I
Usualmente não é possível falar do masculino e feminino sem se referir de algum modo ao sexo e à sexualidade. Na espiritualidade cristã sexo e sexualidade se referem à união de corpo, alma e espírito, no amor do encontro entre dois seres humanos, entre homem e mulher, de cuja união podem e devem nascer e renascer três novos seres humanos, a saber pai, mãe e filho enquanto vida humana a partir e dentro da existência cristã. Trata-se, portanto de uma totalidade toda própria, com sua lógica própria, ou com a sua razão de ser, cuja imensidão, profundidade e originariedade abrange, toca e atinge o âmago da profundidade a mais íntima do ser humano, à pessoa[1], que na linguagem usual da psicologia parece receber o nome de Self, Selbst (Jung). O que a mundividência cristã, usando indevidamente a filosofia, explica como Deus transcendente da metafísica i. é, para além do ser humano, de alguma forma está referido, embora de um modo muito deficiente e defasado, à experiência de fundo do ser humano, onde homem e mulher, em sendo pessoa é acolhida e recepção cordial e grata do toque, da diligência e do cuidado de uma transcendência radicalmente outra, na ternura e vigor de um encontro também radicalmente outro. Radicalmente outro quer dizer tão inteiramente identico nele mesmo que não pode ser percebido, explicado, a não ser nele esmo como ele mesmo A esse fundo do ser humano acima de dominado Self, Selbst na psicologia e na mundividencia da espiritualidade cristã de pessoa, a Grande Tradição do Pensamento Ocidental chamou de Psiqué, Lógos, Espírito, Razão, Liberdade e Ser[2]. Nesse sentido falar do masculino e feminino é como tocar na ponta de um ice-berg, cujo fundo submerso na sua totalidade é o mistério da essência do Homem. A espiritualidade da mundividência cristã pretende falar sobre o masculino e o feminino a partir e dentro da dimensão da pessoa acima insinuada.
Hoje, na formação da vida religiosa consagrada, nos seus cursos, usa-se muito a psicologia. Psicologia pertence a uma totalidade de outro cunho denominada Ciências Positivas, quer na tendência das ciências naturais, quer na das ciências humanas. Um outro saber que a espiritualidade na sua formação usa e lida nos seus cursos é Filosofia (Teologia)[3] e Ciências, principalmente da Sociologia e Historiografia. O nosso encontro é encontro de pessoas aficionadas à Formação da Vida Religiosa Consagrada, à Psicologia, à Filosofia, maioria reiligiosos e religiosas, que fizeram votos religiosos do celibato; outras pessoas casadas ou que buscam mais tarde viver a vida do matrimônio. Todos, unidos no inter-esse de nos adentrarmos no tema afetividade e sexualidade. Mas cada qual a partir e dentro de um determinado âmbito próprio de abordagem e tematização do assunto afetividade e sexualidade. Que sentido tem esse encontro? O que ele quer? Encontro é sempre um entrechoque, confronto da sua propria identidade no toque da difereça do outro que é a própria identidade dele mesmo. Nesse encontro o que poderia e deveria vir aos poucos às claras é o fundo de cada identidade, a partir e dentro da qual espiritualidade, psicologia e filosofia fala sobre, no nosso caso, afetividade e sexualidade. Assim nesse nosso encontro a condução da exposição, discussão e reflexões é a contínua e incansável preocupação e seu cuidado em ficar de olho, no fundo da sua própria posição, se escutar o seu fundo, e ao mesmos tempo escutar o outro para divisar tanto em si como no outro pessuposição fundamental da origem, donde abordamos um tema na questão, i.é, na busca da verdade.
