Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A busca da identidade humana e franciscana – I

29/04/2021

 

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Aqui se apresentam algumas reflexões obsoletas sobre o estudo. Cada reflexão é um todo, feita ocasionalmente, em função de determinadas necessidades ou solicitações. Algumas delas já foram publicadas em algumas revistas de cunho filosófico. Não sei se tais reflexões, repetindo coisas tão óbvias de uso caseiro tão particular, têm hoje sentido. E isso principalmente porque algumas dessas reflexões surgiram da ambiência da instituição de cunho confessional católica, no nosso caso da Ordem franciscana[1], na formação e no estudo de filosofia e de teologia para os seus membros. Assim sendo é quase certo que o que aqui é considerado só tem sentido, se é que tem, para os membros da própria Ordem. Todavia, nos embates de toda e qualquer comunidade humana, no empenho de perfazer-se nas exigências do caminho que cada um assumiu livremente, transpira a seiva do âmago da existência humana, cujo modo de ser todo próprio é universal. Embora com o colorido e as particularidades de cada situação, em circunstâncias diversas, quase sempre privativas e particulares, o âmago do ser da existência, seja de quem for, se nos apresenta como o mesmo no seu modo próprio de ser. É o que expressa o provérbio alemão que diz: todos, i.é, cada qual, seja como e onde for, cozinha com água. Confiando nessa afinidade de fundo, as seguintes reflexões falam do tema do estudo mais próximo aos franciscanos, mas se dirigem, se servirem, também às pessoas que, fora da ambiência de uma instituição confessional e religiosa, sob bem diferentes circunstâncias e sob outras denominações, padecem do mesmo tipo de indagação. Mas essas reflexões se dirigem a elas, pedindo-lhes desculpas pelo seu diletantismo.

  1. Ratio Studiorum

O título Ratio studiorum refere-se à compreensão essencial do que seja o estudo[2], que nos pontos seguintes I, II, III, IV se especificam como estudo acadêmico, estudo especializado e estudos profissionalizantes. Compreensão essencial[3] não é propriamente uma compreensão geral, mas sim uma compreensão viva e constante, mais de fundo, que está no núcleo de cada compreensão específica e até mesmo particular. Compreensão essencial se diz em latim Ratio. Daí o título desse documento: Ratio Studiorum[4].

Num sentido não tanto de fundo, mas mais de superfície, mais imediatista-prático, Ratio também pode ser traduzida como Diretrizes. Ratio Studiorum significa então orientações e normas que regulam e ordenam o quê e o como dos nossos estudos. Mas, se quiserem ser realmente eficazes, essas orientações e normas devem haurir a clarividência e o ânimo de suas diretrizes da Ratio na compreensão essencial, expressa no primeiro sentido acima mencionado da palavra Ratio. É dentro dessa “dualidade”, válida e pertinente à formulação da Ratio Studiorum, que o termo estudo recebe o seu sentido todo próprio e concreto, a saber, do empenho essencial do perfazer-se humano e, ao mesmo tempo, do conhecimento e saber a ser adquiridos conforme as solicitações de um determinado programa institucional.

  1. O que se entende por estudo?

Estudo é a palavra portuguesa para o latim studium. De imediato, por estudo e estudos costumamos entender conhecimento ou conhecimentos adquiridos. Mas logo percebemos que para sua aquisição o conhecimento ou os conhecimentos adquiridos pressupõem longo e grande trabalho de aplicação. A palavra latina studium indica esse esforço de aplicação e significa empenho, dedicação ao trabalho. Studium vem do verbo studeo, studui, studere que significa empreendo, me aplico a, me empenho, livremente me engajo em, assumidamente me esforço e trabalho para[5].

Aqui, estudo significa, pois, empenho, esforço, não porém num sentido geral e vago, mas na acepção todo própria que o termo studium sugere. Trata-se, pois, de um esforço, no qual o que caracterizamos como aplicação, diligência, engajamento, é dinamizado no cuidado de se perfazer no que se busca e no que se trabalha. É, portanto, um trabalho, no qual o que se busca, a meta implica, diz respeito ao despertar, crescer e consumar-se no ser de quem se empenha, i. é na sua identidade. Refere-se a um trabalho querido e assumido livremente como fomento e exercício da própria realização enquanto existência humana, livre. Na Antiguidade grega, esse tipo de trabalho se denominava skholé, donde vem a nossa palavra portuguesa escola[6].

