São Francisco de Assis e os estudos, uma questão
O tema da reflexão diz: “São Francisco de Assis, e os estudos, uma questão”. O tema fala do que vamos tratar. Do que pode significar sobre o que ou a partir do que. Assim o tema nos orienta a falar sobre o que São Francisco de Assis pensava sobre os estudos. E ao mesmo tempo, nos sugere que falemos sobre o que São Francisco pensava dos estudos, a parir da implicância de uma questão. Isto significa que o tema nos coloca de antemão dentro da seguinte situação de busca: No início da ordem, com São Francisco e seus primeiros companheiros, e a seguir na evolução da ordem franciscana, no seu primeiro século, os estudos apareceram como problema. Mas trata-se de um problema que se deve tornar para nós, uma questão: questão dos estudos, hoje[1].
Um problema do passado somente nos atinge e se nos torna histórico se nos convoca hoje a colocarmos em questão o evento que se fossilizou como realidade óbvia de um fato historiográfico. Colocar em questão um problema na sua factualidade significa avivar o palpitar da inquietação de um questionamento fundamental. Pois, um questionamento pulsa sempre na raiz de um problema, o qual como problema já estabelecido não mais investiga nem sonda o móvel da situação, em que se achava colocado quando se consolidou como fato. A ação de in-vestigar o móvel de fundo, onde se assenta um fato, se chama questão.
Para colocar em questão o problema dos estudos em São Francisco e transformar problema do passado em questão hoje, formulemos o nosso problema como o costuma expor e explicar a maioria dos historiadores, peritos no franciscanismo. Mas antes, para que essa formulação usual do problema não fique no ar, como que isolada e abstrata no seu conteúdo, mencionemos, ainda que de modo bem geral e panorâmico, alguns fatos que constituem as etapas da evolução do problema dos estudos na ordem franciscana e resumamos o que Gratien de Paris[2] diz da organização dos estudos no início da ordem.
I – O problema dos estudos e sua formulação usual
- Um apanhado geral historiográfico
O período que abrange a origem e o primeiro século do franciscanismo vai de 1209 até 1318. Esse longo período pode ser considerado em 2 etapas: a primeira vai de 1209 a 1219 e a segunda de 1219 a 1318. Na primeira, trata-se da origem da ordem, onde os estudos não aparecem ainda como estudos organizados e não se constituem ainda como problema. Na segunda se dá a evolução da ordem, onde os estudos se manifestam explicitamente como problema e se consolidam como problema, congelados numa determinada impostação do problema.
Na primeira etapa, de 1209 a 1219 temos os seguintes fatos: Depois da conversão de Francisco, os primeiros companheiros se agrupam ao redor de Francisco. Surge a idéia de uma ordem. Constatamos em Francisco um plano, seus meios de ação e princípios que segue. As características principais da instituição franciscana se tornam visíveis e com isso também idéias e ideais de Francisco sobre pregação, estudos e ciência. Surge a Primeira Regra (1209), hoje perdida; se inicia o processo de formulação das regras mais elaboradas, que nos deu a Regra não Bulada (1221) e a Regra Bulada, a definitiva (1223).
Na segunda etapa, de 1219 a 1318 podemos distinguir 3 momentos: primeiro momento de 1219 a 1257. É tempo da consolidação da ordem, aprovada pelo Papa, oralmente: a Primeira Regra, a elaboração da Regra Não Bulada, da Regra Bulada, do Testamento, a morte de São Francisco (1226), e a sucessão dos primeiros ministros gerais da ordem (João Parente 1227-1232; Frei Elias 1232-1239; Aymon de Faversham 1240-1244; Crescêncio de Jesi 1224-1247; João de Parma 1247-1257). O segundo, de 1257 a 1274. É o tempo do generalato de São Boaventura. O terceiro, de 1274 a 1318. É o tempo de luta ao redor da questão da pobreza.
Nessa segunda etapa temos os seguintes fatos: a clericalização da ordem; a introdução dos estudos institucionalizados e a sua organização na ordem; surgimento das casas de estudos em Bolonha, Paris e Oxford; a atuação dos frades na universidade de Bolonha, Paris e Oxford; a luta dos mendicantes pelo direito de ensinar nas cátedras da universidade de Paris; o generalato de São Boaventura, sua postura acerca dos estudos e da ciência; o surgimento e a exacerbação da controvérsia sobre a pobreza.
- A organização dos estudos
Segundo Gratien de Paris[3], há inúmeros indícios que mostram como os estudos foram introduzidos na ordem, provavelmente já no tempo em que São Francisco ainda vivia. E rapidamente se espalharam por todas as províncias da ordem, logo depois da morte de São Francisco. Jordão de Jano nos relata que em 1228 “O ministro geral João Parente, ao perceber que a província da Alemanha não possuía professor em teologia, tirou do cargo de provincial a frei Simão e o nomeou professor”. Essa observação nos faz suspeitar que nas outras províncias também havia o cultivo da ciência sacra. O Papa Gregório IX na sua bula Quo elongati (1230) dispensa do exame e da aprovação do ministro geral os frades instruídos na teologia. E Jordão de Jano menciona entre os objetos dos quais os frades podiam ter uso, de modo especial os livros. Os apelos dos pontífices à caridade pública em favor dos frades se referem sempre à ajuda para construções e aquisição de livros. Assim, Gratien de Paris deduz que desde 1230 o estudo da Sagrada Escritura i. é, da teologia estava implantado na Ordem Franciscana e que o número dos clérigos aumentava de dia para dia. Uma tal afluência de pessoas sábias e estudadas fomentou no interior da ordem uma corrida ao estudo. E como observa Gratien de Paris, o estudo era uma necessidade inevitável. Os frades não podiam cumprir com seus deveres e suas missões pastorais sem ele. É que havia em toda parte, em cada esquina, em cada praça pública os heréticos, armados até aos dentes com argumentos falaciosos, sutis e capciosos. Não havia a possibilidade de evitar o confronto e a controvérsia. Os irmãos sentiam nitidamente que não os podiam enfrentar sem possuir um sério e profundo conhecimento das Sagradas Escrituras. Gregório IX, renovando os cânones dos concílios antigos proibira a pregação aos irmãos leigos, fossem eles de que ordem fossem (1235). Por outro lado, os sacerdotes estavam mal preparados para sua missão. O Papa sentiu o grande perigo que a Igreja corria devido à decadência dos estudos eclesiásticos. Na tentativa de levantar o nível espiritual e intelectual do clero, os papas começaram a recorrer às ordens mendicantes: aos dominicanos e franciscanos. Os dominicanos, desde o início, já pela natureza de sua fundação, se dedicavam aos estudos e estavam aptos para o desempenho de pregação e confronto com hereges. Os papas e alguns bispos, vendo a disposição da nova ordem de São Francisco para o serviço à Igreja, começaram a incentivá-la aos estudos, e isso tanto mais, ao verem como uma grande multidão de pessoas instruídas, estudadas e muitos universitários tomavam o hábito da pobreza franciscana. Assim as vozes amigas de um Jacques de Vitry, de Roberto Grossetête, chanceler da universidade de Oxford, de Guilherme d’Auvergne, bispo de Paris, de Eudes de Châteauroux, chanceler da universidade de Paris, encorajavam os filhos de São Francisco a seguirem o exemplo dos filhos de São Domingos. Logo começaram a surgir entre os próprios frades pessoas que confirmavam no seu ser e nas suas obras a eficácia e a fecundidade da aliança entre o ideal franciscano e o cultivo dos estudos, como p. ex., César de Spira, João de Plan Carpin na Alemanha, Gregório de Nápolis e Aymon de Faversham em Paris, Santo Antônio de Pádoa na Lombardia e na França. Bem logo se estabeleceu entre dominicanos e franciscanos, no âmbito e no nível das ciências, uma rivalidade fecunda e amiga, cujo exemplo temos na amizade que unia Santo Tomas de Aquino e São Boaventura na busca da verdade. Em 1231 os frades já possuiam 3 grandes centros de estudos: Bolonha, Paris e Oxford.
- A formulação usual do problema dos estudos
A exposição desses dados historiográficos, colocados como fatos que constituem o problema dos estudos, poderia ser bem mais completa em número de fatos e nos seus detalhes informativos. Uma vez colocados como constituintes do problema de estudos, há diferenças de interpretações e valorização dos fatos, em diferentes autores franciscanólogos, conforme as perspectivas de impostações que lançam sobre os dados. No entanto, no seu todo, na colocação do problema enquanto problema dos estudos na ordem, há na maioria dos autores, uma e a mesma impostação, um e o mesmo enfoque. Essa colocação comum e unânime pode ser formulada mais ou menos da seguinte maneira:
Os estudos estão intimamente ligados à evolução e ao crescimento da ordem, à sua clericalização, à intelectualização dos seus membros, devido ao apelo e às exigências da Igreja, por causa da evangelização. No problema dos estudos assim colocado, trata-se mais da diferença existente entre São Francisco e o pequeno grupo de seus seguidores do início com o seu modo pessoal de compreender e viver o seguimento (Evangelho), na experiência radical da pobreza na identificação com o Cristo Crucificado de um lado; e o modo de ser da ordem, de outro lado, que como comunidade em crescimento rápido e contínuo, não mais podia viver enquanto comunidade o radicalismo ideal, ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio da presença física do fundador. E ao mesmo tempo, na medida do seu crescimento, a ordem estava dentro da necessidade do desenvolvimento histórico, sob a convocação feita pela própria Igreja de se dispor e se adaptar às necessidades epocais da Igreja e do mundo, no que se refere à Evangelização.
