Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Anotações fenomenológicas acerca do feminino e masculino

08/03/2021

 

O que segue são anotações de pensamentos avulsos ao redor do tema feminino e masculino, proposto pelo encontro. Como o tema é muito vasto, tentei delimitar o âmbito do tema. E encontrei uma grande dificuldade em fazê-lo. Pois sob os adjetivos feminino e masculino se entrecruzam vários pontos de vistas cujos horizontes, por sua vez, não se encontram tematizados. No entanto, o próprio encontro parece dar uma dica para essa delimitação, pois os pontos de vista, sob cuja perspectiva se tenta mirar o tema são mencionados no circular enviado por frei Marcos, a saber: psicologia, filosofia e espiritualidade. Só que esses três “pontos de vista”, por sua vez, se nos apresentam, ao menos de imediato, também como entroncamentos de vários pontos de vista das interpretações assumidas acerca da psicologia, filosofia e espiritualidade. Na perplexidade diante dessa dificuldade tomei a liberdade de determinar de antemão como tratar o assunto. Assim, o como da abordagem do tema aqui é filosófico. E entendo Filosofia como Ontologia. E Otologia como Fenomenologia. Só que há tantas fenomenologias quantos há autores e escolas de fenomenologia. Por isso, determinamos a seguir, de modo sucinto e a grosso modo, o suficiente para o nosso uso nesse encontro, o que se entende aqui por método fenomenológico. Método fenomenológico não significa um instrumento de aquisição do saber, no qual se descreve um objeto de vários ângulos de vista para se ter uma captação na medida do possível integral do objeto. Por método entendemos simplesmente um processo no qual se vai, se caminha seguindo fios condutores que estão implícitos no horizonte, a partir e dentro do qual um objeto nos vem ao encontro. Dito de outro modo, sonda as pressuposições de um objeto dado. Esse modo de ir para dentro da pressuposição do que ali está como dado, se chama in-tuir, i. é, intus ire, ir para dentro de. É o que se expressa pelo slogan busca do sentido do ser do ente, ou ir de volta à coisa ela mesma. Assim, nessa exposição, não vamos dizer positivamente o que é feminino e masculino, mas tentar dizer como sondar o horizonte, a partir e dentro do qual algo como feminino e masculino se torna possível. Intuir significa também ver imediato. A imediatez do ver não se refere ao objeto, ao quê.. Diz respeito ao horizonte, a partir e dentro do qual o objeto me é dado, i. é, ao como. Horizonte não se pode ver como objeto. Horizonte só é como evidência ou transparência ou afinação do perceber. Esse caminhar e o seu encaminhamento, o método, busca intuir como a aberta, como a transparência para gênese, recolhimento e acabamento, o ente no seu ser. Por isso é ontologia. O ente, i.é, o vir á luz, à automanifestação do ente nele e dele mesmo se chama em grego phainómenon, por isso uma tal ontologia é fenomenologia.

Só que intuir assim de modo preciso e concreto exige muita habilidade e competência, o que eu não tenho de modo algum. Por isso, o que segue são apenas anotações e tentativas de colocar alguns pensamentos fugidios nesse sentido, para começarmos todos juntos a examinar o tema feminino e masculino.

