CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Aqui se apresentam algumas reflexões obsoletas sobre o estudo. Cada reflexão é um todo, feita ocasionalmente, em função de determinadas necessidades ou solicitações. Algumas delas já foram publicadas em algumas revistas de cunho filosófico. Não sei se tais reflexões, repetindo coisas tão óbvias de uso caseiro tão particular, têm hoje sentido. E isso principalmente porque algumas dessas reflexões surgiram da ambiência da instituição de cunho confessional católica, no nosso caso da Ordem franciscana[1], na formação e no estudo de filosofia e de teologia para os seus membros. Assim sendo é quase certo que o que aqui é considerado só tem sentido, se é que tem, para os membros da própria Ordem. Todavia, nos embates de toda e qualquer comunidade humana, no empenho de perfazer-se nas exigências do caminho que cada um assumiu livremente, transpira a seiva do âmago da existência humana, cujo modo de ser todo próprio é universal. Embora com o colorido e as particularidades de cada situação, em circunstâncias diversas, quase sempre privativas e particulares, o âmago do ser da existência, seja de quem for, se nos apresenta como o mesmo no seu modo próprio de ser. É o que expressa o provérbio alemão que diz: todos, i.é, cada qual, seja como e onde for, cozinha com água. Confiando nessa afinidade de fundo, as seguintes reflexões falam do tema do estudo mais próximo aos franciscanos, mas se dirigem, se servirem, também às pessoas que, fora da ambiência de uma instituição confessional e religiosa, sob bem diferentes circunstâncias e sob outras denominações, padecem do mesmo tipo de indagação. Mas essas reflexões se dirigem a elas, pedindo-lhes desculpas pelo seu diletantismo.
- Ratio Studiorum
O título Ratio studiorum refere-se à compreensão essencial do que seja o estudo[2], que nos pontos seguintes I, II, III, IV se especificam como estudo acadêmico, estudo especializado e estudos profissionalizantes. Compreensão essencial[3] não é propriamente uma compreensão geral, mas sim uma compreensão viva e constante, mais de fundo, que está no núcleo de cada compreensão específica e até mesmo particular. Compreensão essencial se diz em latim Ratio. Daí o título desse documento: Ratio Studiorum[4].
Num sentido não tanto de fundo, mas mais de superfície, mais imediatista-prático, Ratio também pode ser traduzida como Diretrizes. Ratio Studiorum significa então orientações e normas que regulam e ordenam o quê e o como dos nossos estudos. Mas, se quiserem ser realmente eficazes, essas orientações e normas devem haurir a clarividência e o ânimo de suas diretrizes da Ratio na compreensão essencial, expressa no primeiro sentido acima mencionado da palavra Ratio. É dentro dessa “dualidade”, válida e pertinente à formulação da Ratio Studiorum, que o termo estudo recebe o seu sentido todo próprio e concreto, a saber, do empenho essencial do perfazer-se humano e, ao mesmo tempo, do conhecimento e saber a ser adquiridos conforme as solicitações de um determinado programa institucional.
- O que se entende por estudo?
Estudo é a palavra portuguesa para o latim studium. De imediato, por estudo e estudos costumamos entender conhecimento ou conhecimentos adquiridos. Mas logo percebemos que para sua aquisição o conhecimento ou os conhecimentos adquiridos pressupõem longo e grande trabalho de aplicação. A palavra latina studium indica esse esforço de aplicação e significa empenho, dedicação ao trabalho. Studium vem do verbo studeo, studui, studere que significa empreendo, me aplico a, me empenho, livremente me engajo em, assumidamente me esforço e trabalho para[5].
Aqui, estudo significa, pois, empenho, esforço, não porém num sentido geral e vago, mas na acepção todo própria que o termo studium sugere. Trata-se, pois, de um esforço, no qual o que caracterizamos como aplicação, diligência, engajamento, é dinamizado no cuidado de se perfazer no que se busca e no que se trabalha. É, portanto, um trabalho, no qual o que se busca, a meta implica, diz respeito ao despertar, crescer e consumar-se no ser de quem se empenha, i. é na sua identidade. Refere-se a um trabalho querido e assumido livremente como fomento e exercício da própria realização enquanto existência humana, livre. Na Antiguidade grega, esse tipo de trabalho se denominava skholé, donde vem a nossa palavra portuguesa escola[6].
