

[cf. uma das apostilhas do I Semestre]

  1. Quando falamos da ciência natural moderna, dissemos nas aulas que o característico distintivo da ciência natural moderna diante do saber antigo e medieval está no seu ser matemático. Nessa ocasião mencionamos como as diferenças existentes entre a ciência moderna e o saber antigo e medieval, as seguintes características: a) A ciência moderna parte de fatos. O saber antigo de conceitos especulativos; b) a ciência moderna é experimental. O saber antigo especulativo; c) a ciência moderna é um saber que calcula e mede: ciência exata. O saber antigo é opinativo e incerto.

Tome posição diante dessas características e diga o que acha delas; e porque nas aulas não aceitamos essas características como próprias da ciência moderna; pois -dissemos-, o próprio da ciência moderna é o seu ser matemático.

[cf. as anotações das aulas]

  1. O que é o matemático?
  2. a) O que significam as palavras: maqhsiV, manqanein, ta maqmata?
  3. b) Repetição do que foi dado nas aulas: Os gregos distinguiam ® ta jusika: as coisas ou os entes enquanto surgem e eclodem a partir de si: coisas da natureza; ® ta poioumena: as coisas enquanto são feitas através das mãos humanas, coisas produzidas manufactualmente e como tais ali estão diante de nós; ® ta crhmata: as coisas enquanto estão continuamente no uso e à disposição do uso: pode ser ta jusika ou também ta poioumena, conquanto que estejam em uso; ® ta pragmata: as coisas enquanto são tais com as quais nós temos a ver, sejam que as elaboremos, as usemos, as transformemos ou apenas observemos, pesquisemos, conquanto que estejam referidas à praxiV. Esta é ação de prattein ou prassein que significa perfazer agir, realizar. É um fazer que é diferente de poiein (cf. ta poioumena). Pois aqui trata-se, não de fazer, fabricar, produzir, mas sim, em fazendo isto ou aquilo, tornar-se; iniciar, crescer e consumar-se; fazer-se, fazer e tornar-se obra. É uma ação todo próprio do ser humano na qual na medida em que age e cria obras, se vai crescendo, aumentando cada vez mais no seu próprio ser, conhecendo e se conhecendo, i. é aprendendo.

maqhsiV, manqanein, ta mqhmata têm a ver com a ação e o efeito de um tal aprender. Esse tipo da aprender-práxis é uma espécie de recepção, captação, tomada de posse, apropriação, dispor de coisas. Mas, na realidade, nós não apossamos a coisa, mas apenas o uso. Aprender é pois dispor o uso das coisas. É tomar e se apropriar não de coisa, mas sim do uso da coisa. A tomada de posse acontece pelo próprio uso. Esse modo de apropriar-se do uso se chama exercitar-se ou exercício. Exercitar-se é uma modalidade de aprender. Mas nem todo o aprender é exercitar-se. Isto significa que existe um aprender que é mais do que exercitar-se? Sim. Como? É o aprender todo próprio chamado maqhsiV, o aprender “matemático”. Como é esse aprender “matemático”? Tentemos entender o que é esse modo de aprender por meio de um exemplo. Eu me exercito no uso de arma. No exercício tomamos o, nos apossamos do uso da arma, i. é, do modo, da maneira, da lida com ela. O nosso modo de lida e convívio com a arma se coloca, se dispõe naquilo que a arma exige para ser usada. Isto significa que na lida, não somente lidamos com, dominamos a função, mas em usando, ao mesmo tempo aprendemos a conhecer a coisa. Aprender assim é sempre aprender a conhecer. O aprender como exercitar-se, aprender o uso, apossar-se do uso, pode assim ser elevado para um nível de práxis mais perfeito como aprender a conhecer a coisa. Portanto, aprender no sentido de mathesis pode ter duas direções: a) aprender o uso e a aplicação; b) aprender a conhecer a coisa.