- As idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência
O problema dos estudos assim colocado na formulação acima, como problema de transição entre o modo de ser da experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco e de seus primeiros companheiros e o modo de ser nascido da necessidade de evolução e adaptação da coletividade da ordem em franco crescimento, precisa ser des-estabilizado, para que nela surja a possibilidade de interrogações que nos façam perceber na sua raiz uma questão. Para que isso se torne viável, vamos expor mais em detalhes o que São Francisco na origem do franciscanismo pensou a partir e através da sua experiência pessoal e privativa dos estudos e da ciência.
Certamente, essa descrição atinge apenas um momento ainda bem inicial do problema na origem do franciscanismo. Seria ideal, se pudéssemos também demorar-nos na descrição de cada etapa do outro momento do fato, a saber, da evolução e adaptação da ordem na sucessão do processo da sua clericalização e institucionalização no primeiro século do franciscanismo. Mas, nessa nossa reflexão nos limitamos apenas a examinar com mais detalhes as idéias de S. Francisco sobre estudos e ciência. Se por essa descrição de um momento apenas do fato-problema pudermos desestabilizar de algum modo a fixação factual desse momento, talvez estejamos possibilitando também a mobilização de todo o resto, a ponto de podermos começar a colocar interrogações que acordem o interesse da questão para o primeiro século do franciscanismo. Para essa descrição mais detalhada, reproduzimos num resumo o parágrafo 3 do Capítulo III da obra já citada de Gratien de Paris, onde se fala de Idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência[4].
- a) Pregação
São Francisco tinha grande estima pelas Sagradas Escrituras e sua pregação (2 Cel 103, 104, 105). Segundo Celano, Francisco dizia que: “os pregadores eram dignos de respeito e veneração por serem arautos das ordens que recebem da boca de um grande rei, para anunciá-las ao povo” (2 Cel 163). Depois da aprovação da ordem pelo Papa Inocêncio III, a pregação era um ofício reservado a religiosos especialmente designados para isso. No cumprimento do ministério da pregação Francisco pedia com insistência que os irmãos guardassem com muito cuidado e fidelidade os seguintes dois pontos: o primeiro, que em nenhum caso o apostolado da palavra diminuísse ou substituísse o apostolado do exemplo; e que jamais ferisse as duas grandes principais diretrizes da ação franciscana, a saber, submissão à Igreja de Roma e fidelidade à vida de oração (RNB 17). A pregação não menos do que o trabalho corporal e o cuidado dos leprosos, não é um fim em si nem tem importância em e por si, mas é caminho que conduz os irmãos a dar antes de tudo o exemplo cristão. A ordem que Francisco quer instituir é antes mais uma ordem de imitadores de Cristo do que uma ordem de pregadores. Por isso Francisco insiste que o pregador franciscano medite profundamente o que deve ensinar aos outros e que para isso esteja livre de todo outro encargo para poder doar-se inteiramente aos estudos espirituais (2 Cel 163); e coloca o apostolado do exemplo no centro de toda a ação; e quer que o irmão menor, de tempo em tempo, se engaje no humilde trabalho corporal e no serviço dos doentes e leprosos e na mendicância (2 Cel 74ss.; LP 71). O segundo ponto a ser observado no ministério da pregação pelos irmãos é que jamais se abandone o gênero simples e popular da pregação penitencial. Segundo Gratien de Paris, se nos ativermos com precisão à intenção de Francisco, não deveria propriamente haver na ordem dois tipos de pregação, digamos um, comum a todos os religiosos, p. ex., exortação piedosa; e um outro, o da pregação eclesiástica propriamente dita, reservado para os clérigos. Mesmo os mais eruditos e sábios deveriam a modo dos irmãos não-clérigos se ater ao “terreno moral”[5]. Essa atitude de São Francisco em referência à pregação nos faz entrever o que ele pensava a respeito dos estudos e da ciência.
- b) Estima de São Francisco pela ciência
Francisco se qualifica e se denomina como simplex et idiota. Simples e idiota soa hoje como simplório e ignorante, diríamos gente ingênua, sem maneiras, sem formação nem instrução. E logo associamos a tudo isso a conotação de grosseiro, inculto, estulto, selvagem. São Francisco parece colaborar para esse modo de o interpretar, quando se chama de vil. Vil é quem mora na vila, i. é, no sítio; nós diríamos caipira, caboclo. Francisco, porém, é tudo menos grosseiro, vilão e selvagem. Ele é de fino tato e trato, na sensibilidade fora do comum, de uma percepção e penetração extraordinária, altamente inteligente, com força de criatividade fora de série. E não era nem ignorante, nem analfabeto. Sabia ler e escrever. Não possuía uma formação acadêmica, não freqüentou cursos teológicos. Mas, segundo Gratien de Paris, no que toca às “coisas” de Deus, pela leitura atenta e pela meditação das Sagradas Escrituras, recebera aquela sabedoria que “vem do alto”[6]. Numa alma tão nobre e inteligente não há lugar para desprezo e medo que vêm do ressentimento e complexo diante da ciência e da superioridade do saber verdadeiro. Assim, tratava com grande respeito, natural e tranqüilamente as produções do espírito humano, as quais acolhia com veneração, veneração esta que mais tarde viriam demonstrar os humanistas cristãos para com os escritos pagãos (1 Cel 81, 82, 83). No entanto, Francisco considerava os estudos e a ciência sob dois aspectos distintos: Primeiro, em referência a sua função dentro da Igreja; segundo, em referência a sua função dentro da ordem. Em referência a função da ciência dentro da Igreja, Francisco reconhecia que é de necessidade vital. E possuía uma estima muito grande para com os que possuíam conhecimento da ciência Sagrada. Assim, diz ele no Testamento: “Devemos honrar e venerar todos os teólogos e todos aqueles que nos explicam a Palavra de Deus, porque eles nos dão espírito e vida” (cf. LP 70). Mas em referência à função da ciência na sua ordem, Francisco não coloca a ciência como um dos meios de sua ação. E aqui, percebemos uma impostação bem diferente à de São Domingos que considerava a ciência como elemento constitutivo essencial da ação da sua ordem.
- c) São Francisco não considera a ciência como elemento constitutivo essencial da ação da sua ordem
Francisco, por um momento de sua vida, teve a idéia de colocar a ciência como um dos elementos constitutivos da ação franciscana. Quando um noviço lhe pediu a licença de ter um saltério disse: “Eu, também como tu, já fui tentado a ter livros, mas eu abri o evangelho para conhecer a vontade de Deus, e então ali eu li: A Vós foi dado conhecer o reino dos céus; a outros, só o conhecem em parábolas” (LP 71, 72 73). E acrescentou: “São tantos os que querem subir os degraus da ciência que bem-aventurado será quem a ela renuncia por amor do Senhor Deus”(LP 72). Essa renúncia, a que tipo de estudos e de ciência se refere? Certamente, não se refere a estudos e conhecimento de edificação pessoal, mas sim a um trabalho verdadeiramente científico e que tenta alcançar ciência por ciência[7]. O estudo, i. é, o empenho[8] que Francisco e seus primeiros companheiros cultivavam com intenso engajamento é o de poder progredir sempre mais no espírito de conversão e na santidade (1 Cel 34-41; 2 Cel 195). A Francisco e seus primeiros companheiros, nesse tipo de estudo, de empenho e engajamento, não ocorre sequer pensar na possibilidade e na utilidade de sentar-se nos bancos da escola e da universidade. Por outro lado, Francisco compõe o Cântico do sol, envia irmãos a pregar, cantando. Francisco e seus irmãos se consideram jongleurs de Deus, entoam o louvor de Deus, pregam e cantam e por salário desse seu trabalho somente pedem que os ouvintes se convertam e se tornem bons cristãos. Francisco usa poesia e música para levar as almas ao Senhor. Assim, para Francisco, a arte entra, até certo ponto, na existência franciscana como elemento válido e recomendado da sua ação (2 Cel 126, 213; LP 24, 43, 44). Não há, porém, no programa da formação, na origem do franciscanismo, lugar para o cultivo científico, expressamente recomendado como no caso do trabalho manual e cuidado dos leprosos[9]. Portanto, Francisco, segundo Gratien de Paris, não somente não quis promover ciência na sua ordem, mas nada absolutamente fez para remover obstáculos que o gênero de vida, imposta por ele a seus discípulos, criava contra o cultivo da ciência (RNB 3, 7; 2 Cel 21, 22, 62, 129, 194, 195; LP 66-74, 96, 97). Enquanto São Domingos quer estabelecer seus irmãos nas cidades universitárias, Francisco se revolta contra a construção duma casa de frades estudantes em Bolonha (2 Cel 58). Portanto, conclui Gratien, é um fato que Francisco não foi promotor do movimento científico dentro da sua família religiosa.