- O estudo como busca da identidade humana e franciscana
O estudo como a ação de engajamento para o despertar, crescer e consumar-se da humanidade é dever e direito de todo cidadão livre, responsável pela tarefa de contribuir para a construção da humanidade livre e universal. Esse modo de empenhar-se pelo ser do homem se chama busca da identidade humana. E o que chamamos de cristão e franciscano[7] jamais pode estar alienado da participação desse empenho, portanto, do estudo de engajamento pela identidade humana. Aliás, a vocação cristã e franciscana não é outra coisa do que uma busca apaixonada da excelência do ser-humano, como ideal da humanidade livre e universal, aprofundada, assumida e agilizada por Jesus Cristo e seu seguidor Francisco, ideal e anelo de todas as pessoas de boa vontade, através de variegadas e diferentes atividades e ações. Sejam quais forem as nossas atividades, sejam como forem as necessidades e as exigências cobradas de nós na sociedade de hoje, na formação e no estudo, o modo de ser do estudo, i. é, do empenho no engajamento pela identidade humana, em nós e nos outros, deve-se ater a buscar e a amar o modo de ser do studium, portanto, do empenho do e ao trabalho, no sentido acima exposto. A nossa identidade franciscana e cristã, hoje, não consiste tanto em seguir esta ou aquela mundividência historiograficamente padronizada no passado como “escola franciscana” ou algo semelhante, mas sim em ir ao fundo da nossa herança viva espiritual franciscana e no âmago do espírito de Francisco descobrir a paixão da busca pela verdade do ser da identidade humana, que nele pulsava, e assim dispostos, abrir-nos à busca da excelência[8] do ser da humanidade, que pulsa no coração, i. é, no subterrâneo da nossa modernidade[9], hoje como estudos, pesquisas e investigações das ciências, da filosofia e da teologia.
- O estudo enquanto trabalho acadêmico
O adjetivo acadêmico aqui indica uma especificação, destacando esse tipo de estudo e trabalho do estudo especializado (mestrado e doutorado) e dos estudos profissionalizantes. Como tal, aqui, estudo acadêmico indica um grau ou uma qualificação (graduação) dentro do tipo específico de estudo que usualmente denominamos de acadêmico, cujo grau superior se denomina estudo especializado com o título de mestrado e doutorado[10]. Assim sendo, neste item, ao mesmo tempo em que se tenta dizer de modo direto e bem definido em que consiste o trabalho do estudo acadêmico no grau graduação, é de grande utilidade falar brevemente do que e como é o modo de ser desse trabalho qualificado como acadêmico. Como tal, o sentido do ser do estudo, enquanto trabalho acadêmico, apresentado aqui neste item, é no fundo o mesmo do ponto III, abaixo, que quer legislar a partir das diretrizes que normam os franciscanos que querem levar o trabalho do estudo acadêmico à qualificação maior de especialização[11].
Estudo acadêmico[12] indica o empenho do trabalho de ensino e aprendizagem escolar do saber científico-cultural, que a nossa sociedade moderna hodierna ocidental exige como saber obrigatório, para que os seus membros nela possam se mover com adequação, usufruir, participar de e contribuir para o seu progresso e manutenção. Esse estudo se organiza em aprendizagem e ensino da escola fundamental, secundária média e superior[13]. Esta última se chama também estudos universitários, e não há a seu respeito obrigatoriedade jurídica com tal. Mas, pela tendência da vigência do saber científico na humanidade atual, essa escolaridade superior torna-se praticamente obrigatória para quem quer não somente trabalhar eficazmente e com nível salarial melhor, mas também para todos que de alguma forma se doam ao ideal de engajamento humanitário e querem trabalhar com eficiência e competência para o bem da humanidade, hoje.
No estudo acadêmico, seja qual for o seu grau, é necessário adquirir e ter a plena consciência de que o saber científico, o seu modo de ser, domina a humanidade atual, e se transformou numa necessidade histórica. Como uma necessidade histórica de nossa humanidade atual, o estudo acadêmico, i. é, ensino e aprendizagem do saber científico deve nos educar num modo de ser todo próprio e nas virtudes provenientes desse modo de ser que somente a nossa época nos pode proporcionar.