  1. O estudo como busca da identidade humana e franciscana

O estudo como a ação de engajamento para o despertar, crescer e consumar-se da humanidade é dever e direito de todo cidadão livre, responsável pela tarefa de contribuir para a construção da humanidade livre e universal. Esse modo de empenhar-se pelo ser do homem se chama busca da identidade humana. E o que chamamos de cristão e franciscano[7] jamais pode estar alienado da participação desse empenho, portanto, do estudo de engajamento pela identidade humana. Aliás, a vocação cristã e franciscana não é outra coisa do que uma busca apaixonada da excelência do ser-humano, como ideal da humanidade livre e universal, aprofundada, assumida e agilizada por Jesus Cristo e seu seguidor Francisco, ideal e anelo de todas as pessoas de boa vontade, através de variegadas e diferentes atividades e ações. Sejam quais forem as nossas atividades, sejam como forem as necessidades e as exigências cobradas de nós na sociedade de hoje, na formação e no estudo, o modo de ser do estudo, i. é, do empenho no engajamento pela identidade humana, em nós e nos outros, deve-se ater a buscar e a amar o modo de ser do studium, portanto, do empenho do e ao trabalho, no sentido acima exposto. A nossa identidade franciscana e cristã, hoje, não consiste tanto em seguir esta ou aquela mundividência historiograficamente padronizada no passado como “escola franciscana” ou algo semelhante, mas sim em ir ao fundo da nossa herança viva espiritual franciscana e no âmago do espírito de Francisco descobrir a paixão da busca pela verdade do ser da identidade humana, que nele pulsava, e assim dispostos, abrir-nos à busca da excelência[8] do ser da humanidade, que pulsa no coração, i. é, no subterrâneo da nossa modernidade[9], hoje como estudos, pesquisas e investigações das ciências, da filosofia e da teologia.

  1. O estudo enquanto trabalho acadêmico

O adjetivo acadêmico aqui indica uma especificação, destacando esse tipo de estudo e trabalho do estudo especializado (mestrado e doutorado) e dos estudos profissionalizantes. Como tal, aqui, estudo acadêmico indica um grau ou uma qualificação (graduação) dentro do tipo específico de estudo que usualmente denominamos de acadêmico, cujo grau superior se denomina estudo especializado com o título de mestrado e doutorado[10]. Assim sendo, neste item, ao mesmo tempo em que se tenta dizer de modo direto e bem definido em que consiste o trabalho do estudo acadêmico no grau graduação, é de grande utilidade falar brevemente do que e como é o modo de ser desse trabalho qualificado como acadêmico. Como tal, o sentido do ser do estudo, enquanto trabalho acadêmico, apresentado aqui neste item, é no fundo o mesmo do ponto III, abaixo, que quer legislar a partir das diretrizes que normam os franciscanos que querem levar o trabalho do estudo acadêmico à qualificação maior de especialização[11].

Estudo acadêmico[12] indica o empenho do trabalho de ensino e aprendizagem escolar do saber científico-cultural, que a nossa sociedade moderna hodierna ocidental exige como saber obrigatório, para que os seus membros nela possam se mover com adequação, usufruir, participar de e contribuir para o seu progresso e manutenção. Esse estudo se organiza em aprendizagem e ensino da escola fundamental, secundária média e superior[13]. Esta última se chama também estudos universitários, e não há a seu respeito obrigatoriedade jurídica com tal. Mas, pela tendência da vigência do saber científico na humanidade atual, essa escolaridade superior torna-se praticamente obrigatória para quem quer não somente trabalhar eficazmente e com nível salarial melhor, mas também para todos que de alguma forma se doam ao ideal de engajamento humanitário e querem trabalhar com eficiência e competência para o bem da humanidade, hoje.

No estudo acadêmico, seja qual for o seu grau, é necessário adquirir e ter a plena consciência de que o saber científico, o seu modo de ser, domina a humanidade atual, e se transformou numa necessidade histórica. Como uma necessidade histórica de nossa humanidade atual, o estudo acadêmico, i. é, ensino e aprendizagem do saber científico deve nos educar num modo de ser todo próprio e nas virtudes provenientes desse modo de ser que somente a nossa época nos pode proporcionar.