Mas como compreender uma tal atitude num homem de uma inteligência tão vasta e dum espírito tão elevado? Pois a ciência teológica é por excelência uma arma do apostolado, um meio eficaz e utilíssimo para salvar almas, destruindo as armadilhas dos argumentos capciosos das exposições das ideologias heréticas. Aqui, não bastava ser apenas piedoso, humilde e simples para vencer os adversários da fé; pois os sacerdotes cátaros, p. ex., eram muito mais preparados e sabidos do que o clero católico. É pois necessário unir a ciência à virtude. Assim pensava São Domingos, o fundador dos dominicanos; assim pensavam também os intelectuais que começavam a povoar a ordem de São Francisco em grande número. Eles deduziam a necessidade dos estudos da tarefa do compromisso e da responsabilidade de se prepararem adequadamente para a pregação. Por mais lógico que seja esse raciocínio dos discípulos sábios e letrados de Francisco, este surpreendentemente pensava de modo inteiramente diferente. É, pois importante marcar bem essa diferença. A missão que Francisco escolheu para si e para seus primeiros companheiros não requeria uma erudição para além do que serviria a seus fins práticos imediatos. Francisco não pretendia responder, ele sozinho, a todas as necessidades do coração e do espírito do homem, nem possuía, ele sozinho, os remédios da ciência para a glória de Deus. Que outros se sirvam dos estudos, erudição e ciência para glorificar a Deus; que outros reproduzam os traços de Cristo, Doutor e mestre de toda a verdade! O que, porém, Francisco, ele mesmo queria era imitar o Cristo humilde, pobre, amando e sofrendo. O seu apostolado e o da sua ordem, sua vocação, não é a de, com a ajuda de polêmicas sábias, defender a fé da Igreja contra seus inimigos de fora, mas sim, renovar no seio da Igreja a vida conforme ao Evangelho e isto, pela força do exemplo e da pregação da penitência. Os doutores, com a ajuda da ciência, da dialética e da controvérsia, demonstram a verdade do Evangelho. Francisco por sua vez, mostra a beleza oculta, a intimidade da ternura do mistério evangélico. Para essa busca intensa e total de encontro corpo a corpo, “full contact” com Cristo pobre, humilde, estudos científicos lhe pareciam inúteis e perigosos para o espírito de vida interior, de simplicidade, humildade e pobreza, que são os fundamentos da sua ordem (2 Cel 195; LP 70). Os estudos e a ciência exigem a posse de ricas bibliotecas, moradia estável, conforto e ambiente protegido. A ciência orna a fronte de quem a possui de uma aura de glória, e atrai honras (2 Cel 194). Além disso, Francisco desconfiava principalmente do saber livresco. Dizia: “A ciência torna muitas pessoas indóceis, não deixando que alguma coisa de rígido nelas se dobre aos ensinamentos humildes ” (2 Cel 194, 195). A rejeição de Francisco contra o saber livresco vinha do receio de que o saber livresco criasse um intelectual inepto à ação e vazio de boas obras (2 Cel 195).
- d) A ciência e a ação apostólica franciscana
Mas então, por que Francisco aceitou na sua ordem os intelectuais, sábios e letrados? A isto responde com uma parábola relatada por 2 Cel 191:
Vamos supor que todos os religiosos da Igreja tenham se reunido em um só capítulo geral! Estando presentes letrados e analfabetos, sábios e os que sabem agradar a Deus mesmo sem sabedoria, encomendaram um sermão a um dos sábios e a um dos simples. O sábio, por ser sábio, calculou consigo mesmo: “isto aqui não é lugar de demonstrar conhecimentos, porque estão presentes homens perfeitos na ciência e não convém que eu me faça notar pela afetação, dizendo coisas sutis diante das pessoas mais sutis. Talvez seja mais proveitoso falar com simplicidade”. Amanheceu o dia combinado, reuniram-se as congregações dos santos, sequiosas de ouvir o sermão. O sábio se apresentou vestido de saco, com a cabeça coberta de cinza e, diante da admiração de todos, pregando mais com o exemplo, foi breve nas palavras. Disse: “Prometemos grandes coisas, maiores são as que nos foram prometidas. Observemos as primeiras e, suspiremos pelas segundas. O prazer é breve, o castigo, perpétuo, o sofrimento é pequeno, a glória não tem fim. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos, todos têm a sua retribuição”. Os ouvintes romperam em lágrimas com o coração compungido, e veneraram aquele verdadeiro sábio como um santo.
“Vejam só”, disse o simples em seu coração. “O sábio me tirou tudo que eu ia fazer e dizer. Mas já sei o que faço. Conheço alguns versículos de salmos: vou agir como sábio, já que ele agiu como um simples”.
Chegou a sessão do dia seguinte. O simples se levantou, propôs um Salmo como tema. Inspirado pelo Espírito Santo, falou com tanto fervor, com tanta sutileza, com tanta doçura, por um dom que só podia vir de Deus, que todos ficaram muito admirados e disseram: “Deus fala com os simples”.
E 2 Cel 192 continua: Depois o homem de Deus explicou assim a parábola que tinha contado:
Nossa ordem é uma assembléia muito grande, um verdadeiro capítulo geral que se reuniu de todas as partes do mundo para viver de uma maneira comum. Nela os sábios aproveitam o que é dos simples, vendo que os ignorantes buscam as coisas do céu com inflamado vigor e que os não instruídos pelos homens aprenderam com o espírito as coisas espirituais. Nela também os simples aproveitam o que é dos sábios, porque vêem que nela convivem com eles homens preclaros, que poderiam gozar de grande conceito no mundo. É isso que faz brilhar a beleza desta bem-aventurada família, cuja variedade tanto agrada ao pai de família.
O que nos quer dizer essa parábola a respeito da concepção de Francisco sobre o relacionamento da ciência e da ação apostólica franciscana?
Diz Gratien de Paris: “São Francisco tentava assim fazer compreender que os novos membros da ordem deviam se formar, seguindo a própria natureza e missão dessa ordem, e não, transformá-la[10]. Assim, os sábios e os letrados não deviam ter um outro método e uma outra meta do que os simples e os ignorantes (2 Cel 192). Ao sábio que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele convocava a renunciar, não somente aos bens materiais, mas também, de uma certa maneira, à ciência, para que desapegado de tudo, se oferecesse nu aos braços do Crucificado e chorar seus pecados na solidão e no silêncio. Uma vez assim preparado, o irmão menor podia ser considerado apto para a pregação. E ele então “sairá qual leão solto, com força para todos os trabalhos do apostolado, ‘leo excatenatus ad omnia robustus exire’” (2 Cel 194). Ao receber sábios e letrados na sua ordem, São Francisco não fazia apelo à ciência deles, nem contava com ela para converter almas, mas sim, apelava a e contava unicamente com o exemplo de humildade, simplicidade e pobreza. Em aceitando os homens de estudos e de ciência na sua fraternidade humilde e pobre, Francisco pôde consagrar e engajar as mais belas e profundas inteligências à educação da gente pobre, devotou grandes clérigos, estudados e sábios ao apostolado dos humildes, pobres e marginalizados. Um mestre na teologia, um doutor, diplomado na universidade de Paris, Oxford e Bolonha, explicando com amor e diligente cuidado o catecismo aos camponeses, às empregadas, aos velhos e às crianças…eis a imagem que Francisco fazia do sábio franciscano! E é por isso que devemos escutar a recomendação escrita por ele na RNB, como valendo para todos os irmãos, sejam iletrados ou letrados e sábios: “E devem alegrar-se quando se encontram entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos da rua” (cap. 9).
Portanto, se, em nos apoiando nas palavras de São Francisco, e sem nos deixarmos influenciar pela importância que os estudos recebem mais tarde na ordem franciscana, perguntarmos qual foi o verdadeiro pensamento de Francisco a respeito dos estudos e da ciência, percebemos que para compreendê-lo com precisão, não basta dizer: Francisco não rejeitou os estudos e a ciência, mas apenas rejeitou seus abusos, i. é, a curiosidade, a vã erudição, o orgulho de superioridade, a vaidade. Essa desconfiança e atitude crítica contra os abusos e modos deficientes provenientes dos estudos e da vida científica eram um lugar comum da eloqüência eclesiástica do século XIII. Segundo Gratien de Paris, Francisco vai além desse lugar comum. Isso porque deliberadamente recusa assumir a ciência como um dos meios da ação franciscana, por causa do perigo que ela fazia correr ao seu ideal, à estrutura do seu instituto, ao seu sistema de apostolado, alicerçado mais e essencialmente sobre a força do exemplo do que sobre o poder do ensinamento verbal. Nem o apostolado da palavra nem o apostolado da ciência deviam nem podiam substituir o apostolado do exemplo (2 Cel 185, 193; RB 7).
- e) Sob que condição Francisco permitia os estudos científicos?
No entanto, recusando em se fazer promotor da ciência dentro da sua ordem, São Francisco não a quis banir. Cedendo a inúmeras solicitações dos clérigos, ele até consentiu que ela fosse cultivada, mas sob certas condições bem precisas, destinadas a imunizar os frades contra perigos demasiadamente reais, existentes nos estudos (cf. LM XI, 1)[11]. Assim:
- Em princípio, cada um dos seus seguidores deveria permanecer no seu estado e na sua profissão (RNB 7).
- Interditou os estudos aos irmãos não-clérigos (2 Cel 195).
- Portanto, os estudos foram permitidos àquele a quem já eram de direito pela profissão, e isto conforme a orientações então em vigor na Igreja, a saber, estudos da ciência sagrada exclusivamente. Outros tipos de pesquisa dificilmente se conciliavam, segundo Francisco, na interpretação de Gratien, com a vocação do frade menor. É o que se mostra nos elogios à simplicidade que Francisco faz diante dos seus irmãos (2 Cel 189). Tudo isso insinua dentro de que espírito, feitio e forma, os filhos de São Francisco deveriam e poderiam se doar aos estudos, a saber: no espírito de profunda humildade.
- Francisco ensina a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal; a piedade, e não a beleza estética (2 Cel 62). Dizia, pois: a maneira, a mais frutuosa de ler e de aprender não é a de percorrer mil tratados, mas de ler pouco e de meditar muito, de ruminar com devoção (2 Cel 102).
- Adquirida na meditação e na contemplação, a ciência que sabe São Francisco se perfaz na ação e deve tender a ação (Adm 7), conforme o seu axioma: “Um homem tanto possui da ciência, quanto aquilo que realiza em suas obras; e um religioso tanto possui da oração, quanto aquilo que na vida põe em prática” (LP 74).
- O verdadeiro frade menor não deve se dedicar aos estudos em vista principalmente da pregação, para buscar nos Livros Sagrados temas de especulações teoréticos, de belos materiais para discurso, para argumentos potentes, portanto não aprender somente a falar, mas em vista da sua própria santificação, i. é, aprender a agir, a melhor amar, a melhor viver.