  1. Na psicologia e na espiritualidade se distinguem os adjetivos feminino e masculino do fêmea e macho. Correspondentemente se distingue o genital do sexual. Genital indica o membro físico-corporal de reprodução animal do ser humano e sua “ambiência”; sexual não indica membro físico-corporal, mas sim um horizonte do ser humano que se chama de vários modos, como p. ex., anímico, psicológico, sensorial, sensível, erótico, sensual ou o que pertence à alma, no sentido da ordenação do ser próprio do pensamento medieval. Pergunta-se: o sexual diz respeito, de alguma forma, também à dimensão chamada espiritual? Os medievais perguntariam pois: os espíritos (os anjos) têm sexo? Se o tem, de que sexo é?
  2. Genital: acima dissemos que genital indica o membro físico-corporal de reprodução animal do ser humano e sua “ambiência”. Indica pois um objeto. Mas ao mesmo tempo em que indica um objeto bem determinado, indica esse objeto dentro e a partir do horizonte denominado biológico. Como horizonte genital não é objeto, mas sim um ocular, como tal não é visível, mas faz visível, toda uma paisagem da possibilidade de ser. Horizonte como o ocular ou a aberta de uma paisagem da possibilidade de ser considerado no vir à fala na sua plenitude concreta se chama dimensão.
  3. Na fenomenologia o que significa feminino e masculino depende de como o “algo” chamado “feminino” ou “masculino” se torna visível no seu ser. Tentemos ilustrar o que foi dito de modo muito abstrato e desengonçado com duas anedotas budista de mesmo teor.
  4. Anedotas
  • 1ª anedota: Dois monges budistas estavam à caminho na busca da iluminação. Um deles era mais idoso, outro bem novo. Depois de muito caminhar, chegaram a um rio, onde era necessário arregaçar as vestes quase até a cintura, para passar a vau. Uma moça viajante, muito bela, em quimono, estava em apuros, pois o encarregado de transportar as pessoas para a outra margem do rio, não viera trabalhar. O monge mais idoso se aproximou da jovem, disse-lhe “Com licença” e a carregou nos braços, atravessou o rio e a colocou na outra margem. E sem dizer nada prosseguiu o caminho com o seu companheiro mais jovem. Este, a caminhar atrás do outro monge mais idoso murmurava: “Onde se viu, no caminho da iluminação, abraçar uma moça, ele que deveria ser sóbrio e casto, já maduro na sua experiência da busca e realização?” Ao ouvir atrás de si a murmuração, disse o monge idoso: “A caminho da iluminação, há alguém que ainda está abraçado a uma bela e atraente jovem mulher”.
  • 2ª anedota: Era uma vez uma velha viúva rica, budista, leiga, muito piedosa, fervorosa na busca da iluminação. Desejava ter tido um filho monge, mas nenhum dos filhos seguiu o caminho da perfeita iluminação. Decidiu adotar um monge. Construiu um pequeno eremitério, num lugar silencioso e retirado, cercado de uma belíssima paisagem, longe dos burburinhos mundanos. Foi ao mosteiro mais próximo e ofereceu ao abade o eremitério, e lhe prometeu cuidar do sustento e do bem-estar do monge que quisesse doar-se full time à meditação, e assim aplicar todas as suas forças somente à aquisição da iluminação. E recebeu do abade um monge, de grande dedicação à contemplação, que meditava sem cessar, dia e noite, sem nenhum apego às coisas mundanas, sem nenhuma distração. A velha viúva estava satisfeita. Mas, depois de um ano, quis ver o progresso do seu monge de adoção. Chamou uma empregada, belíssima e ansiosa por encontrar um marido e lhe deu a seguinte tarefa: “Minha filha, o monge que mora naquele eremitério, seria um bom partido para ti. Ele é bom e belo, cheio de saúde, é um homem sério e reto. Vai seduzi-lo, usa de todos os teus recursos femininos para que ele se apaixone por ti. Se o conseguires, ele que é meu monge adotado, é teu”. A moça que já há muito tempo sentia uma grande atração e admiração pelo jovem monge, usou de todos os recursos para atraí-lo a si. Depois de uma semana de tentativa, achegou-se à velha mulher, em prantos, e sem nada dizer mostrou-lhe um pequeno bilhete, escrito pelo monge. Ali estava uma haikai, uma pequena poesia, escrita em belíssimas letras chinesas, mais ou menos de seguinte teor: Sou uma grande rocha, firme, impávida e fria, a pedra de iluminação. O que quer esse raquítico cipozinho a se enroscar em mim, com seus fiapos de tentáculos, carentes e sem consistência?” Ao ler essa poesia, a velha se encolerizou, e disse numa voz surda, baixinha, mas cheia de determinação: “Alimentei por um ano um charlatão preguiçoso, travestido de um monge!” Incendiou o eremitério, e expulsou o monge a golpe de caçarola.
  1. Por que essas duas anedotas que na realidade nada dizem do feminino e do masculino? Mas trata do modo de ser de dois homens a respeito de uma jovem mulher em apuros e de duas mulheres a respeito de um monge “exemplar” na busca da iluminação. O nosso interesse aqui, a seguir, parece ter abandonado o tema feminino e masculino, para se desviar num blá-blá que tenta ilustrar de que se trata, quando falamos de dimensão. Em que sentido um tal desvio pode, se é que pode, contribuir para o tema feminino e masculino, vai ou não aparecer no fim. A seguir alguns pensamentos a modo de um comentário das duas anedotas.
  2. Comentário:

Da 1ª anedota: O monge mais velho carregou uma moça muito bonita em apuros para transportá-la à outra margem do rio. Essa meta parece tê-lo deixado indiferente para todos os outros aspectos que não os desse fim, dessa meta ou, diríamos hoje melhor, desse objetivo. Ele, como velho, deve ter sentido o peso dela; como varão deve ter sentido o contato corpo a corpo com a carne jovem da mulher; deve ter percebido afeto de alívio, de um certo constrangimento, mistura de receio, pudor e ao mesmo tempo de segurança vindo da moça, e ao mesmo tempo do sentimento de afeição, cuidado que vem dele como homem de mais idade, diante de uma pessoa frágil viva, bela e indefesa como criança; e quem sabe, ao mesmo tempo, até mesmo algo como um ímpeto de fazê-la sua como mulher. Mas todas essas afetações ou afeições, se é que elas tenham vindo à tona, não tomavam conta do monge mais idoso como motivo, como móvel principal da sua ação, mas estavam todas elas como que subsumidas sob a dominância da meta de ajudar a uma pessoa em apuros. Por isso, enquanto estava transportando a moça, o monge estava abraçado à jovem, e isso em vários sentidos, mas logo que alcançou a meta, não mais estava grudado nela. Ou até nunca estava grudado nela, a não ser somente como a serviço da função da meta. Aqui perguntemos e deixemos a pergunta aberta: mas tudo isso não aconteceu aos monges à caminho da iluminação? A iluminação não era pois a meta final? E transportar a moça para a outra margem do rio não é uma das etapas para alcançar a meta final? É por isso que o monge mais novo murmurava: “Onde se viu, a caminho da iluminação…”. O monge mais novo não abraçou fisicamente a moça, talvez nem sequer tenha sentido tudo quanto acima foi possivelmente atribuído ao monge mais velho. Pelo contrário, estava estranhando, para não dizer, decepcionado, escandalizado ou indignado com o comportamento do mais velho.

Este, porém, afirma que o mais moço está ainda abraçado à moça, e isso devido à compreensão que o mais moço tem do abraço efetuado fisicamente pelo monge mais velho.

Da 2ª anedota: Por que a velha viúva considera a resposta do monge à moça como uma charlatanaria no caminho da iluminação? O monge aqui não está dia e noite atrelado à busca da iluminação, à meta da sua existência monacal, de tal modo que não há nele nenhuma distração, nem apego às coisas que não pertencem à busca da iluminação? Não é assim que o monge da 2ª anedota, está no desapego, na liberdade do monge mais velho da 1ª anedota que considera tudo quanto pode se referir à moça apenas sob o aspecto da meta da sua ação? Deixemos aqui por enquanto ainda suspensas todas essas interrogações, para a seguir adiantar através de tudo isso que dissemos o seguinte:

  1. Toda a tendência a uma meta, a um objetivo, se chama intenção. Quando examinamos uma ação humana ou um comportamento humano em referência à sua responsabilidade, à sua validez moral, dizemos: depende da sua intenção. Assim, p. ex., se a ação de abraçar a moça à beira do rio foi adequada à busca da iluminação, depende da intenção com a qual o monge mais velho abraçou a moça. O que significa abraçar uma moça, assim em si e como tal não significa ainda nada, se não examinarmos a intenção de quem abraça, a meta, o objetivo com o qual fez isso ou aquilo. O abraço aqui recebe o seu sentido da meta, da intenção, para onde se tende.

Horizonte físico-material

Horizonte sensorial

Horizonte sensual

Horizonte afetivo-sensível

Horizonte afetivo-sensível-de amizade

Horizonte afetivo-sensível esponsal

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