Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A virgindade  consagrada: o problema do celibato?

16/04/2021

 

(Grande Sinal, XXVIII, 1974, 323-339)

O título A virgindade consagrada: o problema do celibato? indica tão-somente a perplexidade dessa reflexão. Pois, a reflexão não sabe por que e o que interrogar, ao se colocar o problema do celiba­to em referência à virgindade consagrada.

As considerações mal formuladas que seguem não passam de articulações imprecisas e fragmentárias dessa perplexidade: em que consiste afinal a coisa, isto é, a causa da virgindade consagrada que se coloca como o problema do celibato?

1 [Primeira reflexão]

  1. Perguntamos, hoje, o celibato tem ainda sentido ou não? Há razões prós e contras. Mas o que se entende por celibato?

O celibato do sacerdote secular, o celibato do sacerdote religioso, do religioso leigo, da religiosa. O celibato sob o aspecto jurídico, sob o aspecto sociológico, psicológico, bio­lógico, fisiológico, religioso, antropológico, teológico, peda­gógico, humano, místico etc. Em todas essas colocações, a palavra celibato diz sempre a mesma coisa?

  1. O sujeito do celibato são sacerdotes seculares e sacer­dotes religiosos, religiosos leigos e religiosas. Um grupo de indivíduos juridicamente bem determinado. O indivíduo que pertence a esse grupo tem uma coisa que os outros não tem: o celibato. O que é essa coisa especial que o indivíduo celibatário tem? Se é ele, tem a peculiaridade de não ter uma mulher como esposa. Se é ela, a peculiaridade de não ter um homem como marido. Tem, portanto, o característico de não contrair matrimônio.

O que significa, porém, mais estritamente não contrair matrimônio? Significa não ter relação sexual corporal com o indivíduo de sexo oposto, juridicamente sancionada sob o nome de matrimônio. O núcleo dessa coisa chamada ce­libato pode ser, pois, reduzido ao não ter relação sexual corporal com o outro sexo. O celibato é, portanto, a absten­ção da relação sexual corporal com o outro sexo. Mas só isso não basta para receber o nome de celibato. A absten­ção deve ser sancionada, assegurada juridicamente por uma sociedade, no nosso caso, pela Igreja.

  1. Celibato é a abstenção do sexo, sancionada pela Igre­ja. Uma definição unilateral, simplória, material. O celi­bato não é só isso. É muito mais. É um todo complexo de aspectos e implicações.

Mas o que é essa coisa chamada “um todo complexo de aspectos e implicações”? O aspecto psicológico, sociológico, fisiológico, jurídico, religioso do celibato; a implicação psi­cológica, sociológica, fisiológica, jurídica, religiosa do celi­bato. O celibato, essa coisa que tem todos esses aspectos e todas essas implicações: o que é? O que é o subiectum, isto é, aquilo que está debaixo de todos os aspectos, de todas as implicações, como o núcleo comum a todos eles? Não é a abstenção da relação sexual corporal com o outro sexo? A sanção jurídica, acima mencionada, já é um aspecto.

Portanto, o que constitui o núcleo material objetivo do celibato é o estado físico, proveniente da abstenção da re­lação sexual corporal com o outro sexo: a virgindade fí­sica. Os diversos aspectos são pontos de vista, diferentes enfoques, interpretações, a partir e dentro dos quais con­sideramos esse fato material. As implicações são as possi­bilidades implícitas nesses pontos de vista.

  1. Mas por que dizer o estado físico proveniente da abs­tenção da relação sexual corporal com o outro sexo? O acréscimo “com o outro sexo” não indica que o fato mate­rial chamado virgindade física já é o produto de um pon­to de vista, de uma interpretação? Sob o aspecto meramen­te físico material, que diferença há entre a abstenção da relação homossexual ou da heterossexual ou mesmo das di­versas formas corporais de auto-satisfação e das sensações corporais? Nessa linha de consideração, o que resta por fim como o puro fato material objetivo do celibato é ape­nas … o quê? O corpo físico casto? Mas “o corpo físico cas­to” já não é a expressão de um ponto de vista? Sob o as­pecto meramente físico material o corpo não são molé­culas e átomos ou coisa semelhante? Podemos dizer por acaso que a molécula é casta? Mas também as moléculas e os átomos não são objetos do ponto de vista da física?
  2. Dissemos acima “sob o aspecto meramente físico ma­terial”. Isto significa que o assim chamado fato meramen­te físico material já é um aspecto de um ponto de vista, uma interpretação. O que é pois “meramente físico material”?
  3. Perguntamos, hoje, o celibato tem ainda sentido ou não? Respondemos: sim ou não. Mas antes de responder à pergunta, na própria colocação da pergunta já posiciona­mos a afirmação: o celibato é uma coisa. Mas não dizemos que o celibato é mais do que uma coisa, um todo com­plexo de aspectos e implicações? A que se referem os as­pectos e as implicações? A que sobrevém esse “mais” acres­centado? Ao perguntar, ao responder, ao afirmar, ao negar, quando usamos o substantivo celibato como o sujeito da sentença, não supomos já de antemão um núcleo de atri­buições, a que chamamos de coisa? Essa coisa é o corpo físico, ao qual atribuímos a abstenção sexual? Não, é ante­rior, pois lhe atribuímos a corporeidade física. O que é en­tão a coisa, o algo, o quid, o objeto, o ponto básico de todas as atribuições dos aspectos e dos pontos de vistas?