O que segue sob o título de Anotações espirituais são pensamentos avulsos a partir da espiritualidade cristã e no nosso caso franciscana, ao redor do tema masculino e feminino, considerado como tema de uma questão, i.é, de uma busca da verdade da compreensão do que seja sexualidade a partir e dentro da espiritualidade. Como o tempo do nosso encontro é bem determinado e o tema de grande complexidade, esses pensamentos avulsos foram como que tirados e mobilizados ao redor de umas considerações de um livro intitulado Alma Feminina, Maturação e Crescimento, da Psicóloga e Psicoterapeuta japonesa Tamatani Naomi[4].
II
Citando várias vezes a Eric Neumann,[5] Tamatani coloca uma grande questão da maturação e do crescimento da alma feminina, a qual entendi mais ou menos da seguinte maneira: o ser feminino, no íntimo profundo do âmago do seu ser, por ser a mulher, fonte receptora e curadora da vida, está intimamente exposta ao toque inominável do abismo da possibilidade insondável do ser. Assim, seu relacionamento tanto com a mãe como com o pai, possui uma força elementar que a impregna desde criança, principalmente com a força ctônica da Vida. Assim no processo da maturação e do crescimento da menina, para a adolescência e da adolescência para a mulher madura enquanto esposa e mãe, a figura masculina do pai é de grande importância, para que ela se levante da impregnância ctônica da mãe, enquanto criança-filha dócil e submissa a ela, e adentre o crescimento de uma autonomia assumida da sua feminidade como esposa e mãe. Pai aqui não está indicando o pai empírico, mas a grande experiência de fundo do Grande Pai, segundo a expressão de Neumann “a invasão do Uróboro[6] paterno”, a experiência abissal da imensidão e profundidade do vigor elementar que está no fundo de toda e qualquer paternidade. Nesse nível[7] da invasão urobórica do Grande Pai, o feminino é preso do masculino e experimenta[8] com todo corpo e toda alma, um abalo emocional profundo. E na experiência desse abalo emocional do fundo do seu ser, pode sair do envolvimento ensimesmado no abrigo ctônio da proteção materna elementar e se libertar para um outro nível da liberação de si mesma. Aqui o feminino se liga, é “aprisionado”[9] na amálgama, na união da divindade e alma no seu esplendor, fascínio e grandeza e assim experimentar no seu próprio ser a profundidade abissal do mistério do ser mulher. Poder-se-ia chamar tal experiência de experiência mística ou mítica. Por causa da ternura e vigor de tal experiência que vem do fundo do ser da mulher no toque do uróboro paterno, a mulher pode se transformar no feminino que pode assimilar as vicissitudes do ser esposa e mãe. Se não tiver tal experiência que sacuda a partir da base o corpo e a alma, o feminino não consegue sair da participação identificadora com a mãe protetora, que aprisiona a filha no aconchego alienante da prisão do feminino no ninho do ensimesmamento infantil.
No Mito, segundo Tamatani, esse nível é expresso p.ex. no relacionamento da virgem com a divindade, e é nesse nível que surge a concepção da virgem por uma divindade e do seu parto virginal. Essa experiência é uma experiência interior, do fundo do ser humano e não possui muita referência à realidade físico-empírico exterior. Não somente isso, essa experiência, como já foi dito anteriormente, nem sequer sobre à consciência da mulher. Precisamente por não subir à consciência, mas vivida sadiamente em sendo que se processa a grande transformação, maturação e crescimento do feminino. E segundo Tamatani, no momento em que essa experiência é conscientizada, se torna necessária um apoio, uma estrutura sustentadora da religião ou da arte. Se lhe falta tal sustentação, para o feminino parece não resta outra saída do que perturbação psíquica em neuroses e psicoses. Pois ter e manter se sob a pressão elementar de tal invasão do vigor urobórico do Grande Pai sem nenhuma proteção de uma estruturação sacro-divina é ser engolido por essa força elementar do fundo do ser humano.