No a), no aprender o uso e a aplicação, o conhecimento da coisa ela mesma permanece num nível bem limitado. P. ex. posso saber o uso de arma, mas não sei como é construída a arma. O b) é um aprender que se abre ao conhecer a coisa ela mesma. Aqui se abrem diferentes níveis e extensões cada vez mais crescentes do conhecer. P. ex. para quem não somente quer aprender a usar a arma, mas também fabricar a arma, não basta aprender o uso, mas é necessário aprender a conhecer de que se trata, em diferentes níveis de profundidade do conhecimento, até se chegar ao conhecimento disso que a coisa ela mesma é, como ela mesma é. Na medida em que aprendemos a conhecer a coisa no que ela é e como ela é, portanto aprendemos a conhecer o ser da coisa como tal, aprendemos também a ensinar o que e como ela é. O exercitar-se e usar é portanto somente um momento ou nível limitado daquilo que é possível aprender na coisa. Daí, o aprender originário é aquele tomar conta de, aquele apossar e aquele captar que é aprender a conhecer o que uma coisa é, o seu ser.

Mas, o que uma arma p. ex. é, o que um ente ou objeto de uso é, o ser portanto, nós já sabemos propriamente. Quando pegamos numa arma, quando queremos conhecer uma arma de um determinado modelo, não estamos propriamente aprendendo, aprendendo a conhecer o que é uma arma. Pois o é, o ser de qual coisa que seja, nós já sabemos antes de a pegar, do contrário não poderíamos nos relacionar com ela e captá-la como tal.  Somente, enquanto nós de antemão, a priori, sabemos o ser de uma coisa, somente assim, o que nos é proposto, anteposto se torna visível, captável naquilo que é. Só que, nós sabemos o que é uma coisa e certamente de antemão, a priori, mas de um modo assim geral, de modo indeterminado. Esse modo assim geral, indeterminado de conhecer chamamos também de saber operativo. Quando, porém levamos, conduzimos esse saber indeterminado, geral e operativo a um conhecimento mais próprio, mais temático, então tomamos conhecimento do que já antes tínhamos como conhecimento. Esse “tomar conhecimento” do que já antes sabíamos em sendo é propriamente a essência do aprender que em grego se chama maqhsiV, i. é o “matemático” num sentido originário e profundo.

  1. c) Através dessas descrições da maqhiV tentar intuir o que é um saber chamado “matemático”, fazendo a seguinte reflexão vivenciada:

Þ Para que possamos conhecer uma coisa, nós já de alguma forma devemos saber o que é e como é.

Þ O que é e como é, a saber, o é, o ser de uma coisa nós o sabemos já, em eu sendo. Embora eu e a coisa sejam bem diferentes, estamos no mesmo ser, em sendo, eu a qui, a coisa lá na minha frente. Tanto eu como a coisa é, em sendo, somos entes. Esse ser, o sentido desse é, eu já sei, já conheço em eu sendo. Antes de entrar em contato com a coisa  ao redor de mim, eu já em sendo, conheço, sei o que é ser, tenho uma precompreensão do ser. Mas essa precompreensão do ser somos nós mesmos enquanto em sendo somos. É uma compreensão operativa, em sendo, geral, indeterminada, passível de tornar-se mais clara e distinta.

Þ Tentar se conscientizar bem que esse trazer à claridade a precompreensão do ser que já sempre somos nós mesmos, em sendo é a experiência do “matemático”, i. é, do manqanein.

Þ Esse processo e exercício do aprender, a mathesis, o “matemático”, esse aprender a conhecer o que já sempre conhecemos em sendo, conhecer o que sempre já somos, é o “pensar”. Tentar vivenciar o que é “eu penso” através do seguinte exercício:

Ficar a só na sua cela, ou em algum lugar bem quieto. Sentar-se comodamente, tentar se relaxar, tirar toda a tensão, esquecer todas as preocupações, decidir-se a perder tempo com esse exercício. Ficar quieto e em silêncio. Deixar que tudo ao redor de você e dentro de você seja captado como se você fosse um espelho límpido transparente que tudo apenas registra serenamente. Se surgirem pensamentos, sentimentos, vivências, reações físicas, os barulhos de fora, o calor, o frio, o mosquito, apenas os registrar silenciosamente, deixar tudo ser como é, serenamente. Ver e captar a si mesmo e tudo que está dentro de si e fora de si como coisa que ali está sendo espelhada por você que é ao mesmo tempo o espelhado e o espelho igualmente. Deixar que a quietude de apenas captar e ser captado tome conta de tudo, de todo o seu ser, de tudo que está ao seu redor, tornar-se sereno, translúcido, silencioso, quieto, apenas você mesmo como serenidade, cristal clara captação. Esse estar ali aberto, disposto, sereno, apenas tudo captando é o que Descartes denominou de espírito, boa mente, ou “cogito-sum.