Quando dizemos, o celibato sob o aspecto sociológico, fisiológico, psicológico, religioso, teológico etc., pressupo­mos como a base e o ponto de convergência de todos os aspectos, esse enigmático algo, a coisa. Mas o próprio algo, a coisa é também aspecto: o aspecto dos aspec­tos. Estamos assim na situação do macaco que começou a descascar a cebola à busca do caroço e descobriu perplexo que o caroço não passa de última casca…

  1. O que é pois o celibato? O celibato são seus aspectos. O algo, o quê substantivo que representa a objetividade do celibato é também um aspecto. Donde provêm os aspec­tos? Do ponto de vista. O ponto de vista depende da posi­ção. Ser-posição é ser sujeito do ponto de vista, a partir do qual os entes se apresentam como objetos do enfoque.

O que é celibato depende da posição do sujeito. O celi­bato recebe o seu sentido determinado conforme o enfoque da posição do sujeito. Por isso perguntar o que é o celibato equivale a perguntar pela posição do sujeito, a partir da qual o celibato recebe a determinação do seu ser.

  1. Portanto, o problema do celibato é subjetivo?

Pro-blema vem do verbo grego probâllein. A partícula pro do probâllein  significa: diante de, para frente de; mas significa também: a patência, a abertura da possibilidade de manifestação. Ballein  significa: lançar, jogar; mas também acertar, ferir.

Probâllein é pois o movimento que no próprio lance do movimento se atinge a si mesmo como jogada perfeita e ao se atingir, se patenteia na possibilidade do seu vigor. Não se atingir, isto é, errar de e a si mesmo é um modo deficiente do probâllein.

Usualmente imaginamos a posição do sujeito como um ponto fixo que constitui a substância do sujeito. Esse sujei­to lança o projeto. É uso representar o projeto como uma coisa em si e denominá-lo de objeto. No entanto, esse es­quema estático é fixação abstrata do movimento do pro­bâliein. Ele só é a partir da dinâmica do probâllein. Assim, ter ou lançar algo como objeto diante de si e ter-se como o sujeito e o agente do projeto já são produtos da estrutu­ração do probâllein  que patenteia a possibilidade do vigor dessa mesma estruturação.

O vigor que constitui a identidade do movimento de es­truturação se chama: possibilidade. A patência para e por o envio desse vigor se chama: existência. O problema do celi­bato é possibilidade da existência. O celibato é existencial.

  1. O termo existencial é geralmente mal compreendido. Existencial não significa: subjetivo, apenas individual, pri­vativo, vivencial, mas sim: essencial. Essencial é o que per­faz o vigor de identidade que recolhe e instaura os pluriformes pro-blemas do viver numa unidade interior. Essa uni­dade interior é a abertura, o ex que fundamenta as diferen­tes posições da vida, inclusive o próprio ser da posição co­mo subjetividade e objetividade. O que dá o sentido às po­sições, às coisas do nosso fazer, do nosso representar, do nosso sentir é essa abertura. Se entendo essa abertura co­mo subiectum, isto é, como a doação fundante e funda­mental da possibilidade do sentido dos entes em seu todo, então o termo subjetivo perde a sua conotação do indivi­dual, do privativo para indicar uma questão da identidade essencial que está para além ou melhor para aquém do individual e social, do subjetivo e objetivo, do vivencial e teorético. Assim, o existencial se dá no probâllein constitu­tivo da posição do sujeito, a partir da qual se articulam os enfoques, os aspectos e as perspectivas.
  2. Por isso, dizer que o celibato é isso ou aquilo nada diz. O que importa é acolher a referência da abertura exis­tencial, a partir da qual o celibato é colhido na sua identi­dade originária. O problema do celibato é o questionamen­to acerca da identidade essencial do nosso viver.
  3. Perguntar pelo sentido do celibato é perguntar pela identidade essencial do nosso viver. Perguntar pela identi­dade essencial do nosso viver é deixar-nos questionar pelo sentido do ser que, ao se enviar no nosso viver, con­cresce e se consuma como obra da vida, constituindo a nossa identidade essencial como história. Na consumação da nossa identidade como obra, o sentido do ser se re­trai como silêncio do mistério da liberdade.
  4. Portanto: perguntar pelo sentido do celibato é per­guntar pelo sentido do ser que per-faz e envia o sentido do subiectum da pergunta pelo sentido do celibato.