III
Comentemos brevemente esses pensamentos de Tamatani. Essa colocação ao redor do masculino e feminino é bem diferente à de uma colocação que a Psicologia de Behavior ou da Psicologia Freudinana poderia fazer. Pois Tamatani parece estar no círculo da Psicologia Analítica de Jung, Neumann, e da fenomenologia da religião de um Kerény etc. Não se trata aqui de perguntar quem está certo e quem errado.Antes em que nível da questão coloca a mira da abordagem do tema. Interessante observar que aqui ao falar da conceição e do parto virginal, logo nos vem à mente o dogma católico-cristão da Conceição e do Nascimento de Jesus Cristo, Filho de Deus, da Virgem Maria. Tamatani porém está somente falando da maturação e crescimento da alma feminina, na maneira como a Psicologia Analítica de Jung e aqui de Neumann visa, aborda o tema masculino e feminino. Ela não diz,nem insinua que o dogma da mundividência cristã católica é uma sublimação, uma racionalização, superstição, ou fato real físico-biológico. Ela permanece límpida no horizonte a partir e dentro do qual ela emposta a sua investigação. No entanto, a espiritualidade da mundividência católico-cristã a partir da sua experiência percebe que a psicóloga, independentemente se é cristã, budista ou atéia coloca a questão do masculino e feminino num nível de questão em que ela, a espiritualidade também poderia ou deveria colocar, mas a partir e dentro do seu horizonte próprio. Se, porém, observarmos atentamente a colocação da psicóloga, podemos p. ex. observar que ao usar referência à religião e à arte, ou ela usa a compreensão corrente da religião e da arte, ou de alguma forma interpreta religião e arte a partir e dentro da sua psicologia. P. ex. podemos observar que coloca na mesma classificação as religiões, também a mundividência cristã como religião; e coloca os resultados da fenomenologia das religiões de Kerény, relacionando os com p.ex. os dogmas e os ensinamentos do cristianismo. Quem com acribia e rigor tenta distinguir e diferenciar esses aspectos todos, sondando as diferenças dos horizontes, a partir e dentro dos quais essas impostações miram e colocam as questões ao redor do masculino e feminino é a Filosofia. Sua tarefa é entre outras a de sondar o sentido do ser que opera no fundo de cada horizonte, a partir e dentro do qual as diferentes impostações colocam a questão, a saber, a sua busca.
IV
No confronto entre espiritualidade, filosofia e psicologia, a espiritualidade teria pois a tarefa de se aclarar cada vez mais no fundo, o mais profundo donde ela haure a claridade das suas pressuposições principais. Falando-se de modo bastante exteriorizado, se pode dizer: essas pressuposições principais se chamam doutrinas que se baseiam em dogmas, que haurem sentido da sua colocação dos mistérios da Fé.[10] E os mistérios da Fé são o vir à fala da Revelação, feito por e sobre o Deus anunciado por Jesus Cristo, por esse Deus encarnado, Crucificado.
Falando-se de modo mais para dentro: a Espiritualidade cristã vive, i. é, sente, compreende, quer, sabe todas as vicissitudes da sua história, portanto o universo humano e o universo não-humano, a saber o universo cósmico e o divino, em todas as escalações do modo de conhecer, amar e ser, nas suas excelências e decadências, a partir e dentro da Fé do e no Cristo Crucificado, Revelação do Pai de ternura e vigor de Misericórdia. Essa vida cristã se resume no Grande Mandamento do Amor e a sua consumação no Novo Mandamento da Última ceia. Vida aqui é existência sui generis, que recebe o nome de pessoa, cujo ser a Grande Tradição do Cristianismo chamou de humildade. O feminino e o masculino, sexo e sexualidade na espiritualidade cristã devem ser compreendidos a partir e dentro do a priori dessa positividade. A a-prioridade aqui deve ser compreendida como o absoluto e radical aposteridade do que se denomina o Mistério da Encarnação, onde toda e qualquer transcendentalidade é continuamente, sempre de novo e sempre nova