  1. A importância do estudo acadêmico na vida do franciscano

O termo vida do franciscano não indica apenas os seus afazeres cotidianos, encargos sociais civis, clericais e religiosos, suas necessidades, mas também, ou melhor, em primeiro lugar, o modo de ser como e com que espírito encara, dinamiza, assume e dá sentido a todos esses afazeres, os quais podem facilmente se instalar em rotinas, executadas mecânica e indiferentemente, sem nada aprofundar e pesquisar. Vida, aqui, significa projeto de vida, o sentido da existência de cada um de nós enquanto identidade e missão do ser franciscano hoje. A importância do estudo acadêmico para o frade menor consiste hoje precisamente em engajar-se de corpo e alma no estudo acadêmico, não buscando jamais honra, poder, vaidade ou titulação não merecida, nem propriamente em primeiro lugar apenas conhecimentos e informações úteis à adaptação ao mundo do consumismo cultural, mas visando adquirir a dinâmica da busca apaixonada pela verdade, busca essa que foi o toque originário que deslanchou o élan do saber científico. E nessa busca deixar-se cunhar pelo modo de ser do saber científico, formando seu caráter intelectual na disciplina, no rigor do pensar, na transparência e autenticidade da hombridade intelectual, na constante e bem impostada crítica contra todo e qualquer pré-conceito e dogmatismo; abrir-se à intrepidez da criatividade na pesquisa e investigação da verdade, na disposição cordial da espera do inesperado[14]. Esse engajamento ou inserção no estudo, i. é, no empenho da existência científica deve nos importar a nós franciscanos, hoje, como participação na tarefa confiada à humanidade hodierna por Deus através da história. Assim exercitado e preparado pelo vigor do mundo do saber científico, importa ao franciscano, hoje, capacitar-se a retomar o modo de ser do empenho no trabalho exigido por nossa identidade franciscana; e foi esse empenho, a saber, o studium,  o que mobilizou Francisco de Assis na busca da verdade da perfeição evangélica na vida de pobreza, no rigor e na precisão disposta do seguimento radical de Jesus Cristo. É algo inteiramente diferente compreender e exercer o ser franciscano hoje, através de gostos pessoais e particulares, através de modismos, devoções e certos modos do trabalho pastoral para a realização pessoal ou grupal e compreender e assumir o trabalho da realização e da busca da identidade franciscana e missão de ser frade menor hoje, importando-nos[15], i. é, conduzindo-nos para dentro da dinâmica que pulsa e atua no interior da nossa epocalidade como tarefa e responsabilidade da humanidade de hoje. A dinâmica do estudo acadêmico, como foi explicitada acima, pertence essencialmente a essa dinâmica de fundo do mundo moderno. O estudo acadêmico, i. é, do saber científico, que é o vigor de fundo do mundo moderno, presente e atuante no seu subterrâneo como um dos registros centrais do progresso moderno, na verdade, não é outra coisa do que a herança, recebida pela humanidade de hoje, da Idade Média de Francisco, através da Renascença e da Era Moderna inicial. O que e como os frades menores da origem trabalharam na busca da sua auto-identidade franciscana através do que hoje denominamos de modo espiritualista e pietista de “espiritualidade franciscana” vêm do studium, i. é, do empenho do saber e poder de fundo da Idade Média de Francisco, cujo lugar de cultivo e de fomento, hoje, se deslocou para o studium, i. é, o empenho do saber e poder de fundo na constituição do mundo moderno como estudo do saber científico[16].

A importância do estudo acadêmico na vida do frade menor consiste em renovar nossa mente, nosso coração franciscano, fazendo renascer em nós o entusiasmo dos jovens da origem na Ordem de Francisco de Assis, que, impregnados pelo amor à pobreza, i. é, dispostos a seguir a dinâmica e o élan, portanto, o studium de um Deus Encarnado, a saber, o studium do Jesus Crucificado, invadiram as universidades medievais de Oxford, Paris, Bolonha, não para buscar poder e honrarias pessoais, mas para se prepararem real e devidamente para o serviço de toda a humana criatura, nas fronteiras e nos lugares mais necessitados da humanidade[17].