- Essas colocações de Francisco não são apenas eloqüências; elas saem das suas entranhas, da sua própria experiência, de toda a sua vida.
E conclui Gratien de Paris: “A lealdade e a atividade que figuram entre os traços, os mais característicos da espiritualidade de São Francisco, lhe ditam esta atitude em vista da ciência”[12].
O que dissemos até agora é o que geralmente se costuma dizer mutatis mutandis sobre o problema estudos em São Francisco no início da ordem.
II – A questão dos estudos e sua interrogação
- A necessidade de desestabilizar a factualidade e despertar a realidade existencial
A descrição do que São Francisco pensava dos estudos na origem do franciscanismo é um problema. Como dissemos na nota n. 1 da introdução, problema é o que suscita dificuldades, dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma posição lançada como estabelecida. Examinemos em que sentido esse fato dado como sendo “experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco e seus companheiros” é algo estabelecido. Acima grifamos a expressão como sendo. Por que dissemos, grifando o como sendo? O que significa precisamente como sendo? O como sendo diz ao mesmo tempo sendo como. Mas, quando destaca o como do sendo do fato simplesmente dado, esse como já está predeterminado, já está posto, sim localizado num sentido do ser que se oculta como lugar comum ou pré-jazida, na qual, a partir da qual, para a qual e ao longo da qual o fato, os fatos, os momentos do fato repousam e recebem sua localização e consistência. Os fatos são, por assim dizer, entificações consolidadas desse prévio sentido do ser; algo como solidificações atomizadas desse sentido do ser. O que usualmente captamos, como quê simplesmente dado à nossa frente enquanto esta coisa, aquela coisa, enquanto isto e aquilo, são como blocos de formas terminais dessa entificação. Assim, temos diante de nós Francisco como este indivíduo, os seus companheiros como esta entidade, mais outra, mais outra etc. E a cada uma dessas coisas ou entidades, seja a cada uma, seja ao conjunto delas como a um bloco, atribuímos então atos de diferentes tipos que costumamos classificar como vivências, pensamentos, sentimentos, volições, ações etc. Temos assim, deste modo, o fato denominado “experiência pessoal e privativa” do indivíduo Francisco e de seus primeiros companheiros. O mesmo processo se dá, quando então, ao estabelecermos essa experiência pessoal de Francisco como fato e também os atos dos franciscanos posteriores como outro fato, opomos o fato experiência pessoal do indivíduo Francisco ao fato coletividade da Ordem na sua evolução e necessidade de adaptação. E sobre essa plataforma estabelecida de posição de fatos é que tentamos explicar o problema, sem des-estabilizar, sem lhe tirar essa fixidez da sua factualidade, i. é, o modo de ser do fato, no qual estão os fatos incrustados como se fossem coisas em si, ali dadas simples e obviamente.
A seguir, vamos ilustrar essa situação, tomando dois textos de Celano como pretexto para ampliar a reflexão sobre a diferença de colocação, quando miramos a vivência pessoal de Francisco como fato e quando tentamos de alguma forma intuir[13], i. é, ir para dentro do fundo dinâmico do movimento, da origem e estruturação da vida, denominada experiência pessoal de Francisco.
1.1 Ilustração-exemplo 1
O primeiro texto é 2 Cel 102, citado por Gratien para nos mostrar que Francisco ensinava a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal; a piedade, e não a beleza estética. Segundo Francisco, pois, a maneira, a mais frutuosa de ler e de aprender não é a de percorrer mil tratados, mas de ler pouco e de meditar muito, de ruminar com devoção. Diz Celano:
Embora não tenha tido nenhum estudo, o santo aprendeu a sabedoria do alto, que vem de Deus, e iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras. Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor. Lia, às vezes, os livros sagrados, e o que punha uma vez na cabeça ficava indelevelmente gravado em seu coração. Usava a memória no lugar dos livros, porque não perdia o que ouvia uma vez só, pois ficava refletindo com amor em contínua devoção. Dizia que esse modo de aprender e de ler era muito vantajoso, sem ter que folhear milhares de tratados. Era um verdadeiro filósofo, porque não preferia coisa nenhuma mais que a vida eterna. Afirmava que passaria facilmente do conhecimento de si mesmo para o conhecimento de Deus aquele que estudasse as Escrituras com humildade e sem presunção. Era freqüente resolver oralmente as dúvidas de algumas questões porque, embora não fosse culto nas palavras, destacava-se vantajosamente na inteligência e na virtude.
Esse relato de Celano se refere a uma experiência pessoal sui generis de Francisco. O relato, porém, ao falar da experiência pessoal, o faz a modo de uma constatação de fatos e ocorrências. Relata, pois, não a partir de experiência pessoal de Francisco, mas sim sobre ela como fato constituído de inúmeros fatos, todos eles já pressupostos. Temos assim o fato este indivíduo sujeito, chamado Francisco de Assis; sua inteligência; o seu afeto, cheio de amor; sua cabeça privilegiada; sua memória. Temos as ocorrências da ação desse indivíduo sujeito Francisco: aprendia sabedoria do alto; era iluminado pelos fulgores da luz divina; penetrava os segredos dos mistérios; lia livros sagrados; não perdia o que ouvia uma vez etc. Os atos desse indivíduo sujeito Francisco se dirigem sobre fatos reais ou tidos como tais, a saber, p. ex., estudos; sabedoria do alto; Deus; iluminação dos fulgores da luz eterna; Sagradas Escrituras; segredos dos mistérios; livros; milhares de tratados; vida eterna; conhecimento de si mesmo; conhecimento de Deus; inteligência; memória; amor; virtude; humildade etc. Todos esses fatos que, por sua vez, são como que um todo tecido por outros pequenos fatos expressam no seu conjunto a constatação do fato real ou supostamente ocorrente de que esse indivíduo sujeito, chamado Francisco não tinha estudos, mas aprendeu a sabedoria do alto; e que a sua inteligência estava iluminada e plena da luz e do vigor da sabedoria divina; que mais do que do saber intelectual humano dos estudos recebia o seu conhecimento do sabor da afeição do seu coração, cheio de amor, da sua busca preferencial da vida eterna, na virtude da humildade etc. Cada fato e cada conjunto de fatos, em pluriformes concatenações no percurso da narração de Celano – (na sua totalidade e dentro dessa totalidade, cada fato por sua vez também como totalidades na sua conjuntura, correspondente a cada momento da narração) – são como que objeto(s) da própria ação narrativa do relator Celano que, por sua vez, ao narrar os fatos, ali está também como fato, cercado por inúmeros diferentes fatos, relatados ou pelo próprio relator ou por outros relatores que nos informam sobre Celano.
Nessa complexa rede, tecida de fatos, onde os fatos são como que nós, i. é, pontos de convergências de concatenações do todo, os fatos não estão ali como entidades, cujo sentido do ser seja unívoco e homogêneo, mas operam como entroncamentos de diferentes linhas do sentido do ser. Assim, cada fato conforme a conjuntura em que se acha, pode aparecer como componente de um todo, cuja referência é, p. ex., historiografia, psicologia, sociologia, antropologia cultural etc., conforme o horizonte e enfoque sob cuja mira o relator considera o fato. Desse modo cada vez ao redor de cada fato, abre-se uma bem determinada paisagem própria que se constitui como conjunto de fatos impregnado por um determinado sentido do ser, o qual cada vez deveria ser sondado e tematizado para se perceber em que sentido o fato deve ser entendido. P. ex. no relato de Celano a constatação de que Francisco, apesar de não ter nenhum estudo, aprendeu a sabedoria do alto etc., se estou concentrado em averiguar se tudo isso é de fato real ou apenas uma atribuição devota subjetiva de veneração de um admirador fiel do Francisco, o fato se apresenta apenas no seu modo de ser formal abstrato. Aqui o fato não libera de si o conteúdo interno e assim é compreendido meramente como dado “objetivo” da ocorrência físico-real material. Numa tal perspectiva do horizonte de averiguação factual é que surge então a dúvida se essa sabedoria do alto que vem de Deus, os fulgores da luz eterna etc. de fato são reais ou apenas projeções subjetivas, provenientes do enfoque de uma crença religiosa.
Se agora consideramos como fatos a inteligência, a memória de Francisco, suas virtudes, o que ali entendemos por inteligência, memória, virtudes etc. por estarem já na formalização generalizante da perspectiva do horizonte de enfoque do saber psicológico, do antropológico etc., apenas nos revelam que são faculdades de alma, uma vez como capacidade de compreensão intelectual, outra vez como depósito mental dos dados adquiridos, ou hábito ético adquirido pela contínua repetição de exercícios.