reconduzida à empiria da positividade de um Deus feito História como a existência finita do divino crucificado na humildade da Pobreza agraciada de e em Jesus Cristo. Dentro dessa paisagem, masculino, feminino, sexo e sexualidade se concretizam em dois modos de ser, não complementares, mas integral-diferenciais denominado matrimônio e celibato cristão. A essa totalidade histórico-existencial sui generis, a esse uni-verso cristão, o grande pensador e místico medieval Mestre Eckhart qualifica com o adjetivo abgeschieden, que usualmente se traduz como desprendido, no sentido de ab-soluto, i. é, livre e solto nele mesmo, na sua plena diferença, i. é, na solidão per-feita da sua identidade, na plenitude do a-priori concreto. Dito com outras palavras esse mundo cristão só pode ser entendido e esclarecido nele mesmo a partir de si e nele mesmo, a tal ponto de não poder ser reduzido a outras perspectivas que não sejam perspectivas da sua própria paisagem, aberta à imensidão, profundidade e originariedade abissal dele mesmo, para dentro de si. A plenitude dessa inserção para a interioridade de si mesmo, como fidelidade cordial e grata do mistério da Encarnação à Finitude do seu Deus Encarnado é a abertura de acolhida grata de tudo quanto parece não pertencer à identidade integral-diferencial do seu ser cristão, até mesmo, ou principalmente acolhida do Mistério da iniquidade: Cristo Crucificado.
Toda e qualquer explicação que não venha da Fé e nela permanece dá uma imagem destorcida, desfocada do masculino e feminino, do sexo e sexualidade humana.
Não é possível aprofundarmos essa positividade cristã, pois o nosso tempo é muito pouco, e desviaria do nosso tema.
Aqui apenas mencionaremos alguns pontos chaves que no decurso do nosso encontro poderíamos sempre de novo aprofundar, a partir da psicologia e filosofia, pois os pontos a seguir mencionados são de grande interesse para a compreensão do apriori cristão:
- Vida cristã é pessoal e deve ser entendida na direção da compreensão da vida como existência histórica.
- Pessoa e pessoal não significa sujeito e subjetivo, mas sim uni-versal na singularidade da unicidade do Seguimento de Jesus Cristo Crucificado. Aqui não há nem o particular, nem o geral. Por isso não há classificação nem padronização.
- Torna-se assim mais aguda e difícil, a questão do relacionamento entre espiritualidade, psicologia e filosofia.
- Mas talvez, não é eliminando a dificuldade dessa questão que nos abrimos à essa questão. Pois o confronto das diferenças une mais do que a igualdade das posições.
- Mas se é assim como acima foi exposto, que sentido tem nos reunirmos nesse encontro para um confronto entre espiritualidade, psicologia e filosofia? Aqui é bom observar que embora haja diferença bem profunda entre ciências positivas e a filosofia, ciências e filosofia pertencem juntas, num relacionamento da questão de fundamentação. Mas parece haver uma diferença intransponível entre espiritualidade cristã e filosofia-ciências. Que função teria filosofia em relação à espiritualidade?
- Aqui surge a questão do relacionamento entre Filosofia e Fé (Teologia Þ espiritualidade). Se surgir aqui debates, tentar orientar na direção do texto de Martin Heidegger intitulado Fenomenologia e Teologia:
Como deve ser inter-relacionamento entre mundo e mundo. Cf. ecos na percussão e repercussão. Monadologia. O que significa no caso da Fé: Fé e Ser é o mesmo. Paralelo a isso: Pensar e Ser é o mesmo.
- Preparar os dados como p.ex. humildade, submissão, culpa e pecado, obediência que vêm da mundividência “cristã” pouco transparente para consigo mesma, para poder interrogá-los na sua essência de fundo, e trazer à luz os existenciais do Da-sein cristão. E depois de tudo isso mostrar que na união corpo-alma-espírito entre masculino e feminino como a plenitude do sexo e sexualidade está implícito o aceno à compreensão conasciva do que seja Amor de Deus (genitivo subjetivo e objetivo):Cfr. Cântico dos Cânticos.B