Perguntas:

Û Você já teve alguma vez uma tal  quietude, a experiência de estar consigo mesmo, na feliz posse de si mesmo?

Û Quando você conhece alguma coisa, não é assim que você só está completamente virado para fora, alienado de si mesmo, alienado dessa capacidade de estar bem silencioso, sereno, junto de si, como um espelho que  se capta a si mesmo na transparência e homogeneidade de estar bem junto de si, de ser idêntico consigo mesmo, de ser auto-evidência?

  1. Tome a apostilha TCON.4, estude-a e responda:
  2. a) Como não deve ser entendido o “eu penso-sou” de Descartes?
  3. b) O que significa “sou” desse “eu penso, logo sou”? Qual o relacionamento desse “sou” com o exercício anteriormente executado no nr. 6 de sentar-se na serenidade?
  4. c) Onde está o ponto de ligação, o que há de comum, entre essa experiência do sentar-se na serenidade e “eu penso-sou” e o “matemático”?
  5. d) O que significa: o Homem encontra o seu progresso, não na aquisição dos conhecimentos, mas sim no esvaziamento deles?
  6. e) Por que Descartes duvida de tudo? Qual a finalidade de um tal processo tão artificial?
  7. f) Quando é que uma tal mania de duvidar deixa de ser uma brincadeira, para ser uma busca muito séria e engajada?
  8. Leia e estude os textos da apostilha Descartes. nr. (2), (3). Tente compreendê-los e depois, se for exigido, fale livremente sobre o conteúdo do texto, interpretando-o.
  9. Leia e estude a apostilha TCON.5 e responda:
  10. a) O que é a razão pura?
  11. b) Em que princípios ou axiomas se desdobram a razão pura? Formule e explique cada um desses princípios. Aqui para a formulação desses princípios consultar na biblioteca enciclopédias filosóficas ou manuais de lógica ou de ontologia. Mas não se perder na informação. Basta só a formulação e uma breve explicação.
  12. c) O que são esses princípios em referência à Razão Pura?
  13. d) O que é metafísica?
  14. e) Como se subdivide a metafísica? Quais são os seus temas?
  15. f) Em que sentido os temas e as questões da metafísica ocidental estão impregnados da colocação do cristianismo?
  16. g) Por que na metafísica moderna a cosmologia, a psicologia e a teologia, disciplinas da metafísica especial recebem o acréscimo do adjetivo racional?
  17. h) Quais são os dois momentos essenciais da colocação nova dentro da metafísica moderna? Explique-se.
  18. i) Em simplificando ao máximo o relacionamento dos dois momentos essenciais da metafísica moderna, como podemos caracterizar esses dois momentos? E que problema esconde e revela essa simplificação?
  19. Na compreensão do que seja a metafísica geral, há um aspecto novo na metafísica moderna:
  20. a) Em que consiste esse aspecto novo?
  21. b) Qual o raciocínio que conduz ao surgimento da metafísica geral?
  22. c) Em que ponto essencial difere a compreensão da metafísica geral da metafísica tradicional e a metafísica geral da metafísica moderna?
  23. d) Como está colocado o homem dentro dessa maneira nova de entender a metafísica geral?
  24. e) Que ligação tem a metafísica geral, compreendida no sentido da metafísica moderna, com a analítica da existência?
  25. f) Em que sentido a teoria do conhecimento não é um saber sobre o conhecimento, mas sim um início da nova ontologia?

Tcon97IIS01

Repetição e novo comentário acerca do 3. O fundamento da possibilitação de uma conformidade.