  1. O estudo da filosofia

O estudo da filosofia possui uma peculiaridade toda própria que não ocorre em nenhuma outra disciplina do saber científico, pertencente à positividade científica. Não considerar essa peculiaridade no ensino e na aprendizagem da filosofia pode criar grande dificuldade, tanto na organização do curso, como no ânimo e na união dos que estudam e ensinam filosofia e na eficácia do estudo. Não se pode insistir demais nesse ponto, principalmente hoje, porque o estudo e o ensino da filosofia sofrem diferentes interpretações e intervenções, provenientes de instâncias que não são propriamente suas, mas de interesse imediatista de uso instrumental da filosofia para uma determinada meta funcional.

Em seu estudo, a filosofia apresenta dois lados, um virado para fora[18], para a superfície, e outro virado para dentro, para a profundidade do seu vigor essencial. Para fora, virado para a superfície, a filosofia no seu estudo se apresenta como produto cultural de determinadas épocas, como mundividências e mesmo ideologias, a saber, crenças e interpretações do mundo e da vida, de certos indivíduos ou de determinados grupos humanos. Nesse sentido o que denominamos filosofia cristã, filosofia marxista, filosofia franciscana, filosofia budista são no fundo mundividências e ideologias. Essas filosofias-mundividências são úteis e talvez até necessárias para a doutrinação e armação dos membros de uma determinada instituição para seu fomento e sua agilização como funcionários eficientes e produtivos, em vista do objetivo determinado pela instituição. Nessa compreensão da filosofia e do seu estudo, a filosofia é reduzida a um instrumento para a utilidade de uma instituição. Dentro de uma tal compreensão instrumental da filosofia e do seu estudo, discute-se hoje se o estudo da filosofia é útil e necessário para quem apenas quer ser agente de pastoral da grande instituição chamada Igreja Católica, por exemplo, e de suas sub-instituições, tais como ordens, congregações, escolas e universidades católicas etc.

Enquanto virada para dentro dela mesma, para a profundidade do seu vigor essencial, a filosofia é a paixão de busca da verdade de toda e qualquer pressuposição, estabelecida e padronizada em posicionamentos de mundividências e ideologias, sejam elas quais forem. Como tal, em seu estudo, a filosofia não serve para construir mundividências e ideologias. Ela, porém, não as destrói; critica-as pela raiz, examina seus fundamentos, sobre os quais as mudividências e as ideologias estão constituídas dogmaticamente. Enquanto virada para a profundidade dos fundamentos de toda e qualquer positividade das mundividências e ideologias, a filosofia perfaz a dinâmica de fundo das ciências e é a manifestação do vigor e rigor de precisão do estudo científico, hoje necessário para que também o saber científico não se torne ele mesmo dogmático, transformando-se em mundividência e ideologia camufladas. Sob esse aspecto do fundo do saber científico, i. é, da crítica, do discernimento dos fundamentos de todo e qualquer posicionamento, o estudo da filosofia é hoje um desafio necessário ao estudante que não quer ser apenas um funcionário politicamente correto de um saber doutrinário, processado em padrões e em módulos de uma ideologia, de uma mundividência, cuja “crença” não admite nenhum confronto de base; a quem tampouco quer continuar a viver e assumir a fé cristã como mundividência, doutrinação ou ideologia; mas é necessário a quem quer abrir-se de corpo e alma à límpida decisão de um encontro com o Evangelho em “espírito e em verdade” (Jo 4,24). Mas se este é o interesse do estudo da filosofia, o modo de organizar e ministrar seu estudo terá sua lógica e ordenação própria, as quais deverão ser pensadas, assimiladas e assumidas conscientemente.