O celibato não é de antemão como isso ou aquilo. Ele é na medida da concreção do sentido do ser que se historia como obra na consumação do viver celibatário. Por isso o problema do celibato não pode ser colocado como um problema sobre uma coisa existente em si, como um pro­blema comum, objetivo. No entanto dizer que o celibato não se deixa colocar como um problema objetivo e co­mum não equivale a dizer que o problema do celibato é uma questão individual, subjetiva, privativa. Do fato de uma realidade não ser objetiva e comum não se conclui necessariamente que ela seja individual, subje­tiva e privativa. O comum e o individual, o objetivo e o subjetivo são correlativos. Por isso podem ser opos­tos. O que, porém, instaura a identidade do binômio da correlação, o que possibilita a oposição, transcende os ter­mos da correlação. A recusa do celibato em se deixar colo­car como um problema objetivo e comum indica a trans­cendência da sua colocação. Essa transcendência é a pro­priedade do fenômeno humano, a existencialidade. Como possibilidade existencial o celibato é cada vez na sua con­creção como totalidade, anterior à fixação seja ela objeti­va ou subjetiva, comum ou individual. A totalidade existen­cial não é soma, organização ou ajuntamento de partes. Não é jogo correlativo de funções dentro de um sistema. Não é também um todo concreto individualizado. É antes o lance originário do movimento da história no envio do mistério do ser que, ao se constituir como obra, se abre e se conserva como a possibilidade das totalidades. Esse movimento de abertura das totalidades é propriamente o universal.

  1. Celibato se refere ao latim caelebs. Caelebs se compõe de cae e lebs. O termo cae deriva do indogermânico qaivelo que no indu antigo é kévalah. Significa: só, pró­prio, completo, íntegro, todo e inteiriço, per-feito. O ter­mo lebs vem do indogermânico libh e significa: vivendo, vivente. A tendência originária da palavra caelebs parece pois dizer: caelebs é a existência como obra per-feita da vida, o perfectum do viver: o satisfazer-se, o regozijar-se da vida como a propriedade do envio a partir de e para a pura nascividade do ser como viver consumado. Caelebs significa: a solidão perfeita da vida.
  2. No século VIII, o pintor chinês Wu Tao-tseu terminou a sua derradeira obra: um afresco pintado no muro do pa­lácio imperial. Trabalhou sem pressa, com amor e dedica­ção, na solidão, ocultando a sua obra. Ao terminar, Wu Tao-tseu chamou o imperador e tirou o véu que cobria o afresco. Diante do imperador se descortinou uma paisagem maravilhosa: montanhas, florestas, imenso céu aberto se­meado de nuvens e pássaros e o vale dos mortais.

Wu Tao-tseu disse ao monarca: “Numa caverna ali nas montanhas mora o deus da paisagem. Vinde comigo, eu vos conduzirei. Vamos ao seu encontro, ao encontro da paisagem das paisagens”. E ba­teu as palmas. Uma gruta se abriu e o artesão entrou nela. Voltou-se para o imperador e lhe acenou. Este quis dizer uma palavra e segui-lo. Mas, de repente, a paisagem e o artista desapareceram. E diante do monarca estava a pa­rede fria, uniforme e vazia, do muro imperial.

O deus da paisagem é o envio da identidade da obra. Abrir-se como montanhas, florestas, céu, nuvens, pássaros e vale, diferenciar-se a partir de e para o envio da identida­de como a paisagem per-feita é existência: o viver consu­mado na solidão perfeita do envio da identidade. A via da identidade perfeita é história. Ela só é na concreção. De fora, a partir da determinação objetiva, a partir das coisas montanhas, florestas, céu, nuvens, pássaros e vale, não há o acesso ao deus da paisagem nem à paisagem das mon­tanhas, das florestas, do céu, das nuvens, dos pássaros e do vale dos mortais. Pois, sem a viagem existencial como concreção da obra na identidade da diferença e na dife­rença da identidade, só há o muro frio, uniforme e vazio do saber imperialista da objetividade.