Dentro desse enfoque factual, por mais que detalhemos os dados, por mais que acrescentemos fatos sobre fatos, o todo do relato – e cada fato ali ocorrente – é como que recoberto por uma camada de solidificação “coisificante”, a ponto de não deixar transparecer a dinâmica de pulsões estruturantes que fazem eclodir de dentro pluriformes níveis de dimensões que surgem, crescem e se consumam cada vez de novo como totalidades que não são outra coisa do que gênesis das possibilidades da abertura livre de novos mundos. Desestabilizar a solidificação factual da projeção objetivante e deixar aparecer a “vida interior” dos fatos é o que designamos por desestabilizar e deslocar o(s) fato(s) para dentro de experiência pessoal, no nosso caso de Francisco de Assis. Essa desestabilização não consiste apenas em examinar as vivências subjetivas “pessoais” de Francisco, mas sim muito mais em considerar o que usualmente chamamos de experiência pessoal de Francisco como, digamos, um buraco de fechadura de um quarto trancado, através do qual começamos a vislumbrar uma paisagem aberta de todo um mundo novo, até agora não percebida. No entanto, tão logo começamos a detalhar o fato “experiência pessoal e particular do indivíduo Francisco”, determinado como “idéias de São Francisco sobre estudos e ciência”, a opacidade e a fixidez começam a diminuir e aparecem detalhes de conteúdos, relacionamentos, implicações e explicações que nos começam a esboçar toda uma região ou paisagem de significações e valores que constituem todo um mundo próprio chamado experiência pessoal de Francisco. Assim, o que antes ali estava dado simplesmente como fato se abre, a partir de dentro na sua implicação, como explicação de um todo, mais profundo, oculto para dentro de uma pré-jazida viva, digamos, pré-factual. Se agora, tomarmos as indicações dos textos, donde Gratien de Paris tirou as descrições dos fatos, as quais resumimos a cima, e formos ler, nós mesmos, esses textos, cuja fonte assinalamos entre parentes ou nas notas do roda-pé, então o fato, há pouco explicitado como todo um mundo de significações e valores chamado experiência pessoal e privativa de Francisco, continua a se explicitar e a se intensificar, a se estruturar, se adensando, se diferenciando cada vez mais como mundo, e se revela e se oculta ao mesmo tempo como imensidão, profundidade e originariedade de uma totalidade viva e dinâmica do mundo, no qual, para o qual, a partir e através do qual pulsa a realidade todo própria, chamada usual e banalmente de vida de São Francisco. A fixidez da locação dos entes-fatos se liquefaz e começam a eclodir regiões e regiões da paisagem dos entes que povoam e constituem o mundo exterior e o mundo interior, onde Francisco e seus primeiros companheiros estão inseridos até o pescoço. Mas este Francisco não é mais aquele Francisco-indivíduo, ali dado simplesmente como fato, qual substância-bloco no meio de outros fatos, mas sim como que a vivência, a explicitação viva e concrescida de todos os fatos que lhe cercam por fora e por dentro, os quais ele assume, dos quais se responsabiliza a partir de um fundo, o mais profundo da intimidade dele, na qual e para a qual ele se per-faz e a partir da qual se constitui como experiência corpo a corpo do e no toque de uma inspiração que abre toda uma nova realidade, todo própria e única denominada seguimento de Jesus Cristo, Crucificado. Essa “realidade” inspiradora não é no entanto algo já existente em si, a modo de entes e fatos simplesmente dados, nem é fato entre outros fatos que estão dentro e fora do sujeito Francisco, mas sim o que impregna todo o ser de Francisco como o sentido do seu pensar, agir e sentir, de todos os seus anelos e desejos, de todos os seus afazeres, de todas as paisagens que constituem a sua vida.
1.2 Ilustração-exemplo 2
O segundo texto diz respeito ao relacionamento pessoal, íntimo de Francisco para com Jesus Cristo Crucificado, que, por assim dizer, seria o protótipo da experiência pessoal de Francisco. Diz 1 Cel 115:
Os frades que conviveram com ele sabem, (…) que estava todos os dias e continuamente falando sobre Jesus, e como sua conversação era doce, suave, bondosa e cheia de amor. Sua boca falava da abundância do coração, e a fonte de amor iluminado que enchia todo o seu interior extravasava. Possuía Jesus de muitos modos: levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros. Quantas vezes, ao sentar-se para almoçar, ouvindo ou falando ou pensando em Jesus, esquecia-se do alimento corporal e, como lemos a respeito de um santo: “Vendo, não via; ouvindo, não ouvia”. Também foram muitas as vezes em que estava viajando e, pensando em Jesus ou cantando para ele, esquecia-se do caminho e convidava todos os elementos para louvarem a Jesus. E porque conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado, foi marcado por seu sinal com uma glória superior à de todos os outros. Contemplava-o, em êxtase, sentado numa glória indizível e incompreensível, à direita do Pai, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo vive e reina, vence e impera, Deus eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos. Amém.
Como no texto anterior de Celano, observamos que também aqui se fala da experiência pessoal de Francisco a modo de uma fala sobre o fato indíviduo-Francisco e sobre seu ato denominado relacionamento íntimo com Jesus Cristo. Aqui também se apresentam diferentes tipos de fatos: fato indivíduo-Francisco; fato seus atos; fato Jesus Cristo, objeto do ato de relacionamento íntimo do indivíduo-Francisco; fato indivíduo-Celano que fala sobre Francisco e seus atos; fato-indivíduo ou grupo de indivíduos que examinam e pesquisam todos esses fatos referentes ao indivíduo-Francisco etc.,etc. Divisamos, em todos esses fatos dados, seus diferentes modos de ser como diferenças ônticas. Diferenças ônticas indicam, pois, o modo, de cada ente aqui dado como fato, aparecer como sendo[14]. A identidade desses como sendo, o sentido do ser desses como sendo, que encobre e subsume todos esses diferentes entes nas suas diferenças ônticas é o sentido do ser que caracteriza o modo de se dar, o modo de se apresentar do fato, da entidade, cujo ser é a presença da objetividade, i. é, da realidade objeto-coisa físico-material[15]. Costumamos denominar o sentido do ser desse modo de ser comum a todos os entes e que serve como de horizonte geral-formal dentro e a partir do qual os entes são dados como fatos a modo da realidade objeto-coisa físico-material, de ser-ocorrência ou ser simplesmente dado. Esse horizonte do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado inclina sempre de novo tenazmente a servir de fixador na tentativa e na tentação de salvaguardar a “realidade” dos fatos, para não se esvair no fluxo caótico de aparecimento desordenado dos entes no seu ser. Essa tendência fixadora dos entes na dinâmica da entificação, decai sempre de novo e, se fixa na sua decadência, no sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado como o critério, a medida básica, elementar e suprema da compreensão de toda e qualquer “realidade”, como o sentido do ser fundamental e fundante, comum e geral de todos os entes. Com isso as diferenças ônticas são encobertas sob uma maciça camada de univocação generalizante, cujo conteúdo significativo não libera a concreção viva e dinâmica do próprio de cada ente na sua diferença. A diferença do ser de cada ente, não é considerada a não ser como uma diferença ôntica já dentro e a partir de uma identidade geral-formal que então serve como identidade ontológica de duas coisas diferentes entre si, mas tendo como modo de ser básico e fundamental de ser, ao menos e antes de tudo, de “algo”, “coisa”, fato, ocorrência. Dentro dessa colocação, temos, pois, coisas materiais e espirituais; coisas humanas, coisas não-humanas de vários tipos, coisas divinas, coisas apenas coisas, coisas apenas idéias, coisas concretas e reais, coisas subjetivas e coisas objetivas etc. etc. Como aparece, pois, dentro dessa perspectiva do horizonte do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado, a experiência pessoal acima mencionada de São Francisco no seu relacionamento íntimo com Jesus Cristo, como é relatada em Celano? P. ex. onde se localiza o sentido vivo e concreto de continuamente falando sobre Jesus; sua conversação doce, suave, bondosa e cheia de amor; sua boca falava da abundância do coração; o amor iluminado que enchia todo o seu interior e extravasava; sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros; conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado; foi marcado por seu sinal com uma glória superior à de todos os outros; em êxtase; o Pai, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo; Deus eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos? Respondemos usualmente: entre coisas psicológicas, coisas vivenciadas, espirituais, divinas, coisas projetadas por Francisco, coisas, em todo o caso mais subjetivas do que reais, factuais e ocorrentes em si, como dados objetivos verificáveis concretamente. Ou melhor, incluindo todos os dados desse gênero sob a denominação geral de coisas subjetivas da experiência pessoal do indivíduo sujeito-Francisco. No entanto, com essa resposta reduzimos a experiência pessoal-Francisco ao fato-coisa sujeito e seus atos subjetivos individuais ao lado de outros fatos coisas ou subjetivos ou objetivos de diferentes tipos e classificações já estabelecidas e fazemos com que toda a paisagem inteiramente nova, viva e concreta de um mundo todo próprio real, realíssimo e bem estruturado na sua dinâmica criadora fique neutralizada sob opacidade indiferente e a factualidade monótona, sem cor, sem tonância, sim sem vida. Com isso todos os termos e as expressões do relato acima mencionado não vêm à fala, a não ser como referências aos fatos, às coisas diversificadas do modo de ser preestabelecido, sim padronizado do sentido do ser da ocorrência, do simplesmente dado; impedindo que consigam percutir e repercutir como toque da origem de todo um mundo da realidade realíssima nova, portanto como diferença ontológica de uma identidade ontológica todo própria de um sentido do ser mais vasto, mais profundo e mais originário do que o sentido do ser preestabelecido como ocorrência ou simplesmente dado.
O que acontece com a assim chamada experiência pessoal, i. é. individual privativa e subjetiva de Francisco, se ela não for um dos fatos entre outros fatos que ocorrem nele “interiormente” junto com outros que o rodeiam “exteriormente”, mas sim o próprio saltar, o próprio surgir de todo um mundo, cuja paisagem está impregnada de um sentido do ser inteiramente novo, não vindo desse fato particular subjetivo do indivíduo denominado Francisco, mas sim do toque de inspiração que possibilita e cria a realidade originária em cujo âmbito aberto se tornam possíveis Francisco e seus atos, suas obras, seus companheiros e a Ordem, seu destinar-se através da história, em suma, onde se torna possível a existência franciscana? Mas para que uma tal abertura da possibilidade da gênesis da nova realidade possa ser vista e intuída, o ser do homem e o homem no seu ser devem ser compreendidos não a partir do sentido do ser que solidifica tudo na entificação factual, mas sim a partir e dentro do sentido do ser mais vasto, mais profundo e mais originário, denominado na fenomenologia de existencialidade da existência humana, ou ser da existência[16].