  1. À primeira vista, quando falamos da verdade da enunciação pensamos assim: enunciação (o meu conhecimento, o sujeito aqui, o juízo, a sentença, a frase, a proposição) e o objeto (a coisa sobre a qual se faz a enunciação) e o relacionamento entre a enunciação e a coisa (= adequação ou o comportamento).
  2. A enunciação e a coisa se baseiam no relacionamento ou comportamento. Este (relacionamento ou comportamento) se baseia, ou melhor, se dá no seio de âmbito aberto, o qual poderíamos também chamar de horizonte.
  3. Ao que assim se manifesta chamamos de ente, i. é, aquilo que está presente.
  4. Esquema:
  5. enunciação coisa

adequação

ad

  1. b) (enunciação) (coisa)

presentação

ad

  1. c) (enunciação) (coisa)

presentação

comportamento

ad

  1. d) (enunciação) (coisa)

presentação

comportamento
âmbito aberto

  1. O ente é aquilo que se torna presente no movimento de a(d)presentação do comportamento no seio de âmbito aberto.
  2. A partir desse esquema tentemos intuir como dessa problemática da adequação chegamos à tese de que a essência da verdade é liberdade.
  3. A afirmação de que a essência da verdade é liberdade, o senso comum já a conhece. Portanto nada de novo?! Diz pois o senso comum: para a busca da verdade você não deve ter coação. Liberdade da imprensa, liberdade de opinião, liberdade política, religiosa etc. Essa afirmação do senso comum não entende a radicalidade da afirmação filosófica que diz: liberdade é a própria essência da verdade. A verdade é liberdade, e a liberdade é verdade.
  4. NB: Essa tese filosófica para o senso comum é estranha, surpreendente ao nosso modo geral de pensar. A tese deve portanto surpreender. Na surpresa, no estranhamento, no entanto, eu me desperto para a problemática.
  5. O senso comum no entanto é tenaz. Volta à carga com uma outra objeção… E diz: mas como isso é possível? Liberdade e verdade, não se coadunam bem. Não é assim que a verdade é a norma absoluta e objetiva, em si, independente do homem, segundo a qual o homem orienta a sua liberdade? Se é assim, como pode a verdade encontrar o seu apoio e fundamento na liberdade do homem? Não é isso uma perigosa tese do relativismo e subjetivismo?
  6. Essa objeção se baseia num pré-conceito. I. é, numa determinada concepção já preestabelecida da liberdade humana. A gente diz: o que é liberdade do homem todo mundo o sabe… Pois a liberdade é uma propriedade do homem. O homem tem a liberdade. Sabemos nós? O que é o homem? É tão óbvio que o homem possui a liberdade? Ou não é antes assim que é a liberdade que possui o homem? O que é pois a essência da liberdade?
  7. Resumindo:
  8. O que é a essência da verdade?
  9. A verdade é adequação da enunciação com a coisa.
  10. A adequação da enunciação com a coisa baseia-se na a(d)presentação.
  11. A apresentação se radica no comportamento.
  12. O comportamento se radica no âmbito aberto.
  13. O âmbito aberto surge da
  14. A liberdade é a essência do homem.
  15. A essência do homem tem o seu fundamento no SER.
  16. Portanto: Com uma boa margem de imprecisão podemos dizer:
  17. A adequação da enunciação com a coisa está no campo da lógica.
  18. A apresentação está no campo da teoria do conhecimento.
  19. O comportamento está no campo da
  20. A liberdade no campo da
  21. O fundamento da essência do homem no ser está na analítica da existência ou ontologia fundamental.
  22. Assim, a busca da essência da verdade que inicia com a busca da adequação lógica, se transforma e termina na busca do fundamento ontológico da essência do homem.

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Liberdade como essência da verdade (cf. cap. 4)

No trecho do nosso texto, já analisado anteriormente, na p. 18 (capítulo 2), se diz: ”Todo o comportamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se mantém referido àquilo que é manifesto enquanto tal. Somente isto que, assim, no sentido estrito da palavra está manifesto, foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental como ‘aquilo que está presente’ e já desde há muito tempo é chamado ‘ente’”.

De fato, os gregos chamavam de ente (ón, ontologia) a totalidade daquilo que se manifesta, se revela, se mostra, se torna visível nele mesmo. A totalidade daquilo que está à luz, ou que pode ser trazido à luz do dia.