  1. O esquecimento do envio da identidade a partir da qual o celibato recebe o seu sentido e para a qual ele se destina como a obra da solidão perfeita não nos tolhe o olhar para acolher a diferença da identidade do celibato?

2 [Segunda reflexão]

  1. No cristianismo a perfeição da vida se chama o amor de Deus do Evangelho. O país do amor de Deus do Evan­gelho é o reino dos céus. O celibato cristão é o não-matri­mônio por causa do reino dos céus. O amor de Deus do Evangelho, o vigor instaurante do reino dos céus, no entan­to, é a jovialidade da cruz. A identidade do celibato cris­tão está pois na jovialidade da cruz.
  2. Existe uma velha legenda medieval que fala da jovia­lidade da cruz. A leitura do texto e o seu comentário são apenas sugestões para nos deixarmos questionar pela cau­sa do celibato acerca do problema do celibato.
  3. Do aceno de São Francisco de Assis a Frei Leão que a perfeita alegria somente se encontra na cruz.

Vindo uma vez São Francisco de Perusa para Santa Maria dos Anjos com Frei Leão, em tempo de inverno, e o grandíssimo frio fortemente o atormentasse, chamou Frei Leão, o qual ia mais à frente, e disse assim: Irmão Leão, ainda que o frade menor desse na terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve todavia, e nota diligentemente que nisso não está a perfeita alegria. E andando um pouco mais, chama pela segunda vez: Ó Ir­mão Leão, ainda que o frade menor desse vista aos cegos; curasse os paralíticos, expulsasse os demônios, fizesse sur­dos ouvirem e andarem coxos, falarem mudos, e mais ainda, ressuscitasse mortos de quatro dias, escreve que nisso não está a perfeita alegria. E andando um pouco, São Francis­co gritou com força: Ó Irmão Leão, se o frade menor sou­besse todas as línguas e todas as ciências e todas as es­crituras e se soubesse profetizar e revelar não só as coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos espíritos, escreve que não está nisso a perfeita alegria. An­dando um pouco além, São Francisco chama ainda com força: Ó Irmão Leão, ovelhinha de Deus, ainda que o frade menor falasse com língua de anjo e soubesse o curso das estrelas e as virtudes das ervas; e lhe fossem revelados to­dos os tesouros da terra e conhecesse as virtudes dos pás­saros e dos peixes e de todos os animais e dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das águas, escreve que não está nisso a perfeita alegria. E caminhando um pouco, São Francisco chamou em alta voz: Ó Irmão Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão bem que convertesse todos os infiéis à fé cristã, escreve que não está nisso a perfeita alegria. E durando este modo de falar pelo espaço de duas milhas, Frei Leão, com grande admiração, perguntou-lhe e disse: Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria. E São Francisco as­sim lhe respondeu: Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: Quem são vocês? E nós dissermos: Somos dois dos vossos irmãos; e ele disser: Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos po­bres, fora daqui; e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva com frio e fome até à noite: en­tão, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem mur­murarmos contra ele e pensarmos humildemente e caritati­vamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha reco­nhecido e que Deus o fez falar contra nós: ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se perseverar­mos a bater, e ele sair furioso e como a importunos ma­landros nos expulsar com vilanias e bofetadas dizendo: Fo­ra daqui, ladrõezinhos vis, vão para o hospício, porque aqui ninguém lhes dará comida nem cama; se suportarmos isso pacientemente e com alegria e de bom coração, ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite, batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos dei­xe entrar, e se ele mais escandalizado disser: Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem: e sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó: se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor; ó Ir­mão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, Irmão Leão. Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, será o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos, porque de todos os outros dons de Deus não nos podemos gloriar por não serem nossos, mas de Deus, do que diz o Apóstolo: Que tens tu que não hajas recebido de Deus? e se dele o recebeste, por que te gloriares como se o tivesses de ti? Mas na cruz da tribula­ção de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque “isso é nosso” e assim diz o Apóstolo: “Não me quero gloriar, senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Ao qual se­jam dadas honra e glória in secula seculorum. Amém (Silveira, 1983, p.1095-9).