Na organização do estudo da filosofia no ensino universitário oficial, esses dois aspectos da filosofia e do seu estudo são misturados ou equilibrados, na tentativa de acentuar ora um aspecto em favor ou em detrimento do outro, e isto conforme a tendência adotada pelas faculdades, cuja orientação sofre influências das mundividências e ideologias dos que as mantêm e coordenam. Há faculdades, onde o lado virado para a profundidade do fundo da filosofia é completamente excluído do estudo como um saber obsoleto, ultrapassado, por não corresponder ao modo da positividade das ciências, principalmente do tipo das ciências naturais físico-matemáticas. Mas algo semelhante pode acontecer também conosco, quando queremos que a filosofia esteja em função da mundividência denominada cristã, como um instrumento ou um serviço à fé (entendida como crença ou mundividência da Igreja)[19], e quando consideramos o ensino e o estudo da filosofia como um mal, senão desnecessário, ao menos necessário, pois não serve para a ação pastoral nem para o engajamento na evangelização. Uma tal impostação eliminou, já de antemão, a validade daquele aspecto essencial do estudo da filosofia orientado para a profundidade de sua identidade. Para que os estudantes de filosofia possam entrar de modo útil e eficiente no estudo da filosofia, a própria instituição, seus coordenadores, os formadores e os professores, deveriam entrar em acordo para dizer o que querem da filosofia e do seu estudo para a formação do estudante. Desconhecer ou ter uma idéia vaga dessa problemática de decisiva importância para os estudantes e os professores do estudo da filosofia é propriamente a causa das dificuldades surgidas no estudo da filosofia no mundo clerical. A culpa dessa dificuldade não está propriamente no estudo da filosofia enquanto filosofia, nem nos professores e estudantes de filosofia, mas sim na incompreensão dessa ambigüidade de seu estudo.