- A importância do estudo acadêmico na vida do franciscano
O termo vida do franciscano não indica apenas os seus afazeres cotidianos, encargos sociais civis, clericais e religiosos, suas necessidades, mas também, ou melhor, em primeiro lugar, o modo de ser como e com que espírito encara, dinamiza, assume e dá sentido a todos esses afazeres, os quais podem facilmente se instalar em rotinas, executadas mecânica e indiferentemente, sem nada aprofundar e pesquisar. Vida, aqui, significa projeto de vida, o sentido da existência de cada um de nós enquanto identidade e missão do ser franciscano hoje. A importância do estudo acadêmico para o frade menor consiste hoje precisamente em engajar-se de corpo e alma no estudo acadêmico, não buscando jamais honra, poder, vaidade ou titulação não merecida, nem propriamente em primeiro lugar apenas conhecimentos e informações úteis à adaptação ao mundo do consumismo cultural, mas visando adquirir a dinâmica da busca apaixonada pela verdade, busca essa que foi o toque originário que deslanchou o élan do saber científico. E nessa busca deixar-se cunhar pelo modo de ser do saber científico, formando seu caráter intelectual na disciplina, no rigor do pensar, na transparência e autenticidade da hombridade intelectual, na constante e bem impostada crítica contra todo e qualquer pré-conceito e dogmatismo; abrir-se à intrepidez da criatividade na pesquisa e investigação da verdade, na disposição cordial da espera do inesperado[14]. Esse engajamento ou inserção no estudo, i. é, no empenho da existência científica deve nos importar a nós franciscanos, hoje, como participação na tarefa confiada à humanidade hodierna por Deus através da história. Assim exercitado e preparado pelo vigor do mundo do saber científico, importa ao franciscano, hoje, capacitar-se a retomar o modo de ser do empenho no trabalho exigido por nossa identidade franciscana; e foi esse empenho, a saber, o studium, o que mobilizou Francisco de Assis na busca da verdade da perfeição evangélica na vida de pobreza, no rigor e na precisão disposta do seguimento radical de Jesus Cristo. É algo inteiramente diferente compreender e exercer o ser franciscano hoje, através de gostos pessoais e particulares, através de modismos, devoções e certos modos do trabalho pastoral para a realização pessoal ou grupal e compreender e assumir o trabalho da realização e da busca da identidade franciscana e missão de ser frade menor hoje, importando-nos[15], i. é, conduzindo-nos para dentro da dinâmica que pulsa e atua no interior da nossa epocalidade como tarefa e responsabilidade da humanidade de hoje. A dinâmica do estudo acadêmico, como foi explicitada acima, pertence essencialmente a essa dinâmica de fundo do mundo moderno. O estudo acadêmico, i. é, do saber científico, que é o vigor de fundo do mundo moderno, presente e atuante no seu subterrâneo como um dos registros centrais do progresso moderno, na verdade, não é outra coisa do que a herança, recebida pela humanidade de hoje, da Idade Média de Francisco, através da Renascença e da Era Moderna inicial. O que e como os frades menores da origem trabalharam na busca da sua auto-identidade franciscana através do que hoje denominamos de modo espiritualista e pietista de “espiritualidade franciscana” vêm do studium, i. é, do empenho do saber e poder de fundo da Idade Média de Francisco, cujo lugar de cultivo e de fomento, hoje, se deslocou para o studium, i. é, o empenho do saber e poder de fundo na constituição do mundo moderno como estudo do saber científico[16].
A importância do estudo acadêmico na vida do frade menor consiste em renovar nossa mente, nosso coração franciscano, fazendo renascer em nós o entusiasmo dos jovens da origem na Ordem de Francisco de Assis, que, impregnados pelo amor à pobreza, i. é, dispostos a seguir a dinâmica e o élan, portanto, o studium de um Deus Encarnado, a saber, o studium do Jesus Crucificado, invadiram as universidades medievais de Oxford, Paris, Bolonha, não para buscar poder e honrarias pessoais, mas para se prepararem real e devidamente para o serviço de toda a humana criatura, nas fronteiras e nos lugares mais necessitados da humanidade[17].
- O estudo da filosofia
O estudo da filosofia possui uma peculiaridade toda própria que não ocorre em nenhuma outra disciplina do saber científico, pertencente à positividade científica. Não considerar essa peculiaridade no ensino e na aprendizagem da filosofia pode criar grande dificuldade, tanto na organização do curso, como no ânimo e na união dos que estudam e ensinam filosofia e na eficácia do estudo. Não se pode insistir demais nesse ponto, principalmente hoje, porque o estudo e o ensino da filosofia sofrem diferentes interpretações e intervenções, provenientes de instâncias que não são propriamente suas, mas de interesse imediatista de uso instrumental da filosofia para uma determinada meta funcional.