  1. São Francisco, o fundador da Ordem e Frei Leão, um dos seus seguidores mais próximos vão a Santa Maria dos Anjos. Santa Maria dos Anjos é o berço da Ordem, o lar, onde reside o memorial mais íntimo, o aconchego originário do mistério da Ordem. São Francisco e Frei Leão voltam ao seu próprio lar. Mas os habitantes desse lar não conhecem seus próprios familiares, o seu progenitor e seu irmão, porque estes aparecem tão pobres, diferentes dos seus familiares. Francisco, a origem, volta à sua pró­pria origem e lá se apresenta na sua mais pura originalida­de como o mais íntimo da família que sabe à pobreza inicial. Mas não é reconhecido como pertinente à origem, ao lar. Assim o pai e o filho primordial são expelidos do seu próprio lar e enviados para o hospício dos leprosos, o lugar onde principiou a história de São Francisco, onde Francisco foi colhido pelo mistério do servo leproso de Javé (Is 53,1-15), cujo toque everteu o seu saber, a pon­to de ser a doçura do seu vigor, o que antes lhe era amar­gor (Testamento de São Francisco).
  2. Francisco e Leão voltam para casa. Famintos, sujos, congelados pelo frio da caminhada hibernal. Em casa não os recebem por não os reconhecerem. Expulsam-nos como marginais e dão-lhes uma violenta surra, no frio da noite, sobre a neve lamacenta da estrada. E a legenda nos diz: o porteiro, verdadeiramente nos tinha reconhecido… mas Deus o fez falar contra nós.

Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por engano é possível. Que o irmão porteiro não re­conheça a Francisco e a Leão por maldade é possível. Mas que Deus não reconheça a Francisco e a Leão… O que significa essa rejeição de Deus?

Francisco e Leão vivem austeramente a pobreza. Tão aus­teramente que eles são em carne e osso o corpo da abne­gação. Por causa da radicalidade da abnegação se tornam irreconhecíveis aos seus irmãos. O mordente da sua austeri­dade é corrosivo e ameaça a vida da fraternidade. São ex­cluídos do convívio familiar. Francisco e Leão, no entanto, podem se apoiar em Deus e dizer: os irmãos são instru­mentos na mão de Deus. Deus está nos provando, nos pu­rificando para que alcancemos maior perfeição na autenti­cidade da abnegação. Ele nos permite tal situação pa­ra que possamos copiar literalmente a seu Filho crucifica­do. Ao sermos colocados na situação do Crucificado, somos autênticos, verdadeiramente abnegados e assim pode­mos nos gloriar na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

  1. Mas o que é essa abnegação que os dispõe a gloriar­-se da cruz de Jesus Cristo? A própria abnegação da cruz de Jesus Cristo. Mas o que per-faz a abnegação da cruz?

A rejeição da cruz por Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). A cruz é o abando­no da própria cruz por Deus, a condenação, a fala de Deus contra nós.

  1. Como pode tal aniquilação da aniquilação ser perfeita alegria?

Aniquilação, exinanição, sacrifício, humilhação, castigo, condenação, abandono: a abnegação. A inclinação do nos­so ouvido não consegue senão colher na palavra cruz essas ressonâncias da negatividade. Na própria tentativa de supe­rar a negatividade por meio do apelo a uma instância po­sitiva superior “Deus”, confessamos a impossibilidade de acolher a cruz como perfeita alegria: a cruz como abnega­ção não tem sentido em si, ela está em função de um algo diferente dela: da positividade que elimina a negatividade; o amargor da cruz continua amargo: na superação ele é simplesmente excluído da doçura.

Mas aceitar o amargor da cruz como doçura não é o mais requintado “masoquismo”? A perfeita alegria é perder-se no deleite da total aniquilação passiva, nihilista?

O masoquismo, no entanto, é a derradeira tentativa de fechar-se à perfeita alegria da cruz. Ao declarar o negativo como positivo, o masoquismo exacerba a dominação da medida valorativa que comanda a oposição, impossibilitan­do a colocação da questão essencial acerca do envio radical dessa própria medida constitutiva do valor. Assim, a consu­mação nadificante da cruz como nada se retrai, se vela na sua essência como absurdo. Nesse absurdo está a cruz.

  1. O que perfaz o absurdo da cruz? A própria impossi­bilidade de se colocar a questão essencial acerca do envio radical de si mesmo.