[1] A expressão Ordem franciscana, aqui usada, pode ser compreendida como fazendo referência a ordens, congregações, institutos e simpatizantes de Francisco de Assis. Até porque, antes da fragmentação ou multiplicação dos grupos que faziam referência a Francisco de Assis, existia um único grupo, um único ordenamento, uma única Ordem franciscana.
[2] Esse termo ratio sturiorum é um conceito  comum entre os documentos eclesiásticos que tratam de estudo e formação, tanto do clero secular quanto das ordens e congregações religiosas.  Esse título e seu conteúdo foram tirados de um documento interno da instituição.
[3] Compreensão essencial se distingue da compreensão geral. Esta é válida na classificação. Numa classificação, há o conceito geral, depois o específico, e finalmente o individual. Em toda e qualquer classificação, o conceito geral já está de antemão definido e pressuposto como obviamente conhecido. Assim, o conceito geral de uma classificação não serve para explicar, dizer de que se trata, na realidade a coisa ela mesma. Por isso, se se quiser entender melhor e mais concreta e profundamente o conceito geral, deve-se recorrer à compreensão essencial, pois o conceito geral indica apenas numa maneira a mais abstrata e generalizada possível a compreensão de uma coisa.
[4] Usualmente ratio se traduz para o português em vários termos, entre si afins, como: razão, o porquê, o móvel, o motivo, a finalidade, a meta, o fundamento, o princípio, a causa. Todos esses termos querem dizer o mesmo, sem poderem dizê-lo por completo, num único termo. O presente documento traduz ratio por compreensão essencial. E com isso tenta sintetizar todos esses significados afins numa única expressão. Trata-se, pois, na ratio studiorum de uma compreensão. Compreender não é um entender qualquer, geral, indefinido, sem determinação, mas sim essencial. Trata-se, pois, da compreensão da essência do estudo. Em sua formulação, a palavra essência é semelhante a paciência, tendência, obediência, e significa a dinâmica (-ência), o vigor, a vitalidade do ser (esse-ência). É o que queremos indicar com a palavra identidade nas expressões identidade humana e franciscana (cf. o ponto 3 das considerações introdutórias). Identidade aqui é compreendida, não estática mas dinamicamente: o que determina e move o próprio do ser humano, a partir do fundo dele mesmo (fundo, fundamento), qual uma fonte borbulhante (princípio, causa), determinando o ser humano à ação de busca de uma meta (finalidade) que o realiza plenamente. Ratio, na tradição do Ocidente, é a tradução latina do Logos ou Nous grego e indica, não apenas uma das “faculdades da alma”, hoje denominada razão, uni-lateral ao lado das outras, também uni-laterais, denominadas vontade e sentimento, mas sim o vigor de fundo do ser humano no que ele tem de mais próprio no seu todo: a liberdade ou, em nossa linguagem hodierna, a autonomia. Ratio Studiorum nessa acepção mais de fundo significaria então a dinâmica dos estudos, proveniente de e fundada na força, na vigência da liberdade ou da autonomia humana.
[5] Walde, A.; Hofmann J. B. 5ª edição, 2º volume M – Z, Heidelberg: Carl Winter Universitätsverlag, 1972, p. 608; alguns dicionários associam o verbo studere com o grego speudo ou spoudazo, mas essa referência não possui fundamentação etimológica. Cf. Walde e Hofmann, op. cit.; e Menge, Hermann, Langenscheidts Grosswörterbuch Griechisch, Teil I, Griechisch-deutsch, 21ª edição, Berlin/München/Zürich: Langenscheidt, 1970, p. 632.
[6] A palavra skholé hoje significa ócio, estar livre de negócios, tempo livre, lazer. Em latim se diz então otium. O contrário do otium é nec-otium (non-otium), donde vem a palavra negócio. Skholé vem do verbo skhein, ekhó, e significa propriamente ater-se, estar no vigor da atinência. Portanto, originariamente tanto skholé como otium não se referem à folga da ociosidade nem ao descanso, mas sim ao modo de trabalho intenso de engajamento no crescimento da auto-identidade, não obrigado de fora, não escravizado por lucro, medo, ganância ou pelo poder dominador do outro, mas livremente, assumido como exercício da criatividade humana na autonomia da sua liberdade. Esse modo de trabalhar mais tarde deu origem ao trabalho criativo das assim chamadas profissões livres, e caracterizou no Ocidente o vigor e a força dos estudos universitários na construção da humanidade livre, universal (cf. o espírito “missionário” da Aufklärung-Iluminismo). Esse modo de ser é o que está no fundo de todo o élan da existência científica de hoje, mesmo que na sua realização haja defasagens e desvios, esquecimentos da compreensão essencial do que seja a vigência das ciências.
[7] Talvez, mais do que nunca, se faça necessário, a nós franciscanos, entender o ser-franciscano como uma cordial radicalização (=ir às raízes) do ser cristão e não como reivindicação de uma mundividência particular para o fomento e cultivo ensimesmado de si mesmo, seja individual, seja grupal. Quando na Ratio insistimos nos estudos da Escola franciscana, tanto na filosofia como na teologia, para que o vigor científico da nossa busca não se reduza a disputas de escolas, como aconteceu no passado, isso assume uma importância decisiva
[8] O termo excelência hoje é ambíguo, e, às vezes, equívoco. Aqui excelência indica o próprio do ser humano na sua per-feição, i. é, no surgir, crescer e consumar-se, no perfazer-se do seu ser próprio, e não como um produto processado e agenciado dentro de um projeto alheio à sua essência, como o primeiro do ranking da eficiência produtiva.