- Excurso: fato e existência
Para marcar bem essa diferença entre fato e existência recorramos a uma descrição de um par de sapatos do camponês, que na captação usual cotidiana ali está como uma entidade-fato simplesmente dada. A descrição nos mostra como é diferente considerar um fato como fato e vivenciar o mesmo fato como mundo, i. é, como estruturação da existência. A descrição se refere ao par de sapatos da obra de Vincent van Gogh, feita por Martin Heidegger na famosa conferência intitulada A origem da obra de arte[17]. Reproduzimos simplesmente, sem comentá-la, a descrição da conferência, pois, aqui queremos apenas registrar, sentir e perceber a mudança de tonância e de colorido de toda uma paisagem da realidade operada pela mudança do sentido do ser que está à raiz do abrir-se de toda uma nova possibilidade da realização da realidade.
- a) O fato:
Escolhemos como exemplo um artefato: um par de sapatos de camponês. Para sua descrição não é, sequer, necessário colocar diante de nós uma peça real dessa espécie de artefato de uso. Todo mundo o conhece. Mas, porque se trata de uma descrição imediata, seria bom facilitar a visualização. Para sua ajuda basta uma apresentação pictórica. Para isso escolhemos um conhecido quadro de van Gogh, que várias vezes retratou o artefato-sapato. Mas o que há ali para ver? Todo mundo sabe o que pertence ao sapato. Se não são especialmente sapatos de madeira ou de corda, encontramos ali a sola e a cobertura de couro, ambas costuradas com fio-barbante e agulha. Um tal artefato serve para cobrir os pés. Correspondendo à utilidade, se é para trabalho do campo ou dança, são diferentes matéria e forma.
- b) Desestabilização do fato e interrogação
Tais dados corretos interpretam apenas o que nós já sabemos. O ser do artefato consiste na sua utilidade. Mas o que há com a utilidade, o uso ele mesmo? Captamos com o uso já a essência do artefato? Não devemos, para que isto se dê, visitar o útil artefato no seu servir? A camponesa no campo calça os sapatos. Somente aqui, os sapatos são o que são. E eles o são tanto mais autenticamente, quanto menos a camponesa pensa neles ou os visualiza ou apenas sente. A camponesa está de pé e anda neles. É assim que os sapatos servem efetivamente[18]. Nesse processo do artefato em uso, a essência do artefato deve nos vir ao encontro efetivamente.
Em contrapartida, enquanto representamos um par de sapatos apenas assim em geral ou olhamos em imagem os sapatos que ali estão, vazios e fora do uso, jamais haveremos de experienciar o que é em verdade o ser-artefato do artefato. Segundo o quadro de van Gogh, não podemos nem sequer constatar, onde estão estes sapatos. Ao redor desse par de sapatos de camponês, não há nada, aonde e onde eles poderiam pertencer, apenas um espaço indeterminado. Nem sequer estão grudados neles torrões dos blocos de terra, deixados pelos sulcos do arado ou do caminho do campo, o que aliás poderia ao menos indicar a sua utilização. Um par de sapatos do camponês e nada mais. E no entanto.
- c) A existência e sua estruturação
Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência[19]. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somenteno artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade[20]. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra estão assim ali à camponesa e aos que com ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos “apenas” e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à terra a liberdade da impulsão permanente.
O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai à apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser ele próprio[21].
3 – A questão dos estudos e uma interrogação existencial ao problema dos estudos
Os exemplos e o excurso acima apresentados nos podem mostrar como é diferente, de um lado, lidar com os fatos e estabelecer ligações entre fatos e fatos e então discutir e detalhar os problemas das “realidades” factuais e, por outro lado, considerar os fatos e seus problemas sob a mira de uma busca do sentido do seu ser, portanto, como é diversa a abordagem da história enquanto historiografia e a aproximação da investigação que tenta trazer à fala o acontecer de um evento, em deixando ser o destinar-se ou historiar-se no seu ser. Para que essa diferença se torne também nítida entre o problema e a questão dos estudos em São Francisco na origem e no primeiro século de franciscanismo seria necessário realizar algo semelhante ao que Heidegger fez acerca do artefato-sapato, reduzindo i. é, reconduzindo a reflexão para a origem[22] do artefato ou ao ser-artefato do artefato. Portanto, no nosso caso, reconduzir os fatos simplesmente dados da vida de São Francisco e os conteúdos da sua fala e de seus escritos sobre isso e aquilo, à dinâmica da inquietação in-vestigante das impulsões que desvelem toda uma dimensão do ser, a assim chamada existência franciscana, que uma vez decaída do seu modo de ser originário, se transmuda na mundividência chamada franciscanismo. Este trabalho não podemos realizar aqui como seria necessário para evidenciar a implicação do nosso tema, pois extrapolaria os limites de um artigo. No entanto, tentemos na medida do possível tecer algumas reflexões acerca do modo de ser da interrogação existencial do problema dos estudos em São Francisco, para que esse assunto que nos toca como franciscanos adquira maior seriedade e concreção enquanto questão do nosso ser franciscano, hoje.
Pelo que viemos refletindo, tornou-se de alguma forma mais claro que examinar os estudos na ordem no nível da factualidade não nos satisfaz plenamente, por causa da opacidade e do imobilismo formal abstrato da colocação factual no seu todo. Tornou-se também mais temática a diferença existente entre a abordagem objetiva dos fatos a modo historiográfico e a investigação do fundo ontológico do fato como realidade-existência, a modo da história do ser do homem. Muita coisa está ainda obscura e indeterminada no que toca a compreensão da existencialidade do ser do homem em contraste com a factualidade da entificação coisista da realidade, inclusive do homem. Mas, mesmo assim, mesmo a partir dessa compreensão bastante imperfeita e provisória, tentemos colocar sob uma única interrogação a formulação usual do problema dos estudos em São Francisco, na origem e no primeiro século do franciscanismo, tendo também à mão o que com mais detalhes expusemos ao resumir as colocações de Gratien de Paris na nossa reflexão I, 4 sob o título: “As idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência”.
Dissemos no início de nossa reflexão, I, 3, que sobre os estudos enquanto problema, na origem em São Francisco e no primeiro século do franciscanismo, há, na quase totalidade dos autores, uma e a mesma impostação. Segundo essa colocação, os estudos estão ligados à evolução e ao crescimento da ordem, à sua clericalização, à intelectualização dos seus membros, devido ao apelo e às exigências da Igreja, por causa da evangelização. Assim trata-se mais da diferença existente entre São Francisco e o pequeno grupo de seus seguidores do início com o seu modo pessoal de compreender e viver o seguimento (Evangelho), na experiência radical da pobreza na identificação com o Cristo Crucificado, de um lado; e o modo de ser da ordem, de outro lado que como comunidade em crescimento rápido e contínuo, não mais podia viver como coletividade o radicalismo[23] ideal, ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio da presença física do fundador. Na medida do seu crescimento, a ordem estava dentro da necessidade do desenvolvimento histórico, sob a convocação feita pela própria Igreja, de se dispor e se adaptar às necessidades epocais da Igreja e do mundo, no que se refere à evangelização.
A essa colocação do problema dos estudos em São Francisco, na origem da Ordem franciscana interroguemos: o seguimento de Jesus Cristo, Crucificado, em São Francisco é algo pessoal, privativo só para poucos indivíduos e não para a ordem como coletividade? ou será aqui não se trata decididamente de uma dimensão totalmente nova e diferente da realidade que exige de nós uma inteiramente nova compreensão do ser?
- Franciscanismo e a existência franciscana
O fato-experiência de seguimento em Francisco, compreendido dentro da colocação usual do problema dos estudos, como radical, mas pessoal privativo, só é possível[24] a poucos e a pequenos grupos, não, porém à ordem evoluída para um grande estamento social… Os predicados radical, ideal, pessoal privativo atribuídos à experiência religiosa de Francisco, como também os correspondentes moderados, real concreto, comum atribuídos à ordem como coletividade, para explicar o porquê do surgimento dos estudos entre frades, são binômios de segmentos da tabela de classificação, na qual, de um lado a experiência de Francisco e de seus primeiros companheiros é taxada de individual e, de outro lado, a vivência e a resolução da ordem já evoluída, são taxadas de coletivas e comunitárias. Mas em assim se efetuando a classificação, não está examinado nem tematizado o que realmente no seu conteúdo e na evidência significam esses binômios. É que os binômios achatam a compreensão dos fatos, reduzindo-a a suas significações usuais já estabelecidas e não permitem que os fatos venham à luz na mostração do que são. Lancemos pois sobre o fato-experiência de seguimento em Francisco e seus primeiros companheiros uma interpelação interrogativa e lhe perguntemos o que é, como é, esse acontecimento já de antemão classificado como radical, ideal, pessoal e privativo. Uma resposta a esse interrogatório só pode vir, a partir do próprio fato, mas agora captado, não no achatamento da classificação já feita, mas sim nele mesmo, em concreto, na e-vidência.
No outono (setembro-dezembro) de 1205 Francisco recebe a voz do crucifixo de São Damião: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai pois e restaura-a para mim”. O título do capítulo 5 da Legenda dos 3 companheiros onde está relatada a fala do crucifixo é: Da primeira vez em que o Crucificado lhe falou, e como, desde este momento até a morte trouxe a paixão de Cristo em seu coração. E a resposta de Francisco, a decisão de sua existência é: Com muito boa vontade o farei, Senhor! No prosseguimento dessa tarefa, se dá o confronto com o pai, Pedro Bernardone e a entrega total a Deus, diante do bispo de Assis. Aos poucos se agrupam ao redor dele seguidores. E em 1209 Francisco escreve a sua primeira regra, vai a Roma com 11 companheiros pedir a aprovação de Inocêncio III para a vida de seguimento de Jesus Cristo, Crucificado, a vida da pobreza. Obtém a aprovação, mas só oralmente. Trata-se da assim chamada Primeira Regra franciscana, hoje perdida.