Essa impossibilidade não é, porém, uma impossibilidade oposta ou ao lado da possibilidade, para além dela mesma: é antes a impossibilidade da impossibilidade. Enquanto o Crucificado pode justificar a sua abnegação como a realiza­ção da vontade de Deus, pode se valorizar a partir de uma instância positiva e última, dando à sua abnegação um porquê e um para quê. Mas no abandono do abandono, lhe é tirado o derradeiro fundamento justificativo do porquê e para que da abnegação. Abandonada em si mesma, a abnegação do Crucificado é o puro querer do seu querer. Na ausência absoluta de uma motivação fora de si mesmo, o querer do Crucificado pode dizer: Meu Deus, eu te quero, não porque tu és bom, mas porque eu quero o querer do meu querer.

A abnegação da cruz é, pois, a autonomia do querer: a suprema exacerbação da autojustificação; a vontade do poder e o poder da vontade: a vontade de Deus e o Deus da vontade.

  1. No in-stante crucial dessa afirmação radical da vonta­de, no entanto, se dá o abandono: a vontade se desvela como a radical impossibilidade de se abandonar como a bondade da gratuidade na gratuidade da bondade. Na abne­gação da cruz, a vontade própria se consuma no seu poder de autojustifícação como a autonomia suprema do eu da subjetividade. Ao se consumar, o poder da vontade vem a si mesmo como o limite e a plenitude do asseguramento do seu próprio, isto é, da sua essência. O desvelamento da vontade própria como a consumação do eu da subjeti­vidade se dá como: a vontade de Deus. Vontade de Deus é a consumação da vontade própria. A consumação é ple­nitude como limite. Mas o limite da vontade própria é o silêncio do retraimento da gratuidade na bondade do seu mistério. Na suprema potencialização da vontade própria, na cruz, o eu da subjetividade se dis-põe a ser ferido pelo toque da bondade da gratuidade. Essa disposição como o limite é o ponto crucial da cruz de Jesus Cristo. Ali se dá o abandono da autosegurança e da autojustificação, o abandono da vontade própria à fluência nasciva do retrai­mento do mistério, como o recolhimento e a acolhida da gratuidade. A perfeita alegria é ao sabor da nascividade desse retraimento.
  2. O retraimento do mistério como gratuidade vem à fala como a pureza da vitalidade na nascividade de ser: a perfeita alegria. A perfeita alegria é jovialidade.

Não é possível dizer o que é a jovialidade. Por isso, com o risco de nada dizer, ao dizer de mais, deixemo-nos referir ao aceno de Angelus Silesius (Johann Scheffler, 1624-1677) que fala a partir da jovialidade: “A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer”.

A rosa sem porquê no orvalho matinal: a alegria acolhe o coração do mortal, no frescor, na claridade natal da ino­cência original. O mortal descansa, respira livre, se regozija e renasce, na cercania da rosa, porque se recolhe e é acolhi­do no recato da natureza. A natureza da rosa de Angelus Silesius não é uma região do ente em oposição ao homem. É a nascividade, a liberdade do mistério que evoca o ho­mem para a sua essência. É a própria vigência da presen­ça que se abre como o frescor, a limpidez, a transparência e a graça de todas as coisas. É à mercê da liberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, a paz, o bem, o rigor, a coragem, a sinceridade, a simplicidade. A liberdade do mistério, a nascividade é a jovialidade.

A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa, não se ensoberbece. Não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda ran­cor: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7).

  1. É a jovialidade, o aceno da gratuidade, a referência do mistério que perfaz a presença de Deus. Presença de Deus que o cristianismo chamou de vontade do Pai, ocul­tando na ambigüidade da sua fala subjetiva a própria essên­cia da presença que é o retraimento da gratuidade. Se é assim, a vontade do Pai, a que Jesus Cristo foi ob-audiente até a morte de cruz, a vigência de Deus é a rosa sem porquê. O seu poder não é o poder de dominação, a vontade do poder, mas a presença acolhedora da gratuidade que tudo liberta, tudo vivifica, na ternura, no vigor, no recato da sua jovialidade. Por isso, ao se dar na liberdade não hu­milha, não se gloria, não se posiciona, não domina o agra­ciado, não é doador superior, mas ao se dar, se retrai na simplicidade do pudor, qual um servo para com o seu senhor. Confira A regra defini­tiva da Ordem dos Frades Menores, n. 10 (Silveira, 1983, p. 137-8 ).
  2. A regência da sua dominação é a autofidelidade da nascividade na inocência da liberdade que se expõe sem nenhuma defesa, no abandono à fluência da gratuidade. Esse auto-abandono da liberdade é o poder do mistério, a sua identidade: ao se expor, se retrai sempre novo, se ocul­ta no recato da identidade do mistério: no silêncio desse retraimento o mistério é ele mesmo e nada mais, a solidão perfeita da vida. Essa solidão, porém, é o poder, isto é, a possibilidade da vida. Ao se retrair na autofidelidade a si mesmo, o mistério se doa inesgotavelmente como exposi­ção do ser, em cujo envio tudo é como vida.
  3. A liberdade do envio da vida no retrair-se sempre nas­civo do mistério é a solidão perfeita da identidade do misté­rio. Essa solidão é o satis-fazer-se do mistério na obra per­feita da vida: o envio do ser em cadências de suas diferen­ciações. O retrair-se do mistério na sua identidade e o en­vio do ser na obra perfeita da vida como cadências de di­ferenças é a jovialidade de ser, a perfeita alegria.