[9] Hoje, quem fala de estudos científicos e acadêmicos deve distinguir desde logo  entre  atualidade  e o que chamamos de modernidade, como ela aparece no consumo e na opinião pública e como ela é realizada, no labutar tenaz, sóbrio e assumido de construção de um novo mundo, no subterrâneo da nossa época. Quem não tem um bom discernimento, aqui, pode confundir a tarefa da busca da identidade cristã e franciscana, hoje, com a adaptação, mal feita, superficial e facilitada aos modismos e assim destruir por dentro todos os empenhos sérios na formação e no estudo dos formandos e dos que trabalham na formação, tanto na espiritualidade como nos estudos acadêmicos.
[10] Também nos assim chamados estudos profissionalizantes existem graduações semelhantes às de graduação, mestrado e doutorado do estudo acadêmico, embora os termos tenham outras denominações. Hoje, os que querem ser realmente profissionais num métier devem assumir o longo e penoso trabalho de aprendizagem, tanto teórico como técnico, e provar diante da sociedade que têm a devida qualificação de serem competentes no que exercem como profissão.
[11] Hoje, no mundo dos estudos acadêmicos e também dos estudos profissionalizantes, a tendência é de possibilitar a todos a chance de levar o estudo a alcançar a excelência da especialização com mestrado e doutorado. Assim sendo, todos que têm a possibilidade familiar e financeira de estudar para se tornarem úteis ou realizados na sociedade não se satisfazem com o grau elementar primário, secundário, mas buscam estudos superiores. Por isso, na idéia e no ideal do estudo acadêmico e também profissionalizante hoje o estudo elementar e secundário e o estudo superior no nível de graduação estão sendo avaliados a partir dos estudos superiores, especializados ou profissionalizantes como sua preparação. Em se tratando de estudo acadêmico no nível de graduação, principalmente na filosofia e nas ciências positivas, se o estudante entra no estudo do trabalho acadêmico com a mentalidade de quem não quer estudar muito, mas apenas o  suficiente para fazer profissão religiosa ou ser ordenado padre, o estudo feito nas instituições oficiais e sérias dos estudos da filosofia e das ciências positivas se torna inviável, a tal ponto que a própria instituição religiosa deverá criar sua escola caseira para se adaptar a esse minimalismo em relação ao estudo. Se esse modo minimalista de pensar o estudo vem dos formadores da espiritualidade e da formação religiosa, a situação se torna insustentável para um grupo humano como o nosso. E um dia, mais cedo ou mais tarde, esse espeto do minimalismo pode se virar contra a própria espiritualidade e a  formação religiosa. É o que está acontecendo em vários lugares, onde se têm dificuldades em referência à formação e ao estudo entre os clérigos.
[12] Acadêmico vem de Academia (Akadémeia ou Akademia, em grego). Originariamente era nome da escola criada por Platão em 386 a. C., em Kephisos a 2 kilômetros de Atenas, situada nos bosques consagrados ao herói ateniense Adádemus. Destinada oficialmente ao culto das musas, teve uma intensa atividade filosófica, tendo como preparação uma sólida formação matemática. É interessante observar que Platão colocou uma placa no portal que dava entrada a sua Academia com a seguinte admoestação: Ageométretos medeìs eisíto! (“Ninguém que não tenha compreendido o matemático, terá aqui um acesso!” Isto significa: o matemático na sua essência tem muito a ver com a filosofia). Hoje Academia indica um estabelecimento de ensino superior de ciência ou arte e pode ser sinônimo de faculdade, escola especializada; ou de sociedade ou agremiação, particular ou oficial, com caráter científico, literário ou artístico; pode também indicar escola onde se ministra o ensino de práticas desportivas ou lúdicas, prendas etc. (cf. Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de filosofia, 1, Lisboa/São Paulo: Editora Verbo, 1989, pp. 46-47; cf. Novo Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p. 19).
[13] A obrigatoriedade da escolaridade nesse estudo acadêmico varia conforme a exigência oficial dos países e de seus governos. Varia também conforme exigências que uma instituição faz dos que a ela querem pertencer como seus membros.
[14] Hoje há muita crítica acerca do saber científico tecnologizado, que tende a ser totalitário no poder da dominação do saber objetivante e objetivado. Essa crítica visa buscar atrás desse modo, quem sabe, deficiente da essência da ciência moderna o seu aspecto originário. Essa crítica pertence ao vigor e ao rigor da precisão de fundo do saber científico que aparece na filosofia, no aspecto virado para dentro da sua própria profundidade.
[15] Importância, importar-se significa literalmente conduzir, portar, levar para dentro, para o fundo, para o âmago.
[16] Em nenhuma época no Ocidente a humanidade investiu tanto o vigor do intelecto na busca da verdade de Deus e de seus mistérios como na Idade Média. Desse investimento surgiram exércitos de santos, místicos e teólogos pensadores, cujo saber e cuja sabedoria impregnaram a realidade humana no seu todo, criando especulações, obras de pensamentos, de arte e religião, entidades sociais e suas atividades, que sustentaram e animaram os homens por séculos, revelando-lhes um sentido todo próprio do ser. Esse vigor do intelecto passou da Idade Média para nós, hodiernos, como o élan do saber científico, do qual surgiu a comunidade de pesquisa científica com milhares e milhares de pessoas dedicadas totalmente à busca, criando condições da possibilidade do mundo moderno e do seu progresso. E apesar de criticarem e rejeitarem o saber da Idade Média como obsoleto e ultrapassado, as ciências modernas receberam seu vigor e rigor como herança de nossos antepassados medievais, que estavam inseridos até o pescoço no vigor subterrâneo da Idade Média.
[17] Cf. Gemelli, frei Agostinho OFM, O franciscanismo. Petrópolis: Vozes, 1944, p. 72-74.
[18] Na Antiguidade grega esse aspecto exterior se chamava de exotérico. O aspecto interior, de esotérico.
[19] Cf. o tão pouco pensado “slogan” da filosofia cristã: “Philosophia est ancilla theologiae”.
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