O que se manifesta, e mostra, se revela como aquilo que é nele mesmo! Essa formulação, porém, soa abstrata. O que quer dizer essa formulação em concreto? A chave da questão está na formulação: como aquilo que é nele mesmo. Vamos refletir sobre esse ponto, à mão de um exemplo já batido e cafona.

Vejo uma rosa. O que é a rosa naquilo que ela é nela mesma? Nela mesma… Nela, em ela. Isto significa: a rosa é algo que está dentro dela mesma… Dentro de que? Dela mesma? Um absurdo incompreensível, jogo abstrato de palavras? Sim. Mas, isto acontece, porque as nossas palavras são incapazes de comunicar o que está manifesto diante dos nossos olhos.

Antes de prosseguir na nossa reflexão, é necessário nos conscientizarmos de um entrave que nos dificulta a compreensão. Esse entrave é a nossa pré-compreensão usual que funciona em nós ‘inconscientemente’, quando colocamos a pergunta como essa: o que é a rosa naquilo que ela é nela mesma?

Experimente formular essa pergunta e se examinar: como concebe a realidade, ao fazer essa pergunta? Não é assim que ao dizer “o que é a rosa” eu já tenho na mente um esquema pre-concebido da realidade como algo que está pronto na minha frente, algo-rosa que tem atrás da aparência sensível um núcleo chamado essência ou substância, núcleo que constitui aquilo que a rosa é em si? Da existência de uma tal pré-compreensão devemo-nos conscientizar e neutralizar assim a sua influência. Pois, essa pré-compreensão nos bitola o olhar de antemão, nos impede a visão livre daquilo que se manifesta ele mesmo.

Uma vez imune da influência dogmatizante dessa pré-compreensão, a primeira coisa que vemos é que a rosa se manifesta cada vez diferente, conforme a dimensão em que ela se revela a si mesma. A rosa é pão na dimensão da pobre vendedora de flores; filha na dimensão do jardineiro; aquela que cativou e pela qual foi cativado na dimensão do Pequeno Príncipe (Exupéry), Deus, na dimensão mística de um Angelus Silesius.

A rosa não é em si, já pronta, como coisa. Ela se manifesta cada vez diferente, se revela naquilo, i. é, na dimensão em que ela aparece cada vez diferente como ela mesma. Descobrir as diferenças dimensões, abrir e descortinar diversos horizontes, onde, a cuja luz, a cuja claridade, a rosa se manifesta na sua significância cada vez mais variada, límpida, sem confusão de dimensões, isto é fazer aparecer o ente, deixar ser o ente, fazer de algo um fenômeno, deixar o ente ser naquilo que ele pode ser.

Mas, se é assim, não existe a rosa em si? Não existe a rosa como aquilo que ela é em si mesma? Qual a rosa entre as diversas dimensões possíveis de rosa, a rosa por excelência? Onde ela se revela de maneira a mais evidente como ela mesma?

Essa pergunta não pode ser respondida de “fora”, de um modo geral, como que a partir de um mirante panorâmica. A resposta só é possível na intuição concreta, fáctica. Em que sentido? Como?

Imagine, p. ex., um São Francisco. Toda a luta pela conversão, dias de dúvida, angústia, orações, de busca do sentido da sua vida. Todo o processo de despojamento e transformação, até aquele momento, onde grita diante do bispo de Assis e do seu pai Pedro Bernardone: “Pai Nosso que estais nos céus…” etc. O jovem Francisco depois desse evento, ao vagar pelas ruas da cidade… Encontra entre os escombros de um muro em ruína uma rosa selvagem. Singela, alegre, abandonada à gratuidade da existência. Sem o para que, sem o por que, simplesmente ali como graça. Francisco pára diante dessa rosa e agradece. A rosa se lhe revela como a concentração viva, cristalização cósmica do sentido do universo, como a presença: “Abba, Pai!”. A rosa aqui, se revela como aquilo que ela é nela mesma na máxima concentração, na sua quinta essência, como o princípio, a fonte do sentido da vida, do ser. Passa ali um botânico. Ele diz para si: “Uma rosa, uma planta, uma coisa viva, orgânica, celular, composição química etc.”.