A cruz de Jesus Cristo é a acolhida e a colheita dessa jovialidade. E a essência da existência do celibato cristão está na acolhida e na colheita da perfeita alegria da cruz de Jesus Cristo.

  1. O celibato cristão é o não-matrimônio por causa do reino dos céus. O vigor instaurante do reino dos céus é o amor de Deus do Evangelho. O amor de Deus do Evan­gelho é a jovialidade da cruz. A causa portanto do celibato cristão é o envio do mistério na acolhida e na colheita da jovialidade da cruz.

3 [Terceira reflexão]

  1. Mas por que o não-matrimônio? A essência do matri­mônio cristão não é também a jovialidade da cruz? Como, pois, justificar a diferença, o não-matrimônio contra o matrimônio?

­­31. Naquele tempo, um monge bateu às portas de um mosteiro budista. O mestre lhe perguntou:

– Já estiveste aqui?

– Não, respondeu o forasteiro.

O mestre lhe disse:

– Bebe uma xícara de chá.

Um leigo se apresentou ao mestre. Este lhe perguntou:

– Já estiveste aqui?

– Sim, respondeu o leigo que era um assíduo freqüentador do mosteiro.

O mestre lhe disse:

– Bebe uma xícara de chá.

O discípulo perguntou ao mestre:

– Como é possível responder a mesma coisa ao estran­geiro e ao familiar? ao monge e ao leigo?

O mestre lhe disse:

– Bebe uma xícara de chá.

  1. Como é possível que o não-matrimônio e o sim-ma­trimônio tenham um igual fundamento na jovialidade da cruz? Onde está a diferença entre a existência celibatária e a existência matrimonial? Por que então não ir a via do matrimônio, se me conduz ao mesmo fim?
  2. A pergunta já vem tarde. Vem de uma posição, na qual se torna impossível colocar a questão essencial da iden­tidade na diferença e da diferença na identidade. Pois, a pergunta já posicionou a identidade como igualdade e a di­ferença como determinação específica dessa igualdade. Essa posição pressupõe uma determinada compreensão do sentido do ser.
  3. O envio do sentido do ser que instaura a dominação da igualdade se dá como a abnegação do mistério. Essa abnegação aciona o desencadear-se do problema do celiba­to como o projeto do autoasseguramento de um modo de ser chamado subjetividade. Pertence ao modo de ser da subjetividade a objetividade. Objetividade é o horizonte da possibilidade dentro do qual os entes aparecem e são con­servados sob o poder da subjetividade. A subjetividade exer­ce o seu poder, unificando tudo sob o índice da igualdade. Esse índice comum é o algo, a coisa, o objeto. O resultado da tentativa de diferenciação sob o domínio do índice da igualdade são os enfoques, os aspectos, as perspectivas, as implicações da coisa. Essa tentativa de diferenciação, no entanto, somente consegue fixar divisões e subdivisões den­tro do horizonte já preestabelecido pelo ser da subjetividade. O modo de ser da subjetividade não pode deixar ser as diferenças a não ser dentro do limite do sentido do ser a ele destinado.

Em que consiste o sentido do ser destinado à subjeti­vidade?

Consiste na posse e no domínio da subjetividade, de si mesma, como a certeza de autodeterminação: na autonomia.