Do conteúdo dessa regra nada sabemos. Aliás, por isso mesmo ela nos parece inteiramente inútil para termos notícias sobre se e o que ela fala acerca dos estudos. No entanto, o surgimento da Primeira Regra e suas implicações e pressupostos, suas subseqüentes reformulações como Regra Não Bulada, e finalmente como Regra Bulada e o Testamento, o qual Francisco quer que consideremos não como uma outra Regra, nos podem revelar o modo de ser, digamos, interno e entranhado disso que, externa e usualmente denominamos de fato-experiência religiosa de Francisco na sua conversão pessoal. O fato-surgimento da Primeira Regra 1209 é como a pequena ponta visível de um ice-berg. Oculta sob a camada “objetiva” de um fato historiográfico, cronologicamente datado em 1209 e caracterizado como uma etapa final da experiência subjetivo-pessoal do sujeito-indivíduo Francisco, o surgir e crescer de intensificação do ser da realidade, a qual podemos denominar de mundo franciscano ou ser-no-mundo todo próprio chamado existência franciscana.
Em geral, quando falamos de existência franciscana, pensamos a mundividência franciscana, i. é, visão, concepção do mundo e da vida do(a)s franciscano(a)s. É o francisicanismo. Essa mundividência se origina com Francisco, se inspira nele. Mas não é a experiência pessoal e originária do próprio Francisco. É já derivada, e muitas vezes até um modo deficiente. Nessa perspectiva, portanto, o franciscanismo, a “existência franciscana” ou mundividência franciscana não coincide simplesmente com a experiência pessoal e originária de São Francisco. Temos então, de um lado: a experiência pessoal e privativa de Francisco (e de seus primeiros companheiros); e de outro lado: a concepção do mundo e da vida, aceita e cultivada por muitos, por um grupo ou grupos de pessoas que simpatizam, amam e seguem a São Francisco nos inúmeros movimentos inspirados por sua espiritualidade ou pertencendo à ordem que ele fundou. A palavra existência franciscana pode ser também entendida como indicando a plena vida de Francisco com a sua experiência pessoal de seguimento de Jesus Cristo Crucificado. Nesse caso existência franciscana não é sinônimo de franciscanismo nem de mundividência franciscana, mas sim do que há de mais nuclear, autêntico, íntimo e profundo na vivência e experiência do indivíduo Francisco. É o próprio coração, a própria alma de Francisco. Trata-se de todo um mundo de “realidades” vivas de estruturações complexas que constituem o interior, o cerne da “pessoa” (leia-se indivíduo ou sujeito) Francisco. É o que vislumbramos tão logo começamos a cavar debaixo da superfície opaca e fixa dos fatos e deixamos vir à tona a dinâmica constitutiva da paisagem interior dos fatos e acontecimentos. É mais ou menos nessa perspectiva de fundo que Gratien de Paris nos mostrou as idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência. Aqui, o fato “experiência pessoal e privativa” de Francisco se torna muito mais complexa, rica e diferenciada nos seus detalhes. Mas Francisco é sempre ainda considerado como sujeito que faz, vivencia e agencia a sua experiência religiosa, que ele possui (e é por ela possuída), em contraposição à mundividência dos que o seguiram, mas de um modo menos radical, mais adaptado às necessidades e exigências das épocas posteriores.
A situação muda inteiramente, se entendermos existência franciscana no sentido especificamente fenomenológico, acima explicitado, principalmente à mão da descrição dos sapatos do quadro de van Gogh, feita por Heidegger[25]. Isso porque existência franciscana, nesse caso, não significaria nem a vida de Francisco e sua experiência pessoal, privativa, na origem do movimento franciscano, nem a vida dos que a ele sucederam como seus seguidores ou fãs, nem suas vivências e mundividências, inspiradas por Francisco, mas sim, o que possibilita a ambas, o que dá essência, o sentido do ser, tanto a Francisco como a nós, seus seguidores, tanto na origem, no primeiro século do franciscanismo, como nos séculos subseqüentes, como também hoje e amanhã. Existência franciscana é o que se denominou na tradição da espiritualidade, de espírito de São Francisco ou carisma fundacional.
III – A questão dos estudos na ordem, ontem e hoje
- Existência franciscana como espírito ou carisma fundacional
Essa compreensão fenomenológica[26] do que denominamos há pouco de existência franciscana, agora como espírito ou carisma fundacional[27] de São Francisco, se torna de importância decisiva na questão do problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo. Isso porque ela modifica inteiramente a impostação da busca em referência aos fatos do problema dos estudos na ordem. Em que sentido? No sentido de a experiência pessoal e privativa de Francisco não ser mais considerada como algo individual, particular, subjetivo, só válido para este caso, aqui e agora, para este fato empírico e ôntico “Francisco”; mas sim, ser ela o lugar, onde vem à fala e toma corpo o lance fundacional de uma inteiramente nova possibilidade do sentido do ser que se torna condição da possibilidade do ser franciscano, portanto se torna existencialidade da existência franciscana. Trata-se pois da medida fundamental, universal e apriorística de todo e qualquer movimento que pretende carregar o qualificativo de franciscano, inclusive do próprio Francisco[28]. Enquanto medida universal de tudo que é e pode ser franciscano, essa experiência pessoal de Francisco, enquanto existência franciscana, se torna a única questão, i. é, a única ação de busca dos estudos dos seus seguidores. O que usualmente denominamos de experiência de uma pessoa, entendendo-a como vivência subjetiva, i. é, da pessoa enquanto sujeito indivíduo, em São Francisco é existência. Para que compreendamos vivência subjetiva de Francisco como concreção do ser da existência, é necessário que a vivência seja entendida como um momento, portanto dentro da perspectiva da absoluta doação de toda a vida de Francisco inteiramente dedicada ao seguimento de Jesus Cristo Crucificado. A intensidade dessa doação apaixonada é tamanha que culmina na conformidade de Francisco com o Crucificado, na total identificação com Ele, na estigmatização sobre o Monte Alverne. Assim, Francisco é chamado de um outro Cristo. Uma tal identificação com o outro na doação e recepção mútua de si se chama encontro. É união, comunhão no amor. A identificação unitiva no amor de encontro no seguimento de Jesus Cristo Crucificado é talvez a realização suprema, ou melhor, uma das tentativas – das mais intensamente experimentadas na história do pensamento ocidental – de penetrar e perfazer um novo sentido do ser da realidade no seu todo, que no cristianismo recebeu o nome de Boa Nova ou Evangelho do mistério da Encarnação. Na mística do cristianismo medieval, como pressuposição ontológica de sua metafísica[29], o sentido do ser do ente na sua totalidade se dá num único ente, todo próprio, sui generis, supremo e absoluto que concentra em si toda a intensidade do ser. E isso de tal sorte que aqui ser e ente coincidem. Esse ente único, o ente como tal se chama Deus. Deus é ipsum esse, fora de Deus não há propriamente ente, a não ser a modo analógico. Por concentrar em si toda a força da entidade, se atribui a Deus ser no grau de excelência infinito, absoluto, necessário, onipotente, onisciente etc. No entanto, o característico próprio desses atributos de supremacia como infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser necessário, ser a se não é a supremacia e o poder da metafísica do sentido do ser simplesmente dado, mas sim de ternura e vigor de liberdade, cuja excelência, cuja consumação se chama pessoa[30] e é desvelada no mistério da Santíssima Trindade, um Deus em três pessoa. Nesse sentido a infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser necessário, ser a se, diz: o sentido do ser é suma, infinita, icomensurável, clara e livre, sem nenhuma exigência de condições, toda e absolta doação infinita que tudo pode na ternura e vigor da gratuidade da oferta de si. Essa colocação fundamental como o sentido do ser da totalidade que impregna e estrutura criativamente todo um mundo próprio de ser, pensar, agir, é proposta como princípio prático da introdução à experiência fundamental e fundante do mundo cristão, formulado como o grande mandamento do amor, a saber, amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente, e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37-40). Mandamento esse que em Jesus Cristo, na última ceia, alcança a sua consumação como o novo mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei (Jo 13,34).
Toda essa concatenação de referências que liga a experiência pessoal de Francisco ao seguimento, à identificação com o Crucificado, e esta ao amor unitivo denominado encontro, e tudo isso à realização suprema do grande mandamento do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo, do novo mandamento, dado por Cristo na última ceia, portanto, tudo isso quer apenas realçar que todas essas “coisas” referidas, uma vez entendidas como constituintes essenciais da existência franciscana, não mais devem ser representadas como ações e compreensões de um sujeito chamado Francisco, mas sim como toda uma dimensão, como todo um mundo de “realidades” e “possibilidades” de ser, caracterizado no Evangelho como Reino dos céus ou novo céu e nova terra. Lembremos que as idéias de São Francisco sobre estudos e a ciência, como Gratien de Paris as apresentou no III, 3 do seu livro já citado no início dessa exposição, pertencem como elementos constitutivos a essa realidade da união de amor de encontro, e somente recebem o seu pleno sentido a partir dela.
Usamos há pouco a expressão “realidade da união do amor de encontro”. Realidade diz e pressupõe ser. Ser, a saber, um sentido do ser[31]. União, amor e encontro só tem sentido próprio, a partir e dentro do horizonte de um determinado sentido do ser. São conceitos que revelam, por assim dizer, o fundo pré-jacente do horizonte desse sentido do ser. Como tais, são suas categorias fundamentais denominadas existenciais. Com o risco de tornar-se chato e pedante, repitamos o que já foi dito várias vezes anteriormente: Mas o sentido do ser aqui operante na união do amor do encontro, não pode ser apreendido a partir e dentro do horizonte do sentido do ser dos fatos-coisas. Dito com outras palavras, para se compreender devidamente o que seja união do amor do encontro, necessitamos intuir, i. é, ir para dentro de uma nova e outra compreensão de um outro e novo sentido do ser, muito mais rico, mais diferenciado, vivo e dinâmico do que a usual compreensão do ser que está à base da compreensão dos entes como coisas e fatos. Surge aqui a possibilidade e a necessidade de uma nova e outra ciência do ser, da ontologia existencial ou fenomenológica[32]. O que aparentemente parecia ser um fato da experiência pessoal e privativa que pertence à classe dos atos da vivência chamada religiosa ou mística se revela como sendo o vir à fala da possibilidade de uma nova e outra ciência do ser. Isto significa que quanto mais pessoal, íntima e religiosa for uma experiência, tanto mais deve estar impregnada da clarividência do modo de ser de uma nova e outra ontologia, ciência do ser.