Em seu estudo, a filosofia apresenta dois lados, um virado para fora[18], para a superfície, e outro virado para dentro, para a profundidade do seu vigor essencial. Para fora, virado para a superfície, a filosofia no seu estudo se apresenta como produto cultural de determinadas épocas, como mundividências e mesmo ideologias, a saber, crenças e interpretações do mundo e da vida, de certos indivíduos ou de determinados grupos humanos. Nesse sentido o que denominamos filosofia cristã, filosofia marxista, filosofia franciscana, filosofia budista são no fundo mundividências e ideologias. Essas filosofias-mundividências são úteis e talvez até necessárias para a doutrinação e armação dos membros de uma determinada instituição para seu fomento e sua agilização como funcionários eficientes e produtivos, em vista do objetivo determinado pela instituição. Nessa compreensão da filosofia e do seu estudo, a filosofia é reduzida a um instrumento para a utilidade de uma instituição. Dentro de uma tal compreensão instrumental da filosofia e do seu estudo, discute-se hoje se o estudo da filosofia é útil e necessário para quem apenas quer ser agente de pastoral da grande instituição chamada Igreja Católica, por exemplo, e de suas sub-instituições, tais como ordens, congregações, escolas e universidades católicas etc.
Enquanto virada para dentro dela mesma, para a profundidade do seu vigor essencial, a filosofia é a paixão de busca da verdade de toda e qualquer pressuposição, estabelecida e padronizada em posicionamentos de mundividências e ideologias, sejam elas quais forem. Como tal, em seu estudo, a filosofia não serve para construir mundividências e ideologias. Ela, porém, não as destrói; critica-as pela raiz, examina seus fundamentos, sobre os quais as mudividências e as ideologias estão constituídas dogmaticamente. Enquanto virada para a profundidade dos fundamentos de toda e qualquer positividade das mundividências e ideologias, a filosofia perfaz a dinâmica de fundo das ciências e é a manifestação do vigor e rigor de precisão do estudo científico, hoje necessário para que também o saber científico não se torne ele mesmo dogmático, transformando-se em mundividência e ideologia camufladas. Sob esse aspecto do fundo do saber científico, i. é, da crítica, do discernimento dos fundamentos de todo e qualquer posicionamento, o estudo da filosofia é hoje um desafio necessário ao estudante que não quer ser apenas um funcionário politicamente correto de um saber doutrinário, processado em padrões e em módulos de uma ideologia, de uma mundividência, cuja “crença” não admite nenhum confronto de base; a quem tampouco quer continuar a viver e assumir a fé cristã como mundividência, doutrinação ou ideologia; mas é necessário a quem quer abrir-se de corpo e alma à límpida decisão de um encontro com o Evangelho em “espírito e em verdade” (Jo 4,24). Mas se este é o interesse do estudo da filosofia, o modo de organizar e ministrar seu estudo terá sua lógica e ordenação própria, as quais deverão ser pensadas, assimiladas e assumidas conscientemente.
Na organização do estudo da filosofia no ensino universitário oficial, esses dois aspectos da filosofia e do seu estudo são misturados ou equilibrados, na tentativa de acentuar ora um aspecto em favor ou em detrimento do outro, e isto conforme a tendência adotada pelas faculdades, cuja orientação sofre influências das mundividências e ideologias dos que as mantêm e coordenam. Há faculdades, onde o lado virado para a profundidade do fundo da filosofia é completamente excluído do estudo como um saber obsoleto, ultrapassado, por não corresponder ao modo da positividade das ciências, principalmente do tipo das ciências naturais físico-matemáticas. Mas algo semelhante pode acontecer também conosco, quando queremos que a filosofia esteja em função da mundividência denominada cristã, como um instrumento ou um serviço à fé (entendida como crença ou mundividência da Igreja)[19], e quando consideramos o ensino e o estudo da filosofia como um mal, senão desnecessário, ao menos necessário, pois não serve para a ação pastoral nem para o engajamento na evangelização. Uma tal impostação eliminou, já de antemão, a validade daquele aspecto essencial do estudo da filosofia orientado para a profundidade de sua identidade. Para que os estudantes de filosofia possam entrar de modo útil e eficiente no estudo da filosofia, a própria instituição, seus coordenadores, os formadores e os professores, deveriam entrar em acordo para dizer o que querem da filosofia e do seu estudo para a formação do estudante. Desconhecer ou ter uma idéia vaga dessa problemática de decisiva importância para os estudantes e os professores do estudo da filosofia é propriamente a causa das dificuldades surgidas no estudo da filosofia no mundo clerical. A culpa dessa dificuldade não está propriamente no estudo da filosofia enquanto filosofia, nem nos professores e estudantes de filosofia, mas sim na incompreensão dessa ambigüidade de seu estudo.