Na autonomia a subjetividade tenta fundamentar-se a si mesma a partir de si. A consumação dessa autofundamen­tação é o querer do seu querer: a vontade do poder. A vontade do poder elimina tudo quanto transcende o âmbi­to do seu poder, reduzindo-o ao objeto do seu controle e do seu saber. Assim, não deixa o outro ser outro. Não so­mente isso, não deixa a diferença ser diferença, pois a trans­forma numa determinação da igualdade do seu horizonte. Com isso, o sentido da identidade se oculta sob o índice do comum, do geral, do igual. Identidade significa então base comum, generalidade, igualdade. Surge assim a pergunta: como podem duas coisas iguais serem diferentes? A iden­tidade da igualdade é, porém, a certeza de fixação. As de­terminações dessa igualdade são, por sua vez, fixações da fixação.

A fixação denuncia a impossibilidade de acolher e con­servar a vida no movimento da sua nascividade.

  1. A identidade e diferença só é na identidade da dife­rença e na diferença da identidade como o movimento con­sumado da concreção. A resposta do mestre budista “bebe uma xícara de chá” diz o uno e o mesmo: o envio da consu­mação do mistério na concreção que per-faz a diferença da identidade e a identidade da diferença como a história do forasteiro, do familiar e do discípulo. O uno e o mesmo é sempre idêntico em ser cada vez a identidade da diferença na concreção. O uno e o mesmo como identidade se des­vela como a jovialidade da obra consumada na concreção: a jovialidade da diferença. Mas, ao se revelar como a jovia­lidade da obra, como o perfectum da diferença, se retrai co­mo a gratuidade inesgotável da identidade do mistério.
  2. Assim, a pergunta pela essência do celibato, mas também do matrimônio, não pode ser colocada a partir e dentro do horizonte da subjetividade.

Enquanto o problema do celibato for o objeto do proble­ma da subjetividade, não está no elemento do seu proble­ma. Não passa do projeto do ser da subjetividade e só pode re-presentar a impossibilidade de a subjetividade se colocar a questão essencial acerca da identidade da cristi­dade em suas diferentes concreções.

  1. Essa impossibilidade, porém, só é na consumação da dominação da subjetividade. Consumação é a suprema po­tencialização. A suprema potencialização da subjetividade como a vontade do poder é a abnegação. Abnegação é a afirmação suprema do não, para se concentrar exclusivamente na pura autonomia do querer do seu querer. É a ascese da conquista da autonomia: a cruz. Essa autono­mia como a cruz, porém, é a impossibilidade da subjetivi­dade em se abrir à gratuidade da solidão perfeita do mis­tério. Manter-se nessa impossibilidade com rigor, como no limite da subjetividade é ab-ter-se no retraimento do misté­rio. Essa abstenção é a essência do não-matrimônio.
  2. Tão-somente, quando nos ab-tivermos do autoasse­guramento do nosso celibato, ao toque gratuito da solidão perfeita do mistério; tão-somente, quando nos abnegarmos da posse do celibato para nos abrirmos à sua jovialidade, seremos justificados na graça do celibato cristão.
  3. A causa, isto é, o que toca o coração do problema do celibato, colocando-o na crise da referência do seu en­vio é o próprio mistério da gratuidade na gratuidade do mistério. Ouçamos assim a legenda da estranha criatura que ao não saber o saber da sua identidade, estava ao sabor da pureza, no jejum do coração:
  4. Naquele tempo, uma mulher apareceu no convento e desejou ver a Mestre Eckhart.

O irmão porteiro lhe perguntou:

– Quem és tu?

– Não sei – respondeu a mulher.

– Como? Tu não sabes quem és?

– Não: eu não sou nem menina, nem mulher, nem ma­rido, nem esposa, nem viúva, nem virgem, nem serva.

O porteiro foi falar com Mestre Eckhart e lhe disse:

– Vem ver uma criatura muito estranha. Pergunta-lhe quem ela é.

O mestre fez assim como o porteiro lhe ordenara e re­cebeu a mesma resposta. Disse Mestre Eckhart à mulher:

– Minha filha, o que dizes é bom. Mas explica-me o que entendes por tudo isso.

Ela lhe respondeu:

– Se eu fosse menina, deveria ser inocente. Se fosse mulher, deveria guardar na alma a palavra eterna. Se fosse marido, deveria resistir a todo o mal. Se fosse esposa, de­veria ser fiel. Se fosse viúva, deveria chorar. Se fosse vir­gem, deveria ter a reverência da devoção. Se fosse serva, deveria ser mais humilde do que todas as outras criaturas e servir de todo o coração. Mas como não faço nada disso, eu sou apenas uma coisa entre as outras coisas.

Mestre Eckhart retirou-se no silêncio do convento e disse a seus discípulos:

– Acabo de me encontrar com a pessoa mais pura des­te mundo.

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