O que é mais rosa? A planta ou a concentração cósmica do sentido da vida? A rosa de São Francisco é mais rosa, talvez a rosa por excelência, porque contra mais intensamente o sentido do ser. Ali, a rosa se manifesta, se revela como ela mesma naquilo que ele é a partir de si como ela mesma: é o que é manifesto.

Essa rosa, no entanto, não deve ser interpretada como sinal, como indicação para algo que está além dela. Não é assim que tenho primeiro uma doutrina sobre a gratuidade do Amor do Pai e aplico esse conhecimento à rosa, chamando-a de um símbolo, de una figura de linguagem. Trata-se de uma intuição da realidade, trata-se de uma mira que se rasga no ser, onde rosa ela mesma nasce, surge, se revela como a presença viva e concreta do Amor gratuito do Pai, de tal sorte que posso dizer: a rosa é a dimensão graça, todo um mundo chamado graça. O ente nesse sentido coincide com a dimensão, e quando o ente coincide vivamente com a dimensão, se chama então coisa ela mesma. E a coisa ela mesma não é algo como objeto, mas a presença da intensidade do ser como mundo, i. é, como a abertura prévia oculta da profundidade humana. Esta profundidade humana da qual o ente recebe o seu sentido, é a “experiência de um fundamento original oculto do homem que se chama ‘ser-ai’, ou Da-sein (cf. p. 31). O fundo desse ser-aí é constituído de liberdade. E a liberdade se define como: “o que deixa-ser o ente” (p. 32). liberdade como deixar ser o ente significa: fidelidade, docilidade, doação ao “que é manifesto”, à abertura originária que se chama a-létheia.

Texto-reflexão

“Nós, os hodiernos e muitas gerações antes de nós, há muito tempo, esquecemos essa região (Bezirk) da alétheia (desvelamento) do ente, e no entanto constantemente a tomamos sob a nossa exigência. Nós, quiçá, pensamos que um ente se torna acessível, pelo fato de um eu como sujeito representar (sich vor-stellen) um objeto. Como se aqui não devesse já antes vigorar um ‘estar ali aberto (ein Offenes), em cuja abertura (imensidão) algo pode se tornar acessível como objeto para um sujeito e a própria acessibilidade ela mesma pode ser percorrida como experienciável! Os gregos, no entanto, sabiam, embora de modo suficientemente indeterminado, dessa alétheia (desvelamento), para dentro da qual o ente se torna presente e a qual, ao mesmo tempo, ele traz consigo. Apesar de tudo o que desde então jaz entre gregos e nós de interpretação metafísica, nós podemos nos recordar dessa região da alétheia (desvelamento) e a experienciar como aquilo, dentro do qual o nosso ser-homem se acha e mora. Um dispor-se atento à alétheia (desvelamento) pode acontecer, sem que nós sejamos e pensemos ainda uma vez de modo grego. Através do permanecer na região do desvelado, pertence o homem à firme região do que lhe é presente. Através da pertença a essa região, é ao mesmo tempo assumido o limite contra o não-presente. Aqui, portanto, o próprio (Self) do Homem é determinado através da delimitação para o “eu”, cada vez seu, em referência ao desvelado circundante. A pertença delimitada para dentro da região do desvelado perfaz o ser-próprio do homem. Através da delimitação, o homem se torna ego, não porém, através de uma des-limitação da maneira que o eu se representa (sich vorstellt) a si mesmo e se escancare como medida e ponto central de tudo que é representável. “Eu” é para os gregos o nome para o Homem que se dispõe para dentro dessa delimitação e assim é ele mesmo junto de si (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche, Volume II, Cap. V: O Nihilismo europeu, & A sentença de Protágoras; p. 138).

NB: Esse texto é dificílimo de ser compreendido. No entanto, para a coisa ela mesma da questão essencial da teoria de conhecimento (título da nossa disciplina desse ano) é de grande importância. Por isso, apesar de toda a imperfeição da tradução e  da exposição de nossas aulas, vamos tentar da melhor maneira possível aproximar-nos da coisa ela mesma insinuada nesse texto. Vamos deixar de lado aquela atitude pusilânime no estudo de filosofia que diz: isto é muito difícil para os “principiantes”. É que não existem principiantes no pensar; como não existem  “iniciantes” no respirar.

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