Por isso essa nova e outra ciência do ser[33] diz: quanto mais pessoal, íntimo e religioso for o ente, tanto mais intensidade, profundidade, vastidão e pregnância deve possuir do ser. E, como foi dito acima, segundo os medievais, o ente que por excelência é pessoa absolutamente, a tal ponto de ser três pessoas numa só natureza ou essência, de ser o amor entranhado na ternura e vigor da doação e recepção mútua de si na benevolência e comunhão, é o Deus Uno e Trino, o Deus do amor do encontro e do encontro do amor da vida divina, no abismo da intimidade do mistério da Encarnação. Tudo isso quer dizer, por sua vez, que todo o seguimento de Jesus Cristo Crucificado, vivido corpo a corpo, em todas as dimensões do ser, até a consumação de total identificação com o Crucificado, ou numa palavra, a vida de pobreza, foi para Francisco o seu único e grande empenho, i. é, studium, os seus estudos na aprendizagem dessa suprema, nova e outra ciência do ser do “espírito do Senhor e do seu santo modo de operar” (RM 10).
- A questão dos estudos, hoje
Na perspectiva de uma tal compreensão do ser por excelência, onde o ser coincide com o ente único, singular e supremo, que não é outra realidade do que o amor do encontro e o encontro do amor, a SS. Trindade no mistério da Encarnação, portanto o amor de Deus e Deus de amor temporalizado e de-finido como este, concreto indivíduo-pessoa Jesus Cristo; portanto, na mira de uma tal ciência do ser do amor de Deus, o conceito, i. é, a concepção do que seja pessoal, se liberta inteiramente do binômio subjetivo-objetivo, individual-coletivo, para se estruturar livremente como coincidentia oppositorum[34], na unidade viva da singular totalidade, denominada pelos medievais de universal. Por isso, em vez de essencial, substancial, em vez de concentração ou intensificação ou qualificação e plenitude do ser, diziam os medievais também uni-versal[35]. Por conseguinte, universal diz vertido, com-vertido, virado de volta, centrado ao uno. Isto é: convergência do e para o uno, recolhimento e expansão, acolhimento e doação do e no uno, a saber na absoluta concentração do ser, a saber, do ser do Deus de amor uno e trino, na contração do mistério da encarnação como Jesus Cristo, o crucificado: i. é, segundo São Francisco, a Senhora pobreza.
Portanto, assim questionado, o problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo não é mais a diferença e contraposição existentes entre o pessoal e particular da experiência individual de Francisco e o comum, geral e coletivo da ordem em evolução e crescimento na adaptação às necessidades dos tempos posteriores. É antes, uma corajosa, imensa e profunda convocação universal, uma chamada, um convite para a tarefa decisiva de cada um e da comunidade dos seguidores vindouros de Jesus Cristo. É, pois, a proposta de um a priori, cuja analítica é a diligente ternura da precisão de uma criatividade fontal que brota continuamente, sempre, i. é, cada vez nova e de novo, do abismo do mistério do Deus feito finitude da Encarnação. Uma tal analítica liquida e dissolve todo e qualquer bloqueio, endurecimento ou dogmatismo do saber entificante factual, acordando, cordializando o nosso saber para o gosto e a sensibilidade, para o sabor, para o rigor cordial da generosa afeição à síntese encarnada. E reduz, i. é, reconduz todos os entes, i. é, cada ente, à auto-identidade, ao cada vez seu, à própria finitude de si agraciada, sob o céu aberto da imensidão, profundidade e originariedade do surgimento, da gênesis da existência, a saber, da liberdade da graça, estruturante do mundo, da disponibilidade generosa, expedita de uma vida inteiramente devotada, engajada no empenho, i. é, no studium, nos estudos, no inter-esse da busca que sabe à sabedoria do pobre de Assis.
Mostrar tudo isso em detalhes e em concreto, à mão dos textos-fontes, citados por Gratien de Paris, quando no III, 3 expôs as idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência, seria a tarefa mais completa desse capítulo. Mas, deixemos tudo isso para uma outra ocasião. Se, porém, o fizermos, haveremos de perceber que dentro dessa nova impostação, aquelas condições sob as quais Francisco permitiu os estudos na ordem, os conceitos como apostolado do exemplo, e a sua primazia sobre o apostolado da fala, o trabalho manual corporal, o cuidado dos leprosos, a mendicância, a paciência, a humildade, a simplicidade, a cruz, a pobreza etc.,, são existenciais, i é, como que lugares onde se encontram fatos, quais pequenos orifícios da chave de uma porta fechada, através dos quais, se pode vislumbrar toda uma paisagem da “realidade” abissal de uma nova ciência que nos introduz para dentro do coração de todas as coisas, cuja razão exige uma nova inteligência, um novo intelecto. E segundo Beato Egídio de Assis, fiel companheiro de São Francisco e grande mestre da ciência útil[36], esse novo intelecto deve estar cordialmente disposto a querer saber muito, para poder dever aprender muito, humilhando-se a si mesmo, abaixando a cabeça até que o ventre toque no chão. Nessa busca, se o nosso empenho, o studium se perfizer, se se fizer, se vier a si, na jovialidade generosa dessa luta “full contact”, corpo a corpo com a coisa ela mesma do espírito do Senhor e do seu santo modo de operar, então o Senhor nos dará toda a ciência, toda a sabedoria do belo amor.
A cientificidade dessa ciência útil, formulada como humilhar-se muito[37], abaixando a cabeça, até que o ventre toque no chão, para receber em cheio, através de todas as coisas, a evidência e claridade da epifania e diafania do Deus Uno e Trino no amor de encontro, encarnadas como a obra-prima Jesus Cristo, o Crucificado, é o nosso empenho, o nosso studium, os estudos na Ordem dos franciscanos.
E, assim, o que era um problema do passado medieval se torna hoje uma tarefa atual de busca enraizada e radical, uma questão. Uma busca cuja emissão e missão é o envio, o apostolado[38], necessariamente a modo do exemplo, a saber, práxis[39], uma luta corpo a corpo, sem simulacro de apenas demonstração, do fazer de conta que, do show de erudição fútil ou do saber geral, informativo formal; uma práxis de experiência, vivida, vivificante, não a “destilada” teorética da generalização neutra indiferente em classificações e informações processadas dentro de padrões já há tempo sorrateiramente preestabelecidos e congelados. Trata-se, pois, da questão, da busca do saber real e essencial, da autêntica práxis da teoria, disposta mortalmente à verdade, cuja jovialidade brota continuamente, na atenta e vigilante alerta cordial, da con-templação do espírito do Senhor e do seu santo modo de operar.
Conclusão
Se, no problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo, de alguma forma, essa nossa confusa e longa reflexão, apesar de tudo, despertar em nós o interesse pela questão do ser dos estudos no franciscanismo, certamente haveremos de perceber que com essa questão estamos sendo tocados pela inquietação que se oculta no âmago da nossa modernidade, pulsando no subterrâneo dos nossos cotidianos óbvios e usuais; inquietação epocal que nos faz pensar na dominância da factualidade nas abordagens que fazemos das coisas do espírito na espiritualidade. Por que reduzimos as nossas buscas à averiguação dos fatos na acribia e no zelo do asseguramento da certeza? Por que para nós, hoje, verdade significa certeza dos fatos? Por que verdade não mais pode ser o risco de uma intrépida aventura apaixonada da exposição disposta ao inesperado, ao abismo do não saber agraciado, da docta ignorância? Por que se nivelou a verdade, a tal ponto de crescer em toda parte a aridez baldia do sentido do ser, em cuja secura e vazio, ser não diz nem sequer apenas ocorrência factual de algo, nem sequer nos mobiliza a nos indagarmos se não está acontecendo algo de estranho na nossa compreensão do sentido do ser na sua totalidade? Esse crescente campo da aridez baldia da factualidade no tempo de indigência do espírito não poderia ocultar no subterrâneo do seu esquecimento do esquecimento do sentido do ser um ante-início de um novo hálito que pudesse nos preparar para um puro deserto, cuja acribia e rigor de precisão interrogativa nos conduzam ao ermo da pobreza do saber, cada vez mais sóbria, silenciosa, simples e atenta, qual pura ausculta dos vigias de uma nova vigília, a preparar a nasciva disposição da alegria da espera inesperada…? A questão dos estudos na origem do franciscanismo…A perfeita alegria nos estudos do seguimento de Jesus Cristo, Crucificado[40]… O zelo e o rigor, a precisão da pura ausculta do ser da pobreza de São Francisco de Assis: A Idade Média da contemplação e mística {e}O saber do deserto no nihilismo do ser das ciências da factualidade… A modernidade das ciências naturais, físico-matemáticas[41]: a espera cada vez mais esquecida, retraída do aceno mudo de um “deus vindouro”…
Deixar-se tocar profundamente pela inquietação da busca augusta na indigência do tempo da espera, viver intensamente o estreito dos riscos e perigos da pobreza agraciada na dor e alegria da passagem, não estaria aqui, o in-stante da existência hodierna franciscana, inserida na questão dos estudos na ordem de São Francisco “medieval”?